O coração do amor é o canto, a poesia, o espanto. Diferentes caminhos levam a esse coração, como a música, o brinquedo, o erotismo, o humor. O pintor judeu russo Marc Chagall dedicou sua vida aos seus amores, e escreveu que só uma cor dá sentido à vida e à arte: é a cor do amor. O amor para ele tem amplas dimensões: a Bíblia, Deus, a sua cidadezinha de Vitebsk na Bielorússia, as artes e as mulheres. Chagall teve uma vida sofrida no mundo russo, e sua história faz recordar o sofrimento com humor dos contos de Tchekov. A imaginação de um dos maiores pintores do século XX pôs toda essa vida nos seus quadros.
A cor do amor é uma cor pulsante como a história a seguir. Os namorados, que iriam se casar, viviam distantes, se enviavam longas cartas de dez ou mais páginas, fitas gravadas com músicas e poesias de paixão. Um dia, o jovem recebeu uma fita em que a namorada gravou seu banho de banheira. Depois, ela falou imersa na banheira com uma voz suave e um som abafado. Ele podia escutar o som da amada entrando na água, junto à sua alegre voz que marcou na sua alma para sempre.
Essa história revela, talvez, a cor essencial do amor, a cor que dá brilho à vida, que é a imaginação. Esse entusiasmo se pode ler na vida de Chagall, quando aos 21 anos se encontrou com Thea, sua primeira namorada, e escreveu: “Fiquei mais audacioso. Beijei-a dos dois lados. Não me contive mais”. Fez muitos quadros sobre as mulheres com diferentes cores, expressões, às vezes voando. Nas suas cartas revela como na ausência de sua esposa Bella sofria tanto que não podia pintar.
Aliás, depender totalmente do outro, descansar no outro, é o eixo dos conflitos amorosos. Uma vida, quando se funda no outro, gera problemas constantes; o desafio é construir um sentido de si ao lado do outro. Lado a lado se desenvolvem laços amorosos, seja com a arte, ou as amizades. Creio que imaginar todos com seu par ideal já não é tão essencial, porque há variadas formas de amar, de viver com dor e alegria.
Ademais, o amor não é perfeito, a não ser na flor – o amor-perfeito –, flor com cores vibrantes. Entretanto, nunca imaginei a expressão “defeito de cor”, e foi um impacto ao saber do livro da escritora Ana Maria Gonçalves. Esse estranho título Um defeito de cor se deveu a que os negros desejosos de ingressar no serviço militar ou no clero deviam pedir dispensa do defeito de cor. Um pedido de desculpas pela sua cor não ser a branca. Nosso bravo país não considerava a cor preta uma cor do amor, daí pedir desculpas pelo defeito da cor. Muitos pensam que isso é história passada, mas não é, pois ser negra ou negro no Brasil é viver ameaçado pelos armados, pelo preconceito, por um racismo persistente. Em Porto Alegre, um negro levou uma facada de um branco e ele é que foi preso pela Brigada por desacato!
Junto à leveza da cor do amor existe a pesada revelação do defeito da cor, expressão do ódio. Amor e ódio, ódio e amor são palavras que estão associadas. O psicanalista Jacques Lacan criou a palavra haineamour, ódioamor, pois revela a verdade da condição humana. Chagall não foi marcado pelo defeito de cor, mas sim por ser judeu, pois desde pequeno sofreu discriminação. Primeiro na Rússia, depois na União Soviética e, finalmente, na Alemanha e França.
Sempre sonhei que negros e judeus deveriam se apoiar na luta contra o racismo. Nos Estados Unidos há vários exemplos dessa solidariedade na luta antirracista. No Brasil começam a se conhecer essas pontes amorosas, como na análise feita pela psicanalista judia alemã Adelaide Koch à Virgínia Bicudo, que era negra. Ela conseguiu ser a primeira psicanalista brasileira, e a história dessa amizade está no filme Virgínia e Adelaide. A obra foi dirigida por Jorge Furtado e Yasmin Thayná, com estreia prevista para esse ano. Artistas como esses dois cineastas e a escritora Ana Maria Gonçalves iluminam o passado desprezado. O Brasil tem muitas histórias em que se precisa tirar a pedra de cima, como a de Virgínia enquanto socióloga, psicanalista e pesquisadora.Os artistas são como vagalumes na escuridão, iluminam o passado recuperando histórias que ampliam os horizontes.
