Abrindo a janela

Abrindo a janela

Dias de inverno glacial para padrões cariocas. A chuvinha insistente não ajuda a espantar a preguiça macunaímica, um imobilismo de saci em patinete.

Não sei por quê, mistérios do inconsciente em estado de semi-consciência, embaixo do cobertor lembrei do Moraes Moreira. Mais especialmente da música que servia de introdução a um velho telejornal. Sabem aquele “Pombo correio, voa depressa/E essa carta leva para o meu amor/ Leva no bico que eu aqui fico esperando”?

Lembrança puxa lembrança, logo desembarquei em Preta pretinha. Dançando em círculos, o convite: “Abre a porta e a janela/E vem ver o sol nascer”. Dei uma espreguiçada olímpica e, mesmo sem o conforto solar, abri a janela. Eis o que vi.

Lá longe, além do horizonte, nos Andes chilenos, um supertelescópio com a maior câmera fotográfica do mundo está desenhando o mais completo mapa do universo. Vai inundar os astrônomos de dados e flagrar vizinhos cósmicos que só visualizamos em ficção científica. Sei não, mas suspeito que o resultado deste banquete apenas confirmará a raridade (exclusividade?) da vida como a conhecemos. Delicadeza que o Homo sapiens trata de destruir metodicamente, como se a Terra fosse provedora infinita. Como diz o ditado latino: Quos vult Deus perdere, prius dementat (A quem Deus quer perder, primeiro tira-lhe o juízo).

Ajusto a lente para perto. Há um mercado persa em permanente alvoroço. Formosuras e monstrengos, interrogações e maldições, acolhimento e caos, solidariedade e desprezo. Vendedores de ilusões disputam espaço com incansáveis pesquisadores e abelhudos persistentes. Há tanta variedade que a velha feira da rua Araújo Lima tornou-se raquítica curiosidade arqueológica.

Na barraca de frutas exóticas, percebo um produto made in Maria da Fé, Minas Gerais. É de lá que vem a técnica de aumentar a produtividade de oliveiras colocando música clássica na propriedade. Setenta caixas de som puxam o bloco. Não sei informar as preferências estilísticas das azeitonas. Pesquisa em aberto.

Logo ao lado das amantes de Schubert (ou seria Prokofiev?), cinco sorridentes nipônicos descrevem como recriaram uma viagem datada de 30 mil anos, num barco esculpido em cedro-japonês com ferramentas primitivas. Seu entusiasmo, claro, não está à venda, mas quem se importa? O que vale é a excitação e o prazer da descoberta, pois comprovaram a habilidade e o engenho de povos antigos na compreensão e domínio de correntes marinhas. Curiosidade não se precifica.

Você pensa que somos imbatíveis na orientação sobre o planeta? Um aglomerado na barraca vizinha mostra que arrogância não tem vez. Lá estão mariposas Bogong (Agrotis infusa), primeira espécie conhecida de invertebrados que percorre longas distâncias usando as estrelas como guia. As simpáticas Bogong também usam o campo magnético da Terra como bússola. Talvez elas não saibam, mas são parceiras de um certo poeta alegretense, o Mario Quintana: “Se as coisas são inatingíveis… ora! Não é motivo para não querê-las. Que tristes os caminhos, se não fora a mágica presença das estrelas!”.

Mais para a frente, sob penumbra, raios que os partam e som de explosões, bancas com ervas venenosas. Lá estão, acotovelados e em escala crescente, os mais de 40 milhões de refugiados que perambulam pelo planeta. Expulsos de suas memórias e referências por déspotas, apetites coloniais, fome, desesperança.

Sob o manto do auriverde pendão, vende seu peixe um cabeça de ovo. Exemplar típico da elite brasileira que despreza e ofende os condenados da Terra, sonha casar-se em bodas de US$ 50 milhões e financiar a colonização de Marte. Apoia qualquer projeto político que garanta suas regalias. Já gritou anauê, hoje ejacula aleluia.

