Ela sempre falou das dificuldades com sua mãe, que teve nove filhos e ela era só mais uma. Seu amor pelos estudos desde muito cedo não era valorizado pela mãe, formou uma imagem negativa dela, e essa desvalorização também recaiu sobre ela. Um dia, após anos, falou de seu nascimento e a previsão que fez o médico europeu sobre a morte dela e da sua irmã gêmea. Elas nasceram prematuras e pesavam um quilo cada uma, diante da fragilidade dos bebês, o médico disse que ambas morreriam. Após uns seis meses a sua mãe encontrou o obstreta e ele perguntou: “Qual das duas morreu primeiro?”. A mãe disse que ambas estavam vivas, e ele, surpreso, pediu para visitar os bebês. Quem orientara a mãe tinha sido uma empregada doméstica que trabalhou na casa de outro médico, que diante de um filho prematuro, montou na cozinha o quarto do bebê precoce e pôs junto à cama dos pais. A mãe seguiu o que disse a empregada, e o fogão da casa da paciente se manteve aceso durante as vinte e quatro horas, dia e noite, através de pilhas de lenhas. Essa história já tinha sido contada de forma sintética, mas naquele dia foi recontada com muitos detalhes novos, pois fiz bem mais perguntas. A mãe teve ajuda de duas irmãs que cuidaram as gêmeas durante um ano inteiro. Depois de quase meia hora eu disse mais ou menos isso: “Graças à tua mãe, que foi ajudada por tuas tias, e à empregada, tu estás hoje aqui. Tu e tua irmã foram muito bem cuidadas e muito amadas”. No instante em que falava vi que brotaram lágrimas em seus olhos; ali percebi que algo novo estava ocorrendo, como se estivesse fazendo as pazes com sua mãe, e também consigo mesma.
Em boa medida havia esquecido como correu risco de vida e como sua mãe salvou sua vida. Percebeu com mais clareza o esforço da família para mantê-la viva, e os cuidados dia e noite a fizeram sentir-se especial, valorizada, amparada, desejada. Integrou um passado distante ao seu presente, pôde rever sua história desde outra perspectiva, e sua mãe cresceu de importância. Recuperar velhas histórias com outros significados pode abrir as portas para um mundo visto desde a ótica da gratidão. As vezes, a gente se fixa mais nos defeitos de quem nos amou ou ama, quase esquecendo das qualidades.
A palavra inconsciente, desenvolvida por Freud em seu Projeto e melhor ainda no capítulo VII de “A Interpretação dos Sonhos”, já existia. Foram os escritores românticos que primeiro exploraram o inconsciente, pois perceberam o quanto o ser humano era fragmentado em oposição ao racionalismo e iluminismo. Goethe, Rousseau, Schiller, Schilling, entre outros, antecederam Freud na percepção do quanto há de lembranças e memórias que não são acessíveis à consciência. Os processos mentais que surgem do inconsciente podem emergir através das formações inconscientes. Há dentro de cada pessoa um desconhecido que constitui as identificações que formam a personalidade de cada um. Esse desconhecido, esse estranho que convive com a gente, irrompe aqui e ali e gera, às vezes, sentimentos do quanto a gente não é o dono de si mesmo, sendo dominado por desejos inconscientes.
Freud, em uma entrevista à BBC em 1938, disse: “Eu descobri alguns fatos novos e importantes sobre o inconsciente. Dessas descobertas nasceu uma nova ciência: a psicanálise. Eu tive de pagar caro por esse pedacinho de sorte. A resistência foi forte e implacável. Finalmente, eu consegui. Mas a luta ainda não terminou”. Ainda hoje a luta não terminou, e seguirá, pois há dificuldade em perguntar sobre o que é esse estranho inconsciente. É preciso coragem para perguntar, e, por acreditar na importância da curiosidade sobre o indivíduo, a sociedade, convém voltar sempre à arte de perguntar.
