Samba Perdido – Capítulo 03, parte 01

Capítulo 03

Todo menino é um Rei.”

Roberto Ribeiro

 

Sexta-feira, 23 de novembro de 1968 foi um dia único. A poucos quarteirões do nosso apartamento, a Rainha Elisabeth II estava dormindo hospedada no Hotel Copacabana Palace.

Se estivesse acordada de madrugada, teria se maravilhado com o espetáculo diário do sol clareando o horizonte. A beleza do mar refletindo o céu aberto e evaporando sua agua no ar fresco desencadeava o cantar dos pássaros nas milhares de árvores das ruas entre os prédios do bairro. Essa sinfonia soava no bairro inteiro, quer na sacada do hotel, quer no nosso quarto no décimo segundo andar. Ao fundo, dava para ouvir ondas quebrando ritmicamente na praia, sua espuma salpicado a areia, indo e vindo na vastidão.

Meu pai saiu para sua caminhada diária enquanto a Rainha, sua comitiva, Renée,

Sarah e eu continuávamos no sétimo sono protegidos por ar condicionados barulhentos.

Nosso despertador tocou às seis e quinze da manhã em ponto. Por mais que a preguiça tentasse me convencer de que nada tinha acontecido, não dava para ignorar o barulho metálico alto e irritante. No estupor, vi o vulto da Sarah se levantar e aliviar a situação desligando o aparelho. Já com onze anos, estava com sua sua cabeleira negra, comprida e despenteada envolvendo seu pijama favorito até o ombro.

Me ignorando, não só ligou a luz como também fez um barulhão abrindo o armário para tirar suas roupas. Depois, saiu para tomar banho. Quando abriu a porta, o ar quente invadiu o quarto. Lutando contra a claridade e o calor de baixo da coberta, num esforço sobre humano, me estiquei para ligar o rádio de pilha deitado no chão.

Assim que deu para ouvir seu ruído, girei o sintonizador até achar a Rádio Globo. Quando consegui, entrei em sintonia com o Rio de Janeiro. Essa era rádio preferida das domésticas, dos porteiros e de outras pessoas comuns. Para mim era o Brasil em estado puro, eu adorava mas ninguém em casa conseguia entender como nem porque.

O apresentador bem-humorado com uma voz de cantor de ópera, Haroldo de Andrade, conduzia o show matinal de maior audiência da cidade. Nele, além de fazer orações, transmitia notícias, divertia os ouvintes com curiosidades e fazia entrevistas com astros do futebol, do samba e das novelas. Era um programa interativo em que gente da cidade inteira ligava para deixar opiniões sobre os assuntos do dia. Durante os intervalos, tocava os últimos sucessos do samba e hits da Jovem Guarda: Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Wanderléa entre outros. Roberto Carlos, o rei, devia ser muito caro para tocar naquele horário. Também havia a participação do astrólogo da programa, Alziro Zarur, que lia suas previsões com uma música mística, meio oriental ao fundo.

“Aquela porcaria” – que era como minha irmã se referia a meu programa de rádio favorito – estava no ar quando voltou do banheiro enrolada na toalha. Sem falar uma palavra, irritada com minha preguiça, mudou de estação, desligou o ar condicionado já fraco, abriu as venezianas de madeira e me mandou sair do quarto para que pudesse se vestir.

Ficou difícil dizer o que era mais irritante: não ser o mais velho, ser acordado daquela maneira ou simplesmente ter que levantar tão cedo. De qualquer forma, se me acordar era o que queria, funcionou. A luz forte e a música americana chata mataram o que restava da minha morbidez.

Antes de qualquer coisa, saí para a varanda. Assim os pés tocaram a cerâmica ainda fria, o sol bateu no meu rosto que, junto com a brisa vinda do Oceano Atlântico ali em frente, me desejou um bom dia. Aquele era o meu lugar favorito da casa; foi lá onde tinha aprendido a falar, a andar e a brincar. Adorava ficar ali contemplando a vista espetacular, sonhando acordado na rede de balanço em meio às plantas. Passava horas ali me debruçando no parapeito para ficar espiando as pessoas e os carros passando na rua lá embaixo.

