Óperas-bufas

Óperas-bufas

Liberada a escalação de um dos times de candidatos à vereança no Rio de Janeiro. O onze carioca jogará no clássico 4-3-3 e, se desandar a maionese, chutará como der. O que cair na rede será peixe … dos grandes. Adentrará o tapete verde com Abençoado Nilson, Bolão, Zé Colmeia, Cleiton Deu Certo e Pé Reto; Pijama da Zona Oeste, Euzébio O Melhor da Auau e Maradona de Bangu; Bilico Paim O Vizinho, Bruno Pai de Maria e Chicão Pé no Chão. Ainda se recuperando de graves lesões neuronais, permanecem no estaleiro Bradock, Sérgio Parafuso e Tarzan de Vila Isabel.

Caricatura? Invenção minha? Gozação? Nada disso. Esses craques estão na lista de elegíveis em outubro. Todo mundo buscando um lugar ao sol, ou à sombra e água fresca, que o tempo está de amargar. Eleições municipais têm se parecido cada vez mais com óperas-bufas, personagens mascarados interpretando papéis que a grande maioria da plateia não consegue entender. Ninguém aplaude com convicção, apenas suspira e olha, impaciente, o tempo que falta para acabar o espetáculo. Quem é que vota, alegre e conscientemente, numa imagem que diz “você me conhece”, “vamos juntos”, “vote diferente”, “chega mais”? Partidos estão no cenário como meros adereços.

Nos cargos executivos, o jogo é mais pesado, proporcional aos interesses em jogo. Aqueles que jamais aparecem no palco, estão confortáveis nos bastidores. A pantomima tem a mesma forma dos tribunais do júri. Velhas raposas dos fóruns dizem que o que se julga não é apenas o caso, mas o desempenho de advogados e promotores. Quem é chegado a Laurence Olivier leva vantagem sobre discípulos de Victor Mature.

Podem me chamar de cínico, radical, niilista, catastrofista, mas tendo a acreditar cada vez menos no papel transformador das eleições. Tudo parece um enorme jogo de faz-de-conta, que mais vela do que revela. Geraldinos e arquibaldos interferem muito pouco nas regras, embora sejam as principais vítimas da jogatina. À salada juntam-se, em escala crescente, ingredientes como individualismo extremado (os líderes messiânicos que se apresentam como salvadores da pátria, substitutos da ação política das massas) e elementos religiosos (os votos acabam se transformando em ex-votos). O fanatismo, à falta de identidades ideológicas claras, substitui a análise consistente de fatos e situações.

Por falar em fanatismo, recupero o que falou a cavalgadura alaranjada que concorre à presidência dos Estados Unidos: “Eu poderia ficar de pé no meio da Quinta Avenida e atirar em alguém, e mesmo assim não perderia nenhum voto”. Como dizia o antigo bordão de um personagem da TV, o macaco está certo!

Para amenizar o desconforto dos meus azedumes, concordo que há momentos em que o voto pode coadjuvar certas mudanças. Em 1974, por exemplo. O país vivia sob a borduna do AI-5, a chamada crise do petróleo mexia com os bolsos da classe média, o milagre econômico dava os primeiros sinais de exaustão. Nas eleições estaduais daquele ano, estrategistas mais à esquerda do MDB (na verdade, filiados a partidos clandestinos abrigados na legenda permitida) condenaram o voto nulo e defenderam o voto em candidatos que se poderia rotular de centro-esquerda. O resultado foi a vitória oposicionista (“moderados” e “autênticos”) em 16 estados. O regime contra-atacou instituindo parlamentares biônicos, mas aí é outra história. Com canais de expressão política censurados ou proibidos, o parlamento ganhou peso e, aos solavancos, ajudou a, dez anos depois, superar a ditadura.

Resumo da ópera: em outubro, vou votar sem qualquer entusiasmo ou ilusão de que será um ato libertador. A verdadeira emancipação dos explorados e oprimidos será resultado da luta deles, disse certa vez um sábio barbudo. Não defendo, claro, a extinção sumária dos processos eleitorais.  Recuso-me, entretanto, a ignorar os aspectos estruturalmente viciados destes processos nas sociedades divididas em classes. Vamos, pois, às óperas-bufas.