Guarnecendo o quiosque sombrio dos ovos de serpente, uma multidão louva a promiscuidade religião-política. Ajoelham-se e celebram barraqueiros que usam mitos para explicar a realidade e vender planos de poder. Como se a vida dependesse de intervenções messiânicas e milagres inexplicáveis. Reconheço ali uns políticos de bandeiras variadas encomendando caixas do produto. É prudente tê-los em estoque. Nunca se sabe quando vai ser necessário chocá-los.

Vi o que já sabia. Somos combinação imperfeita de anjos e demônios. Voltando ao Moraes Moreira, vivemos “plantando brisa e colhendo vendaval”. Fecho a janela, busco um pouco de silêncio na friaca incomum.

Um abraço. E coragem.

Lágrimas na cidade

Lágrimas na cidade

Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que você tem ao seu lado. Assim começava uma propaganda muito popular nos bondes do Rio de Janeiro, anunciando uma mezinha para resolver problemas respiratórios. O tipo faceiro resumia a imagem idílica que se tinha do carioca genérico. De bem com a vida, malandragem benigna, vacinado contra mal me queres e efeitos colaterais dos pasteis da Central do Brasil.

Quando a revista inglesa Time Out classificou uma rua de Botafogo como um dos lugares mais descolados do planeta, achei que seria prêmio pela faceirice. Ledo e ivo engano. A Arnaldo Quintela está no centro de protestos de moradores das vizinhanças pelas mesmas razões das de tantas outras ruas cariocas infectadas pela praga dos bares. É sede de uma boemia descontrolada, que inferniza milhares de moradores até alta madrugada, sete dias por semana. A diversão de alguns é o horror de muitos. Há inúmeros relatos de gente que não consegue dormir ou precisa de drogas pesadas para conciliar o sono. A circulação pelas calçadas virou esporte de risco. Poderes executivo e legislativo são cúmplices da baderna.

Bem, já que os botecos substituíram tremoços e ovos coloridos por iguarias gourmet e decibéis homicidas, quem sabe as praças, suburbanas ou não, aceitam exilados em busca de silêncio? Levantamento recente mostrou o estado deplorável da maioria delas. Bancos quebrados, brinquedos para crianças deteriorados, grama largada, lixo espalhado. Quem se anima a deixar-se levar por sinfonias da passarada em ambientes assim, tão abandonados?

Pensei que sol, mar e montanhas no horizonte poderiam recuperar a imagem benfazeja da turma faceira. Estaria salva a carioquice. Calçadões na orla da zona sul seriam um bom começo. O prefeito, este senhor tão camaleônico, decretou uma série de providências para acabar com a esculhambação geral da área. Ora viva! Teríamos menos barulho nos quiosques, retirada da camelotagem, repressão aos que, na mão grande, se apoderam de trechos da areia para fins privados. Antes mesmo de vigorar, as medidas foram canceladas. Em nome da “liberdade de empreender” e do oportunismo eleitoral, está mantida a lei da desordem. O prefeitinho, do alto do seu chapéu demagógico, já disse que “Maricá é uma merda”. Acho que ele quer expandir a fronteira fecal e transformar o Rio numa cidade “em situação de merda”. Tapete vermelho para os turistas, colchão de pregos para os locais.

Restava uma esperança derradeira. Qual é o lugar onde as pessoas estão mais vulneráveis e carentes de conforto, solidariedade e acompanhamento sensível? O hospital. Estaria nele, abrigada em jaleco, a sobrevivência do carioca mítico? Descubro que o janota metido a sambista sancionou uma lei que obriga hospitais, clínicas de planejamento familiar e unidades de saúde a exibir, pasmem!, cartazes com frases como “o nascituro é descartado como lixo hospitalar”. Sim, é o discurso reacionário de correntes religiosas antiaborto, imparáveis em sua jornada rumo à Idade Média. Mulheres vítimas de estupro, com gravidez de alto risco e fetos anencéfalos são submetidas à doutrinação em momento de grande fragilidade. Como disse a jornalista Mariliz Pereira Jorge: “O hospital, que deveria ser espaço de proteção, virou confessionário forçado. Não há escuta, há condenação”.