Como um cão fiel, minha bola de futebol tinha passado a noite do lado de fora me esperando. Minha “dente de leite” não era uma bola profissional de couro, mas pelo menos não era daquelas infantis que mais pareciam um balão. Dava para jogar futebol de verdade com ela. Seu plástico esticado podia se tornar vil: se chutada com força contra a parede soava como um sino e caso a bolada acertasse na pele, vinha acompanhada de uma ardida enjoada. Por causa de acidentes com vasos e com outros objetos mais caros fiquei proibido de dar bicudas, fossem elas dentro de casa ou na varanda. Havia o perigo de quebrar uma janela, ou pior; segundo meu pai, se qualquer brinquedo caísse lá embaixo e acertasse a cabeça de alguém, poderia quebrar seu pescoço, rachar sua cabeça e talvez até matar.

“Já imaginou uma bola pesada?!”

“Mas como é que vão saber que ela veio daqui?”

“A polícia sabe de tudo!” respondeu Rafael se segurando para não rir.

Apesar das explicações, minha cabeça de jerico vivia tentada a jogar a bola lá embaixo para ver o que aconteceria. Estouraria? Até que altura quicaria de volta? Qual o estrago que causaria? Mas nunca me atrevi. Mais tarde acabei jogando uma daquelas bolas de borracha transparentes japonesas, mas o resultado foi decepcionante: não a vi quicando de volta nem ouvi barulho nenhum, simplesmente desapareceu.

*

Já frequentava a escola, a British School of Rio de Janeiro. Naquele dia a família inteira estava indo para o evento importante. Minha irmã, já vestida, veio até a varanda para ver o que estava fazendo. “Richard! Você ainda está aí!? Você vai atrasar todo mundo!”

Depois da mini bronca, fui me preparar. O bom de se estar no banheiro é que dava para ouvir o rádio da Maria, nossa empregada, na área de serviço. Ela também gostava da Rádio Globo mas de manhã cedo, para garantir que tudo fosse feito dentro do horário, ouvia a Rádio Relógio, uma estação que dizia as horas a cada dois minutos entre anúncios monótonos e informações bizarras.

“Você sabia que o rinoceronte africano tem dois chifres; o maior fica na frente e o menor atrás? Você sabia?… Biiip, biiip, biiiiip… são seis horas, quarenta e dois minutos e zero segundos… Biiip.”

Tanto eu quanto a Sarah adorávamos aquela mulata faladeira que vivia rindo de nossos hábitos gringos. Forte mas não gorda, lábios carnudos, um dente de ouro, olhos intensos e puxados como os orientais, ela enchia nossa casa de alegria brasileira, principalmente quando estávamos a sós. Anos mais tarde o porteiro, Zé, me contaria que Maria era fogosa e que a maioria dos empregados de nosso prédio já havia tentado algo com ela, com níveis variados de sucesso.

Depois do banho, de escovar os dentes, pentear os cabelos, vestir o uniforme com perfeição e colocar sapatos engraxados desconfortáveis estava pronto para me unir à família. Odiava com paixão aquelas frescuras, mas não tinha jeito.

Quando cheguei, estavam todos me esperando sentados embaixo do toldo na varanda. Em dias de sol, o café era servido ali numa mesa de plástico dobrável que minha mãe mandava cobrir para disfarçar sua simplicidade. Maria estava de uniforme fazendo cara séria em frente ao homem da casa e tomando cuidado para não derramar nada ao servir nosso café da manhã anglo-tropical; ovos cozidos, leite quente, mingau, geleia, bananas, mamão, suco de laranja espremido na hora, pão preto, mel e manteiga.

*

Café tomado, uniforme conferido e impecável, sapatos brilhando, com dona Renée, seu Rafael e minha irmã nos seus trajes mais finos, a família estava pronta para sair. Descemos juntos no elevador. Na portaria, minha mãe deu as chaves do carro para o garagista e logo que ele saiu com o Aerowillys na rua, eles entraram e partiram.  Não fui com eles, tinha que ir no ônibus escolar, afinal era o único que estudava lá. Fiquei esperando com o Zé falando de futebol.

