Yokohama, 30 de junho de 2002. Há vinte anos, uma final de Copa do Mundo de arrepiar. Brasil e Alemanha nunca haviam se enfrentado antes em Mundiais, e esta primeira vez seria justamente na final. Para um amante do esporte bretão como eu, e da seleção brasileira em particular, um dia de gala e de muita tensão.
Minhas fantasias de heroísmo sempre passavam pelos gramados, desde a adolescência. Volta e meia eu me imaginava capitaneando a seleção brasileira, um camisa 10 à altura de um Zico, liderando uma virada histórica em final de Copa do Mundo, em cima de… adivinhem qual seleção. Ganhar da Alemanha seria uma vingança virtual tardia e benigna para aquele rapaz, tão judeu quanto brasileiro, que perdeu toda a família nos horrores da Segunda Guerra Mundial. Uma vingança que trocava o horror de um campo de batalha pelo frescor da grama bem aparada de um campo de futebol. Um judeu capitaneando um time de mestiços contra uma seleção alemã ainda branca…doce e prazerosa fantasia!
Assim que os dois finalistas foram anunciados, esta fantasia juvenil voltou forte naquele homem de 42 anos. Na vida real, já havia estado na Alemanha, hospedado em Frankfurt na casa de uma prima casada com um alemão não judeu, e nunca tive problemas com isso. Meus pais já haviam visitado a Alemanha a convite do governo federal e da prefeitura de Wiesbaden, cidade natal de meu pai, e foram muito bem recebidos. Em 2008 estive em Berlim com meu pai, e nos sentimos muito bem. Nunca entrei numa posição de culpa coletiva em relação aos alemães. Quanto a racismo, tenho certeza de que hoje é mais fácil ser judeu na Alemanha do que negro ou indígena no Brasil.
Não obstante, a História ecoava dentro de mim, assim como minha história familiar. Sempre li muito sobre nazismo e seus funestos desdobramentos, fenômeno alemão em sua essência. Lia e ouvia os depoimentos dos combatentes judeus nos guetos e florestas, e me imaginava junto com eles. Fui atrás da história dos judeus de Pacanów, cidadezinha polonesa dos meus avós maternos, e recebi do historiador local o relato do dia da deportação dos judeus pelos nazistas, 18 de novembro de 1942. Mulheres em final de gravidez, crianças pequenas e idosos eram fuzilados nas ruas e em suas casas, pois atrasariam a longa caminhada até a cidade de onde partiria o trem que os levaria às câmaras de gás de Treblinka, e os trens eram pontuais… ainda são. Não é um assunto neutro para mim, e nem poderia ser. Aquela final de Copa do Mundo não era um jogo qualquer.
E eis que dos pés de Ronaldo veio a vitória, e minha redenção. Desde então, nunca mais tive aquela fantasia, até então recorrente. De alguma forma, estava vingado; faltava apenas aquele ato simbólico. Naquele dia, os combatentes do gueto de Varsóvia venceram. O capitão Cafu levantou a taça e, na sua camisa, a inscrição “100% Jardim Irene” soava como se fosse meu Bom Retiro natal, afirmação de pertinência às origens deste caleidoscópio -acolhedor para uns e cruel para outros- que é o Brasil. Anos depois, assim como Caetano Veloso viu e reviu São Paulo em “Sampa”, algo semelhante se passou comigo em Berlim. Pude passear na sua garoa e curtir numa boa.
É matemático: a situação política, econômica e social piora, e lá vem gente falar em nazismo. Neste Brasil onde querem que tudo se desregulamente e se libere (surfando nas mais destrutivas pulsões), os arautos da liberdade total de expressão renovam suas investidas. E porque não um partido nazista? Se todas as linhas podem se expressar, porque não debater com nazistas? Monark, o youtuber, e Kim Kataguiri, o deputado, unidos na aparente liberdade de debater, acham errado que Brasil e Alemanha criminalizem (em graus diferentes) o nazismo. Como disse o youtuber, deixem que nazistas e judeus confrontem suas ideias! Como se os judeus fossem um partido político, e como se nazistas tem interesse em debater o que quer que seja, e não impor goela abaixo sua doutrina assassina. Estranha liberdade. E então Pondé, o filósofo inteligentinho, discorre no jornalão sobre o “equívoco do jovem liberal” (Monark), enquanto a esquerda já rotula o youtuber de nazista. Sobrou até para a deputada liberal, que confrontou apropriadamente as barbaridades ditas no programa, mas cometeu o pecado (aos olhos mais intransigentes) de se deixar fotografar com supostos nazistas.
Monark não é liberal e nem nazista: ele não é nada. Um zé-ninguém vazio de ideias e ignorante da História, retirado do anonimato pelas mídias eletrônicas. E aí é que mora o perigo: ele é massa de manobra perfeita para neoliberais e nazistas, que advogam a liberdade de expressão e de associação política e econômica totais, livres de freios e regulações institucionais. Depois que tomam o poder, a coisa muda. As SA, milícia formada pela escumalha social, uniformizada por Hitler e semeadora do terror inicial nazista, prepararam o terreno para que Krupp, Siemens e Bayer faturassem alto com contratos generosos com o regime, e com trabalho escravo em suas fábricas. Ah, a liberdade de empreender! Nazistas e empresários dançaram esta valsa por um bom tempo.
Já conhecemos alguns que faturaram alto com o nazismo, mas e quem saiu perdendo? O nazismo foi ruim para quem?