Parece que, junto com os bondes, desapareceu a leveza de uma cidade que profissionalizou a desordem e maltrata quem nela vive. Pior. Brotou uma indiferença, um imobilismo, um conformismo, que tomam como destino aquilo que é obra de humanos/desumanos interesses. Para onde foi a rebeldia que levou, há 57 anos (completados no dia 26 de junho), cem mil manifestantes contra a ditadura, no centro da cidade? Para onde foi a indignação, a capacidade de mobilização das associações de moradores, hoje sombras do passado não tão remoto? Onde os faceiros que tomaram praças e avenidas para pedir anistia e exigir eleições diretas? Rhum Creosotado não dá conta de responder. A cidade, desconsolada, chora.

Abraço. E coragem.

Clube da Morte

Clube da Morte

The horror, the horror (Joseph Conrad)

Sentar em cima de barril de pólvora. Expressão já antiga, do tempo dos corsários e da aniquilação de populações autóctones pelas potências coloniais. Aquelas que minha geração ouviu dizer encarnarem a “civilização”. Significava flertar com o perigo, brincar com fogo (sem fazer xixi na cama). Caiu em desuso por uma razão tão banal quanto lamentável: pólvora deixou de simbolizar o maior perigo de todos.

O composto negro dos traques juninos, granadas e munição de guerra, inventado pelos chineses, foi substituído, no imaginário do Grande Medo, pelo arsenal nuclear. Desde o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, alvos civis, abriu-se a Caixa de Pandora. Multiplicaram-se armas capazes de levar à extinção da vida no planeta. Nada do delírio de 1914, quando jovens soldados foram em festa às trincheiras, iludidos com a propaganda de que aquela seria a “guerra para acabar todas as guerras”. Se o arsenal nuclear for acionado hoje pelo oligopólio da Morte (9 países têm armamento nuclear, num total de 12.500 ogivas), não sobrará ser vivo para contar a história.

Desde 1945, houve ao menos um momento em que o Apocalipse fez uma mesura e quase descolou sua entrada triunfal. No início dos anos 60, depois que os Estados Unidos organizaram a fracassada invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, na tentativa de liquidar a revolução socialista da ilha caribenha, a União Soviética enviou para lá ogivas nucleares. Dissuasão de novas aventuras contrarrevolucionárias. Descoberto o arsenal, faltou pouco para um conflito nuclear. Na era atômica, qualquer erro de avaliação, por menor que seja, sinalizará o The End para a esfera enlouquecida que habitamos.

Aflito com o que anda acontecendo no mundo, a sucessão interminável de dejetos e ameaças, resolvi mergulhar nas origens da era nuclear. Encarei a monumental biografia (mais de 600 páginas) de J. Robert Oppenheimer, o cientista que liderou a equipe que viabilizou o primeiro artefato atômico da história. Já havia visto o filme dirigido por Christopher Nolan, mas senti necessidade de aprofundar as muitas questões (éticas, militares, políticas) desencadeadas pelo Projeto Manhattan. Não dá para abordá-las todas neste espaço limitado, mas vou destacar algumas que considero muito importantes.

Talvez a principal conclusão, perturbadora e revoltante, seja a de que, no útero, a bomba atômica era militarmente desnecessária. Kai Bird e Martin J. Sherwin, autores da biografia, provam com riqueza de detalhes que os nazistas estavam muito longe de desenvolver armamento nuclear. Assinaram a rendição em maio de 1945. Além disso, no primeiro semestre de 1945 o Japão estava militarmente derrotado. Bombardeios selvagens com bombas incendiárias reduziram mais de metade de Tóquio a um monte de escombros fumegantes. Isso em uma noite! Entre 50 e 90% das populações de 67 cidades japonesas foram mortas em bombardeios semelhantes, antes de Hiroshima e Nagasaki. O alto escalão nipônico já discutia os termos da rendição. Por que, então, aniquilar covardemente duas cidades que não tinham qualquer relevância militar?