De tempos em tempos creio ser saudável se perguntar sobre quem mesmo a gente é, e assim despertar o desejo de se conhecer melhor. Nunca se saberá tudo que contém as marcas mnêmicas, as marcas de um distante passado, entretanto, novas descobertas podem ajudar a gente na vida. O que é o inconsciente? O inconsciente não é só linguagem, pois os afetos, as pulsões, as sensações-percepções são irredutíveis a linguagem disse Julia Kristewa. O que é o inconsciente é uma pergunta que permanece, dentro de cada pessoa há um mundo esquecido de marcas mnêmicas. O bom de escrever é recordar histórias de um distante passado, que vão pedindo, uma a uma, para serem contadas.
Esta é a primeira vez que escrevo sobre a crença, fé. Logo, pergunto por que agora e não antes, e me ocorre, sem pensar muito, que foi por preconceito. Crença é uma palavra ligada à religião, e essa palavra não goza de bom conceito no mundo das ciências, do conhecimento em geral e também na Psicanálise. Comecei a diminuir alguns preconceitos ao longo do tempo, mas algum sempre sobra. Em Buenos Aires, na década de setenta, recebi uma analisanda de nome Clara. Ela era psicanalista há bom tempo, tinha uns sessenta anos, ou seja, havia uma diferença de idade e de experiência. Fora encaminhada pelo diretor do centro clínico onde trabalhava, e nunca perguntei por que havia me encaminhado. Fiquei contente e inseguro.
Nos primeiros meses, fui cauteloso, convém ser, além do que Clara sabia muito mais do que eu tanto de Psicanálise como da vida. Havia muita diferença de idade, e ela já havia feito duas análises com analistas conhecidos. Já eu era um analista jovem, logo, ficar mais na atitude de escuta foi prudente. Aos poucos, fui arriscando um ou outro comentário e percebi que podia ajudá-la. Nunca se atrasava e sempre tinha muito para contar dos filhos, de seu esposo que estava doente, de seus analisandos. Tinha a impressão de que ela não se inquietava como eu pela diferença de idade, pois o amigo que a encaminhou despertou nela confiança. Aliás, a confiança que eu tinha pouco, ela foi me dando e fiquei aliviado. Após um ano ou mais perguntei, a ela sobre seu nome, se sabia a história dele. Clara se surpreendeu com a pergunta, mas logo começou a contar. Antes de nascer, sua mãe teve uma menina que morreu logo, e sua mãe passou a ir à igreja Santa Clara onde fez uma promessa. Se nascesse uma menina iria pôr o nome de Clara, portanto, ao longo da gestação, sua mãe foi todos os dias à Igreja rezar e repetir a promessa.
A partir daí, aos poucos, contou que rezava todas as noites antes de dormir. Logo, se abriram portas e janelas sobre sua vida. Um dia, perguntei se estava falando sobre seu nome pela primeira vez, bem como suas rezas, pois a vi emocionada. Disse que sim, e perguntei se estava falando pela primeira vez sobre suas rezas à noite, e disse que sim. Ficamos os dois surpresos, mas Clara logo disse que se sentia envergonhada de contar sobre suas rezas, e nem para suas colegas contara. Ela havia tido uma educação católica de sua mãe e tias, ia todo domingo na Igreja, participava das festas religiosas, se confessava até quase a idade adulta.
Fiquei surpreso, pois ela revelou uma vergonha de falar de suas crenças no mundo psicanalítico. É certo que faz muito tempo tudo isso, mas não sei o quanto esse mundo da cultura mudou sobre a fé e a religião. Então pensei que as marcas da infância, as minhas incluídas, não poderiam desaparecer como magia, além do que tem meu nome bíblico. Comecei a me interessar pelo tema da Psicanálise e Religião, para pensar por que a crença podia ser tão poderosa. Creio que a fé, não só a religiosa, mas a fé que se tem no amanhã, a fé que a gente precisa ter em si, nos amigos, amores em geral é essencial para se viver. Não penso na fé cega, já que essa fé é perigosa, ainda mais quando e gente a tem em si mesmo, pois aí, sem saber, se passa a ser um arrogante que se imagina sempre certo. Imagino que a fé se associa a esperança que não exclui a importância de questionar. Tardei em escrever algo da história de Clara, aos poucos percebo o quanto a psicanálise tem, o que mais tem, são histórias para contar.
