Da Impossibilidade de Pepes em Terra de Bibes

Dizer que o nome dele era José seria, talvez, cumprir uma formalidade cartorial daquelas que só servem pra manchar papéis e preencher lacunas em biografias que ninguém pediu, com a mesma indiferença com que se anota a direção do vento numa segunda-feira sem história, mas o que importa mesmo, e nisso nem vale discussão, não é o nome com que se nasce, mas o nome com que se segue vivo, ou melhor ainda, o nome com que te chamam quando já não precisam mais te distinguir dos demais, mas apenas te reconhecer, e foi assim que José virou Pepe, não por vontade própria, nem por truque de marqueteiro querendo fabricar afeto onde só há cálculo, mas porque o povo — esse bicho estranho, difuso, que não tem rosto definido mas às vezes tem razão — decidiu que aquele homem magro, de costas curvadas e fala mansa, era um dos seus, e por isso podia ser tratado como se trata um irmão velho, um amigo que já errou o bastante pra não errar mais, alguém que viveu grande demais pra caber nas pequenas biografias, e por isso mesmo merecia um apelido, porque o apelido, ao contrário do nome, não se impõe, se ganha, e quando se ganha, revela.

E foi assim que Pepe, o ex-José, virou não só um homem com nome curto, mas um homem com história longa, história que não se escreve com verbinho educado nem advérbio que pede desculpa, mas com substantivos secos, ásperos, diretos: prisão, assalto, sequestro. Porque foi isso mesmo que ele fez. E não se deve esconder, nem enfeitar, nem empacotar com eufemismo, roubou banco, sim, sequestrou embaixador, sim, enfrentou o Estado com arma na mão, sim, e por isso foi preso, e por isso foi torturado, e por isso ficou catorze anos trancado entre grades que não serviam só pra separar do mundo, mas pra tentar apagar o homem por dentro. E durante três desses anos não viu sol, não viu gente, viu só formiga — sim, formiga — essas sim fiéis, essas sim constantes, essas sim capazes de escutar sem julgar. E não enlouqueceu porque aprendeu a conversar com o que ainda estava vivo em volta, e talvez por isso, quando finalmente abriu a porta da cela e pôs os pés de novo sob o céu, já não tinha sede, já não tinha pressa, já não tinha nenhuma gana de vencer, só a firme intenção de não trair.

E assim viveu, sem trair — o que já é mais do que se pode dizer de quase todos os que sentam em trono — e governou, sim, foi deputado, foi senador, foi ministro, foi presidente, e em nenhum desses cargos trocou de casa, de roupa, de mulher, de rotina, ficou no sítio, ficou com o mesmo carro velho, ficou com Lucía, que nunca foi primeira-dama porque nunca precisou ser, que nunca fez pose porque já era grandiosa, e ali, entre cachorros e hortas, entre silêncios e reuniões, entre o absurdo do poder e o milagre da vida comum, ele mostrou que não era necessário escolher entre ser gente e ser governo, que era possível ser os dois, e ao mesmo tempo, e com coerência, e com humildade, e com humor, e com desapego.

E quando a doença chegou — e doença assim não chega como quem bate na porta pedindo licença, chega como chegam as sentenças que já se sabem definitivas — Pepe não quis prolongamento, não quis tratamento que adia sem curar, não quis sobrevida, quis só o que ainda fosse vida, e o que já não fosse, que morresse logo, e foi assim que morreu, como morre quem não tem mais conta pra pagar nem palavra por dizer, e isso, sejamos francos, é raro, raríssimo, quase pecado nos tempos de agora, e ele se foi sem grito, sem câmera, sem cortejo, deixando só o silêncio como prova de que, sim, foi possível, ainda que só uma vez, ainda que só com ele.

