Contrastes

Contrastes

O documentarista chileno Patricio Guzmán produziu uma pequena obra-prima ambientada no deserto do Atacama. Em Nostalgia da luz, ele movimenta o olhar para o alto e para baixo. Acima, devido ao ar despoluído, está uma das imagens mais amplas e claras do céu, que permite observação cósmica sem paralelo. É no Atacama que estão alguns dos mais potentes telescópios do planeta, visitados por pesquisadores de todo canto em busca de pistas sobre mistérios, belezas e assombros. Entre eles, a origem do universo.

Depois de registrar estas maravilhas do engenho humano, Guzmán muda o ângulo para baixo e mostra silhuetas encurvadas, raspando o chão árido. O que faziam aqueles espectros? O que buscavam? A resposta é terrível. Durante a ditadura Pinochet, centenas ou milhares de presos políticos foram assassinados, seus corpos despedaçados e fragmentos de ossos espalhados pelo deserto. Mulheres ligadas aos presos tentavam localizar, com ferramentas rudimentares, estes fragmentos, que poderiam sugerir valas comuns. Fizeram isso durante anos. Impressionantes seus rostos tristes, sua perseverança sobre-humana, sua esperança dilacerante.

Andei pensando (faço isso de vez em quando…). O contraste flagrado por Guzmán (cujo antológico A batalha do Chile é uma lição política seminal), o sublime em contato íntimo com o sórdido, é o caldo nutritivo de nosotros viventes. É como caminhar em êxtase pela pista Cláudio Coutinho, na Praia Vermelha, e, na saída, esbarrar nos banidos da sociedade, esparramados pelas calçadas, sem esperança e ignorados por quem passa. O conjunto é inseparável.

Não digo desde os cueiros, mas desde muito cedo acreditei que a trajetória humana seria uma escalada rumo à Razão e ao aperfeiçoamento da política, do homem como animal político. Uma construção em escala sempre ascendente (com os solavancos presumíveis). Permaneço fiel, em grandes traços, a este desenho, mas o Fradinho sacana que habita minhas entranhas anda puxando-me as orelhas. Ajusta aí o foco, perceba a loucura!

Vamos lá. Guerras cada vez mais letais espalham-se, começa uma nova corrida armamentista com aroma nuclear, a fome não para de crescer, doenças preveníveis estão voltando amparadas por negacionismos de coturno variado, crises humanitárias de todo tipo açoitam milhões, preconceitos vestem fantasia respeitável. O quadro dantesco, entretanto, não tira o sono de um mundão de gente, aquela que está no que Elio Gaspari chama de “andar de cima”. A obscena distribuição de riqueza no planeta, que não mudará pacificamente, gera bolhas de consumo ostentatório e cenas francamente ofensivas.

Um anúncio no jornal divulga o Dinner in the Sky. Os abonados farão uma refeição nas alturas, pendurados num guindaste, que transformará a simples forragem do estômago, o rango saciador, numa “experiência”. Claro, acompanhada de imagens para acariciar o infinito narcisismo de quem já não sabe onde gastar fortunas e orbita seus próprios umbigos.

Novos modelos de celulares (o último multiplica a tela original por três) agravam a dependência generalizada de telas. Os brasileiros são campeões neste vício. Passam, em média, mais de 9 horas diárias na internet (um terço disso em redes sociais). A sociedade passou a girar em torno destas geringonças. Pesquisa recente mostrou que, no mundo, pais consultam em média 70 vezes os celulares durante o tempo de convívio com familiares, interrompendo dois terços das interações. É uma imensa válvula de sucção que prejudica a qualidade dos relacionamentos e multiplica solidões.

Uma amiga, que convive com muitos pais de adolescentes, contou o seguinte. Nas festas eles acabam entrando em estado de grande ansiedade. Sabem por quê? Fora do contato virtual pelas telas, olho no olho, ficam sem ter o que falar. Sem o amparo de memes, emojis, réplicas de futilidades, são forçados a olhar o Outro sem filtro. Pelo que ouvi, a experiência é, não raro, aflitiva, e pode derivar em aumento de consumo de álcool para aliviar a tensão.

