As chuvas (vários sentimentos)

As chuvas (vários sentimentos)

Quando eu era criança tinha muito medo, pois elas vinham com muitos raios e trovões, me escondia em baixo da cama. O barulho das goteiras me deixavam preocupa com mamãe, pois ela percebia que o telhado precisava de reparos, e isso podia demorar, fazendo-a espalhar vasilhas pela casa toda. O barulho repetitivo do pingar (pic pic), me causava angústia. Mas após a chuva, o terreiro lavado e imaginativo, dava-me a permissão para sonhar… Ali, desenhava tudo e criava histórias com personagens ricos e pobres. Os trabalhadores e os Lócios ( os donos da cidade, que se avizinhava do Sítio Chico Lopes). Percebia entre o diálogo de papai e mamãe, o tanto que eles exploravam os pequenos agricultores e pecuaristas.

Quando fiquei mocinha e fui morar em Recife, tive outros medos que se juntaram aos da minha infância, só que lá não tinha terreiros, mas ruas alagadas e gente desabrigada. Aquelas cenas mordiam o meu coração de desespero e impotência.

Mudei aos 18 anos para o NORTE apenas por uma temporada, mas fui ficando, ficando e as chuvas torrenciais, sem as goteiras de minha infância, me deixavam deslumbrada pelo vigor e rapidez. Quase não se demoravam. Eram fortes, rápidas e a velocidade da correnteza que descia para os corrégos e depois para os rios, tinha uma beleza selvagem. Tinha medo, mas sabia me controlar. Tinha que ter coragem. Estava na floresta longe de todos que amava.

Hoje, há dois anos, exatamente os anos pandêmicos, voltei a ter vontade de me esconder em baixo da cama. Não tem goteiras, mas tenho a sensação que os raios e trovões vão me atravessar e nunca mais poderei desenhar, tem terreiro, tem ideias, mas as mãos assustadas então paralisadas. Escrevo apenas na tela do celular.

Busão: o pecador social

Busão: o pecador social

Mary atravessa a cidade do Recife para trabalhar de cuidadora em um dos bairros nobres de lá. Ao chegar, toma banho, coloca a roupa de trabalho e vai atender a patroa que está sendo banhada pela cuidadora da noite. As duas trocam um sorriso e percebem que o dia vai ser animado. Mary alegra a patroa contando causos do Busão.

Neli fala para Mary em tom de brincadeira: “o seu pacote está banhado e perfumado!” as três caem na gargalhada. A patroa aprendeu com a dor dos dias, rir e permitir as brincadeiras sem se magoar. Ela sabia que o pacote era útil e sustentava duas famílias, portanto “afagos” trocados a divertia.

A patroa rindo, pergunta para Mary: “O que se deu no Busão hoje?” Ela sempre fala que rir um pouco das mazelas humanas é um “pecado social,” mas assim o dia corre com realismo e boas risadas e é uma forma de diálogo com um mundo que não conhece.

Mary fala do vuco vuco, que quase deu briga em uma das paradas com a freada brusca do motorista, que de tantas agruras, também não se importa com a carniça humana que transporta todos os dias, era assim que dizia: Vamos carniça!

Foi assim, minha patroa… A Desidete que havia cumprido pena por roubo, começou a gritaria e as vaias faziam coro
“Já matei, já roubei, não quero mais voltar pra essa vida!” uns se benziam, outros mandavam a mulher se calar, e um homem mais “folgado” gritou: “Vamos sensibilizar! A mulher tá arrependida!” e caiu na gargalhada… No vuco vuco, curvas, freadas, todos gritavam com o motorista… na parada da Boa Vista entrou uma senhora gorda, farta, o motorista não esperou ela se sentar e meteu o pé no acelerador… Caí cá caí lá, ela consegue se equilibrar um pouco e gritar com voz esganiçada: “Se fosse para uma com shortinho e beiradas de fora, você esperaria eu me acomodar, seu desgraçado!”