E o problema, o verdadeiro problema, é que quase ninguém em Israel sabe disso, ninguém ouviu, ninguém leu, ninguém ensinou, e se perguntarmos nas escolas, nas universidades, nas redações, nas filas do supermercado ou nas cadeiras do Knesset, poucos saberão quem foi Pepe Mujica, e isso não é acaso, é projeto, porque se soubessem, talvez não aceitassem que o apelido mais repetido por aqui seja outro: Bibi — nome curto também, nome fácil também, nome dito com a falsa intimidade de quem acredita que conhece, mas só consome, porque Bibi não é apelido dado pelo povo, é apelido herdado da infância e transformado em marca de campanha, é apelido que se impôs como logotipo, como escudo, como perfume caro sobre carne podre, e todo mundo repete, Bibi pra lá, Bibi pra cá, como se isso bastasse pra torná-lo próximo, humano, acessível, quando ele nunca foi nada disso, nunca andou a pé, nunca abriu mão de nada, nunca ouviu o que não quis, nunca pagou pelo que fez.

E é aqui que a comparação se torna insuportável, porque de um lado temos Pepe — o homem que roubou e pagou, que matou e pensou, que lutou e depois se calou, que caiu e voltou sem rancor — e do outro temos Bibi — o homem que sempre teve tudo e ainda quer mais, que não se contenta em ter, precisa manter, precisa impedir que os outros tenham, que os outros sonhem, que os outros respirem. E o povo, esse mesmo povo que deu a Pepe um apelido com afeto, se deixou enganar por um apelido herdado, como se o som curto bastasse pra esconder o abismo longo, e ainda o chamam assim, Bibi, como se ele ainda fosse menino, como se ainda merecesse o colo que já traiu mil vezes, como se ainda fosse dos nossos, quando nunca foi, e nunca será.

E eu, que pertenço aos dois mundos, o daqui e o de lá, o das sirenes e o dos silêncios, digo com a dor de quem perdeu em dobro, que Israel nunca teve um Pepe, mas teve e tem um Bibi, e isso diz mais sobre o que somos do que qualquer guerra, qualquer lei, qualquer eleição, e por isso peço, não que o odeiem, nem que o derrubem, nem que o esqueçam, só que o chamem pelo nome que merece, Benjamin, porque Bibi não é mais dele, não tem direito, não tem afeto, não tem povo, não tem verdade, e se um dia teve, já perdeu.

Os Bons, os Maus e os Outros Animais

Talvez o melhor seja começar logo por aqui, por essa ideia incômoda, difícil de engolir, mas tão verdadeira quanto qualquer susto diante do espelho: a de que a gente não é exatamente quem acha que é. O homem bom — esse que acorda cedo, leva o lixo, alimenta o cachorro, paga os boletos em dia e evita parar na vaga de deficiente — esse mesmo é capaz de arrancar a língua de outro se alguém soprar no ouvido certo as palavras “pátria”, “honra” ou “família”. E não sou eu quem inventa, é a história que grita pelos ossos deixados pra trás nos becos do mundo, ossos empilhados, embranquecidos, catalogados, às vezes até exibidos em museu, como se a gente dissesse com orgulho: olhem como fomos eficientes até na matança.

E não me venham com essa conversa simplista de separar os bons dos maus, como se o mundo fosse um teatro de bonecos em que alguns mexem os fios da maldade e outros só dançam a musiquinha da virtude. Porque, se tem uma coisa que já deu tempo de aprender, mesmo a contragosto, é que ser bom depende muito das circunstâncias — e ser cruel também. O mesmo sujeito que hoje abraça o vizinho, amanhã pode mirar nele, se o mapa mudar, se a bandeira trocar de cor ou se alguém gritar que é isso ou morrer — e nem falo da morte do corpo, mas daquela outra, a que nos arranca da tribo, que nos expulsa do grupo, e que, convenhamos, é a que mais mete medo.

Dizem que somos civilizados, modernos, que aprendemos com os erros do passado. Mas basta uma crise, um colapso no mercado, uma eleição mal digerida, um inimigo fabricado na prensa da propaganda, e lá estamos nós outra vez, com a tocha na mão e a convicção inflada no peito, prontos pra fazer justiça do nosso jeito — como se a justiça algum dia tivesse tido mãos que não fossem as nossas. E se me perguntarem onde estão os maus, eu digo: em todo lugar onde os bons acham que têm razão demais pra ouvir.

