O estupro da menina yanomami

O estupro da menina yanomami

A morte de uma menina indígena yanomami não me deixou dormir. Ela foi estuprada por garimpeiros que invadiram seu território. Roubaram terras, adoeceram sua família, usaram seu corpo e a mataram.
Isso aconteceu ontem. Vésperas de Yom HaShoa. Não consegui dormir ao lembrar que isso aconteceu com as vítimas do nazismo ontem. Mulheres e meninas foram estupradas e mortas. Aos milhares, às centenas de milhares.
O presidente da República defende garimpo em terras indígenas. Deslinde os garimpeiros, mas silencia diante do estupro da menina.
O presidente da República falou dos indígenas antes das eleições. Na Hebraica do Rio foi aplaudido quando disse que não daria um centímetro de terra aos indígenas. Aplaudido. Ele estava preparando a terra para o genocídio indígena. E para o estupro da menina yanomami.
Como judeu me senti assustado. Como descendente das vítimas do genocídio nazista, sei que se não pararmos isso a tempo, haverá mais. Muito mais. Haverá leis, expulsão e assassinatos em massa. Sei que Auschwitz só existiu por causa do silêncio dos que deveriam gritar. Tal qual sei que a menina estuprada e morta só existe pelo nosso silêncio. E pelos aplausos que começaram na Hebraica.

Brasil: A Disneylândia do Negacionismo

Brasil: A Disneylândia do Negacionismo

Nessa coluna devo começar pedindo desculpas a meus leitores. Sinceramente não entendo como as pessoas podem ficar assustadas quando veem ministros do governo a comemorar o Golpe Militar de 1964. Aliás, não me assusto sequer com os esforços que o Presidente Bolsonaro faz, no meio de uma pandemia mortal, para comemorar o 31 de março.

Acredito que está tudo coerente. Não acho mesmo que sequer podia ser diferente.

Em um dos trechos finais da estupenda obra intitulada K- O Diário de Uma Busca, Bernardo Kucinsky, descreve o pai de Ana, uma professora da Universidade de São Paulo, desaparecida durante a ditadura militar, pensando a memória da ditadura nas ruas do Rio de São Paulo.

Em uma estratégia literária de metanarrativa, o personagem “K” representa o importante intelectual judeu idischista Meir Kucinski. Radicado em São Paulo, Kucinski havia nascido na Polônia e conseguira sobreviver ao genocídio dos judeus na Europa justamente por ter decidido emigrar a tempo para o Brasil.

Ana, a professora desaparecida na ditadura, representa no texto a filha de Meir, Ana Rosa Kucisnski. Os dois são respectivamente o pai e a irmã de Bernardo, o autor do livro. Abaixo, K divaga sobre os nomes das ruas e a memória da ditadura militar no país que escolheu para viver.

No trecho que segue, ele comparece a inauguração de um largo na cidade do Rio de Janeiro que no processo de democratização recebe o nome de uma pessoa morta por lutar contra o regime dos generais. Ao retornar de ônibus para São Paulo, K nota cuidadosamente que os nomes das ruas e avenidas lhe são bastante conhecidos:

“Percorreremos algumas ruas com nomes que ele desconhecia. Depois, para espanto de K., uma Avenida General Milton Tavares de Souza. […] Foi quem criou o DOI-CODI, para onde levaram o Herzog e o mataram. Esse foi o Lavrenti Béria desses canalhas, o Hímmler brasileiro, dizia que para matar subversivos valia tudo; e tem nome de avenida. Avenida principal. Onde já se viu uma coisa dessas? Um vilão, “a menulveldiker roitsech”, ele blasfema em iídiche. […] Tomado pela indignação, K. agora perscrutava cada placa e escandalizou-se ao deparar com o nome Costa e Silva na Ponte Rio–Niterói. Incrível, uma construção majestosa como essa de quase nove quilômetros com o nome do general que baixou o tal do AI-5. […] K. está revoltado. Ainda vitupera mentalmente quando atingem no centro do Rio a grande Avenida Getúlio Vargas. Esse era civil. K. até chegou a simpatizar com ele – o pai dos pobres dos seus primeiros anos de Brasil. Mas foi ditador e seu chefe de polícia, o Filinto Müller, um sanguinário. Matou e torturou muita gente. Só faltava uma rua Filinto Müller. Vai ver, em algum lugar tem, pensou K. […] No ônibus para São Paulo acalmou-se um pouco; a principal autoestrada do país se chama Via Dutra e esse, pelo que ele sabia, foi um presidente democrata, embora também general e também antissemita. Cassou os deputados comunistas e dificultou a entrada dos refugiados da guerra judeus, embora não a dos volksdeutsche. Mas não matou nem desapareceu com ninguém, que se saiba. […] Ao se aproximar de São Paulo, o ônibus passou debaixo de uma ponte que trazia a placa viaduto General Milton Tavares. De novo esse criminoso.” (KUCINSKI, 2014a, p. 162-164).

As ruas pelas quais os ônibus seguiam continuam se chamando da mesma forma. Ditadores, torturadores e facínoras são homenageados na esquina, nas ladeiras, nas quebradas. A ditadura, as ditaduras, não foram revisitadas nas nossas estradas e cidades. Ainda temos nossos Himmlers e Goebels homenageados sem que isso pareça incomodar muita gente.

Claro, isso dói na alma dos que tiveram seus queridos arrancados, estuprados e moídos pela ditadura. Mas provavelmente só na deles. Isso pode explicar como um louvador de torturadores tenha sido eleito presidente mesmo depois de homenagear no Congresso Nacional um homem que inseria ratos nos corpos de mulheres suspeitas. Isso explica o negacionismo histórico da ditadura. Enquanto as memórias da cidade mantiverem nomes de torturadores, as portas para o isso estão abertas. Escancaradas na realidade.

Engana-se, entretanto, quem acha que o negacionismo histórico ficará restrito ao tema da ditadura. Quem nega uma história negará tudo. Bolsonaro, ainda candidato, por exemplo, negou, num programa de TV, a escravidão no Brasil. Mais que isso, ele mesmo negou os direitos aos povos indígenas dentro de um clube judaico no Rio, foi capaz de negar a pandemia (lembram-se da gripezinha?) e posteriormente negou a eficácia da vacina.

O Brasil virou uma Disneylândia do negacionismo. Elegemos um negador, que nega a dor que o outro deveras sente. Elegemos negadores que usam a história para fortalecer suas crenças e ideologias. Elegemos pessoas que negam a escravidão e negarão, se alguém ainda dúvida, o genocídio onde os parentes de Meir pereceram. A negação, o negacionismo é a bússola desse governo.

Quando tudo isso passar, mudemos os nomes de quem matou e torturou, por enquanto gritemos que a ditadura existiu, que foi cruel e assassina e lutemos para que ela não volte a acontecer. Nunca mais.

Só não vale ficar surpreso com a negação da ditadura pelo governo Bolsonaro.