Para apanhar os alunos, o ônibus vermelho ziguezagueava entre as vias principais do bairro; a Avenida Atlantica, a Avenida Nossa Senhora de Copacabana e a Rua Barata Ribeiro onde, na sombra das árvores antigas, bondes soltavam faíscas brilhosas ao tocarem o emaranhado de fios elétricos sustentados pelos postes enferrujados.

Eram oito da manhã e todos meus colegas do bairro tinham enchido o ônibus. Antes de pegar o túnel, ficamos presos num engarrafamento junto com outros ônibus lotados, bondes, lotações, taxis e carros particulares. Motoristas impacientes buzinavam e gritavam sem qualquer motivo enquanto crianças descalças das favelas passavam no meio do congestionamento conduzindo seus carrinhos de rolimã, tão baixos que quase tocavam o asfalto.

Na nossa condição de gringuinhos grã-finos, olhávamos para aqueles meninos maltrapilhos pela janela com uma mistura de inveja e de medo. Muitos eram da nossa idade e sabíamos que apanharíamos fácil se tivessem a oportunidade de nos enfrentar. Eles eram contratados por feirantes para entregar seus produtos nas casas ou nos escritórios dos clientes. Esses mercados improvisados mudavam de bairro todo dia, mas onde quer que parassem, o odor acre de frutas, de carne e de peixes expostos ao sol era o mesmo. Seu cheiro e seu barulho inconfundíveis anunciavam sua presença a vários quarteirões de distância. De dentro das bancas de frutas, homens em camisetas rasgadas cantavam rimas para atrair as madames

“Ooooolha aí! Mulher bonita paga metade se levar meio quilo! – Olha a banana novinhaaaaa, dez cruzeiros a dúziaaaaa!”

Nos cruzamentos, policiais elegantemente uniformizados controlavam o trânsito por meio de uma coreografia de apitos, olhares e movimentos de mãos que lembravam um ritual de acasalamento de uma ave rara que os motoristas pareciam entender.

*

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– Início –

Samba Perdido Capítulo 1-2

Eram 5:30 da manhã em meados de Novembro de 1955, trinta e cinco horas depois de decolar de Londres, parar por três horas em Lisboa, fazer o mesmo por quatro horas em Dakar, Senegal, atravessar o oceano Atlântico e ficar mais três horas no Recife, o voo da BOAC, BA0249, estava finalmente se aproximando do Rio de Janeiro.

O sol ameaçava se insinuar no céu estrelado quando um sinal aveludado nos alto-falantes acordou os passageiros. Em seguida, uma voz feminina, primeiro em inglês e depois em português, desejou a todos um bom dia e anunciou que estavam a uma hora da destinação.

As aeromoças acenderam as luzes e passaram a servir um generoso café da manhã. Para os ingleses, ovos estrelados com bacon, torrada, marmelada e chá, para os brasileiros, ovos mexidos, pão francês, queijo fresco, goiabada e café forte. Junto com a comida distribuiram formulários de imigração e da alfândega para quem precisasse.

Terminada a última refeição a bordo, loucos para descansar numa cama de verdade, os passageiros passaram a organizar a sua chegada. Do lado de fora, a claridade já revelava o mar no horizonte. Embaixo, as primeiras luzes estavam se acendendo na descida da serra para a Baixada Fluminense. Enquanto os primeiros carros e caminhões se aventuranvam na madrugada vazia a tripulação percorria o corredor recolhendo as bandejas.

Rafael e Renée estavam preenchendo os formulários. O casal chamava atenção por sua discreta bizarrice. Ele era baixo, olhos azuis espertos e frios, cinquenta e poucos anos, um tanto antipático e com um pesado sotaque do leste europeu. Em contraste, ela era uma londrina com sotaque chique, alta e exuberante, de cabelos curtos e castanhos e muito mais jovem que o marido.