E, recuperei agora, ao ler Chagall, de Jackie Wullschlager, um passado distante dos judeus imigrantes. Esse gênio que fez pinturas, murais, mosaicos, vitrais e cenografias durante oitenta anos, escreveu numa carta a um amigo: “Suplico a você que não seja pessimista. A vida sempre é linda, mesmo quando triste”.
Nesta semana encontrei duas leitoras, e logo perguntaram se nosso país enlouqueceu. Não disse a elas, mas escrevo agora, que um psicanalista hoje entende e explica as questões individuais menos que os antigos. E as questões sociais são ainda mais difíceis, por isso só escrevi sexta pela manhã, pois passei a semana imaginando o que escrever, mas tudo me parecia já escrito. O caminho diante da complexidade é ser lento, ainda mais diante o domingo, o histórico 8 de janeiro. Nunca os três Poderes da Democracia – Executivo, Legislativo e Judiciário – tinham sido devastados por hordas raivosas. Quebraram obras de arte, urinaram, defecaram, arrasaram três dos mais belos palácios criados por Oscar Niemeyer e construídos pelo suor dos trabalhadores. Provaram com seus atos que o problema não é a urna eletrônica, mas sim a derrota nas eleições, e reagem à derrota querendo golpe militar.
O dia 8 de janeiro de 2023 não será esquecido, foi um dia de traumas, o povo brasileiro se chocou com as cenas de invasão e destruição. Tudo feito por gente disfarçada de verde e amarelo, que felizes e se sentindo heróis arrasaram as sedes da Democracia. No dia primeiro do ano ocorreu a posse do novo governo numa festa de um amor entusiasmante feita por uma multidão. Uma semana depois quatro milhares realizaram a festa do ódio à liberdade, ódio à maioria do povo que elegeu uma frente ampla para governar o país.
Quando conversei com as duas leitoras, me referi aos traumas do dia e logo perguntaram o que são, exatamente, traumas. Trauma é um evento muito intenso, surpreendente, que não se consegue responder bem devido aos transtornos que provocam na realidade psíquica de cada um. Todas as pessoas já viveram e viverão traumas como perdas, separações, frustrações, derrotas ou até vitórias. O trauma é um grande afluxo de excitações que está acima da capacidade pessoal de dar conta, dominar psiquicamente tanta excitação surpreendente.
O trauma pode ser pessoal, familiar, social ou mundial. Exemplo recente é a pandemia da COVID-19, que gerou um trauma mundial com efeitos pessoais. Cada ser humano reage ao trauma com sua personalidade. Há os que se desequilibram com sofrimento e os que reagem e tomam providências objetivas. No dia 8 de janeiro o Brasil ficou traumatizado e o mundo ficou impactado com o terrorismo que estuprou a Democracia. Há um Brasil que odeia o Brasil, se fantasia com o verde e amarelo, mas tem raiva de um país para todas e todos os brasileiros. Assim foi na nossa História, assim foi nas ditaduras, assim ocorre agora quando uma parte da população passou mais de dois meses gritando para que os armados voltassem. Dizem que os armados adoraram serem chamados, lembrados, amados, seduzidos. As pessoas, cansadas de permanecer diante dos quartéis, decidiram, orientadas por líderes, radicalizar e assaltar Brasília. Viajaram apoiados e guiados por armados, empresas e empresários.
O trauma é um choque violento, uma ruptura no conjunto de uma organização psíquica. Em pouco tempo há um aumento de excitação psíquica sem possibilidade de elaborar, gerando angústias, desamparos e reações desconcertantes. Trauma diante de uma perda, por exemplo, como ocorreu comigo no dia 8 de janeiro à tarde, quando estudava desamparo. Que ironia! No meio do estudo, fui espiar o UOL, como faço às vezes, e li e vi a invasão e a destruição na capital federal. Não pude mais estudar, vivi um desamparo que me obrigou a ficar diante da TV até o fim do dia. Aliás, o trauma está ligado ao desamparo, pois o povo brasileiro, em sua imensa maioria, se sentiu desamparado, chocado com tanto ódio e crueldade. Os invasores terroristas fantasiados de verde e amarelo destruiram artes brasileiras, estocaram cinco vezes o painel “As Mulatas” de Di Cavalcanti. Aliás, nada me foi mais traumático que essas estocadas no mural, quanto ódio à arte, quanto ódio das Mulatas, que poder tem a arte para gerar tanta agressividade. “As Mulatas” VIVEM.