No ritmo que a banda está tocando, talvez não precisemos esperar que um asteroide gigante, rocha peregrina, colida com a Terra e nos leve à breca. Consta que os gregos antigos, sempre eles, afirmaram que os deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem querem destruir. Daí então, dar-te eu irei… Desculpem, contrabando do Sinhô. Voltando. Daí então, a Razão fará uma mesura, dará um triplo carpado e acabará em cortejo febril no Irajá. Junto com toda a Humanidade.

Abraço. E, apesar de tudo, coragem.

Ainda uns pitacos sobre ele

Ainda uns pitacos sobre ele

Volto a este espaço antes do que esperava. A tempo de dividir com vocês algumas observações sobre o que acaba de acontecer com o filme Ainda estou aqui. Sei que pode parecer um assunto meio ultrapassado, a gente vive num mundinho acelerado, tudo é fluido, acontece e desacontece em ondas de zás-trás. O que parece hoje ser perene, amanhã submergirá em camadas pré-históricas. A fila galopa.

Antes de qualquer consideração, e para evitar mal-entendidos, registro nos autos que assisti o filme e gostei dele em bloco. Não tenho condições de comparar, nem quero, atuações e detalhes técnicos com filmes que não vi (todos os demais indicados ao Oscar) e, por isso, dispenso as claques que se formaram para acompanhar o tribunal do big business cinematográfico. Ainda estou aqui, esse é seu grande mérito e é isso que me interessa, conta uma história do Brasil sórdido que desmentiu a falácia do “brasileiro cordial” e feriu duramente minha geração. Isso é muito poderoso, como foi também, por exemplo, Uma noite de doze anos, sobre prisioneiros tupamaros durante a ditadura civil-militar uruguaia (1973/85).

Isto posto, prestei atenção na excelente entrevista que Walter Salles e Fernanda Torres deram à jornalista Christiane Amanpour, da rede CNN. Fernanda destaca o público imenso que foi ao cinema (5 milhões de espectadores, um prodígio na era dos streamings) e está convencida de que todos, não importando suas posições ideológicas, saíram convencidos de que as situações que o filme retrata são inaceitáveis. Ela atribui, por consequência, um papel pedagógico instantâneo às imagens. Gostaria de ter esta certeza.

Cacá Diegues, cineasta morto recentemente, dizia que, na alvorada do Cinema Novo, sua geração tinha a pretensão de, através das imagens, mudar a história do cinema, mudar a realidade brasileira e mudar o mundo. Sonhos generosos, que a vida entortou. Já perto da morte, Cacá tinha olhar diferente: “Um filme não muda nada. Ele não é uma arma para mudar o mundo. É uma forma de pensar o mundo de outra maneira, de provocar pensamentos mais originais”. Tendo a concordar com ele.

É ótimo que uma baita atriz como a Fernanda Torres seja celebrada de muitas formas. É o reconhecimento do valor da arte. Há, no entanto, um outro aspecto, muito bem traduzido pelas torcidas que se formaram para a premiação do Oscar. Não creio que elas se pautaram, ao menos em grande parte, pela reintrodução na agenda nacional do tema dos desaparecidos durante a ditadura civil-militar. Seria esperar demais de um país que convive, indiferente, com a impunidade de torturadores e assassinos ligados ao aparelho de Estado, que elegeu um presidente que os exaltava. A grande expectativa das arquibancadas virtuais eufóricas era, isto sim, o desejo de “lavar a alma” no núcleo duro da matriz cinematográfica mundial.

Evidente que não nego a importância de relatar o caso do Rubens Paiva e as consequências de seus sequestro e morte sobre a família. É o microcosmo do clima de medo, insegurança, terror, que vivíamos sob as botas militares e seu braço civil. Saber disso, entretanto, é necessário mas não suficiente para mobilizar a sociedade contra novas aventuras ditatoriais. Há mediações complexas entre imagem, consciência e ativismo.

É longo e imprevisível o caminho para a formação de uma consciência política que seja agente de transformações reais. Ele transcende filmes e atores. Os operadores da política (partidos, sindicatos, todos os tipos de associação) têm em Ainda estou aqui uma ferramenta disponível para ajudar na construção de uma memória coletiva libertária. Que se apropriem dela, criativamente. Que a história, tal como acontece com o personagem Tom Baxter no filme A Rosa Púrpura do Cairo, saia da tela, da imagem projetada, e dialogue com seu grande protagonista: o povo brasileiro.

Abraço. E coragem.