Não demorou muito para a voz feminina retornar aos alto-falantes pedindo a todos que apagassem seus cigarros e apertassem os cintos de segurança. Do lado de fora a vista se tornou magnífica. O dia estava raiando sobre o Rio de Janeiro. O sol dourava o Cristo Redentor junto com a vegetação e as pedras gigantescas da Floresta da Tijuca em torno dele. As águas da Baia de Guanabara e as ilhas no mar aberto ja se misturavam da maresia. Aquele espetáculo foi bem-vindo após praticamente dois dias chacoalhando numa aeronave apertada ouvindo o ronco incessante das hélices. Rafael deu uma olhada no relógio, 6:15 da manhã, 45 minutos mais cedo do que o esperado.

O avião deu sua sacudida final quando tocou o solo em alta velocidade. Assim que se tornou controlável, os passageiros aplaudiram o piloto que passou a guiar a aeronave lentamente rumo ao terminal. Quando parou, a tripulação apagou os sinais de apertar os cintos e de parar de fumar e abriu a porta deixando ar fresco da madrugada entrar para ventilar a cabine claustrofóbica.

Com seus pertences prontos, Renée e Rafael se puseram na fila de saída. Na porta, depois de trocarem sorrisos cansados com a aeromoças, uma brisa tropical acariciou suas peles lhes dando boas-vindas. Com sua nova cidade à frente, desceram a precária escada e se dirigiram ao terminal com os outros passageiros.

A bruma espessa e seu calor húmido tiveram o efeito de evaporar o torpor da viagem na Renée. Eufórica com o início de sua aventura carioca, estava parecendo uma criança numa loja de doces tentando puxar conversas com o marido exausto e monosilabico.

“Deveríamos achar um apartamento perto da praia, não acha? A revista disse que perto da floresta há risco de malária.”

Entraram na fila fila da imigração e ela não parava. “Eu quero ir para praia ainda hoje. Copacabana deve estar explendida!”

Quando chegou sua vez, o policial acenou. Depois de mostrarem seus passaportes e de entregarem os formulários, receberam os carimbos requeridos. Dali em diante, estavam liberados para viver no Brasil.

Ao sair para o saguão de desembarque, talvez por estarem vindo para ficar desta vez, sentiram o desconforto de serem completos estrangeiros. Com exceção dos outros passageiros europeus, ninguém ali falava inglês ou qualquer outra língua que lhes fosse familiar. Além de have mais “não-brancos” do que estavam acostumados, a emoção e os abraços com que os locais recebiam seus familiares e amigos, realçava sensação de alienação. No fundo de suas mentes uma pergunta gritava em silênico: “Será que tomamos a decisão certa?”

*

No saguão do aeroporto carregadores uniformizados e educados apareceram se oferecendo para levar suas malas até a fila de táxis do lado de fora. Depois de se certificar que as bagagens estavam devidamente organizadas no porta-malas e de dispensar o seu primeiro dinheiro local na gorjeta, entraram no carro.

“Por favor”, disse Rafael antes de ler o papel com o endereço do hotel e ponunciá-lo em um português quebrado que duvidou que o motorista fosse entender. Ele finalizou o desconforto com um desajeitado  “Obrigado”.

O motorista disse OK, mas pediu através de sinais para ver o pedaço de papel. Depois de dar uma lida, abriu um sorriso amigo e disse, “Hotel Miramar, Copacabana, yes mishterr!”

Assim que partiram, a estranheza que sentiram no aeroporto sumiu. O sol já estava a pino e fazia calor. Animados, colocaram seus óculos escuros e passaram a apreciar o cenário. Logo pegaram a Avenida Brasil, que estava apinhada de carros de fabricação americana, caminhões e ônibus de qualidade duvidosa, todos indo rumo ao centro da cidade. De repente, sentiram o mau cheiro vindo da favela beirando a estrada​. O fedor forte passou quando chegaram na zona portuária. Apesar de mais primitiva que a de Londres, era charmosa com sua série interminável de armazéns coloridos com chaminés e mastros de navios aparecendo logo atrás.