Quando agora escrevo, percebo que passei toda a semana buscando caminhos de como escrever sobre as imagens da destruição de domingo. Criei títulos e desprezei, decidi não escrever, mas não me resignei, diante dos traumas é preciso escrever, conversar e esboçar respostas. Por que tanta loucura brasileira, loucura humana, nossa loucura, eis a questão. O Brasil é um país traumatizado pela escravidão de 350 anos e que segue no racismo estrutural. Vejam que foram “As Mulatas” que foram estocadas. O Brasil traumatizado pelos assassinatos de jovens negros, de indígenas, de indianistas, de pobres. País traumatizado com a ditadura militar da tortura e dos desaparecidos sem julgamento. Por isso o ex-presidente, em pleno Congresso, em 2016, saudou o maior torturador brasileiro e ainda disse que ele foi o terror da presidente Dilma.
O governo anterior não aceitou a derrota nas eleições, os armados e os poderes financeiros tampouco, são gente que deseja o golpe. Se esse golpe fracassou, outros podem ser tentados. Os últimos seis anos fizeram muito mal ao País, passamos da civilização a uma quase barbárie como se viu na pandemia, em que médicos desprezaram até as vacinas! Felizmente vem nascendo há tempos um novo país, um novo Brasil. É difícil mudar a história do País já definido como da Casa Grande e Senzala, é um desafio para muitas gerações, muitas mesmo. Essa luta começou no distante passado com Zumbi, Dandara e milhares de negras, negros, indígenas, trabalhadores, estudantes, sonhadores de um Brasil para todas e todos. É urgente que os armados entendam que a guerra fria terminou, o comunismo definhou, estamos no século XXI, agora é a Democracia. Ah, os armados precisam estudar que eles não servem a um governo, mas servem sempre ao Estado, são pagos por todo o povo, devem respeito aos três Poderes.
O Brasil é um país traumatizado, pois boa parte do nosso povo não está no retrato e agora está começando a se fazer presente. No dia 11 de janeiro, houve a posse dos dois novos ministérios: o dos povos originários, com a ministra Sonia Guajajara, e o ministério da igualdade racial, com a ministra Anielle Franco. Aliás, ver, três dias depois do ataque a Brasília, as novas ministras com novos ministérios assumindo foi um show. Show da Democracia, um show da justiça social, diminuindo assim o impacto traumático do dia 8. Viva as artes, as ciências, a cultura brasileira, o povo brasileiro. Democracia Sempre.
Busco viajar ao paraíso quatro vezes por semana. Escrevi quatro e logo associei ao número de sessões que tinha na análise, não porque o divã fosse um paraíso, mas pelo descanso que vivia da solidão de lidar com os conflitos. Ao paraíso se pode ir só ou acompanhado, pois é obrigatório a gente se sentir como Adão, carente de uma parceria. Bem verdade que formar uma boa dupla para viajar é a oitava maravilha do mundo. Talvez haja no ser humano uma nostalgia do paraíso, o desejo de encontrar um espaço sorridente, a vivência de felicidade, uma vivacidade pura. Viajar ao paraíso é, portanto, transcender o plano da realidade, é recuperar uma plenitude perdida, é sentir um estado de graça.
A Divina Comédia de Dante começa com o Inferno, que é a parte mais famosa do livro, depois vem o Purgatório, e nele há um verso: “Chove dentro da alta fantasia”. A fantasia é a imaginação dentro da qual chove, é uma elevação, é a capacidade de imaginar, essencial para ler A Divina Comédia, e mais ainda para viver. “Imaginar é um ato de coragem, que nos coloca em movimento, instaura espaços de revolta e esperança, abrindo mundos até então desconhecidos”. Essa última frase é a primeira da apresentação do livro Imaginar o amanhã, que o Edson Sousa e eu escrevemos. As crianças imaginam com facilidade, assim como os artistas, e a gente tem que estar sempre aprendendo. Os que tem pouca capacidade de imaginar depositam num Outro poderoso suas vidas. Têm medo da liberdade, é a servidão voluntária, abrem mão de mandar em suas vidas.