Jacques

Em tempo: Já que falei em valor da arte, reproduzo trecho do artigo da Dorrit Harrazim, publicado no dia 2 de março passado. Ela fala da brutal intervenção de Donald Trump sobre o John Kennedy Center for the Performing Arts. Deborah Rutter, sumariamente defenestrada pelo Laranjão, comentou na despedida: “Artistas mostram a gama de emoções da vida – as maiores alturas da alegria e as profundezas do desespero. Eles seguram um espelho para o mundo, refletindo quem somos e ecoando nossas histórias. O trabalho deles nem sempre nos faz sentir confortáveis, mas lança luz sobre a verdade”.

Stand With US X Stand Together

Stand With US X Stand Together

Quem é “US”?

Se “US” são os reféns e suas famílias, que estão há mais de 500 dias presos e torturados em Gaza, a SWU deveria chamar as pessoas às ruas e protestar contra o governo.

Se “US” são os soldados e reservistas que já serviram mais de seis meses na guerra em Gaza e no Líbano, a SWU deveria criticar e exigir o fim da Lei de Escape dos Haredim.

Se “US” é a população do sul e do norte, longe de suas casas, moralmente, psicologicamente e materialmente destruída, a SWU deveria exigir do governo de Israel o fim dos acordos econômicos partidários que favorecem apenas os haredim e os colonos na Cisjordânia.

Se “US” é o povo de Israel, que há mais de um ano sofre com esta guerra terrível, a SWU deveria exigir o fim da guerra.

Se “US” fossem os árabes-palestinos cidadãos israelenses, a SWU deveria exigir a intervenção da polícia no mundo do crime nas aldeias e cidades árabes.

Se “US” fossem os palestinos da Cisjordânia, a SWU deveria exigir a intervenção do Exército nos ataques de colonos judeus extremistas às aldeias palestinas, na queima de campos de oliveiras, na matança de rebanhos de carneiros e na limpeza étnica planejada pelo ministro da Cisjordânia, Smotrich.

Se “US” fosse o judaísmo e o sionismo, a SWU deveria exigir o fim deste governo fascista, messiânico e fundamentalista, que tudo o que faz é anti-judaico e anti-sionista. E lembrar que, durante mais de 50 anos, temos dominado terras e oprimido o povo palestino, e que há mais de 40 anos o LIKUD segue no poder, usando a força e a tecnologia para tentar acabar com o terrorismo, sem dar chance ao processo de paz (Liga Árabe, Acordo de Genebra, Acordo Olmert-Abbas), investindo no terrorismo (Bibi permitiu a passagem de centenas de milhares de dólares do Catar ao Hamas), criando muros de separação que, no final, se provaram inúteis. E, finalmente, lembrar que o judaísmo se resume em “veahavta lerecha kamocha” (“e amarás o próximo como a ti mesmo”) e que o sionismo, como movimento de libertação do povo judeu, só triunfará quando outro povo tiver o mesmo direito.

Mas, ao que parece, “US” é o governo. São Bibi Netanyahu, Smotrich, Ben Gvir, Schtruk, Gafni, Edri e muitos outros, cujo único objetivo é a continuidade da guerra – mesmo à custa da vida dos reféns – e a revolução judicial para permanecerem no poder. Por isso, a única coisa que a SWU faz é atacar o Hamas e culpar os palestinos por 55 anos de todos os males existentes em Israel. Falam de terrorismo e mais terrorismo, implantando a ideologia do medo e da raiva, que, no fim, só traz violência.

Stand With Us não está conosco, o povo. Não está com aqueles que lutam pelo verdadeiro judaísmo e sionismo, pelo povo que luta por um Israel melhor e mais justo. Pelo bem de todos, pois “zarim haitem beeretz mitzraim” (“foram estrangeiros na Terra do Egito”).

Por isso, chamo todos os que acreditam em Israel, no judaísmo e no sionismo a “Stand Together”. Porque “Together” significa judeus e palestinos, judeus, muçulmanos, cristãos e drusos, ashkenazim e sefaradim, heterossexuais e homossexuais, homens e mulheres, laicos e religiosos, direita e esquerda.

Somente “TOGETHER” seremos “US”!

https://www.standing-together.org

 

Não te rendas

Não te rendas

Quando se está passando por uma forte crise emocional, a sensação do desamparo contamina tudo. Parece que o mundo perde a graça, as referências de sempre ficam machucadas e, sobretudo, não há saídas até onde a vista alcança.