Do porto, o motorista, agora concentrado num programa no rádio, seguiu para o Centro. Lá atravessaram sua mistura contrastante de igrejas coloniais, prédios públicos de estilo modernista e construções vistosas da Belle Époque. Ao fim da avenida elegante e arborizada, chegaram na Baía de Guanabara onde deram de cara com o Pão de Açúcar. Dali o motorista, ousado demais para seus gostos, continuou a viagem apressada beirando a baía. Lá passaram pelos bairros do Flamengo e de Botafogo antes de finalmente atravessar dois túneis e chegar em Copacabana. Fizeram aquela curta viajem com as​ janelas abertas​, sentindo o vento no rosto, absortos pela beleza da cidade e relevando o programa de rádio incompreensivel e as barbeiragens do motorista.

*

A primeira coisa que fizeram depois que a bagagem chegou no quarto e que fecharam a porta, foi ligar para o Paulo. Ele havia dado a desculpa de que naquele dia tinha assuntos importantes a resolver e por isso não tinha dao para ir de madrugada recebê-los no aeroporto. Após uma conversa animada e piadas sobre o voo interminável marcaram de se encontrar no dia seguinte.

Paulo era um sujeito curioso. Além da sua personalidade fácil e de seu endereço exótico, possuía outra peculiaridade: era comunista. Esse tinha motivo original do seu exílio da Alemanha já nos meados dos trinta. Havia perigo de morte. Nunca soube dos detalhes dessa ameaça nem se continuou sua militância no Brasil, mas se tivesse, isso não teria sido pouca coisa no auge da ditadura de Vargas quando chegou.

Nos trópicos, a amizade entre os dois veteranos da loucura europeia floresceu. Apesar de antifascista, Rafael estava longe de ser de esquerda. De qualquer forma, os longos papos em iídiche trouxeram de volta as discussões políticas, tema central na vida judaica no leste europeu.

Durante uma dessas conversas, Paulo gabou-se de seu relógio produzido na comunista Alemanha Oriental ou RDA. “Está vendo este relógio aqui? Ele foi produzido livre da exploração capitalista. Pode ver! Ele funciona tão bem quanto qualquer relógio feito na América!”

Embora o relógio não fosse lá essas coisas, ao analisá-lo meu pai teve um “momento eureca”. Ele percebeu que tinha em mãos uma excelente oportunidade de negócios. Na cabeça dos brasileiros, alemão era sinônimo de confiável e, fabricados em um país comunista, seus preços seriam muito competitivos. A recém-criada classe média baixa brasileira iria, certamente, consumi-los como água.

Anos antes do golpe de 1964, com a ajuda dos contatos partidários do Paulo, Rafael atravessou o muro de Berlim, e foi se encontrar com o comissariado encarregado da fábrica de relógios. Com eles conseguiu um contrato para ser o representante exclusivo para o Brasil.

À primeira vista poderia parecer estranho que alguém com o seu passado fosse ganhar a vida vendendo produtos alemães e, pior ainda, comunistas. Seja como for, o rigor e a praticidade teutônica lhes eram reconfortantes. Adotando essa mesma objetividade fria, foi em frente sem deixar que sentimentalismos e ideologias interferissem nas suas decisões. Nisso, ele era igual à maioria de seus amigos judeus. Apesar de tudo o que eles e seus entes próximos haviam enfrentado durante a guerra, ainda guardavam respeito pelo pragmatismo e pela eficiência germânica. A subserviência ainda estava viva e, como a maioria dos sobreviventes europeus orientais, continuavam a ver a Alemanha como a liderança nata e incorruptível do seu mundo.


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Samba Perdido – Capitulo 1 – 1

Ainda que tivessem, nas palavras de Winston Churchill, anos de sangue, suor e lágrimas pela frente, o exílio na Inglaterra não poderia ter sido melhor. Longe da SS e das suas câmaras de gaz, em meio a ônibus de dois andares, névoa espessa, homens de cartola, taxis quadrados, políciais de chapéu estranho e sem armas e dos vários sotaques da língua inglêsa, Rafael foi se adaptando à condição de refugiado. Por mais diferente que Londres fosse, a vida lá era reconhecivel; havia tolerância, estado de direito, respeito às liberdades individuais e um governo disposto a resistir o fascismo e tudo o que ele representava.