Viajar ao paraíso é imaginar, e cada pessoa pode imaginar algum espaço paradisíaco. Minha viagem aqui em Porto Alegre, que vou quatro vezes por semana, é o pouco conhecido Jardim Botânico. As vezes, caminhando nesse jardim, imagino um encontro ao ar livre para conversar sobre amizade, alegria, Brasil, como contribuir para impedir o fim do mundo. Também já imaginei em ser um guia para caminhar nesse jardim que tem milhares de árvores, de plantas, flores, que está quase sempre deserto. Quem entra no JB pode começar a viagem à esquerda da casinha onde se paga uma entrada simbólica. É uma estradinha que é paralela ao lago e segue pelo caminho que mais gosto, todo fechado pelas copas das árvores.
Ao final desse primeiro caminho estão os altos eucaliptos com seus cheiros que purificam o ar. Aí se dobra à direita e sobe em direção ao palco do teatro ao ar livre, num descampado ao lado do estacionamento. Assim começo a viagem quatro vezes por semana com meu passaporte do JB, que custa R$ 14,00, dando direito a dez entradas num mês. Comparto esse paraíso com vocês, é a natureza com a qual a gente pode se reconciliar e se fortalecer. No JB o agro não corta árvores e esburaca a terra matando os lagos, a beleza, a vida. Ah, e quem vai cedo, às nove da manhã quando abre (menos segunda-feira), pode sentir os cheiros da natureza que ainda está despertando.
Por fim: o que é mesmo o paraíso? Há muitas histórias, na Bíblia- Gênesis- como nos povos orientais; uns pensam como sendo o sagrado, outros como mito. No paraíso imaginado é sempre primavera e há uma claridade eterna, um dia nele equivale a mil dias na Terra, e onde há uma música maravilhosa. Para gente agnóstica ou meio metida a cultural, é possível imaginar o paraíso como um espaço de calma, fora da loucura cotidiana, de reconciliação com a infância, e aí as árvores em abundância são essenciais. Quem subiu em árvores na infância nunca esquece essa bela experiência. Vivo no JB algo que me faz lembrar as entradas nas cavernas do Petar, no sul de São Paulo. Entrar e sair de uma caverna é uma espeleoterapia, onde “espeleo” é caverna em grego, pois entrar e depois sair é uma terapia, como hibernar e sair de uma hibernação. Há um renascimento, e renascer gera entusiasmo para viver que alivia os pesos da existência. No JB há algo de sonho, de harmonia e até de utopia. Talvez seja imaginação demais o que escrevi, mas experimentem e quem sabe gostem, amem e até se apaixonem.
Encontrei a palavra “abrigo” em alguma leitura, e aos poucos ela ficou dançando na mente, pedindo atenção. Tardei em entender que ela era significante, pois nunca tinha usado essa palavra no que escrevo ou falo. Abri o coração a ela e fiquei pensando que ela significava. Lembrei, finalmente, de um abrigo no centro de Porto Alegre no qual os bondes tinham seu ponto de partida. Até hoje está lá a edificação, ainda com as bancas que vendem sucos, lanches e batidas ou vitaminas. Era numa das bancas que eu era obrigado a tomar uma batida de abacate com leite num copo grande, e eu pequeno. Tomava contrariado, pois era muito e o primo bem mais velho dizia que era para tomar tudo. No abrigo me sentia desabrigado, obrigado, contrariado, e não gostava.
Entretanto a palavra abrigo também é o começo da vida, sentir-se abrigado, amparado, protegido, e é essencial para enfrentar a vida. O primo era malvado, mas ao mesmo tempo me levava a passear no centro e cobrava o preço de me ver tomando a batida de abacate.
A palavra abrigo é proteção, amparo, e essa construção na capital gaúcha tem essa função. “Abrigo” tem origem latina – apricari –, e ao longo da vida a gente é abrigado e abriga. Há as roupas que abrigam, e uma até que se chama abrigo. Por outro lado, é uma palavra que contém uma outra que é brigo, brigar, e na vida não faltam brigas, tensões, desencontros. Então pensei que abrigo pode tanto ser algo bom como algo ruim, e assim sentia a obrigação de tomar a batida de abacate, um presente chato que divertia o primo sádico.
O problema é o quanto se paga pelo abrigo e o quanto é um amparo essencial, e que cada um, com o tempo, precisa construir seu próprio abrigo, seu espaço, proteger-se de si mesmo e dos demais. Um dos espantos da vida é o quanto a gente sofre, a necessidade de castigo, o sentimento de culpa, diferentes expressões que revelam o masoquismo primário da gente. Sofro mas estou amparado, sofro mas não estou só, tem sempre alguém que desfruta do sofrimento amoroso. O problema de aprender a conviver consigo mesmo, atravessar o desamparo na intimidade de cada um. Conviver com os demais, conviver consigo, e o quanto pode ser difícil viver com menos sofrimentos.