A resposta foi dada em Los Alamos pelo general Leslie Groves, coordenador geral do Projeto Manhattan. Em março de 1944, numa conversa na presença do físico polonês Joseph Rotblat, o general disse que “o principal objetivo deste projeto é dominar os russos”. Rotblat, em choque, achava que o trabalho fosse para impedir a vitória nazista e não que “a arma que estávamos construindo seria dirigida contra o povo que estava fazendo sacrifícios extremos para esse objetivo”. Naquele mesmo ano, Rotblat desligou-se do projeto. Pode-se dizer que a bomba atômica foi o primeiro lance da Guerra Fria.

É importante registrar que cientistas de renome tornaram pública sua desaprovação às armas atômicas. Denunciaram a intenção de usá-las contra populações civis e defenderam um freio na produção dos artefatos. Isidor Rabi, físico detentor do Prêmio Nobel em 1944 e amigo próximo de Oppenheimer, havia se recusado a participar do Projeto Manhattan com um argumento poderoso: “Não quero que 300 anos de evolução da Física resultem na produção de uma bomba”.

Não há qualquer perspectiva de desativação do arsenal nuclear mundial. O fechado clube militar atômico mantém a capacidade de nos devolver à idade da pedra. Estamos à mercê do imponderável, de indivíduos e interesses que podem tornar macabra realidade o que o premiê soviético Nikita Kruschev disse ao presidente norte-americano John Kennedy durante a crise dos mísseis em Cuba: “Podemos chegar ao tempo em que os sobreviventes invejarão os mortos”.

No início dos anos 70, assisti no extinto cinema Madri o antológico “Planeta dos macacos”. Na cena final, Charlton Heston caminha por uma praia deserta, quando se depara com o que sobrara da Estátua da Liberdade. Descobre, assombrado, que o lugar onde estava, habitado por símios, era a Terra pós-apocalipse nuclear. Em desespero, ajoelha-se e desabafa: “Vocês explodiram tudo. Malditos sejam! Deus os mande para o Inferno”. Profecia? Quem avisa amigo é?

Abraço. E muita, muita, coragem.

Tá rindo de quê?

Tá rindo de quê?

Até há pouco tempo, era para mim um completo desconhecido. De repente, uma enxurrada de comentários sobre um certo Léo Lins me chamou a atenção. Seria mais um desses casos de notoriedade instantânea tão comuns nas redes sociais?

Consta que o cidadão apresentou-se num teatro e cometeu uma longa fieira de piadas preconceituosas. Foi processado e condenado a oito anos de prisão pelo conteúdo ofensivo delas contra vários grupos. A sentença reacendeu vários debates importantes, que merecem atenção. Há limites para a liberdade de expressão? Há limites para o que se considera humor?

Não vou comentar aspectos legais, embora me pareça que a juíza seguiu estritamente a legislação em vigor sobre crimes de injúria racial e afins. Na sentença, a magistrada citou várias das piadas, todas abomináveis, horrendas, desprezíveis. O que me interessa é evitar os tiroteios lacrativos tão comuns no espaço virtual e pensar sobre “fenômenos” como Léo Lins, que tem 3 milhões de seguidores no Instagram e atrai grandes plateias para suas apresentações.

Nada de conclusões categóricas. Prefiro expor minhas dúvidas. Léo Lins e sua obra podre não surgiram no vácuo. Somos uma sociedade profundamente racista, o preconceito rotineiro se manifesta em escolas, shoppings, campos de futebol, relações sociais, locais de trabalho e moradia. Estamos habituados ao “ponha-se no seu lugar”, “quem você pensa que é?”, ao que Roberto DaMatta definiu como “resto abominável de uma sociedade escravocrata, aristocrática e patrimonialista”. Fomos educados para normalizar a inferiorização racial e o desprezo por grupos de diferentes.