Ah, os bons. Essa turma tão cheia de certeza, tão limpinha, tão moralmente alinhada. Nunca hesitam, nunca tropeçam, nunca suam. Só apontam, denunciam, corrigem. Como se tivessem recebido um crachá de pureza e agora fossem os únicos autorizados a decidir quem merece o chão e quem merece o buraco.

E os maus? Ora, os maus são uma delícia. São úteis, funcionais. Eles explicam tudo: a decadência, a violência, a bagunça, o trânsito. Com eles, a gente dorme tranquilo — porque o mal tá sempre lá fora. Nunca dentro. Nunca na gente. Nunca no jeito que a gente ama, teme, decide ou se cala. E assim seguimos, com a consciência lavada e o sangue nas mãos dos outros.

Porque, no fundo, todo mundo está pronto. É só aparecer a causa certa. E se não aparecer, a gente inventa. Ou então pega emprestada de alguém mais convicto, mais barulhento. Não faltam bandeiras, slogans, hinos, líderes carismáticos e frases de efeito. E então o homem bom marcha, o homem bom grita, o homem bom aperta o gatilho. E quando tudo passa, ele diz que não sabia, que só cumpria ordens, que era pelo bem maior. Depois volta pra casa, dá ração pro cachorro, paga os boletos e segue se achando bom. Talvez até melhor. Mais consciente, mais patriota, mais cidadão.

E é aí que mora o perigo. Não no grito selvagem, mas no silêncio limpo. Não no monstro escancarado, mas no sujeito comum cheio de certezas. E se me pedirem um jeito de distinguir o bem do mal, eu respondo: não sei. Talvez nem tenha como. Talvez o mais sensato seja desconfiar — não do outro, mas de si mesmo. Porque quem confia demais na própria bússola moral corre sempre o risco de bater palma pro horror, desde que ele venha bem justificado.

E aqui, diante da tela acesa onde se escrevem hoje as velhas confissões do mundo, eu deixo essa dúvida como quem planta não um fruto, mas uma faísca:

se todo mundo é capaz de tudo, quem é que vai nos salvar das nossas causas?

Da Impossibilidade de Tolerar o Intolerável

Eu, que de paciência pouco me sirvo e da esperança já fiz penhor em tempos mais ingênuos, pergunto-me, e não é uma pergunta retórica dessas que se fazem apenas para enfeitar o papel, mas uma daquelas que, quando surgem, vêm com o gosto amargo do fel e o peso de uma verdade que se arrasta atrás de si como corrente mal quebrada, pergunto-me, repito, em que momento aceitamos — aceitamos, veja bem, e não finjamos que fomos apenas arrastados pela maré — que a miséria moral deixasse de ser vergonha e passasse a ser projeto de governo, que a barbárie se sentasse à mesa e ainda fosse servida primeiro, enquanto os que deveriam levantar-se em protesto preferiram ajustar a cadeira, fingir que não era com eles, olhar para o lado como quem contempla a paisagem de um abismo sem perceber que já está com um pé lá dentro.

E digo mais, porque já que começamos a caminhar sobre este fio de navalha, vamos até o fim: o nome há de ser dito, não porque mereça, mas porque escondê-lo seria fazer-lhe o favor de preservar a decência que nunca teve, Itamar Ben-Gvir, esse é o nome que já deveria causar engulho antes mesmo de ser pronunciado, mas que, no entanto, circula com a desenvoltura de um velho conhecido nos salões onde se distribuem decretos e se legisla a desgraça como quem organiza o cardápio de um banquete fúnebre.

E não me venham, peço encarecidamente, com a história de que tudo é mais complexo, de que há nuances a considerar, porque a complexidade é o álibi dos covardes, e se há algo que este sujeito jamais foi, é complexo, porque o seu caminho é uma linha reta e suja, traçada desde a juventude quando, sem o menor pudor e com a arrogância própria dos que não têm sequer a grandeza da vergonha, arrancou o emblema do carro de Yitzhak Rabin e o ergueu como troféu diante das câmeras, numa exibição pública de um ódio que, poucos dias depois, se materializaria em tiros disparados por mãos que também penduravam na parede de casa o retrato do carniceiro de Hebron, Baruch Goldstein, retrato esse que, não por coincidência, decorava a sala do próprio Ben-Gvir, uma sala que jamais conheceu o incômodo de um pensamento decente.