Quem já viu “A Lista de Schindler” e “O Menino do Pijama Listrado” dirá de imediato: para os judeus. Quem tiver mais leitura, ampliará para outras minorias: homossexuais, ciganos, comunistas e Testemunhas de Jeová. Fica a impressão de que, não pertencendo a estas minorias, até que o nazismo poderia passar como mais um regime totalitário, entre tantos outros.
A verdade é que o nazismo foi ruim para todos, inclusive para seus apoiadores iniciais. Assim que tomaram o poder em 1933, os nazistas inauguraram em menos de dois meses seu primeiro campo de concentração, Dachau. Uma categoria profissional que frequentou bastante este campo foi a dos jornalistas. Criticou o regime? Vai para uma temporada de “reeducação” lá. Voltavam quebrados física e psicologicamente, sem trabalho e sem jornais que os albergassem, pois tiveram redações vandalizadas pelas SA e foram fechados pelo regime. Na política, Hitler proscreveu todos os partidos políticos já em 1933, mesmo os conservadores que o apoiaram inicialmente (alô, Kataguiri!). O parlamento alemão virou monopartidário, só com a claque apoiadora do regime. Liberdade política total para aplaudir Hitler. Fim da democracia, de uma só canetada.
Então não bastava ser alemão e “ariano” para se dar bem? Nem de longe. Que o digam todos aqueles que tinham a mínima crítica ao regime. Que o digam os dirigentes das SA, assassinados em 1934 a mando de Hitler para abrir caminho para as SS, na chamada Noite das Facas Longas. Que o digam os parentes de “arianos” com deficiências físicas e mentais, vítimas do programa nazista de “eutanásia”. Em Berlim, estive no memorial do Programa T4, na Tiergartenstrasse 4 (daí o nome). Os nazistas eliminaram dezenas de milhares de deficientes físicos e mentais da “raça ariana” em câmaras de gás. Hitler queria uma “raça” perfeita, e campanhas foram feitas sobre os custos de sustentar gente “inútil”. O Programa T4 serviu como treinamento para os futuros operadores das câmaras de gás de Auschwitz e outros campos de extermínio. Quem denunciava às autoridades os destinados ao “tratamento especial” eram os próprios médicos (!!!) das vítimas. No memorial, uma escultura representa os ônibus cinza que vinham buscar as vítimas em suas casas, com janelas opacas, pintadas da mesma cor. A família era obrigada a entregar seu parente. Horror puro.
Para encerrar esta fatura macabra e autofágica, ressalto uma característica do nazismo que acrescenta horror ao já horrível infanticídio de crianças das “raças inferiores”: o filicídio. A cúpula nazista mandava os próprios filhos e netos para a morte certa, em nome do sacrifício pela raça e pela pátria. Nem me estenderei sobre o conhecido assassinato dos seis filhos do casal Goebbels, envenenados com cianureto no bunker de Hitler, a mando dos pais (que se suicidaram em seguida) e pelo médico (médico!!!) de Hitler. Dou outro exemplo menos conhecido, o das pontes de Pichelsdorf, a oeste de Berlim. Em abril de 1945, últimos dias da guerra na Europa, 5000 garotos da Juventude Hitlerista foram enviados para estas pontes, com a ordem: detenham o avanço soviético até que o exército do general Wenck chegue. Só que mentiram para eles: não havia exército salvador nenhum. O Exército Vermelho chegou lá e destroçou os jovens combatentes. Antes, ofereceram rendição, sem resultado. Abalados, os soldados soviéticos contaram estarrecidos da grande quantidade de garotos que combateram até o fim e se suicidaram para não serem aprisionados. Dos 5000, restaram prisioneiros somente 500. Sacrifício inútil, crime final de um regime filicida.
O nazismo é tudo de ruim, para todos. Reduzir o mal que fez somente para minorias é um erro. O nazismo é patrimônio histórico a ser estudado e debatido nos seus detalhes, para que nunca mais floresça. Se tentar irromper, deve ser ceifado na raiz, pela letra da lei.
Vale a pena insistir em modelos participativos de democracia em uma sociedade de raiz autoritária e escravagista, que pouco faz uso de recursos disponíveis para sua participação e que elege seus próprios algozes? Artigo de opinião de um adepto da esquerda democrática.
Trabalho de finalização do curso Democratizar a Democracia – Prof. Márcio Carlomagno – pós graduação da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo
“Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos.”
“O melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com um eleitor mediano.”
Estas frases foram ditas pela mesma pessoa, o ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill (1874-1965). Conservador e radicalmente democrata, recusou-se a qualquer compromisso com Hitler e a ditadura nazista, mesmo nos piores momentos da guerra e contra a opinião de membros da aristocracia britânica. Ninguém mais insuspeito para defender a democracia, mesmo sabendo de suas limitações. Estas duas declarações apontam para um apoio crítico à democracia, como deveria ser todo apoio. Independente de época ou país, a experiência democrática deve ser debulhada e criticada, justamente para que seja aperfeiçoada. A jovem democracia brasileira pós 1988 não deve fugir desta prática.
Se democracia é o “governo do povo, pelo povo e para o povo” (Lincoln), é quase intuitivo valorizar as experiências de democracia participativa que ocorreram e ocorrem, no Brasil e no mundo. Partindo do pressuposto de que a melhor forma de democracia é a representativa, nada mais lógico que se criem formas de participação popular que incluam os diversos setores da sociedade civil, organizada ou não, nas consultas e deliberações dos representantes do povo, legitimamente constituídos pelo voto.