P.S. Feliz ano novo para todas, todos, todes mais atual, e desejo saúde e um país, um mundo com menos injustiça social e menos guerra. Muito obrigado por me estimularem a seguir escrevendo, gratidão pura.
Alguém perguntou qual foi o livro empolgante que li neste ano. Respondi: “O elogio do encontro”, produto da amizade entre dois poetas. Armindo Trevisan fez os poemas, e Celso Gutfreind escreveu crônicas sobre as conversas do amigo com alguns mestres da escrita. É um livro não só para ler, mas para reler, porque anima o leitor, é um livro terapêutico. Entre as dezenas de histórias começo com uma crônica sobre Carlos Drummond de Andrade:
– Sabe, Armindo, as pessoas mais humildes ainda conservam a poesia que os ricos e arrogantes já perderam, tragada pelas ambições.
– Terias um exemplo para me dar?
– Dia desses a funcionária do apartamento estava espanando o televisor e, num gesto não intencional mais brusco, o aparelho adernou. Quando estava para cair, ela teve o reflexo de segurá-lo, dizendo: “Seu Carlos, peguei-o como uma flor do ar”.
Uma flor do ar, uma flor do ar, uma flor do ar Drummond repetiu três vezes.
Há poemas para Scliar, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Gutfreind, Guimarães Rosa, entre outros. Sobre Scliar, Trevisan escreveu: “Recorda-te? De como fomos juntos/ a Auschwitz? De como lá choramos/ lágrimas invisíveis, quando vimos/ mais de trinta pavilhões emudecidos?”.
As crônicas do poetapsicanalista são de prosa poética, portanto é um livro em que as palavras cantam, dançam. Lembro que fiz um prefácio a um livro do Celso cujo título era, se lembro bem, “A dança das palavras”, em que escrevi: “Pela palavra podemos recuperar o tempo fértil da imaginação infantil, quando fantasia e poesia conviviam”. Foi o jovem poeta que imaginou esse livro e convidou Armindo, para juntos revelar sua fraternidade poética. Celso é o poetapsicanalista e Armindo é o poetapensador, amigo de grandes escritores. Amizade que se iniciou quando o poeta venceu um concurso nacional de poesia e cujo júri era: Drummond, Manuel Bandeira e Cassiano Ricardo.
Trevisan foi essencial na vida de Gutfreind, talvez seu primeiro terapeuta. O jovem melhorou, mudou nessa convivência, já o poeta mais experiente, foi ajudado pelo entusiasmo do jovem fã. Será que exagero nos elogios aos amigos poetas? Não sei, mas o livro me fez bem, e minhas palavras são de gratidão. Eles festejam com o livro uma longa amizade que em 1939 já era difícil de construir. Nesse ano Bertold Brecht escreveu seu mais famoso poema: “Aos que vão nascer”. São muitas frases tocantes sobre o mundo, mas a que nunca esqueci é: “Ah, e nós, que pretendíamos preparar o terreno para a amizade, nem bons amigos nós mesmos pudemos ser”.
ArmindoCelso demonstram o quanto uma amizade faz o sofrimento sorrir. O livro dos poetas é um elogio à fé, à esperança, ao transformar tensões em poesia e o quanto uma amizade abre as janelas da liberdade. O “Elogio do encontro” é um elogio à amizade, pois os amigos são essenciais, são os irmãos da vida. É um livro sobre a beleza da vida como os versos de Trevisan à Drummond: “Acolheste no teu vasto coração/ a sensação sincera de que a Vida/ era muito maior que a Poesia”.