O que acontece no terreno pessoal vale, grosso modo, para a vida social e política. Andei pensando como deveria se sentir um democrata genérico nos anos 30 do século passado. Fase em que a razão estava em estado de choque. A extrema-direita avançava em muitos países. No Brasil, os galinhas verdes andavam assanhadíssimos. Burguesias europeias, assustadas com os ecos da Revolução Russa, apoiavam grupos nazistas e fascistas para formar diques de contenção contra as organizações dos trabalhadores. Enormes manifestações de massa na Alemanha nazista encantavam congêneres a mancheias. A maré montante reacionária deve ter desanimado/deprimido o pacífico democrata. O que fazer?

Se alguém imaginou que há uma onda mundial semelhante hoje em dia, não errou muito o alvo. Crescimento de gastos militares (US$ 2,5 trilhões ao ano, mais de 40% concentrados nos Estados Unidos), xenofobias à tripa forra, crise de hegemonia dentro do capitalismo, fortalecimento de grupos neonazistas, novas tecnologias massificando desigualdade, exclusão e desespero. À diferença dos anos 30, não há um contraponto revolucionário para enfrentar a barbárie. Como resistir?

Para não se cair no imobilismo ou no cinismo, acho útil lembrar de atos de resistência em conjunturas adversas. É possível, e necessário, dizer não. Quero, a propósito, compartilhar uma descoberta recente. O fato aconteceu na Holanda, há 84 anos.

Invadida pelo exército alemão, a Holanda capitulou em maio de 1940. Não demorou muito e o modelo hitlerista começou a ser replicado, com a ajuda de quinta-colunas locais. Legislação antissemita, repressão às organizações de esquerda. No início de 1941, mais de 400 judeus de Amsterdam foram presos e deportados para o campo de concentração de Buchenwald. Agressões antijudaicas nas ruas eram frequentes.

As deportações motivaram uma resposta liderada pelo proscrito Partido Comunista Holandês. Os comunistas convocaram uma greve geral para protestar contra as perseguições antissemitas. Redigiu-se um panfleto onde se convidava os moradores da capital holandesa a paralisarem a cidade por um dia. No dia 25 de fevereiro de 1941, uma terça-feira, calcula-se que cerca de 300 mil pessoas paralisaram suas atividades. Foi ali, nas ruas holandesas, que brotou, exuberante, um exemplo de solidariedade e camaradagem que estão na base do projeto político da esquerda revolucionária.

Pegos de surpresa, os nazistas temeram que as manifestações se alastrassem e se transformassem no embrião de um levante geral contra a ocupação. A repressão foi selvagem. Houve mortos e feridos. Dezoito grevistas foram presos e executados. De acordo com o historiador Jacob Presser, houve, além da repressão policial, um segundo elemento de pressão contra a greve.

Membros do Conselho Judaico local pediram aos grevistas que interrompessem as manifestações, que se prolongaram por dois dias. Temiam que, enfurecidos, os nazistas recrudescessem a perseguição antijudaica. Achavam melhor a passividade, “esperar até as coisas esfriarem”. Anos depois, lideranças judaicas no gueto de Varsóvia repetiram a mesma postura quando souberam que jovens de várias tendências políticas estavam organizando a luta que levaria ao levante armado, em abril de 1943. “Melhor não provocar os alemães”, dizia Adam Czerniakow, presidente do Judenrat, o Conselho Judaico do gueto.

Não é meu objetivo polemizar sobre qual seria a melhor estratégia em ambos os casos. Meu interesse é registrar que, mesmo em condições dolorosamente desfavoráveis, é possível reagir às opressões. Individuais e coletivas. Cada pessoa, cada povo, escolherá a melhor forma de fazê-lo, levando em conta as condições subjetivas e objetivas do momento. Uma boa tradução deste espírito de luta, desta vontade de continuar, tão urgente na atualidade, está muito bem expressa no início do poema No te rindas (Não te rendas), do uruguaio Mário Benedetti.

No te rindas, aun estas a tiempo
de alcanzar y comenzar de nuevo,
aceptar tus sombras, enterrar tus miedos,
liberar el lastre, retomar el vuelo.

No te rindas que la vida es eso,
continuar el viaje,
perseguir tus sueños,
destrabar el tiempo,
correr los escombros y destapar el cielo.

Abraço. E coragem.