Um dos principais pensadores e divulgadores da democracia participativa, Boaventura de Souza Santos (Portugal, 1940) destrincha esta modalidade de modo consistente, na teoria e na prática, como a principal concepção não-hegemônica de democracia na segunda metade do século XX. Por exemplo, debruça-se com especial atenção a um exemplo de sucesso que vem do Brasil, quer seja, o Orçamento Participativo implantado em Porto Alegre (RS) a partir de 1989, inspiração para experiências semelhantes em várias outras cidades, do Brasil e do mundo1. A própria população decidindo onde alocar recursos públicos (dentro da disponibilidade finita) através de fóruns regionais e temáticos é prática testada e aprovada, prova de que é possível uma democracia de massas, ao menos em âmbito regional.
Não obstante o bom exemplo de várias cidades brasileiras com esta prática, a realidade nacional atual aponta para outra direção. A eleição de um populista de extrema-direita como Jair Bolsonaro à presidência da República (2018) foi opção por uma política social e econômica de caráter excludente, antecipada antes mesmo das eleições. A ausência de debate, a ênfase em pautas morais e religiosas, o então futuro superministro da economia antecipando sua vontade de acabar com a previdência solidária e substituí-la por sistema de capitalização, já indicavam que políticas participativas passariam longe de sua gestão. Esta escolha estendeu-se a muitos governos estaduais (2018) e municipais (2020), com eleitos pouco comprometidos na prática com opções participativas já estabelecidas regimentalmente.
Não é o caso de elencar as várias causas da vitória de uma elite política alinhada com um governo de poucos para poucos. As ciências sociais e mesmo a psicologia já disseram muito a respeito. O desgaste do Partido dos Trabalhadores, iniciado com a crise econômica de 2014 e que culminou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a prisão do ex-presidente Lula, são fatos importantes neste enredo, mas não explicam tudo. Não obstante, volto meu olhar para uma experiência pessoal: vários amigos e parentes de classe média, com boa formação educacional e acesso à informação, fizeram esta escolha. Ignoraram todos os indicativos de um candidato com nítidas aspirações antidemocráticas. Como encaixar isto dentro das teorias da democracia?
Neste escopo, é inevitável pensar na concepção de democracia de Johann Schumpeter (Áustria, 1883 – EUA, 1950). Em 1942, desgostoso com a adesão das massas ao nazismo, propôs teoria reducionista em que limitava a democracia à prática eleitoral, sem abrir espaço para a participação do povo, de quem desconfiava e mesmo temia2. Luiz Felipe Miguel assim sintetiza:
“O ponto crucial da crítica schumpeteriana está aqui: as pessoas não sabem determinar o que é melhor para elas, quando estão em jogo questões públicas. Não há uma vontade do cidadão, só impulsos vagos, equivocados, desinformados. Segundo o economista austríaco, o indivíduo médio desce para um patamar mais baixo de racionalidade quando entra no campo da política. Em suma, mesmo que possa cuidar bem dos seus negócios pessoais, não sabe tratar de assuntos públicos3.”
Schumpeter delegava a condução da política a uma elite, cabendo às massas o papel de claque votante. Ao cidadão cabe apenas escolher entre alternativas eleitorais, sem necessidade de qualquer engajamento em outros processos que não as eleições. Uma democracia elitista e baseada somente no procedimento eleitoral porta uma contradição em si: se é elitista, não pode ser verdadeiramente democrática. Carregando um pouco mais nas tintas, soa mesmo como demofobia.
Esta concepção elitista e procedimental de democracia é compreensível se pensarmos na época em que Schumpeter a formulou, sob o rufar dos tambores das hordas nazistas marchando em passo de ganso. Não obstante, podemos ver semelhanças com a atual situação brasileira, mesmo estando nós sob regime constitucionalmente democrático. Ao colocarmos no poder um presidente que nunca escondeu que gostaria de governar sozinho, com Legislativo e Judiciário cooptados, colocamos em risco o engajamento em instâncias consultivas e decisórias características de uma democracia participativa e inclusiva, delegando às elites políticas o efetivo exercício do poder. É como se concordássemos tacitamente com as concepções pouco lisonjeiras que Schumpeter fazia do eleitorado, ou seja, de nós mesmos. De certa forma, nosso presidente também é schumpeteriano: desde o início de seu mandato, ele só pensa naquilo, ou seja, na próxima eleição e na sua possível reeleição. Democracia procedimentalista, lato sensu… Ironia à parte, revela uma elite política cujo maior projeto -se não o único- é a perpetuação no poder, um paradoxo possível dentro da democracia elitista de Schumpeter. Uma democracia que contém em seu bojo a essência de sua própria destruição.
Para finalizar, repito a frase de Churchill: “O melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com um eleitor mediano.” A imagem que ilustra este artigo veio da Av. Paulista, em manifestação pelo impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. A mulher com aspecto de classe média branca ostenta um cartaz duplamente interessante. “Luto pelo fim da democracia”, ato falho revelador: luto substantivo ou verbo? “Intervenção militar já”. Abre-se mão do regime vigente para se colocar sob a tutela da elite militar, que viria para supostamente salvar uma democracia corrompida que, para esta mulher, é moribunda. Contra estas forças do retrocesso, é mister fincar o pé no nosso embrião de democracia participativa. Independente da qualidade da elite, a alternativa pode ser bem perigosa à própria democracia. E que eu, supostamente mais esclarecido do que a mulher da foto, não caia na tentação de me considerar membro de uma elite. É o primeiro passo para ser cooptado pelos verdadeiros donos do poder.