Com o perigo afastado – pelo menos temporariamente – a possibilidade de seguir adiante voltou. Sem dominar o idioma nem conhecer ninguém, seu ponto de partida óbvio foi a comunidade judaica. Além do iidiche – a língua comum aos Judeus da Europa do Leste –  para ajudá-lo naquele meio havia o seu nome nas manchetes de jornal. O resgate dramático de uns dos primeiros refujiados a fugirem das garras nazistas na Holanda e sua sobrevivência improvável em alto-mar ganhou manchetes em jornais.

Essa exposição midiatica junto com a vontade expressada pela primeira dama dos Estados Unidos, Eleanor Roosevelt, de adotar seus sobrinhos, fez dos irmãos semi celebridades na comunidade. Membros eminentes brigavam entre si para oferecer jantares em sua homenagem. Enquanto Ziesch se deleitou com a bajulação, Rafael, astuto, usou as oportunidades para fazer contatos.

Em uma dessas ocasiões, Renée apareceu em sua vida. Vinda do bairro abastado de Golders Green, uma espécie de “quartel general” de membros emergentes da comunidade onde muitos refugiados famosos estavam vivendo, era uma princesa com metade de sua idade e quase o dobro de sua altura, Fascinada pelas histórias e pela aura de herói do seu pretendente – e ciente de que os melhores elegíveis estavam envolvidos na guerra de uma maneira ou de outra – Renée, que só não foi modelo porque seu pai não permitiu, aceitou um romance com um homem vinte anos mais velho.

Seu pai, Alec, era um comerciante de tecidos bem-sucedido; um viúvo, alto, bonito, com fama de mulherengo. Embora as más línguas comentassem que tinha se dado bem na vida dando golpes do baú, ele era boa praça. Ciente de ser o mais próspero de toda a família, ajudou muitos parentes em apuros sérios durante a guerra.

Ele simpatizou de cara com o seu futuro genro e viu na sua situação mais uma oportunidade de fazer alguma coisa pela sua gente. Rafael era um sujeito maduro, confiável, dinâmico e esperto que parecia uma boa escolha para proteger sua filha adorada. Levando em conta as limitações financeiras do casal – e as causas dessas limitações – resolveu dar de presente de casamento uma casa em Hendon, um bairro aconchegante no norte de Londres.

*

O casamento foi tão grande quanto podia numa situação de conflito militar. Contudo, apesar dos racionamentos, dos bombardeios constantes e da insegurança durante guerra e da penúria da reconstrução depois dela, os primeiros anos foram felizes. Após passar por alguns empregos pouco desafiadores quando solteira, Renée pode mergulhar de cabeça na carreira de rainha do lar na sua confortável casa com jardim. Rafael por sua vez, pôs em marcha a sua experiência empresarial agora contando com uma penca de ótimos contatos.

Enquanto os filhos não chegavam, um dos maiores prazeres do casal era receber convidados para jantares formais nas noites de sexta-feira. As visitas eram variadas: intelectuais, artistas, pessoas eminentes da comunidade, diplomatas de segundo escalão, vizinhos além de, é claro, amigos e familiares.

Um desses convidados foi Paulo, um alemão amigo de um amigo em comum. Ele estava de visita em Londres e vivia num lugar exótico e famoso que suscitava a imaginação dos ingleses, mas onde pouquíssimos tinham se aventurado: o Rio de Janeiro. Ele tinha emigrado para lá muito antes da guerra por motivos políticos. Contudo seu passado não estava no cardápio da conversa. Por nunca terem conhecido alguém que tivesse ido naquela cidade, muito menos alguém que morasse lá, queriam saber tudo.

Ele os fascinadou assim que começou a falar. Com quinze anos de Brasil, bronzeado, Paulo tinha um ar muito mais descontraído do que os frequentadores habituais daqueles jantares. Encorajado pelo interesse, o convidado se sentiu bem satisfazendo a curiosidade dos anfitriões e ficou horas descrevendo e contando histórias pitorescas da cidade pela qual tinha se apaixonado.