Há os que criticam a punição a Léo Lins alegando que ele, pendurado num crachá de comediante, falou apenas para um público limitado, que pagou para vê-lo. Na era digital este é um argumento tolo. O que ele fala é imediatamente reproduzido para milhões de frequentadores de redes sociais, que replicam som e imagem para outros tantos milhões. Qual é a consequência desta cadeia de acontecimentos na consolidação de estereótipos e preconceitos? Serão apenas piadas “desagradáveis”, insultos restritos, ou ferramenta útil para, em terreno adubado por históricas discriminações, reproduzir o lixo desinformativo e separatista?

Para não passar em branco, fecho as narinas, tomo um Engov e mostro algumas das pérolas de Léo Lins. “Pra adotar criança, vai na África que tem plantação. Escolhe pelo pé, se for escurinho vai dar like no insta, traz para o Bruno Gagliasso”. “Negro reclama de não arrumar emprego, mas, na época da escravidão, já nascia empregado e também achava ruim, aí é difícil ajudar”. “Cachorro é como se fosse um filho com leucemia. É um compromisso para 15 anos”. “Tem ser humano que não é 100% humano. O nordestino do avião? 72%”. “Como vou emagrecer? Pegando AIDS! Você não adora comer de tudo? Sai comendo gay sem camisinha!”. Quem é capaz de rir disso, está a um passo de assistir com prazer uma sessão do documentário nazista Der ewige jude (O judeu eterno), de 1940, encomendado por Goebbels e baseado na vasta mitologia antissemita acumulada por séculos.

Há opiniões variadas e respeitáveis sobre a melhor forma de tratar casos como o de piadas hediondas. O assunto não é nada novo. Quem assistia a Escolinha do Professor Raymundo há de lembrar personagens/caricaturas como o judeu sovina, a portuguesa ignorante, o caipira bronco, o homossexual escrachado. Tudo parecia muito inocente, chancelado por Chico Anysio, artista talentoso. Serão mesmo sátiras inofensivas, apenas humor “desafiante declarado da hegemonia progressista” (como afirmou, em linguagem característica, um acadêmico da UFBa), ou casos graves de racismo recreativo?

Por falar em sátira, lembro do comportamento de Getúlio Vargas, ditador no Estado Novo. Dizia-se que frequentava os espetáculos de teatro de revista na praça Tiradentes, que o satirizavam em sketches e músicas. Divertia-se muito com as zombarias. De quebra, não tirava os olhos das vedetes, especialmente da Virgínia Lane, que acabou habitué do Palácio do Catete. Caso típico de piada que não mata, nem derruba governo. Quase um século depois, há muitos ruídos no território da comicidade, que podem não matar de imediato, mas causam estragos de consequências imprevisíveis que a sociedade precisa avaliar.

Abraço. E coragem.

Como será o amanhã?

Como será o amanhã?

Não faz muito, estive nas estepes da Ásia Central. Região de uzbeques, cazaques e que tais. Viagem inesquecível. Paisagens planas, intimidade respeitosa de homens com a Natureza, silêncios expressivos. O melhor é que apreciei tudo isso sem sair do lugar, apenas fechando os olhos e ouvindo o poema sinfônico de Borodin composto em 1880. Está tudo lá.

O primeiro contato com Borodin veio através de um LP dos anos 60 com canções russas (ainda o tenho, com os amarelos de idade avançada na capa). Eugene Ormandy regia a Orquestra de Filadélfia, cargo que ocupou por mais de 40 anos. Minha geração viveu a transição acelerada das formas de ouvir música. Do disco de goma-laca (78 rpm), que quebrava com irritante facilidade e fazia a festa do demagogo Flávio Cavalcanti, ao LP de vinil (33 rpm), passando depois por fitas cassete, CDs e as atuais plataformas etéreas. Num dos filmes Men in Black, um protagonista comenta que não tinha mais paciência para trocar o formato do disco branco dos Beatles. Ainda ouço CDs com frequência, os LPs de vinil voltaram espantosamente à moda, mas isso já é outra história.