Referências
SANTOS, Boaventura de Souza; AVRITZER, Leonardo. Para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura de Souza (Org.). Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa. Capítulo 10. Orçamento Participativo em Porto Alegre: para uma democracia redistributiva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia.Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
Miguel, Luis Felipe. A democracia domesticada: bases antidemocráticas do pensamento democrático contemporâneo. Dados [online]. 2002, v. 45, n. 3 [Acessado 27 Novembro 2021] , pp. 483-511. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0011-52582002000300006>. Epub 17 Mar 2003. ISSN 1678-4588. https://doi.org/10.1590/S0011-52582002000300006.
A gente chega numa idade e a ficha cai: não adianta lutar por um mundo melhor, por mais justiça social, pelo fim da fome, e outras causas nobres. O ser humano é um predador sob qualquer regime político e em qualquer época, e sempre será. O Brasil apenas confirma a regra. Hoje, se eu e minha família estamos bem, é o que importa. Defendo minha família, e o resto que se vire (pra não dizer outra coisa). Incluo no máximo alguns amigos, desde que não me peçam dinheiro.
Vivemos bem em nosso condomínio, geladeira cheia e todas as benesses de uma vida confortável, mas não significa que não tenho preocupações. Exponho a seguir duas delas, e dou soluções.
Violência é uma delas. O número de roubos, assaltos, sequestros e mesmo latrocínios em meu bairro e cercanias é crescente. E vejam que nosso bairro é muito bem policiado, polo turístico da boemia e culinária, ótimos serviços. Pesquisei qual a melhor solução, e encontrei-a em passado recente. Durante o governo municipal de Marta Suplicy (2001-2005), quando ainda estava no PT, a prefeitura de São Paulo investiu pesado na periferia pobre da cidade. Saúde, educação, lazer, essas coisas. Dado interessante, comprovado por números: quanto mais investia na periferia, mais caía a criminalidade na cidade toda, em todas as modalidades de crimes, inclusive nos bairros ricos. Acho esta uma boa solução para diminuir a criminalidade em meu bairro.
Água. Com certeza vai faltar, e ficará mais cara. A energia de matriz hidrelétrica, também. Nosso condomínio pode pagar caminhões-pipa, mas prefiro usar este dinheiro para obras de melhoria em nosso prédio. Fui pesquisar a causa da crescente falta de chuvas, e uma das principais é o crescente desmatamento da Amazônia. Caminham em paralelo. A evapotranspiração do bioma amazônico é fundamental para regular o ciclo de chuvas no resto do país. Logo, a solução está em parar o desmatamento e reflorestar a área desmatada ilegalmente. A Polícia Federal e as Forças Armadas podem ajudar a expulsar os invasores. Acho esta uma boa solução para gastar meu dinheiro na reforma da sala de ginástica do meu prédio, ao invés de caminhões de água e contas de luz na bandeira vermelha.
Ironias à parte, estas soluções são verdadeiras e funcionam. Poderia prosseguir com outros exemplos, mas paro por aqui. Soa óbvio que investir no coletivo melhora a vida dos indivíduos e famílias, mas as dificuldades empurram muitos para soluções apenas individuais. Tem gente boa que, descrente da política, acha que consegue dar conta de tudo no âmbito individual. Não dá, e cada vez menos. E mesmo que dê, que tenha vida confortável, que país é esse que estamos deixando para filhos e netos? Imagino a decepção e o descrédito de quem votou num governo que não tem projeto algum para o país, e cuja palavra de ordem para toda sorte de desgraças que cria ou amplifica é “e daí?” Para um presidente que, em rede nacional, exalta a própria forma física como (falso) antídoto para um vírus perigoso, e que se dane quem não é atleta. Para um ministro da economia que quer extinguir o modelo solidário de aposentadoria e implementar regime de capitalização, em que cada um faz sua poupança, e quem não consegue fazer, que se dane. Somente falsas soluções individuais para questões coletivas, e colocadas de forma mentirosa. Sequer serviriam para síndico e conselho gestor de meu prédio, quanto mais de um país. Não sabem e não querem pensar no bem coletivo. E quem pensa somente no próprio bem estar está a um passo de colocar no poder aqueles que também pensam assim, mesmo que jurem colocar o país acima de tudo. Portas abertas para a barbárie da lei do mais forte, sem qualquer proteção para os mais fracos. E os mais fracos somos todos nós, mesmo que não percebamos.
Entre civilização e barbárie, não existe terceira via. Que saibamos identificar quem está em qual campo, e que rechacemos juntos a barbárie em todos os níveis. Ainda é tempo.
Vi esta inscrição algumas vezes, em portas de banheiros de dois cursinhos pré-vestibulares diferentes, em 1977 e 1978. Na face interna da porta e à altura de quem estava sentado, certamente fazia parte do que melhor seus autores conseguiam produzir, em lugar apropriado para excreções e excrescências. Esta frase ficou registrada em minha memória, e voltou à tona nestes últimos tempos. Brincadeira com fundo elogioso para a competência de muitos orientais (“japoneses”) nos vestibulares? Demonstração potencialmente perigosa de inveja assassina? Ambos?