E eu, que de espectador já me cansei, e que de silêncio não faço profissão, pergunto-lhe diretamente, sim, a você que me lê com esse leve desconforto que tenta disfarçar sob a desculpa de uma análise equilibrada, em que ponto exatamente você decidiu que era possível ser tolerante com o intolerável, e mais ainda, que era possível manter-se neutro enquanto o chão à sua volta arde em chamas acesas não por acaso, mas por mãos sabidas e intencionais, como aquelas que, entre um ajuste ridículo de paletó e uma cuspida de intolerância bem ensaiada, entregam ao mundo a mais repulsiva das certezas: a de que ainda há quem prefira o fogo ao esforço de construir pontes.

E porque não basta apenas apontar o dedo sem colocar o espelho, pergunto-lhe sem qualquer vontade de ser ameno, você, justamente você, que talvez tenha hesitado em condenar, que se calou em reuniões de família, que preferiu mudar de assunto nas rodas de amigos, que justificou a ascensão do monstro com aquela frase miserável de que “as coisas não são bem assim”, o que pensa agora, diante desta fogueira que já lambe as paredes da sua própria casa? Acha mesmo que se salvará do calor apenas porque, até agora, limitou-se a aquecer as mãos à distância?

Não há mais espaço, e nunca houve de fato, para essa farsa piedosa da neutralidade, porque a neutralidade, quando o intolerante já ocupa o centro do palco, é apenas a forma mais covarde de tomar partido, é sentar-se entre os bárbaros e acreditar que, por não levantar a taça no brinde à destruição, já se está absolvido da culpa.

Pois saiba, e saiba bem, que a história que vier, porque sempre vem, escreverá com a frieza dos que já perderam a paciência até para a compaixão, que entre os incendiários e os que simplesmente observaram, não há distinção moral, apenas diferença no método.

E no fim, quando as cinzas assentarem, e que ninguém duvide de que elas virão, não restará sequer a sombra para protegê-lo da pergunta que ressoará em sua cabeça como um martelo final: onde você estava enquanto o intolerante incendiava tudo? E pior ainda, por que diabos você nada fez?

E esta, lamento informar-lhe, será a pergunta sem resposta. E que esse silêncio, ao menos, lhe sirva de penitência.

A culpa é do Capelobo

A culpa é do Capelobo

Está lá há algum tempo. Num cantinho recuado na boca da estação do metrô em Copacabana, a faixa rabiscada a capricho anuncia: rodízio de caldo de cana. Para acompanhar a bomba calórica, o funcionário anuncia os petiscos homicidas. Nunca dei bola ao palavrório, mas algo me chamou a atenção num dia de menos pressa. Aproveitem! Hoje tem pastel de pizza! No Rio, churrascarias rodízio oferecem também comida japonesa. Nada mais natural (sem duplo sentido) do que comer picanha mal passada acompanhada de sashimi de atum… Os estômagos cariocas têm blindagem dupla e bile à prova de bala. Pastel de pizza, no entanto, derrotou o folclórico pastel de vento da Central do Brasil no torneio dos nossos exotismos gastronômicos. Pessoal aqui gosta de viver perigosamente.

O resultado da comilança jaz nas escadas de acesso à plataforma. Restos mortais de pastéis, guardanapos, embalagens, canudos, copos, jogados nos degraus. A primeira linha de metrô do Rio foi inaugurada em 1979. Não demorou muito e comentava-se, à boca pequena, que o carioca virava sueco assim que entrava no subterrâneo. Um nível de civilidade que não se via no resto da cidade. O João que jogava a guimba na calçada vestia-se de Johanssen enquanto aguardava o trem, depositando o palito do picolé na lixeira. O malandro Kid Morengueira dava passagem para o sóbrio Ingmar Bergman.