Enquanto bebiam vinho francês em taças de cristal e trocavam de talheres e de pratos conforme as diferentes partes da refeição iam aparecendo, o casal foi digerindo o que ele dizia. A beleza do lugar, as praias, os morros no meio da cidade cobertos por florestas tropicais densas e o clima ensolarado. Aquela era uma terra onde meninos jogavam futebol descalços nas ruas, onde a população morena fazia e dançava a música mais alegre e tomava conta da cidade  no Carnaval. Pelo olhar estrangeiro, havia uma espontaneidade, uma cordialidade e uma leveza únicas que permeavam o ar. Nos bairros residenciais havia uma mistura ímpar de uma saudável cultura de praia com todas as amenidades que se podia esperar de uma cidade moderna, tudo a preços ridiculamente baixos para Europeus.

Quando Paulo pegou o táxi para voltar para o hotel já de madrugada não imaginava o efeito da sua visita. Ele havia mexido com a imaginação do casal. Depois de arrumarem a casa e irem para cama, ficaram horas sonhando acordados e resolveram aceitar o convite do seu novo amigo para que fossem visitar o Rio de Janeiro.

Isso aconteceu em 1953 e foi amor à primeira vista. A estadia confirmou tudo o que paulo tinha falado. Conheceram as praias maravilhosas, andaram pela floresta e viajaram pelos arredores do Rio onde descobriram vilarejos perdidos no passado. Os dois se encantaram com a morenice tropical que exalava em todos os lugares; a atitude relaxada e amistosa, as frutas, o calor, as cores e a paisagem. De volta à chuva fria e à vida regrada de Londres, a viajem ficou como o um tesouro precioso e com o tempo, a saudade passou a bater forte.

Sem nada que os prendesse ao Reino Unido, decidiram embarcar numa aventura e se mudar – temporariamente – mas quem sabe definitivamente – para a cidade maravilhosa. A decisão chocou amigos e familiares. Embora muitos ingleses estivessem emigrando devido às dificuldades econômicas do pós guerra, o Brasil era um destino inusitado para um jovem casal judeu. Naqueles tempos de reconstrução, supunha-se que se mudassem ou para Israel por ideologia, ou para a América do Norte, a África do Sul, ou a Austrália. Nesses países se falava inglês, havia familiaridade cultural e as mesmas oportunidades que no Brasil. Ninguém entendeu a escolha, mas o destino falou mais alto.

 


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Samba Perdido – Capítulo 1

Capítulo 01 

 

“No início Deus criou os céus e a terra.”     Torá – Bereishit

Como tudo que envolve o destino, o caminho de Rafael para o Brasil foi conturbado. Tudo começou nos anos 1930 quando ele mal sabia onde o país ficava. Uma explosão de irracionalidade estava varrendo a Europa e criaria, entre outros horrores, a “solução final” proposta por Adolph Hitler para a sua gente. Essa ideia devastaria sua família no sonolento interior da Polônia. Dois terços dela – seu pai e sua mãe inclusive – acabariam, sem culpa nem compreensão, vítimas do delírio supremacista.

Antes disso, pouco depois do fim da Primeira Grande Guerra, Rafael saiu do seu vilarejo, Krosno na Galícia Polonesa, para tentar a vida em Berlim, na Alemanha. Enquanto os vitoriosos impunham sanções humilhantes aos vencidos e os bolcheviques se instalavam no comando da Rússia prometendo revolução pelo mundo afora, ele testemunhou o nazismo se rastejar para dentro da alma do povo a sua volta. Nos meados da década a situação piorou. Os comícios do racista histérico de bigode retilineo passaram a atrair milhões. Com o apoio da população, os mais radicais passaram a atacar judeus nas ruas e a pintar estrelas de Davi nas vitrines das suas lojas. Em Berlim, o olho do furacão, o ódio se institucionalizou e as autoridades passaram a criar leis excluindo “inimigos do Reich” da vida pública. No seu caso, o absurdo era mais óbvio porque sendo louro de olhos azuis e um sujeito altivo que gostava de andar alinhado, era confundido toda hora com um ariano legítimo.