Vivíamos sob a ditadura, ainda sob o tacão do AI-5, com abertura incipiente sob ameaça da linha dura do exército. Ainda “falando de lado e olhando pro chão” (Chico), pichações e inscrições feitas às escondidas eram formas de expressão frequentes. No Brasil onde o mito da democracia racial era cantado em verso e prosa pela ditadura de modo imperativo, manifestações de intolerância contra minorias eram abafadas. Falava-se de lado do “japonês do Geisel”, o ministro das Minas e Energia Shigeaki Ueki, depositário de preconceitos contra esta minoria. O ministro seguinte da mesma pasta, César Cals, foi questionado por constar em relatório secreto que vazou de seu ministério em 1980, que “setores da comunidade judaica” faziam parte daqueles que orquestravam uma suposta campanha contra o programa nuclear brasileiro. É claro que a imprensa (sempre ela) também foi acusada pelo complô, mas tudo isso era rapidamente abafado naquele Brasil-país-do-futuro. Parafraseando o general-presidente Figueiredo, “quem negar que somos uma democracia racial, eu prendo e arrebento!”
Na esteira destas recordações, vieram outras. Em 1978, quando o professor de História do cursinho falou na política genocida de Hitler, um colega coreano se vira para mim e diz: “se Hitler fez isso com os judeus, é porque alguma coisa eles fizeram”. Retruquei com a mesma violência: “e se o Japão fez o que fez com os coreanos durante a guerra, é porque alguma coisa eles fizeram. É isso?” No ano seguinte, um colega de turma da faculdade, também coreano, quando soube que eu era judeu, abriu um sorriso e falou de sua admiração pelo povo judeu: “90% dos Prêmios Nobel vão para os judeus!” Apenas sorri, sem contestar sua falsa estatística, inflada às alturas. Com pouca diferença de tempo e vindo de duas pessoas do mesmo extrato minoritário e faixa etária, duas falas distintas que se unem pelo preconceito para com outra minoria. Da culpabilização das vítimas à idealização fantasiosa, são faces opostas da mesma moeda. Como não lembrar de Martinho Lutero? Ao iniciar sua Reforma, tinha opinião positiva sobre os judeus. Em “Que Cristo Nasceu Judeu”, disse que, se os judeus ainda não aceitaram Cristo como messias, é porque a Igreja Católica sempre os maltratou e excluiu. Com o tempo, ao constatar que os judeus não adeririam à sua igreja reformada, virou um antissemita furibundo. Textos dele como “Os Judeus e suas Mentiras” foram citações constantes nas campanhas nazistas. Eis um bom exemplo de como, a depender da época e das circunstâncias, o preconceito inicialmente positivo muda de sinal, com consequências funestas. O ódio pode vir embrulhado em belas embalagens. Quando abertas, pode ser tarde.
Ódio este que, com o governo Bolsonaro, saiu do armário. E saiu orgulhoso de sua ignorância e macheza, com armas à mão e munição de sobra, estimulados e acobertados por um sociopata que usa e abusa do discurso violento contra todos que se opõem a ele. Basta abrir os jornais e ver a quantidade de negros, indígenas, transexuais e mulheres que morrem quase todo dia de modo violento, além das ameaças constantes a seus desafetos. Este é o clima. Com a pandemia, veio também o preconceito contra orientais, acusados de disseminar o “vírus chinês” e lucrar com sua “vachina”, discurso de Trump, ídolo confesso de Bolsonaro. O capitão não inventou o racismo e a misoginia, mas joga lenha na fogueira da intolerância quase todo dia. Triste constatar também que tem judeus que ainda se iludem com a face oposta da moeda do preconceito com que o capitão joga. O Bolsonaro “amigo dos judeus”, que empunha a bandeira de um Israel superior, criação de delírios religiosos, é tão sincero quanto o recente “amigo dos índios”, cocar à cabeça, ao lado de índios recrutados para a pantomima. Ainda não perceberam que os únicos amigos de Bolsonaro são seus filhos, e que os aliados de hoje podem ser descartados a qualquer hora. Quanto aos judeus que se sentem lisonjeados pela “amizade” do capitão, certamente inflariam o peito de orgulho com os “90% de Prêmios Nobel” de meu colega de faculdade. Não aprenderam a lição da História, a melhor das professoras, de que vestir a fantasia de Povo Eleito pode, em outras épocas, elegê-los para o pior dos mundos.
Para finalizar, volto às privadas e suas descargas de ódio. Aquelas inscrições sugerem uma meritocracia às avessas, que dispensa esforço: vence quem elimina seu concorrente, literalmente. Hoje, teriam que eliminar também cotistas, algo que só alimenta seu ódio aos diferentes. Cotistas que, aliás, se saem muito bem ao final dos cursos, na comparação com seus colegas não cotistas. Na era das redes sociais, nunca foi tão fácil culpar os diferentes pelas próprias dificuldades, algo bem menos trabalhoso do que, por exemplo, participar da luta pela defesa do ensino público gratuito. O ódio está ao alcance dos dedos. Nas mãos de populistas como Bolsonaro, o ódio é combustível para se manter no poder, ao culpar os bodes expiatórios da ocasião pela própria incompetência. Estejamos atentos para o ódio, em suas mais diversas embalagens e disfarces.