Dores aonde fores

Dores aonde fores

Take off your shoes/This place you’re standing, it’s holy ground (Woody Guthrie)

Saí do cinema sob forte impacto. A história que acabara de assistir tem semelhanças com personagens e momentos importantes da minha vida. Trata-se de A verdadeira dor, com atuações espetaculares Jesse Eisenberg (David) e Kieran Culkin (Benji). O filme é livremente baseado na história familiar de Jesse. São dois primos judeus nova-iorquinos, com temperamentos e trajetórias radicalmente diferentes. Viajam juntos à Polônia para visitar a casa onde vivera a avó, sobrevivente do Holocausto por obra de “mil milagres”.

Há muito o que falar sobre o filme, fora do foco central da história. Alguns spoilers, poucos, serão inevitáveis. O massacre dos judeus europeus na Segunda Guerra Mundial, planejado e executado metodicamente pelos nazistas, repercutiu diretamente em minha geração (que nasceu pouco depois do conflito). O espectro dos campos de concentração e extermínio invadiu ambiente familiar, escola, relações dentro e fora da comunidade judaica. Verdade que os adultos evitavam falar de temas pesados com as crianças. Morte era “coisa de gente grande”. No entanto, aqui e acolá ouvíamos fragmentos de histórias que, aos poucos, montaram um painel de horrores.

Tive avós imigrantes. Os lugarejos pobres onde viveram na Europa Oriental foram devastados pela guerra, as populações judaicas caçadas e dizimadas. Nenhum deles jamais comentou as perdas que certamente ocorreram. Quem passou pela experiência de perdas extremas ou sobreviveu aos assassinatos podia reagir de duas formas. Falar, contar, testemunhar, é uma delas. Mistura de catarse e compartilhamento que consola. Primo Levi optou por ela e deixou um legado fundamental para se compreender o que aconteceu. Calar é a outra forma. O silêncio é defesa contra uma dupla vivência da dor.

Meu tio Bóris, um bessarabiano porreta, ensinou-me a olhar as estatísticas monstruosas do Holocausto de maneira diferente. Disse-me que os números da matança são importantes, mas mesmo que fossem apenas um centésimo de um por cento do que se conhece, tudo seria igualmente inaceitável. Importavam as razões, melhor seria dizer desrazões, que levaram à barbárie, à desumanidade, à crueldade. Entendê-las é essencial para manter o sentimento de indignação e educar as novas gerações contra todas as formas de bestialidade.

David e Benji visitam o campo de extermínio de Majdanek, a meros 3 km de distância de Lublin. No mais absoluto silêncio, percorrem as instalações construídas para matar em escala industrial. É impossível ficar indiferente. Benji, um tipo simpaticão, sedutor, exuberante, em estado de permanente agitação, não resiste. No trem em que volta para Lublin cai num choro incontido. Creio que foi uma combinação da memória da avó polonesa com o sofrimento pelo qual passaram, quem sabe?, vizinhos e amigos dela. O silêncio em Majdanek tinha muitos significados.

Meus sogros, poloneses, estiveram na Polônia nos anos 80. Visitaram Auschwitz, onde foram assassinadas mais de 1 milhão de pessoas, judias em sua imensa maioria. Em meio aos barracões insalubres, fornos crematórios e objetos pessoais das vítimas, meu sogro parou, abaixou a cabeça e chorou. Seus pais foram mortos lá dentro. É o tipo de ferida que não cicatriza. Não há palavras para descrever a intensidade deste tipo de dor. Palavras, nosso patrimônio mais nobre, são incapazes de descrever um solo de Thelonious Monk, um momento de paz interior, a cor de uma poesia, a banalização da crueldade.

Descobri que o título do filme é uma pergunta. Qual seria a verdadeira dor? A que gruda na alma trazida pelas heranças familiares? A da solidão mascarada pelo movimento permanente? A cena final – um close no rosto de Benji – sintetiza, em silêncio, sutilmente, as interrogações. Ele acabara de recusar o convite de David para jantarem juntos, a família reunida. Preferiu ficar sozinho no aeroporto, “onde tinha um monte de gente doida”. Bicho-homem, este estranho.

Abraço. E coragem.