Abraço. E coragem.

Rua morta

Rua morta

Cessem todas as conversas. Coloquem laços pretos nas tristes camisas. Icem a meio mastro todas as bandeiras. Convoquem as carpideiras. Rasguem as vestes, façam minutos de silêncio. Preparem o manto da tristeza para o luto. Convidem Nelson Cavaquinho para, juntos, pedirmos que tirem o sorriso do caminho, pois queremos passar com nossa dor.

Minha rua morreu. Foi um processo lento e terminou sem formalidades ou balangandãs. As calçadas, e não era pré-história, estavam livres de mesas, cadeiras, barracas e pinguços barulhentos. Podia-se esparramar a caminhada sem risco de abalroamento por um garçon descuidado ou pedir licença para exercer o mais elementar dos direitos: andar despreocupado. Os caminhos das pedras portuguesas, espaço público, estão em grande parte privatizados.

Minha rua morreu. Nas esquinas, havia um comércio diversificado. Tinha até, vejam só, uma loja de cintas femininas. O mercadinho vendia um pão preto que vinha, assim informava a embalagem, da Ilha do Governador. Sempre achei que a origem era outra. A memória afetiva não se engana. Tenho certeza de que a linha de produção ficava num shtetl da Bessarábia. O dono do negócio, conhecido na região da aldeia, também comercializava arenques e pepino azedo. E tínhamos açougue, locadora de fitas de vídeo e DVDs, sebo, lojas de pianos e roupas. A rua falava muitos idiomas. Hoje, reina a monocultura etílica e de petiscos metidos a besta.

Minha rua morreu. A convivência com animais era pacífica. Raramente se ouviam latidos, respeitavam-se as orelhas e a paciência da vizinhança. Agora, como diz a música, é cinza, tudo acabado e nada mais. A solidão crônica das gentes, agravada durante a pandemia, multiplicou a presença dos bibelôs de quatro patas, que latem histericamente como se não houvesse amanhã. Os donos fazem ouvidos de mercador, acham natural a sinfonia desafinada e diabólica de seus au aus, mesmo os claramente neurotizados e ativos, sem hora para terminar. A rua, atormentada, morre sem paz.

Sobre a cachorrada, lembro de uma ótima sacada do Jerry Seinfeld, criador da melhor série de todos os tempos. Se um disco voador desembarcasse marcianos entre nós (sou do tempo em que marciano ainda era uma possibilidade de vida extraterrestre) e eles pedissem para ser conduzidos aos grandes líderes, o destino seriam os cachorros. Afinal de contas, quem é que anda por aí fazendo suas necessidades (desculpem a metáfora antiga) e tem um servo logo atrás recolhendo-as? Só podem ser os chefes. Nós? Ora, somos apenas os catabostas.

Minha rua morreu. Com seu corpo machucado, foi-se o silêncio. Os bares, em fase de metástase avançada, sequestraram os espaços de repouso, de convivência a meia voz, de intimidade sem alarde. Ao redor deles, orbitam sopradores de todo tipo de instrumento, “dançarinos” que balançam ao som de amplificadores assassinos, tocadores de bumbos e outras tralhas percussivas. As garagens insistem em acionar sinaleiras ilegais. Por enquanto, ainda não apareceram tenores, baixos, contraltos e sopranos, oi vei!, mas nada é tão ruim que não possa piorar. Minha rua morreu engasgada pelo barulho.

Minha rua morreu. Ela não tem palmeiras, nem conheceu sabiás. As árvores, esperança da pouca vida que resiste, abrigam alguns pássaros agitados, que teimam em me desmentir. Exiladas num tempo mais ameno, as aves pequeninas têm vasto repertório canoro e não se deixam enganar por minhas tentativas desajeitadas de assobiar no mesmo tom. Carregam, sem saber, a memória das linguagens extintas que a rua transmitia. Minha rua morreu, transformada em sombras cabisbaixas. Os passarinhos, no entanto, me ajudam a ficar vivo.

Abraço. E coragem.