Nestes tempos sombrios em que a doença, a fome e o desemprego avançam no Brasil, qualquer pessoa de boa fé e minimamente informada reconhecerá o papel crucial do presidente Bolsonaro e sua equipe neste quadro. A negação do perigo que o novo coronavírus representa; a insistência em terapias comprovadamente inócuas; a protelação na aquisição de vacinas; o mau exemplo das suas andanças, sem máscara e aglomerando seguidores à sua volta; o pífio (quando não inexistente) auxílio emergencial aos que mais precisam; a ausência de centralização no combate à pandemia, com ministros despreparados e de atuação desastrosa; os agentes econômicos, combalidos e atordoados com um abre-e-fecha errático, quando outros países já estão liberando com restrições a circulação sem máscara e o retorno às atividades econômicas. Estes e outros comemorativos configuram um quadro de desprezo à sociedade e uma aposta no “quanto pior, melhor”, dentro de um cálculo político perverso para perpetuar seu projeto de poder. Truculento e autoritário, ao defender reiteradamente o AI-5 como instrumento de poder, explicita seu inegável desejo de ser um ditador, acobertado por uma fachada apenas formalmente democrática. Nenhuma dúvida de suas intenções.
Indo além deste ponto pacífico, há uma discussão recente se é possível chamar Bolsonaro e seguidores de nazistas e genocidas. Exagero retórico ou comparação procedente? Sabemos que as palavras tem um peso, e, portanto, esta é uma discussão importante. Como cada um tem sua régua moral, política e ideológica, faz-se necessário iniciar esta discussão com digressões dos três elementos do enunciado.
Iniciemos com o bolsonarismo. Importante deixar claro que bolsonarista não é necessariamente quem votou em Bolsonaro para presidente, mas quem segue apoiando seu governo e seus métodos neste momento, após dois anos e meio de mandato. Este é obviamente um termo novo, tanto que ainda nem foi incorporado pelo corretor ortográfico do programa Word. Não obstante, já há robusta produção acadêmica sobre o bolsonarismo. Para mencionar apenas uma, em “Notas para a compreensão do bolsonarismo”1, Daniel Aarão Reis credita a ascensão do bolsonarismo à tradição autoritária de nossa sociedade, à evolução da crise da democracia brasileira no período de 1988 a 2018 -em especial após a reeleição de Dilma Rousseff (2014) – e à campanha eleitoral de 2018, de curta duração e baseada em meios eletrônicos. Disseca a aliança do forças que compõem o bolsonarismo (Forças Armadas, milícias, igrejas evangélicas, agronegócio, agentes financeiros ultraliberais), e termina com um alerta familiar aos que estudam o fenômeno nazista (p.9):
Seja como for, não é de se imaginar que o
bolsonarismo vá ser um fenômeno passageiro
ou acidental. Trata-se de uma força política e
social relevante. E permanente. E mais: em caso
de fracasso, já tem um discurso pronto – “não nos
deixaram governar”. E, certamente, o que é mais
sombrio, não se conformará em ser apeado do
governo por métodos pacíficos e democráticos.
Reagirá usando a força. De que modo e com que
procedimentos concretos, o tempo dirá.
A admiração servil e o apoio cego de Bolsonaro ao ex-presidente Trump e seus métodos estendeu-se à tentativa de golpe deste, ao contestar sem base fatual o resultado das eleições nos EUA e estimular a invasão do Capitólio, com sua trágica consequência em mortes. Não é improvável que Bolsonaro tente o mesmo no Brasil. A campanha pelo fim do voto eletrônico, a facilitação da posse e porte de armas por qualquer cidadão, e a ascensão de Luís Inácio Lula da Silva nas pesquisas convergem para esta possibilidade tenebrosa.
As semelhanças do bolsonarismo com a ascensão do nazismo ao poder avolumam-se. Discurso ultranacionalista, desprezo à democracia (só serviu para elegê-los), estímulo à violência, negação da ciência e promoção de uma pseudociência, ataques à imprensa livre e mentiras repetidas ad nauseam traçam uma linha comum. Não obstante, para muitos há uma distância grande entre chamar um regime autoritário de nazista. Argumentam que nazismo só houve um, e qualquer comparação entre este e o bolsonarismo é historicamente imprecisa, além de desviar a atenção dos reais crimes do bolsonarismo e dificultar seu combate. Nesta comparação entre governos, qual período do governo nazista é referência? À tomada do poder, em 1933? Às leis raciais de Nuremberg, de 1935? Ao pogrom da Noite dos Cristais, de 1938? Ao início do genocídio judeu, em 1941? Por acaso Bolsonaro colocou fogo (literalmente) no Parlamento, como Hitler em 1933? Assassinou seus aliados iniciais, como na Noite das Facas Longas, em 1934?
Os tempos são outros, os métodos, idem. Bolsonaro não incendiou o Congresso: garantiu apoio dos deputados do Centrão com bilhões do dinheiro público, prática antiga, mas que ele levou ao paroxismo. Não assassinou seus aliados: usou o PSL para se eleger, e depois saiu da legenda. Descarta aliados como se joga guardanapos usados no cesto de lixo. Mas nem quero me estender a outras semelhanças. Pretendo focar no nazismo. Desde quando o bolsonarismo é passível de comparações com o nazismo? Desde quando o nazismo é nazismo? Valem seus resultados finais ou suas intenções iniciais?