Aquieta aqui, aquieta ali, o burburinho de conversas sobre patroas toma fôlego e a cidade fica pequena para aquele mundo da linha que passa rasgando a cidade.

A patroa olha com perspicácia para Mary e fala, como é que elas apelidam a gente? Acho que a senhora não vai gostar de saber… Excitada pela linguagem daquele mundo, a patroa pede para que tudo seja narrado sem corte e censura. Então, as duas cumplices nas gargalhadas, mas não nas vidas se sentem com liberdade de contar e ouvir os inúmeros sentimentos, que através do discurso, são linhas divisórias dos dois universos sociais: ricos e pobres.

Bem, as meninas costumam chamar as patroas de Bichas ou Tristes. Me lembro de ter ouvido a Bernadete, que mora um pouco mais adiante de minha casa se referido a patroa dela assim: “Eu já estava pronta pra sair, aquela Bicha me mandou fazer qualquer coisa sem precisar…quase esganei aquela Triste!” eu caí na gargalhada e ainda futuquei o cão com a vara curta: “Tu fez Bernadete? Ela olhou com ódio em minha direção e falou para eu me foder, pois ela sabia que a senhora é ouro dezoito. A patroa olhou com muito carinho para Mary e falou: “Sou não! Me sinto uma pecadora social!”

As duas caem na gargalhada e o dia se enche de suas múltiplas realidades e dores sociais. As bernadetes tem seus motivos…

Carpintaria

Carpintaria

Nas férias de julho, lá pelos anos 60/70, esperávamos ansiosas pelo carpinteiro, o Sr. José Pedro, um grande contador de histórias. Papai o contratava para a fabricação de gamelas, [grandes pratos de madeira para alimentar o gado]. Durante o dia, o oficio era executado com esmero, ora ou outra a gente se aproximava para conhecer o trabalho e recolher uns pedacinhos de madeira que sobravam para serem mesas, cadeiras, camas de nossas casas de brinquedos. Nossas bonecas eram de sabugos ou de pano feitas por mamãe. Eram lindas! As bocas sempre vermelhas como o batom que ela usava. Tempos que sinto saudades…

Após a lida do leite, dos queijos, das louças lavadas, todos e todas banhados com o sabonete alma de flores, sentávamos na varanda da casa para ouvirmos histórias encantadas. O Sr. José Pedro não era só carpinteiro profissional de objetos de madeira, ele era carpinteiro da palavra. Nenhuma história era contada sem gestos, sem o corpo ficar em movimento. Nossos olhos brilhavam, as gargalhadas infantis ou as lágrimas encerravam as noites daqueles tempos ditosos e felizes.

Também tinha em seu repertório histórias de assombração. Mamãe sempre pedia que não contasse muitas para que eu não fizesse xixi na cama. Eu sempre fazia. Talvez por isso tenho uma paixão pelos contos de Edgar Allan Poe e já escrevi três novelas e nunca publiquei.

Fui uma criança feliz, mesmo tendo vivido a maior parte do tempo longe de meus pais, porque precisava estudar. Posso dizer-lhes que saí de casa aos seis anos e nunca mais voltei. Meus retornos eram nas férias e feriados. Mas eram tão lúdicos que parecia a eternidade. Papai sempre preparava os balançadores, as pedrinhas que encontrava nos riachos, as burras leiteiras, as galinhas de pereiro [brincadeiras da natureza]. Mamãe fazia doces, bolos, sequilhos, e uma das coisas que eu mais gostava de fazer era quando me dava a tarefa de colher ovos. Eram os tesouros a serem encontrados. Fico pensando em meu neto e netas com seus tabletes nas mãos.

A carpintaria exerce em mim um fascínio. Seja a arte em esculturas ou a construção de um texto. Exatamente como esmerilar. A palavra se torna sagrada quando exerce a função de historiar a vida, os mundos distantes… Hoje, quero agradecer a possibilidade, com muita humildade e dizer que o senhor José Pedro, meu pai e minha mãe foram os meus professores de sonhos e carpintaria.