Más influências

Más influências

Ruim é quando normalizam na disputa o dedo no olho e o chute no saco (Antonio Prata)

Primeiro semestre de 2018. Comentava com uma amiga a notícia surpreendente. A Associação Comercial do Rio de Janeiro, importante entidade empresarial fluminense, promoveria uma palestra com um pré-candidato à presidência da República, oriundo do baixo clero parlamentar, defensor de ideias inspiradas no fascismo e da ditadura civil-militar implantada em 1964. As inscrições eram obrigatórias e já havia fila de espera dos interessados.

Minha amiga procurou tranquilizar-me. “A burguesia, chave para financiamento de campanha, não vai apoiar essa figura grotesca, ele tem um teto de votos que não vai ser furado”. Tentei objetar que as últimas pesquisas indicavam crescimento consistente do personagem vulgar, que tinha chocado gregos e troianos com uma infame palestra na Hebraica/RJ e não parava de dizer sandices. Quanto mais “polemizava”, mais crescia.

Deu no que deu. No final de outubro, o indivíduo fecal deu uma coça no seu opositor, ganhando o pleito com quase 11 milhões de votos de vantagem. Foi apoiado não apenas pela burguesia, que lhe financiou a festa, mas por boa parte da classe média e de alguns segmentos que ele agrediu sem pudor (mulheres, negros, pessoas de diferentes orientações sexuais). Seguiram-se quatro anos de trevas, mediocridade, negacionismo da ciência, ataques à cultura, ao meio ambiente e à educação.

Seis anos depois daquela eleição, a gosma reacionária dá sinais de que fincou raízes na terra onde canta o sabiá e, ultimamente, crocitam corvos. Com um mínimo de sensatez, não dá mais para rotular as aberrações políticas como meros Cararecos e Macacos Tião do século XXI. Subestimar o Ogro e seus discípulos, com sua capacidade de interpretar um sentimento de cansaço com a política burguesa tradicional, aliado ao uso inescrupuloso (mas bem-sucedido) de redes sociais, facilitou a ascensão da extrema-direita no Brasil.

Agora, surge um novo “fenômeno”, candidato à prefeitura de São Paulo. Um ex-coach (ah, essa mania de se curvar aos anglicismos…) e influenciador digital emergiu como pilhéria e já tem a intenção de voto de quase 2 milhões de paulistanos. Ficou milionário vendendo cursos de autoajuda (um deles se chama Como ficar rico rápido) e sua campanha se resume à radicalização da estratégia do Beócio que o inspira. Xinga, ofende, dispara mentiras em ondas tsunâmicas, não sabe distinguir adversário político de inimigo pessoal, adere à promiscuidade da religião com a política, demonstra a mais absoluta ignorância sobre os temas que mais afligem a população e os limites da atuação de um prefeito. Usa com eficiência a linguagem e os artifícios técnicos das redes sociais, resultando num carnaval macabro que convence muita gente. Por que convence? Se o campo democrático não tiver respostas consistentes para isso, vai tomar outra tunda.

Breve intervalo. Os tais influenciadores são, hoje, mascates virtuais que vendem desde pente Flamengo (será?) e preservativos até ideias. De acordo com uma pesquisa, o Brasil é o país dos influenciadores. Já há mais deles do que engenheiros civis, médicos, dentistas e arquitetos. Quase metade dos usuários brasileiros de internet seguem esses caras. Fiquei pensando. Lá atrás, quem foram meus influenciadores? Monteiro Lobato, James Fenimore Cooper, Maurice Leblanc, Jules Verne, Charles Dickens, Moreira da Silva, Altamiro Carrilho, Paul Desmond, Charlie Mingus, Thelonious Monk. O que vendiam? Beleza e muita coceira no pensamento.

Voltando à realidade. Convém não subestimar este nada admirável mundo novo e seus porta-vozes. Não se trata apenas de um festival de vulgaridades, mas novas formas de dominação do espaço público. A política como arte de apresentação de ideias e visões de mundo diferentes está indo para a clandestinidade. Substituída por um universo paralelo, em que debate vira ringue, mentira vira verdade, programa político vira espetáculo, divergências viram ofensas. Alguém pode tentar me convencer de que tudo não passa de aspectos da democracia. Sei não, mas essa tentativa vai ser tarefa para Clark Kent!

Abraço. E coragem.