A aceleração das transformações tecnológicas, que não se reduzem à música, me leva a pensar no que aguardam a nova geração e as que virão em seguida. Com filhos e netos nas vizinhanças, dá calafrios desenhar os possíveis cenários do futuro. Não caio na tentação fácil do “antigamente tudo era melhor”. Bestialidades, estupores e inseguranças vêm de muito longe. No entanto, há sinais no horizonte que anunciam tempestades.

Para começo de conversa e manifestação de tristeza, descubro que o hábito da leitura anda patinando. Pesquisa recente mostrou que, no Brasil, 53% dos entrevistados não tinham lido nenhum livro em 2024. No mesmo ano, quase 7 milhões de leitores foram perdidos em relação a 2019. Parece evidente que o vácuo está sendo preenchido por telas de todos os tamanhos e, com elas, cresce a impaciência para dedicar-se à leitura. Livro é objeto grávido de interrogações. Esconde um pacto com a surpresa e o encantamento que se revelam lentamente. Construir na imaginação personagens e histórias exige dedicação, cada vez mais escassa entre os seduzidos pela luz azul do mundo virtual. Aonde isso vai chegar? Ninguém sabe, é como no velho samba da União da Ilha: Como será o amanhã?/Responda quem puder.

A Primeira Guerra Mundial resultou em cerca de 20 milhões de mortos. Usou-se à farta armamento químico. Dizia-se que seria a guerra para acabar com todas as guerras. Vinte e um anos depois do seu final em 1918, a Alemanha nazista invadiu a Polônia, dando início ao conflito mais letal da história (cerca de 80 milhões de mortos). Hoje, os gastos militares no mundo chegam a US$ 2,7 trilhões, cifra maior do que o PIB do Brasil. O investimento na Morte não perde tração. O premiê do Reino Unido, filiado ao Partido Trabalhista (!), acaba de apresentar um plano para construir seis novas fábricas de armas e explosivos, ao custo de US$ 2 bilhões. Esta é a herança que estamos deixando para a turma que chega. Um espírito belicoso, de destruição em massa, de desumanização e ódio. A argamassa solidifica com a ascensão da extrema-direita à tripa forra.

Há duas semanas comentei a patologia chamada bebê reborn. Uma dona de boneca, por exemplo, está na Justiça pleiteando licença maternidade pela posse do plástico humanoide. Quer mais? Em Berlim, funciona um bordel high-tech que oferece aos clientes bonecas para sexo. O serviço é anunciado como alternativa para viver experiências “diferentes” sem “trair de verdade” a parceira. Parece que estamos nos encaminhando para um mundo simulado, um metaverso, o mundo bizarro sugerido nas histórias do Super-Homem. A vida transformada, no limite, em rede social.

Estou partindo do pressuposto de que o planeta continuará existindo. Nem isso se pode garantir. A crise climática não dá trégua. De acordo com a Organização Meteorológica Mundial, há 80% de chances de que pelo menos um dos próximos cinco anos supere 2024 como o mais quente da história.

A geração anterior à minha viu surgirem as bombas atômicas e termonucleares. A minha acompanha a erupção da informática e da automação acelerada de todas as dimensões da vida. Ao mesmo tempo, o Brasil, como acentuou um colunista da Folha de S. Paulo, “está aparvalhado, de fanfarras militares, berrantes, motosserras, negacionismo, homofobia e assombrações religiosas”.

Misturem-se todos esses ingredientes e se terá uma pequena ideia da encrenca que a garotada terá pela frente. Seria bom que ela assumisse a inquietação. Não tivesse vergonha de indignar-se. Carregasse de dúvidas todas as fronteiras existenciais. Seriam os primeiros passos para não apenas estar no mundo, mas ajudar a transformá-lo. Que inclua na rotina ouvir trecho de música do Lenine (o recifense, não o barbicha revolucionário): Meu amor/O que você faria/Se só te restasse um dia?/Se o mundo fosse acabar/Me diz o que você faria. Não adianta procurar respostas no Google.