Passados tantos anos, com uma privatização no lombo, os cariocas renunciaram à metamorfose nórdica. O metrô sintetiza hoje o comportamento comum aos que confundem espaço coletivo com território sem regras. A encrenca não se resume à sujeira crescente. As portas de acesso aos vagões estão permanentemente bloqueadas por passageiros (grudados em celulares), cada vez mais gente senta no chão dos vagões (o que é formalmente proibido), não há campanhas que orientem os usuários a usarem corretamente as escadas rolantes (quando estas não estão indisponíveis). Cada pessoa acha que é rainha do seu pedaço, cria suas próprias regras. Os incomodados que usem helicópteros ou batmóveis.

Dia desses estava num simpático bistrô perto de casa quando vejo entrar o Raymundo de Oliveira. Conhecemo-nos em várias trincheiras de resistência à ditadura civil-militar. Saudamo-nos fraternalmente e, depois de um dedo relâmpago de prosa, puxou-me para bem perto e segredou, com ironia: “Onde está o mundo melhor que você me prometeu?”. Sei muito bem o que ele quis dizer. Dá um certo travo amargo perceber que, depois de tanta luta, tanta esperança frustrada, o que vemos ao nosso redor é destruição, deixa-pra-lá e fortalecimento de segregações muitas. Nas ruas e cidades, no planeta. O que deu errado?

Falei do metrô carioca, mas há muitos puxadinhos nas vizinhanças. São os mais de 8.000 bares que entulham ruas e trovejam barulheiras. Caixas de som nas praias, urrando “música” (sic) e mensagens religiosas. Motos, patinetes e bicicletas competindo pelo título de bandalha do ano. Balas de todos os calibres em voo livre à procura de cabeças, troncos e membros. Além fronteiras, no mundo de mileis, orbans, trumps e seus parças, os pesadelos gerados há quase um século saem das tumbas e anabolizam-se. No meio do fogo cruzado, povos dizimados, êxodos forçados por miséria e violência, tecnologias a serviço da mentira e da ignorância. O que deu errado?

Talvez Luiz Antonio Simas tenha matado a charada. Simas é meu guru para temas cariocas e de cultura popular. No seu livro “Bestiário brasileiro”, apresenta-nos o Capelobo. Trata-se de um monstro com corpo peludo de homem e cabeça de animal (pode ser tamanduá-bandeira ou anta). Ardiloso, ele consegue parecer gente ao se aproximar das vítimas e, abraçando-as, abre um buraco no crânio delas e chupa-lhes o cérebro. As coitadas deixam de raciocinar e passam o resto da vida falando bobagens. Parece-lhes familiar? Será que houve, e ainda está em curso, uma invasão mundial de Capelobos? A culpa, cáspite!, vade retro!, é deles!

Abraço. E coragem.

Caricaturas

Caricaturas

1982. O Brasil era governado pelo general que seria o último do ciclo ditatorial iniciado em 1964. João Baptista Figueiredo, de triste memória, havia comandado o Serviço Nacional de Informações, ninho da arapongagem que aterrorizou democratas de todos os calibres, estilos e vocações. Sujeito de maus bofes, comparáveis aos de outro infame que serviu à ditadura, o general Newton Cruz. Figueiredo não se constrangeu em dizer que preferia cheiro de cavalo ao do povo. Quem viveu aquela época, há de lembrar da expressão azeda do milico, representação facial da caserna golpista.

O imperialismo norte-americano estava de olho no seu histórico quintal. Ronald Reagan, canastrão que presidia os Estados Unidos, desembarcou em Brasília. Foi protagonista de uma gafe patética. No rega-bofe que o Itamaraty ofereceu ao caubói, ele ergueu um brinde ao “povo da Bolívia”. Imagino a revolução gástrica nas tripas do general iracundo. Tentando consertar a bobagem, Reagan emendou: “Bem, na verdade, é para onde eu vou depois”. Pequeno detalhe: a próxima parada do ianque seria na Colômbia. Na cabeça liliputiana dele, no entanto, devia ser tudo a mesma cucaracha.