Entretanto, a vida se dá em sociedade, e na convivência social o poder é exercido por quem é mais velho, ou quem tem dinheiro, armas, ou equivalentes de mando. Quando os sofredores se rebelam, são atacados pelos armados pagos pelos endinheirados. Quando eu era criança, paguei ao primo que me levava ao centro para passear tomando o copão de batida de abacate. Entretanto, agora vejo que o preço, mesmo sendo ruim, eu pagava, e achei graça desse jogo. Tardei em fazer as pazes com a palavra abrigo, e hoje me divirto com ela. Talvez nesse encontro aqui nas redes sociais a gente busque algo parecido a um abrigo, tanto quem escreve como quem lê. Uma boa amizade é um abrigo contra o desespero.
Hoje ainda não gosto muito da batida de abacate, mas tomo.
Sempre caminhei em praças e parques, até que um dia no consultório escutei um analisando falar que caminhava nas ruas. Fiquei pensando a partir de então como eu poderia seguir essa ideia que não tinha me ocorrido. Não tardei a encontrar um circuito que, saindo da minha casa, chega na rua Felizardo após quinze minutos. Aí tem uma das lombas íngremes da cidade, que está ao lado do Jardim Botânico até chegar a uma rua plana que igualmente bordeia o jardim. Aos poucos fui treinando as subidas e descidas e não tardei em imaginar o quanto uma vida é feita de altos e baixos.
Às vezes, a gente está tão bem, tão em paz com a existência, em outras parece que o mundo vem abaixo, se passa do amparo ao desamparo. Ora animado com o Brasil e o mundo, ora abatido, ora sonhando com o amanhã e ora angustiado. Quem na vida não subiu e já desceu, quem até não adoeceu? Viver é uma arte e tanto, mas como se aprende a arte de viver é o X da questão. Lembrei agora da autobiografia de Oliver Sacks, “Sempre em movimento”, livro que recomendo. Viver em movimento físico, psíquico, social, gerando ideias que dão origem a metamorfoses, emociona.
Não poderia viver sem parcerias, mas admiro quem consiga viver mais só, em busca de alívios da solidão. Quantos artistas viveram sós, às vezes com alguém ao lado, mas iluminaram as vidas do ser humano. Lembrei de Franz Kafka com seus amigos e noivas, ou o incrível gênio da pintura que foi Van Gogh, ou o compositor Beethoven que mudou a música ocidental. Gente que viveu intensamente, sofreu muito nos seus amores, criou obras admiráveis e aos quais tanto devemos. Foram humildes, suportando crises intensas de todos os tipos.
Na vida há um sobe e desce em todas as atividades, e muitas vezes há avaliações íntimas de uma boa autoestima e outras de baixa estima. Esse vaivém tem a vantagem do movimento, nada fica sempre igual, o tempo passa, a gente cresce, amadurece, envelhece e pode seguir aprendendo. Dos aprendizados, é essencial aprender a vivacidade pura do amor, aprender a amar essa tribo que a gente forma com familiares, amigos, gente com quem se trabalha, convive.
Se me perguntassem o que é mesmo viver hoje, responderia que viver é aprender, aprender do cotidiano, da natureza, das artes, e de como conviver sem tanto sofrimento. Não acredito em fórmulas, confio no aprendizado, nos que se arriscam ao novo, vivem as metamorfoses como acréscimos. Aprender a se amar como a gente é, com certos limites que vão sendo definidos com o passar do tempo. Um dos aprendizados é suportar a loucura geral, pessoal, sem perder muito o norte, mantendo aqui e ali alguma luz diante das angústias geradas pelas perdas. No fundo o que se requer é aceitar os contrastes paradoxais da gente e dos demais, e assim conviver com o desamparo. Perceber a incerteza cotidiana, fazer as pazes com o estranho que vive na gente, esse inconsciente ambivalente onde o tempo não passa.
Subir e descer a rua Felizardo, e cada dia é diferente, conviver com a natureza do Jardim Botânico não me fez melhor, não aprendi a escrever, nem sei se fiquei mais equilibrado. Entretanto, sempre que saio a caminhar sinto uma alegria, e quando retorno das subidas e descidas percebo que estou animado sob o efeito das endorfinas. Subir e descer na vida com parcerias, mesmo imaginárias, alivia, dá leveza diante de tanto peso.