A curiosidade é um sentimento recompensado pelo cérebro com a liberação de dopamina – hormônio que causa euforia. As crianças são os seres humanos mais curiosos que existem, pois entre os dois e os cinco anos podem fazer umas quarenta mil perguntas. A curiosidade infantil é essencial, pois a criança busca saber sobre o mundo que a rodeia, e sua sede de conhecimentos é interminável. Aliás, a busca do saber acompanha o ser humano ao longo de toda sua história.
A curiosidade sobre a condição humana cresceu com a Primeira Guerra Mundial, que foi um choque de realidade. Os artistas e pensadores foram obrigados a questionar sua fé nas ilusões iluministas.
Um exemplo notável foi Sigmund Freud que havia se empolgado com a guerra em cartas e conversas, mas após alguns meses entendeu seu erro e escreveu: “A desilusão diante da guerra”, pois para ele jamais um acontecimento destruiu tanto os bens preciosos comuns à humanidade, confundiu tanto as mais lúcidas inteligências, rebaixou tão radicalmente o que era elevado. Sua desilusão fez com que sua curiosidade aumentasse sobre o que viria definir como psicologia social e o quanto esta está ligada à psicologia individual. Passou então a construir pontes entre o individual e o social, como explicita no começo da obra “Psicologia das massas e a análise do Eu”. Na escuta da vida psíquica do indivíduo, percebe o quanto o outro é um modelo, sejam pais, irmãos, professor, entre outros. A realidade psíquica é formada pelas marcas mnêmicas geradas nas relações com os demais. Em seu estudo autobiográfico de 1925, escreveu o quanto sua curiosidade era muito mais movida pelas coisas humanas do que pelos objetos naturais. Sua curiosidade pelas coisas humanas diminuiu seu otimismo, ao estudar a crueldade, a religião, o desamparo na cultura.
A partir daí o psicanalista inglês Adam Phillips, escreveu que a psicanálise era, na sua essência, a curiosidade. Curiosidade em que uma curiosidade leva à outra, logo crer na curiosidade é diferente de crer na ciência, crer na religião, crer na política, crer na psicanálise ou mesmo em nada. A raiz está na impressionante curiosidade infantil, pois a criança é curiosa pelas origens, pela sexualidade, pelos animais, por todo mundo a sua volta. O interesse pela infância é o interesse pela curiosidade, daí o psicanalista ser curioso. E numa análise o analista está atento às resistências, à curiosidade, como pode ser a curiosidade pelo sofrimento do paciente e do prazer nele. É preciso aprender a ser curioso tanto na crença como na descrença, ou até na incapacidade de acreditar.
Curiosidade sobre o nome próprio, curiosidade sobre as origens familiares, sobre os sofrimentos sem fim. Estar alerta também de quanto o conhecimento pode ser a morte da curiosidade, e aí estão os que seguem fielmente uma escola ou outra e se sentem seguros, plenos, satisfeitos. Um outro exemplo: o quanto em política há ilusões sobre as amplas possibilidades de mudanças na humanidade; e agora o quanto está sendo repensado sobre o quanto outro mundo é possível. A crença sem curiosidade é uma das formas da pulsão de morte se manifestar. A crença sem curiosidade revela a pobreza de espírito, e é preciso crer na curiosidade, é preciso ser curioso até em relação à curiosidade.
Creio que amar um país requer ser curioso sobre sua história, perguntar-se no caso do Brasil, como o país segue marcado pela escravidão e o genocídio. Porque somos pouco curiosos com os privilégios dos armados e da assustadora destruição da natureza. Portanto, o Brasil não é só o país do futebol e do samba, ele é também um país autoritário, um país onde a crueldade é exaltada.
Albert Einstein afirmou: “Não tenho qualquer talento especial. Sou apenas apaixonadamente curioso”. Assim foi Freud, Cleópatra – que falava dezesseis idiomas –, Madame Curie, Shakespeare, entre outros.