Abraço. E coragem.

Três Histórias, Uma Mesma Razão

Antes de tudo, e que fique muito claro para quem começa a leitura com as certezas já afiadas como lâminas de vaidade, este texto não pretende absolver ninguém, nem condenar com a tranquilidade dos juízes bem pagos, o que se fará aqui é apenas o gesto antigo e perigoso de ligar pontos, porque os pontos existem e foram traçados não por mim, que apenas os sigo, mas pela própria história, que às vezes parece empenhada em repetir-se com variações de cenário e sangue, e se há algo que me move nesta escrita é a teimosa convicção de que o passado não passou, ele apenas aguarda uma brecha para entrar outra vez pela porta que nunca foi trancada.

O primeiro ponto se encontra na Noruega, fevereiro de 1943, sete homens deslizam montanha abaixo como sombras armadas não de glória, mas de urgência, e o nome do lugar é Vemork, fábrica de água pesada, elemento essencial para a bomba atômica que o regime nazista, assassino e delirante, sonhava construir, e que não construiu, ao menos não a tempo, porque aqueles sete decidiram que às vezes basta destruir um detalhe para salvar o mundo inteiro, não houve discursos, só o estrondo, e depois o silêncio da neve cobrindo o que restou da estrutura, e o que se ganhou com isso foi tempo, o suficiente para que a guerra seguisse seu curso sem cair de vez no abismo atômico, embora, sabemos, não demorou para que outros o inaugurassem em Hiroshima.

O segundo ponto está mais perto, mais quente, mais meu, outubro de 2023, Israel, o país que é meu e não sei mais como habitá-lo sem interrogações, foi rasgado por um ataque vindo da faixa de Gaza, sim, foram eles que dispararam, mas os que vivem aqui e não apenas visitam as manchetes sabem que aquilo não começou naquele dia, começou muito antes, nos escombros deixados onde um lar já foi, nos postos de controle que se multiplicam como fungos sobre feridas, nas décadas em que um povo foi tratado como hóspede indesejado em sua própria casa, e se o leitor espera aqui uma justificativa, engana-se de rumo, não se justifica o horror com o horror, apenas se tenta compreender o que o causou, e compreender é, muitas vezes, o verbo mais maldito que se pode conjugar em tempos de guerra.

O terceiro ponto surge em 2025, drones lançados da própria Rússia contra alvos russos, sim, leu bem, a Operação Teia de Aranha, nome que quase faz rir não fosse o que deixou debaixo dos escombros, aeronaves que transportariam, talvez, a mais grave das ameaças, destruídas por engenhocas pequenas e silenciosas, lançadas de caminhões que estavam ali havia meses, à espera, e não houve alarme, nem radar, nem satélite que visse, porque quem oprime esquece de olhar para dentro, e os ucranianos, com suas mãos calejadas e sua esperança ferida, souberam tecer a emboscada como quem aprendeu que, quando não se tem exército, resta a astúcia, e quando não se tem o direito, resta a urgência.

E é quando se olha esses três momentos, tão diferentes e tão iguais, que se entende que há um padrão, uma simetria de dor e resposta, de arrogância e ruptura, e que nenhum muro, nenhuma cúpula de ferro, nenhum tratado de defesa ou tecnologia de vigilância impede aquilo que fermenta em silêncio por décadas até encontrar sua hora, e se o leitor ainda crê em segurança absoluta, que continue acreditando, mas que o faça com um olho sempre aberto, porque o outro, mais cedo ou mais tarde, será fechado pela realidade.

E agora, ao fim desta linha que não é reta mas curva, como são todas as coisas humanas, deixo o ensinamento que me veio de casa, meu pai que nunca foi homem de grandes frases, mas que dizia, sempre que ouvia falar de justiça ou vingança, que é melhor um mau acordo do que uma boa demanda, e talvez seja só isso que ainda possa salvar-nos de repetir, com nova tinta e novo sangue, as mesmas histórias que fingimos não ver.