Esta passagem ilustra à perfeição a visão caricata, banhada em preconceitos, que o Grande Irmão do Norte tem sobre os povos que moram no que antigamente era rotulado como Terceiro Mundo. Somos o Zé Carioca que, em pleno Rio de Janeiro, papagaiava “saludos, amigos”. Por sorte, ou acidente, sem sombrero mexicano… Vestimos turbantes enfeitados com saladas de frutas. Servimos de refúgio para escroques em produções hollywoodianas. Viramos piada quando o personagem de Audrey Hepburn em “Bonequinha de luxo” dá o bote num fazendeiro brasileiro rico, achava que o cidadão ia ser presidente e ela viraria a “rainha dos pampas”. Ainda bem que não gritou “olé!”. Às vezes, este desprezo transforma-se em violência, como aconteceu no apoio norte-americano ao golpe de 1964. Amigos, amigos, canhões à parte.

Vivi a explosão dos quadrinhos nos anos 50 e 60. Devorávamos Fantasma, o Espírito-que-anda, e Mandrake na maior ingenuidade. O Fantasma, codinome de um certo senhor Walker, tinha residência numa caverna africana forrada de joias e metais preciosos. Dominava a tribo dos temíveis pigmeus negros da tribo bandar, que lhe prestavam vassalagem e agiam como guarda pretoriana. Ao longo dos anos, sua imagem foi associada à dominação do justiceiro branco europeu sobre “raças” subalternas.

Mandrake, um ilusionista, tinha um serviçal negro, Lothar. Dizia-se que era um príncipe africano. Nunca entendi como alguém, com linhagem real e força portentosa, subordinava-se tão pacificamente a uma pessoa que não dava a menor importância para sua cultura, suas tradições, suas inquietações. Servia como cenário musculoso para a dinâmica existencial do seu patrão.

São pequenas amostras de um caldo informativo/pedagógico que ajuda a traduzir o jogo bruto das lutas de classes. Penso que quando Trump declara que “não precisamos deles (dos brasileiros)”, não está se referindo apenas ao terreno econômico. Sua presunção, sua arrogância, leva-o ao isolacionismo, à confirmação narcisista de que a América (que ele, erradamente, associa exclusivamente ao seu país) não precisa de ninguém. Econômica, cultural e socialmente. Tal como na marchinha dos carecas, eles se acham os maiorais.

Com tudo isso sambando na cabeça, decidi rever um seriado antigo da televisão. É Jim das Selvas, cópia descarada de Tarzan, criação do Edgard Rice Burroughs. Estrelada, nos dois casos, por Johnny Weissmuller, ex-campeão mundial de natação em 1922. Revi um episódio de 1954, O homem crocodilo. Foram 60 minutos quase insuportáveis. História confusa, atores medíocres. Noves fora, a ladainha que mostra os brancos trazendo a “civilização” para os selvagens, o roubo explícito de riquezas naturais (para um governo convenientemente não identificado), os nativos vestidos como foliões de baile suburbano (mudos, subservientes, ridículos). Para lembrar sem a menor nostalgia.

Sei que há muito debate sobre a influência das primeiras leituras e experiências cinematográficas sobre a forma como enxergamos o mundo na idade adulta. Tendo a acreditar que, de forma complexa, é decisiva (embora não necessariamente definitiva). Na aurora desta segunda Era Trump, é bom lembrar os antecedentes do olhar norte-americano sobre nós. Quando o Agente Laranja defender a Great America, as consequências para nós, o “resto”, “os menores”, não serão pequenas. Tomara que se encontre um caminho de unidade para enfrentar a tempestade.

Abraço. E coragem.

O que é o inconsciente?

O que é o inconsciente?