O entusiasmo pela curiosidade ilumina a velhice, agora quando a curiosidade diminui, quando a gente imagina que já sabe, então se envelhece mais rápido. Impressiona os que envelhecem com curiosidade, pois assim sustentam a alegria infantil de seguir se perguntando até o último dia de vida. O livro de Adam Phillips- Sobre desistir- é uma verdadeira luz que revela o quanto a psicanálise se alimenta da curiosidade, a vontade de aprender como paixão.
Por fim: gratidão eterna a Eva, mãe da curiosidade, que comeu o fruto da árvore do conhecimento e assim revelou o erotismo e nos humanizou. Fez bem Adão ao segui-la, o paraíso era tedioso.
O coração do amor é o canto, a poesia, o espanto. Diferentes caminhos levam a esse coração, como a música, o brinquedo, o erotismo, o humor. O pintor judeu russo Marc Chagall dedicou sua vida aos seus amores, e escreveu que só uma cor dá sentido à vida e à arte: é a cor do amor. O amor para ele tem amplas dimensões: a Bíblia, Deus, a sua cidadezinha de Vitebsk na Bielorússia, as artes e as mulheres. Chagall teve uma vida sofrida no mundo russo, e sua história faz recordar o sofrimento com humor dos contos de Tchekov. A imaginação de um dos maiores pintores do século XX pôs toda essa vida nos seus quadros.
A cor do amor é uma cor pulsante como a história a seguir. Os namorados, que iriam se casar, viviam distantes, se enviavam longas cartas de dez ou mais páginas, fitas gravadas com músicas e poesias de paixão. Um dia, o jovem recebeu uma fita em que a namorada gravou seu banho de banheira. Depois, ela falou imersa na banheira com uma voz suave e um som abafado. Ele podia escutar o som da amada entrando na água, junto à sua alegre voz que marcou na sua alma para sempre.
Essa história revela, talvez, a cor essencial do amor, a cor que dá brilho à vida, que é a imaginação. Esse entusiasmo se pode ler na vida de Chagall, quando aos 21 anos se encontrou com Thea, sua primeira namorada, e escreveu: “Fiquei mais audacioso. Beijei-a dos dois lados. Não me contive mais”. Fez muitos quadros sobre as mulheres com diferentes cores, expressões, às vezes voando. Nas suas cartas revela como na ausência de sua esposa Bella sofria tanto que não podia pintar.
Aliás, depender totalmente do outro, descansar no outro, é o eixo dos conflitos amorosos. Uma vida, quando se funda no outro, gera problemas constantes; o desafio é construir um sentido de si ao lado do outro. Lado a lado se desenvolvem laços amorosos, seja com a arte, ou as amizades. Creio que imaginar todos com seu par ideal já não é tão essencial, porque há variadas formas de amar, de viver com dor e alegria.
Ademais, o amor não é perfeito, a não ser na flor – o amor-perfeito –, flor com cores vibrantes. Entretanto, nunca imaginei a expressão “defeito de cor”, e foi um impacto ao saber do livro da escritora Ana Maria Gonçalves. Esse estranho título Um defeito de cor se deveu a que os negros desejosos de ingressar no serviço militar ou no clero deviam pedir dispensa do defeito de cor. Um pedido de desculpas pela sua cor não ser a branca. Nosso bravo país não considerava a cor preta uma cor do amor, daí pedir desculpas pelo defeito da cor. Muitos pensam que isso é história passada, mas não é, pois ser negra ou negro no Brasil é viver ameaçado pelos armados, pelo preconceito, por um racismo persistente. Em Porto Alegre, um negro levou uma facada de um branco e ele é que foi preso pela Brigada por desacato!
Junto à leveza da cor do amor existe a pesada revelação do defeito da cor, expressão do ódio. Amor e ódio, ódio e amor são palavras que estão associadas. O psicanalista Jacques Lacan criou a palavra haineamour, ódioamor, pois revela a verdade da condição humana. Chagall não foi marcado pelo defeito de cor, mas sim por ser judeu, pois desde pequeno sofreu discriminação. Primeiro na Rússia, depois na União Soviética e, finalmente, na Alemanha e França.