Coleções

Coleções

Dentre as manias que eu tenho/Uma é gostar de você/Mania é coisa que a gente tem/Mas não sabe porque (Flávio e Celso Cavalcanti)

Li nos últimos dias alguns colunistas de jornal dizendo que vão se desfazer de suas coleções de CDs. Argumentam que os canais virtuais lhes satisfazem as necessidades musicais e preferem liberar uns poucos metros quadrados de seus apartamentos. Entendo, mas, como em relação aos livros, meu comportamento é diferente. Uns e outros são, para mim, muito mais do que objetos sólidos que ocupam espaço.

Não se trata de esquisitice ou colecionismo doentio. Minhas manias eu cultivo em outros, e nem sempre louváveis, departamentos. Dia desses, por exemplo, não tinha a menor ideia de qual músico queria ouvir. Só tinha certeza de que precisava de música. Dei, então, uma olhada ligeira nas pilhas de CDs e esbarrei em Count Basie, Andras Schiff, Antonio Menezes e Jascha Heifetz. Dúvida resolvida. Ouvi todos. Como faria para dialogar com as plataformas balofas que têm “tudo”, sem informar, tintim por tintim, o que pretendia escutar? Essa vivência do espanto, do não saber previamente, da surpresa, só é possível usando primeiro o olho e, depois, o ouvido. Ponto para as caixinhas plásticas com os disquinhos.

Coisa parecida acontece com os livros. Não tenho a menor pretensão de ler todos os livros que acumulei. Precisaria de umas cinco vidas para isso. Acontece que cada exemplar tem uma história para contar e ela não está nas páginas. Como dimensionar o intangível? Ir a uma livraria é dar oportunidade ao inesperado. Ontem estive num sebo, sem qualquer interesse específico. É meu parque de diversões. Pois não é que, numa estante meio escondida, estava um Lima Barreto me esperando? Um Lima que desconhecia (textos escritos para a revista Careta, no início do século passado), editado na Paraíba, e gerou ótima conversa com o livreiro. Doravante, o exemplar falará pelos cotovelos sempre que for aberto. É uma linguagem silenciosa, cativante, não descartável, que me envolve num sentimento indefinível e transcende o papel. Não abro mão dele.

Há coleções humanas que foram sendo descartadas sem remorso, mas guardam memórias dolorosas. No século XIX, sob as ordens do papa Pio IX, a Igreja sequestrava meninos judeus de suas famílias para serem educados como católicos. O pretexto, brutal, era de que os pequenos tinham sido “batizados”. Um caso ficou famoso. Edgardo Mortara foi sequestrado em Bolonha aos seis anos e levado para Roma. Depois de intensa lavagem cerebral (alguns chamariam de “educação religiosa”), acabou reconhecendo-se como católico e afastando-se da família original. Coleção abominável de gente indefesa que, embora tenha desmoronado, não pode ser esquecida.

O que dizer da coleção de escravos que teve grande popularidade por alguns séculos? Uma coleção com alta rotatividade. Cada peça descartada por castigos animalescos, cargas insuportáveis de trabalho em condições insalubres, fome permanente, era reposta por traficantes. O Brasil foi o país americano que mais importou escravos da África entre os séculos XVI e XIX (4 milhões de homens, mulheres e crianças). Na importação, os africanos ficavam presos em porões de navios às vezes por 2 meses. Um em cada quatro não suportava o martírio. Barbárie organizada para garantir o luxo dos colecionadores.

Tive coleções confessas. A primeira exigiu renúncia. Nas férias escolares de verão, as editoras de gibis, EBAL no alto do pódio, lançavam almanaques, altamente cobiçados por terem mais histórias. Numa delas, o Menino cedeu seus almanaques do Tarzan e do Super-mouse em troca de uma coleção de selos, que ainda guardo como relíquia. Ali comecei a entender a diferença entre o efêmero e o permanente. Seguiram-se botões, plásticos, flâmulas, figurinhas, mais tarde engolidos pela adultice rígida. Eu ainda não sabia a importância daquilo que Mia Couto colocou na voz de um personagem: “Meu avô era um homem em flagrante infância”.