Quando a situação se tornou irreversível, ele e seus dois irmãos se mudaram para a Holanda. Em Amsterdã, como na história dos três porquinhos, nosso já não tão jovem herói assumiu o papel do irmão trabalhador enquanto o mais velho, Ziesch, arrumou um bom casamento e o mais novo, Heimish, caiu na esbórnia. Porém, em maio de 1940, com a neutra Holanda prestes a ser invadida pelos exércitos nazistas, o turbilhão voltou ao seu encalço.

Rafael sabia bem que a SS não estava para brincadeira. Um ano antes, os alemães haviam conquistado sua terra natal. Temendo o pior, ele passou pela experiência dolorosa de ter que cruzar a Europa livre para ver seus pais, agora impedidos de sair do país pela administração nazista, talvez pela última vez. No posto de fronteira, dos dois lados, soldados nervosos patrulhavam o arame farpado em meio à neve num clima de pré-guerra, Sem a possibilidade de atravessar, Rafael teve que se contentar talvez se despedir de Toni e de Wolf de longe e acenar.

Sua premonição se provaria correta. Algumas semanas mais tarde seus pais foram isolados do mundo. Primeiro, foram deportados e trancados num gueto e mais tarde transportados como gado para um campo de concentração, Auschwitz, de onde só sairiam como cinzas flutuando no ar.

*

De volta à Holanda, na véspera da invasão, Rafael conseguiu comprar passagens para um navio com destino à segurança da Inglaterra. Na hora H, com aviões dando rasantes por cima das casas, sons de sirenes rasgando o ar e o rugido do assalto à cidade se aproximando, os dois irmãos se deram conta de que Heimish, o terciero, tinha sumido. Em vez de correr para o porto, saíram feito loucos atrás dele. Quando perceberam que não havia como encontrá-lo, o navio já tinha partido.

Desesperados, foram para o cais, agora a única possibilidade de fuga. Lá, em meio ao caos, Rafael deu um jeito de comprar um bote de pesca. Naquela frágil embarcação de madeira, ele e a família do irmão sairam remando para o alto-mar. Já distantes, pararam​ para assistir, incrédulos, a vida que sempre conheceram desaparecer em explosões no horizonte. Sem saber se tinham dado azar ou sorte de terem conseguido fugir, partiram em silêncio sabendo que dali em diante estariam entregues ao destino. O cálculo era que na debandada, um barco maior os recolhesse. No entanto, dez longos dias e noites se passaram sem comida ou bebida a bordo e nada de outra embarcação nem de algum sinal de vida no vazio do mar do Norte.

A noção de onde estavam e para onde iam dependia de Eli, o filho de quatorze anos de Ziesch. Tido como o malandro da família, principalmente depois que um vizinho veio reclamar que o menino tinha deflorado sua filha adolescente, ele havia aprendido nos escoteiros a se orientar pelas estrelas. Apesar daquele conforto inútil, o clima era de ansiedade, fome, sede e desorientação. Resignado com o inevitável, Rafael gravou seu nome na madeira para que soubessem de quem seria o corpo quando o encontrassem. Na décima manhã, a esperança apareceu na forma de um avião militar. Esperto, o garoto teve a ideia de usar um espelho para refletir a luz do sol nos olhos do piloto. Funcionou. A aeronave fez um círculo em torno do barco. Por sorte, era britânica.

O piloto apontou para a direção que tinham que seguir e deve ter avisado seu comando porque a marinha real enviou um navio para o resgate. Usando o que restava das suas forças, os naufragos voltaram a remar rumo à sobrevivência. Não tardou para que vissem um pequeno ponto no horizonte. A bordo do navio de guerra, a tripulação teve que agir rápido pois estavam próximo de um campo minado. Um atraso de algumas horas teria impossibilitado o resgate e teria significado a morte em alto-mar, quer por explosão, quer por inanição. Durante a operação, aviões alemães atacaram o navio matando alguns marinheiros. Devemos agradecer e admirar esses heróis anônimos. Sem o seu sacrifício e sem a humanidade da tripulação essa história nunca teria acontecido.

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prefácio