Sempre sonhei que negros e judeus deveriam se apoiar na luta contra o racismo. Nos Estados Unidos há vários exemplos dessa solidariedade na luta antirracista. No Brasil começam a se conhecer essas pontes amorosas, como na análise feita pela psicanalista judia alemã Adelaide Koch à Virgínia Bicudo, que era negra. Ela conseguiu ser a primeira psicanalista brasileira, e a história dessa amizade está no filme Virgínia e Adelaide. A obra foi dirigida por Jorge Furtado e Yasmin Thayná, com estreia prevista para esse ano. Artistas como esses dois cineastas e a escritora Ana Maria Gonçalves iluminam o passado desprezado. O Brasil tem muitas histórias em que se precisa tirar a pedra de cima, como a de Virgínia enquanto socióloga, psicanalista e pesquisadora.Os artistas são como vagalumes na escuridão, iluminam o passado recuperando histórias que ampliam os horizontes.
E, recuperei agora, ao ler Chagall, de Jackie Wullschlager, um passado distante dos judeus imigrantes. Esse gênio que fez pinturas, murais, mosaicos, vitrais e cenografias durante oitenta anos, escreveu numa carta a um amigo: “Suplico a você que não seja pessimista. A vida sempre é linda, mesmo quando triste”.
Nesta semana encontrei duas leitoras, e logo perguntaram se nosso país enlouqueceu. Não disse a elas, mas escrevo agora, que um psicanalista hoje entende e explica as questões individuais menos que os antigos. E as questões sociais são ainda mais difíceis, por isso só escrevi sexta pela manhã, pois passei a semana imaginando o que escrever, mas tudo me parecia já escrito. O caminho diante da complexidade é ser lento, ainda mais diante o domingo, o histórico 8 de janeiro. Nunca os três Poderes da Democracia – Executivo, Legislativo e Judiciário – tinham sido devastados por hordas raivosas. Quebraram obras de arte, urinaram, defecaram, arrasaram três dos mais belos palácios criados por Oscar Niemeyer e construídos pelo suor dos trabalhadores. Provaram com seus atos que o problema não é a urna eletrônica, mas sim a derrota nas eleições, e reagem à derrota querendo golpe militar.
O dia 8 de janeiro de 2023 não será esquecido, foi um dia de traumas, o povo brasileiro se chocou com as cenas de invasão e destruição. Tudo feito por gente disfarçada de verde e amarelo, que felizes e se sentindo heróis arrasaram as sedes da Democracia. No dia primeiro do ano ocorreu a posse do novo governo numa festa de um amor entusiasmante feita por uma multidão. Uma semana depois quatro milhares realizaram a festa do ódio à liberdade, ódio à maioria do povo que elegeu uma frente ampla para governar o país.
Quando conversei com as duas leitoras, me referi aos traumas do dia e logo perguntaram o que são, exatamente, traumas. Trauma é um evento muito intenso, surpreendente, que não se consegue responder bem devido aos transtornos que provocam na realidade psíquica de cada um. Todas as pessoas já viveram e viverão traumas como perdas, separações, frustrações, derrotas ou até vitórias. O trauma é um grande afluxo de excitações que está acima da capacidade pessoal de dar conta, dominar psiquicamente tanta excitação surpreendente.
O trauma pode ser pessoal, familiar, social ou mundial. Exemplo recente é a pandemia da COVID-19, que gerou um trauma mundial com efeitos pessoais. Cada ser humano reage ao trauma com sua personalidade. Há os que se desequilibram com sofrimento e os que reagem e tomam providências objetivas. No dia 8 de janeiro o Brasil ficou traumatizado e o mundo ficou impactado com o terrorismo que estuprou a Democracia. Há um Brasil que odeia o Brasil, se fantasia com o verde e amarelo, mas tem raiva de um país para todas e todos os brasileiros. Assim foi na nossa História, assim foi nas ditaduras, assim ocorre agora quando uma parte da população passou mais de dois meses gritando para que os armados voltassem. Dizem que os armados adoraram serem chamados, lembrados, amados, seduzidos. As pessoas, cansadas de permanecer diante dos quartéis, decidiram, orientadas por líderes, radicalizar e assaltar Brasília. Viajaram apoiados e guiados por armados, empresas e empresários.