Temo que estejamos à beira de nos transformar, com nossos  ossos, peles e ilusões, em objetos colecionáveis, personagens extemporâneos de Asimov e Bradbury. Há um intenso debate entre técnicos em computação sobre os limites da inteligência artificial. Uma parte considerável deles supõe que já estejamos perto de chegar a uma inteligência igual ou superior à humana. Se estiverem certos, parafusos, placas e chips terão livre arbítrio e poderão, em algum momento, vingar HAL, seu distante bisavô falecido no 2001: uma odisseia no espaço. Seremos os inferiores a serem banidos ou, na melhor das hipóteses, transformados em adorno para colecionadores mecânicos. Pelo sim, pelo não, é bom ir escolhendo um lugar confortável nas prateleiras. Lá longe, em preto e branco, o simpático robô do seriado Perdidos no espaço adverte: Perigo! Perigo!

Abraço. E coragem.

Fantasmas no jazz

Fantasmas no jazz

Semana passada compareci a uma roda de leitura (sim, elas ainda existem!) para falar sobre temas do livro que lançarei em breve. Saí do papo pensando, dúvida recorrente, nas razões pelas quais escrevo. Para quê criar textos numa época de ligeirezas tamanhas e paciência anã? As notícias sobre o aperfeiçoamento da chamada Inteligência Artificial sugerem que, não demora muito, escrever será atividade terceirizada para máquinas, em larga escala. O que virá em seguida é assunto para sobreviventes e românticos escritores de ficção-científica.

Anos atrás, assisti um pequeno curso de introdução ao jazz, dado por um querido amigo, professor de violão. O jazz é, essencialmente, a arte do improviso. Há um diálogo simultâneo em três dimensões. Primeiro, o grupo de músicos (trio, quarteto) apresenta o tema geral, dialogando entre si. Em seguida, os solos. Cada instrumentista apresenta sua visão, improvisada, do tema. Dialoga consigo mesmo. Finalmente, e ao longo da performance, o diálogo é com o público. Quando funciona bem, esta cadeia sonora cria joias da sensibilidade humana.

Acho que a sequência jazzística tem muito a ver com meu método para escrever. Quando sento na frente da tela, misturo tema (que se transforma em apenas uma referência) e diálogos comigo mesmo e com os que vão ler o texto. Sobrevoando tudo, uma galeria de fantasmas. Sobre estes, gosto de mencionar a última cena de uma série já antiga.

Shtisel se passa numa comunidade de judeus ultraortodoxos, em Jerusalém. Há o choque permanente, tenso, entre o respeito a regras rígidas, ancestrais, e o desejo de mudanças, representado pela geração mais nova. Luta, de resto, construtora da História humana. Na cena final, estão sentados à mesa três homens. Um deles diz que encontrou num banheiro público (!) o livro de um “herege” e, surpresa, tinha lá uma coisa bonita. Quem é ele?, perguntam os outros. Scholem Aleichem? Mendele Moiher Sforim? Não, não, era polonês. Isaac Bashevis Singer? Esse! Pois então, ele escreveu que os mortos não vão a lugar algum, estão sempre entre nós. Cada homem é um cemitério. A câmera se afasta um pouco e todos os personagens que morreram ao longo da história reúnem-se numa sempre acolhedora mesa judaica. Pepino azedo, halá, pão preto, guefilte fish. E os mortos conversam com os vivos.

Tenho sempre muitas perguntas para os meus fantasmas. Dúvidas que foram abortadas pela Indesejada das Gentes, por minhas arrogâncias e inseguranças nos momentos críticos, por autossuficiências adolescentes, por silêncios que cultivaram movidos por dor e solidão. O jeito é pedir licença a eles e inventar respostas.

Sigo também na trilha de Maurício Rosencof. Uruguaio, ex-militante do grupo guerrilheiro Tupamaros, Maurício escreveu Las cartas que no llegaron, cujo núcleo é sua família de judeus imigrantes poloneses. A correspondência dos pais, moradores de Montevidéu, com os parentes que haviam ficado na Europa é interrompida abruptamente com o início da Segunda Guerra Mundial. A angústia das dúvidas substitui a esperança de receber notícias. E o silêncio preencheu os espaços. O que diriam as cartas? Trazendo para mim: o que diriam as mensagens jamais enviadas pelos que me ofereceram silêncio e eu, resignado, aceitei? Os mortos nunca morrem, isso é certo, mas em que língua falam? Que fantasmices aprontarão nos momentos de relaxamento, se é que os há? Assobiarão marchinhas antigas em etéreas chuveiradas? Inventarão piadas?