Ela sempre falou das dificuldades com sua mãe, que teve nove filhos e ela era só mais uma. Seu amor pelos estudos desde muito cedo não era valorizado pela mãe, formou uma imagem negativa dela, e essa desvalorização também recaiu sobre ela. Um dia, após anos, falou de seu nascimento e a previsão que fez o médico europeu sobre a morte dela e da sua irmã gêmea. Elas nasceram prematuras e pesavam um quilo cada uma, diante da fragilidade dos bebês, o médico disse que ambas morreriam. Após uns seis meses a sua mãe encontrou o obstreta e ele perguntou: “Qual das duas morreu primeiro?”. A mãe disse que ambas estavam vivas, e ele, surpreso, pediu para visitar os bebês. Quem orientara a mãe tinha sido uma empregada doméstica que trabalhou na casa de outro médico, que diante de um filho prematuro, montou na cozinha o quarto do bebê precoce e pôs junto à cama dos pais. A mãe seguiu o que disse a empregada, e o fogão da casa da paciente se manteve aceso durante as vinte e quatro horas, dia e noite, através de pilhas de lenhas. Essa história já tinha sido contada de forma sintética, mas naquele dia foi recontada com muitos detalhes novos, pois fiz bem mais perguntas. A mãe teve ajuda de duas irmãs que cuidaram as gêmeas durante um ano inteiro. Depois de quase meia hora eu disse mais ou menos isso: “Graças à tua mãe, que foi ajudada por tuas tias, e à empregada, tu estás hoje aqui. Tu e tua irmã foram muito bem cuidadas e muito amadas”. No instante em que falava vi que brotaram lágrimas em seus olhos; ali percebi que algo novo estava ocorrendo, como se estivesse fazendo as pazes com sua mãe, e também consigo mesma.
Em boa medida havia esquecido como correu risco de vida e como sua mãe salvou sua vida. Percebeu com mais clareza o esforço da família para mantê-la viva, e os cuidados dia e noite a fizeram sentir-se especial, valorizada, amparada, desejada. Integrou um passado distante ao seu presente, pôde rever sua história desde outra perspectiva, e sua mãe cresceu de importância. Recuperar velhas histórias com outros significados pode abrir as portas para um mundo visto desde a ótica da gratidão. As vezes, a gente se fixa mais nos defeitos de quem nos amou ou ama, quase esquecendo das qualidades.
A palavra inconsciente, desenvolvida por Freud em seu Projeto e melhor ainda no capítulo VII de “A Interpretação dos Sonhos”, já existia. Foram os escritores românticos que primeiro exploraram o inconsciente, pois perceberam o quanto o ser humano era fragmentado em oposição ao racionalismo e iluminismo. Goethe, Rousseau, Schiller, Schilling, entre outros, antecederam Freud na percepção do quanto há de lembranças e memórias que não são acessíveis à consciência. Os processos mentais que surgem do inconsciente podem emergir através das formações inconscientes. Há dentro de cada pessoa um desconhecido que constitui as identificações que formam a personalidade de cada um. Esse desconhecido, esse estranho que convive com a gente, irrompe aqui e ali e gera, às vezes, sentimentos do quanto a gente não é o dono de si mesmo, sendo dominado por desejos inconscientes.
Freud, em uma entrevista à BBC em 1938, disse: “Eu descobri alguns fatos novos e importantes sobre o inconsciente. Dessas descobertas nasceu uma nova ciência: a psicanálise. Eu tive de pagar caro por esse pedacinho de sorte. A resistência foi forte e implacável. Finalmente, eu consegui. Mas a luta ainda não terminou”. Ainda hoje a luta não terminou, e seguirá, pois há dificuldade em perguntar sobre o que é esse estranho inconsciente. É preciso coragem para perguntar, e, por acreditar na importância da curiosidade sobre o indivíduo, a sociedade, convém voltar sempre à arte de perguntar.
De tempos em tempos creio ser saudável se perguntar sobre quem mesmo a gente é, e assim despertar o desejo de se conhecer melhor. Nunca se saberá tudo que contém as marcas mnêmicas, as marcas de um distante passado, entretanto, novas descobertas podem ajudar a gente na vida. O que é o inconsciente? O inconsciente não é só linguagem, pois os afetos, as pulsões, as sensações-percepções são irredutíveis a linguagem disse Julia Kristewa. O que é o inconsciente é uma pergunta que permanece, dentro de cada pessoa há um mundo esquecido de marcas mnêmicas. O bom de escrever é recordar histórias de um distante passado, que vão pedindo, uma a uma, para serem contadas.