O trauma é um choque violento, uma ruptura no conjunto de uma organização psíquica. Em pouco tempo há um aumento de excitação psíquica sem possibilidade de elaborar, gerando angústias, desamparos e reações desconcertantes. Trauma diante de uma perda, por exemplo, como ocorreu comigo no dia 8 de janeiro à tarde, quando estudava desamparo. Que ironia! No meio do estudo, fui espiar o UOL, como faço às vezes, e li e vi a invasão e a destruição na capital federal. Não pude mais estudar, vivi um desamparo que me obrigou a ficar diante da TV até o fim do dia. Aliás, o trauma está ligado ao desamparo, pois o povo brasileiro, em sua imensa maioria, se sentiu desamparado, chocado com tanto ódio e crueldade. Os invasores terroristas fantasiados de verde e amarelo destruiram artes brasileiras, estocaram cinco vezes o painel “As Mulatas” de Di Cavalcanti. Aliás, nada me foi mais traumático que essas estocadas no mural, quanto ódio à arte, quanto ódio das Mulatas, que poder tem a arte para gerar tanta agressividade. “As Mulatas” VIVEM.
Quando agora escrevo, percebo que passei toda a semana buscando caminhos de como escrever sobre as imagens da destruição de domingo. Criei títulos e desprezei, decidi não escrever, mas não me resignei, diante dos traumas é preciso escrever, conversar e esboçar respostas. Por que tanta loucura brasileira, loucura humana, nossa loucura, eis a questão. O Brasil é um país traumatizado pela escravidão de 350 anos e que segue no racismo estrutural. Vejam que foram “As Mulatas” que foram estocadas. O Brasil traumatizado pelos assassinatos de jovens negros, de indígenas, de indianistas, de pobres. País traumatizado com a ditadura militar da tortura e dos desaparecidos sem julgamento. Por isso o ex-presidente, em pleno Congresso, em 2016, saudou o maior torturador brasileiro e ainda disse que ele foi o terror da presidente Dilma.
O governo anterior não aceitou a derrota nas eleições, os armados e os poderes financeiros tampouco, são gente que deseja o golpe. Se esse golpe fracassou, outros podem ser tentados. Os últimos seis anos fizeram muito mal ao País, passamos da civilização a uma quase barbárie como se viu na pandemia, em que médicos desprezaram até as vacinas! Felizmente vem nascendo há tempos um novo país, um novo Brasil. É difícil mudar a história do País já definido como da Casa Grande e Senzala, é um desafio para muitas gerações, muitas mesmo. Essa luta começou no distante passado com Zumbi, Dandara e milhares de negras, negros, indígenas, trabalhadores, estudantes, sonhadores de um Brasil para todas e todos. É urgente que os armados entendam que a guerra fria terminou, o comunismo definhou, estamos no século XXI, agora é a Democracia. Ah, os armados precisam estudar que eles não servem a um governo, mas servem sempre ao Estado, são pagos por todo o povo, devem respeito aos três Poderes.
O Brasil é um país traumatizado, pois boa parte do nosso povo não está no retrato e agora está começando a se fazer presente. No dia 11 de janeiro, houve a posse dos dois novos ministérios: o dos povos originários, com a ministra Sonia Guajajara, e o ministério da igualdade racial, com a ministra Anielle Franco. Aliás, ver, três dias depois do ataque a Brasília, as novas ministras com novos ministérios assumindo foi um show. Show da Democracia, um show da justiça social, diminuindo assim o impacto traumático do dia 8. Viva as artes, as ciências, a cultura brasileira, o povo brasileiro. Democracia Sempre.