Dança com fantasmas

Dança com fantasmas

Aí pelos anos 70 um livro chamou minha atenção. Enterrem meu coração na curva do rio, do norte-americano Dee Brown, mostrava um novo ângulo sobre a chamada conquista do oeste, a qual conhecíamos apenas pelos bangue-bangues hollywoodianos. Neles, os povos originários apareciam como selvagens, bandidos inescrupulosos e sanguinários, que se rebelavam contra os avanços “civilizatórios”. E tome chumbo. Eram dizimados impiedosamente, ao som de cornetas militares e trilhas sonoras gloriosas. Nós, ingênuos adolescentes, acreditávamos no heroísmo dos colonizadores brancos e seu suposto direito à rapina, à expropriação de terras, ao extermínio. John Wayne era o rosto e o método dos conquistadores.

Dee Brown adota a perspectiva dos dizimados. Eram povos com culturas complexas, profunda ligação com a terra ancestral e a Natureza, valores comunitários transmitidos por muitas gerações. O enterro mencionado no título era evidência da harmonia dos povos originários com a Natureza. Como em muitos outros casos em Nuestra América, estes povos passaram por um sistemático processo de aculturação, desprezo, isolamento e aniquilação física.

Um bom exemplo do que perdemos com a asfixia dos povos originários está nestas palavras do chefe Urso-em-pé, dos Sioux Oglala: “Só para o homem branco a natureza é ‘selvagem’, só para ele a terra estava infestada de animais e pessoas ‘selvagens’. Para nós era inofensiva. A terra era generosa e estávamos cercados de bênçãos do Grande Mistério. Até que o homem peludo do leste chegasse e com brutal furor amontoasse injustiças sobre tudo o que amávamos, não havia ‘selvagem’ para nós. Mas quando os próprios animais da floresta começaram a fugir à sua chegada, o ‘Oeste Selvagem’ passou de fato a existir”.

Essa história de enterro me levou, por associação misteriosa, a dar um salto. No final do século dezoito, existia um pequeno canavial cortado por um arroio em área onde hoje é o bairro da Tijuca. Um homem foi assassinado por aquelas bandas numa segunda-feira e decapitado. Enterraram o corpo ali mesmo e jogaram a cabeça, com os olhos furados, no riachinho. Passaram os séculos, o local virou um largo muito movimentado, confluência de três ruas importantes da Tijuca. É o Largo da Segunda-Feira, meu vizinho por alguns anos. Dizem que o fantasma do defunto perambula pelos ermos tijucanos em busca de sua cabeça. Uma das muitas assombrações desta cidade que tem nos assustado a mancheias.

Ali perto, já no tempo da gomalina, alguns jovens lançaram as bases daquele que seria o movimento da Jovem Guarda. Sem dar bola pra fantasmas, Erasmo Carlos, Tim Maia e Roberto Carlos reuniam-se no bar Divino, esquina de Matoso com Haddock Lobo, ao lado do cinema Madrid, azucrinando a vizinhança até altas horas e sonhando em replicar Elvis Presley e Bill Haley. Repertórios e cabeleiras. Das imitações iniciais começaram a aparecer letras próprias e lembro da febre que mandava tudo para o inferno.

Não vivi os sacolejos da Jovem Guarda. Naquela época, além de vestir uma timidez blindada, estava muito ocupado em sobreviver a uma perda duríssima e definir objetivos imediatos. Ao lado disso, eu começava a fazer parte da turma que achava “alienadas” as letras que os prafrentex compunham. Que negócio era aquele de calhambeque bi, bi? Senhor juiz, pare agora! Tremendão, tremendão! Era preciso, camarada, combater a ditadura em tempo integral. As disputas políticas acabavam vazando para o terreno musical.

A radicalização da classe média levava a excentricidades como a passeata contra a guitarra elétrica, em 1967. Elis Regina, Jair Rodrigues, Zé Keti, Gilberto Gil(!), Edu Lobo e o MPB-4, entre muitos outros, marcharam por ruas de São Paulo contra a presença de guitarras elétricas na MPB. Justo no ano em que os Mutantes acompanharam Gil na linda Domingo no parque.

O tempo passou, a Jovem Guarda, tal como o cine Madrid e o bar Divino, faleceu sem chover na minha roseira. Sempre estive em outra vibe. Agora, cá entre nós, como encaixou bem o Erasmo Carlos cantando É preciso dar um jeito, meu amigo no filme Ainda estou aqui ! O sectarismo, e suas variantes moderninhas, nunca faz bem.

Abraço. E coragem.