Tinha como referência de ponto inicial das intenções do nazismo o livro Minha Luta (“Mein Kampf”), escrito por Hitler na prisão, após tentativa abortada de golpe, em 1925. Tudo o que ele pretendia fazer, está lá. Fim da democracia, regime de partido único, controle absoluto do Estado sobre meios de comunicação, conquista territorial como “espaço vital”, destruição das “raças inferiores” e escravização das “raças intermediárias”.
Ledo engano. Em 24 de fevereiro de 1920, Adolf Hitler e Anton Drexler apresentavam um programa nacionalista, antissemita e anticapitalista. No mesmo dia, o Partido Alemão dos Trabalhadores, fundado em 1919, tornou-se Partido Nacional-Socialista Alemão dos Trabalhadores (NSDAP). Os 25 pontos do Programa do Partido Nazista2 são estes:
Exigimos a unificação de todos os alemães na Grande Alemanha, com base no direito de autodeterminação dos povos.
Exigimos igualdade de direitos para o povo alemão em relação às outras nações; revogação dos tratados de paz de Versalhes e St. Germain.
Exigimos terra e território (colônias) para o sustento do nosso povo, e colonização para a nossa população excedente.
Apenas membros da raça podem ser cidadãos do Estado. Apenas aqueles de sangue alemão, sem consideração de credo. Consequentemente, nenhum judeu pode ser membro da nação.
Quem não tem a cidadania pode viver na Alemanha apenas como convidado, e deve estar sob a autoridade de uma legislação para estrangeiros.
O direito votar e de determinar as questões relativas à legislação pertence apenas ao cidadão. Por isso exigimos que todos os cargos públicos devem ser preenchidos apenas por cidadãos. Nos opomos ao sistema parlamentar corrupto, de preencher cargos apenas de acordo com as inclinações partidárias, sem consideração de caráter ou capacidade.
Exigimos que o Estado se encarregue primeiro em prover meios de subsistência para os cidadãos. Se é impossível sustentar a população total do Estado, os membros de nações estrangeiras (não-cidadãos) devem ser excluídos do Reich.
Toda imigração de não-alemães deve ser impedida. Exigimos que todos os não-alemães que imigraram para a Alemanha desde 2 de agosto de 1914, sejam forçados a deixar imediatamente o Reich.
Todos os cidadãos do Estado devem ter igualdade de direitos e obrigações.
A primeira obrigação de cada cidadão deve ser o trabalho produtivo, mental ou físico. A atividade do indivíduo não deve colidir com os interesses do todo, mas deve ser realizada no contexto do todo, para o benefício de todos. Consequentemente, exigimos:
A abolição de rendimentos não adquiridos por trabalho e emprego. Quebra da escravatura do rentismo.
Em consideração ao sacrifício monstruoso de vidas e propriedade que cada guerra demanda do povo. O enriquecimento pessoal através de uma guerra deve ser considerado como um crime contra a nação. Por isso exigimos o confisco total de todos os lucros de guerra.
Exigimos a nacionalização de todas os negócios constituídos como companhias (trustes).
Exigimos uma divisão dos lucros de todas as indústrias.
Exigimos uma expansão em larga escala dos benefícios aos idosos.
Exigimos a criação de uma classe média saudável e a sua conservação, imediata disponibilização dos grandes armazéns para sua locação a baixo custo para as pequenas empresas, e a máxima consideração àquelas pequenas empresas com contratos com o Estado, condado ou município.
Exigimos uma reforma agrária adequada às nossas necessidades, a promulgação de uma lei para a livre desapropriação de terras para fins de utilidade pública, a abolição dos impostos sobre a terra e a prevenção da todas as especulações de terra.
Exigimos um esforço sem limite contra aqueles cuja atividade é prejudicial para o interesse geral. Criminosos comuns, usurários, agiotas e assim por diante devem ser punidos com a morte, sem consideração de credo ou raça.
Exigimos a substituição de uma lei geral alemã no lugar do Direito Romano, que serve a uma ordem mundial materialista.
O Estado deve ser responsável por uma reconstrução fundamental de todo o nosso programa nacional de educação, para permitir que todos alemães capazes e produtivos obtenham educação de qualidade e, posteriormente, introdução em posições de liderança. Os planos de ensino de todas as instituições de educação em conformidade com as experiências da vida prática. A compreensão abrangente do conceito de Estado deve ser buscada pela escola, logo no início das aquisições do conhecimento. Exigimos a educação custeada pelo Estado de crianças intelectualmente dotadas de pais pobres, sem consideração de posição ou profissão.
O Estado deve providenciar um elevado padrão de saúde nacional pela proteção de mães e crianças, proibindo o trabalho infantil, encorajando a aptidão física, por meio do estabelecimento de uma obrigação legal de ginástica e desporto e pelo máximo apoio a todas as organizações preocupadas com a instrução física dos jovens.
Exigimos a abolição das tropas mercenárias e a formação de um exército nacional.
Exigimos oposição legal às mentiras conhecidas e da sua divulgação através da imprensa. A fim de capacitar uma imprensa alemã, exigimos que:
a. Todos os escritores e funcionários dos jornais em língua alemã sejam membros da raça;
b. Jornais não-alemães sejam sujeitos à obrigação de autorização expressa do Estado para ser publicado. Não poderão ser impressos em língua alemã;
c. Não-alemães são proibidos por lei de qualquer interesse financeiro em publicações alemãs, ou qualquer influência sobre eles, e como punição para violações o fechamento da publicação, bem como a expulsão imediata do Reich para não-alemães. Publicações que são contra o bem geral, devem ser proibidas. Exigimos processo legal para produções artísticas e literárias que exercem uma influência destrutiva sobre a nossa vida nacional, bem como o encerramento de organizações que se opõem a estas exigências.