Carlos era um menino de dez anos, adorava livros e estudava em um colégio judaico. Um colégio com muitas árvores, pátios, um ginásio de esportes e uma bela biblioteca. Desde muito cedo se acostumou a ler graças ao seu pai e principalmente ao seu avô. Na verdade, o avô era chamado Zeide, em ídiche, pois ele tinha nascido na Polônia, numa pequena aldeia onde moravam muitos judeus. O avô tinha estudado numa escola de rabinos, uma Yeshivá, e conhecia muito o Tanach, o Velho Testamento, e outros livros da sabedoria judaica. Quando Carlos tinha oito anos ganhou um pequeno livro, o Pirkê Avot (Ética dos Pais), e aprendeu as frases e histórias dos sábios de dois mil anos.
O único problema de Carlos era ser o mais pobre de sua turma na escola. Seus colegas vinham com pastas bonitas, uniformes muito bem passados; já ele não, tudo era muito simples. Na saída da escola os pais vinham buscar os filhos em grandes carros, e ele ia caminhando para sua casa. Um dia, Bernardo perguntou-lhe por que o seu pai não vinha buscá-lo de carro, e Carlos disse que sua família não tinha carro. Bernardo não quis acreditar, riu do seu colega, e logo contou aos demais.
Interessante que no futebol esse menino pobre se destacava, pois se empenhava nas partidas, correndo atrás da bola com entusiasmo. Um dia Carlos trouxe um pequeno livro preto de capa dura e despertou o interesse de vários colegas, e alguém que lhe perguntou:
– Que livrinho é esse?
– É o Pirkê Avot.
– Pirkê Avot? O que é isso? – logo vários perguntaram.
– Ética dos Pais. É o livro mais popular da sabedoria judaica.
– E o que tem nele de tão especial?
– Os principais sábios judeus expõem lições de vida através de comentários da vida.
– Conte alguma – disseram alguns colegas curiosos.
– Começo com Hilel, o único a ser chamado de sábio dos sábios no Povo Judeu.
– Como mesmo é o nome dele? – perguntaram.
– Hilel, que de tão importante é chamado de sábio dos sábios. Por exemplo, ele disse uma frase famosa mais ou menos assim: “Não faças aos outros o que não queres que façam a ti”. Contam que ele teve influência até em Jesus Cristo.
A essa altura o grupo de colegas que rodeava Carlos já tinha aumentado, e estavam todos surpresos. Não imaginavam o colega pobre, que vinha ao colégio com roupas amarrotadas e que seu pai não tinha carro, saber tanto sobre os sábios judeus.
– Conte mais sobre Hilel.
– Tem três frases famosas que gosto muito: “Se eu não for por mim, quem será por mim”; “Se eu for apenas por mim, o que será de mim?; “Se não for agora, quando?”. Meu avô, o Zeide, me explicou várias vezes que cada um deve cuidar de si, mas também devemos nos ocupar dos demais, e, quando temos algo para fazer, devemos fazer e não sempre postergar para amanhã.
Disse, por fim, que entre as qualidades de Hilel estavam a paciência e a capacidade de pensar coisas novas que até hoje são úteis. Existem no mundo escolas com o nome de Hilel. Concluiu:“Nunca mais alguém do Povo Judeu foi chamado de sábio dos sábios”.
– Carlos, tu és o amigo dos sábios – disse Bela.
A partir daquele dia ele passou a ser chamado de amigo dos sábios.Todos estavam estupefatos, o menino que tinha ironizado Carlos por seu pai não ter carro e ele ser pobre ficou envergonhado. Agora, via uma riqueza e um conhecimento no colega. Pediu para ele contar mais do Pirkê Avot, em especial de Hilel. Entretanto, já havia batido e o recreio terminado. Os demais colegas, a partir daquele dia, passaram a tratar Carlos de outra forma. A turma soube na prática o que é um dos valores do Judaísmo e da Sabedoria universal, que é o hakarat hatov (reconhecer o bem) – elogiar as qualidades de seus semelhantes e falar bem dos outros.
P.S. Essa é a única história que escrevi para crianças no livro “Contos e reencontros” com vários autores, editado pelo Colégio Israelita Brasileiro nos seus 95 anos, que agora está completando cem anos. Fui aluno e professor do CIB a quem agradeço sempre.