Exigimos a liberdade de religião para todas as denominações religiosas dentro do Estado, desde que não ponham em perigo a sua existência ou se oponham aos sentidos morais da raça alemã. O Partido, como tal, defende o ponto de vista de um cristianismo positivo, sem se ligar a qualquer denominação. Combater o espírito judaico-materialista dentro e ao redor de nós, e estar convencido de que uma recuperação duradoura de nossa nação só pode ter sucesso dentro do enquadre: “O bem da comunidade antes do bem do indivíduo”.
Para a execução de tudo isto, exigimos a formação de um poder central forte no Reich. Autoridade ilimitada do parlamento central sobre todo o Reich e suas organizações em geral. A formação de câmaras estaduais e profissionais para a execução das leis feitas pelo Reich dentro dos vários estados da confederação. Os líderes do Partido prometem, se necessário com o sacrifício de suas próprias vidas, apoio para a execução dos pontos enunciados, acima de qualquer outra consideração.
Para quem não se dispõe a ler “Mein Kampf” ou as leis de Nuremberg, pode ter certeza que todo o espírito do nazismo está contido nestes 25 pontos, desde literalmente o primeiro dia da existência do Partido Nazista. Ou seja, os nazistas já eram nazistas muito antes de acabarem com a democracia, boicotarem comércios e profissionais liberais judeus, enviarem jornalistas para períodos de “reeducação” em Dachau, e toda sorte de barbaridades que cometeram. Nenhuma ação monstruosa de seu regime genocida foi surpresa, não houve raio em céu azul. Estava tudo no papel, nas linhas e entrelinhas, desde seu início.
Eis o ponto em que quero chegar. O fenômeno bolsonarista dispensa corpo teórico ou organização partidária, mas suas ideias se fazem presentes muito antes de Bolsonaro ser eleito presidente. Não é necessário repetir os pontos do conhecido discurso de ódio que ele proferiu na Hebraica- RJ, racista e autoritário em sua essência, no hoje longínquo abril de 2017. Sequer enunciar as ideias econômicas de seu superministro da economia antes das eleições, onde o desmonte de mecanismos de proteção social, a entrega de patrimônio público e o solapamento da soberania nacional em setores essenciais já se vislumbravam. Passado mais da metade de seu mandato, a morte evitável e programada (grifo meu) da maioria das atuais 460.000 vítimas da pandemia (e contando), a economia anêmica já no seu primeiro ano de mandato e antes da pandemia, o aumento brutal da desigualdade -com miséria e fome em uma ponta e desempenho recorde da Bolsa de Valores na outra-, as ameaças à imprensa livre, o aparelhamento de órgãos estatais com asseclas no mínimo incompetentes, a obstrução da justiça por juízes e procuradores colocados lá para isso, tudo isso consegue encontrar paralelos na plataforma hitlerista, com as devidas diferenças de local, época e métodos. Um secretário da Cultura com discurso que imita Goebbels ao som de Wagner (só caiu porque divulgou) e um presidente negro da Fundação Palmares que trabalha contra qualquer política afirmativa e chama o movimento negro de “escória maldita”, fazem parte do panteão bizarro de um governo sinistro em sua essência e que flerta com o nazismo, aberta ou dissimuladamente.
Quanto a genocídio, o produto final do regime nazista, fico com a definição simples e direta do Dicionário Aurélio: é “o extermínio proposital que aniquila, mata uma comunidade, um grupo étnico ou religioso, uma cultura ou civilização”.
Podemos chamar Bolsonaro de genocida? Como comparar o que armênios, judeus e tutsis passaram com a situação brasileira?
Estamos acostumados a ver imagens de crianças indígenas saudáveis e sorridentes, brincando nas águas limpas de seus rios, no Xingu ou em Roraima. Assim, a foto chocante do menino ianomâmi desnutrido que ilustra este artigo, obtida pelo missionário católico Carlo Zacquini, que atua entre os ianomâmis desde 1968 e divulgada pela Folha de São Paulo em 09/05/2021, é reveladora de uma política em execução. Bolsonaro, Salles e Mourão sabem que a destruição da floresta pelos madeireiros e o envenenamento dos rios por mercúrio pelos garimpeiros acarretam fome, malária, outras doenças e morte para os indígenas. A destruição de seu modo de vida e de sua cultura fazem parte do pacote. A desidratação e aparelhamento dos órgãos de proteção, fiscalização e repressão a crimes (Ibama, Funai e PF), reduzidos à quase inoperância, dão a chancela oficial para o processo em marcha. As balas dos jagunços se encarregam do resto.
Para finalizar, é importante ter a noção de processo e de escalada. Nenhum dos fatos supracitados desabou de súbito. Obedecem a políticas propostas e desenvolvidas bem antes de sua concretização. Dentro de semelhanças e diferenças que foram apontadas, é possível chamar o bolsonarismo de nazista e genocida? Faltam elementos para tanto? Ou são fenômenos incomparáveis? Deixo ao leitor a decisão.