Um homem caminha entre os escombros de uma livraria demolida. Restos de velhos exemplares misturam-se com pó, ferro retorcido e memórias. O sol tímido ilumina uma folha amassada, que vibra com a brisa amena. Curioso, vai até lá, senta-se no cimento morto, limpa a poeira e lê: “Semana passada compareci a uma roda de leitura…”. Levanta os olhos e tem a impressão de ouvir cantorias antigas. Dolentes. No ar, misterioso, emana o aroma de um strudel saindo do forno. Sorri e volta a ler.

Abraço. E coragem.

Dois pontos

Dois pontos

Se deus é tão bom, como pode deixar as pessoas sofrerem desse jeito? (Toshiko Sasaki, sobrevivente da bomba atômica lançada pelos norte-americanos em Hiroshima)

O noticiário torrencial sobre a Venezuela dá o que pensar. Não tenho a menor simpatia pelo “socialismo” de Nicolas Maduro, caricatura lamentável de liderança política. A lisura das recentes eleições presidenciais é contestada mesmo por setores à esquerda, como o Partido Comunista Venezuelano, partido que Maduro hostiliza faz tempo. Na América Latina, entretanto, temos o direito, e mesmo o dever, de não sermos ingênuos. Em nome deste direito, lanço algumas dúvidas ao vento.

Haverá mesmo um surto democratizante, de caráter global e por questões de princípio, que não se limita à vigilância sobre a Venezuela? Daqui por diante, todas as eleições no mundo, de Madagascar a Bangladesh, de Fiji às Malvinas, serão minuciosamente acompanhadas por observadores internacionais, amplamente noticiadas com destaque e submetidas a apurações paralelas? Suspeito que não é esse o caso. O interesse é seletivo, circunstancial, e convém observar o panorama geral incluindo este fator.

Quando o Iraque invadiu o Kuwait em 1990, os Estados Unidos intervieram imediatamente para expulsar o invasor. Um analista ianque ferino comentou que se o Kuwait produzisse brócolis ao invés de petróleo, Saddam Hussein poderia permanecer ad aeternum em solo kuwaitiano, sem ser molestado. Eis aí o detalhe. A Venezuela tem a maior reserva petrolífera do planeta. Maior do que a da Arábia Saudita, onze vezes maior do que a brasileira. Aos olhos do imperialismo, tem que ficar em mãos confiáveis. De preferência, nas das oligarquias corruptas que dominavam o país antes de Hugo Chávez. Com elas no poder, ninguém ouvia falar da Venezuela. Estava tudo dominado.

Acho curiosa a posição norte-americana no imbróglio venezuelano. Parecem, oh céus!, preocupados com a democracia. Não há país no mundo com maior histórico intervencionista. A América Latina nunca deixou de ser vista como quintal do Grande Irmão do Norte. A lista de golpes apoiados política, militar e financeiramente pelos EUA é robusta. Quando Allende presidia o Chile, Nixon e Kissinger combinaram “lançar o caos” no país andino. No golpe civil-militar de 1964 no Brasil, a embaixada norte-americana era uma espécie de QG golpista. O embaixador Lincoln Gordon flanava com desenvoltura no meio da malta fardada. Com este currículo sombrio e dados os interesses geopolíticos em jogo, é preciso incluir no cenário a mão pesada do establishment norte-americano. Repito: não há que ser ingênuo nesta hora.

É aqui, na bruma densa da História, que trago uma triste lembrança. Amanhã será o 79º aniversário do maior ataque terrorista da história da humanidade (terrorismo na definição da ONU). No dia 6 de agosto de 1945, às oito horas e quinze minutos, o bombardeiro norte-americano Enola Gay lançou sobre a cidade japonesa de Hiroshima a primeira bomba atômica da história. A área não tinha qualquer interesse militar. Denominada Little Boy, a bomba causou cerca de 100.000 mil mortes imediatas e dezenas de milhares a mais ao longo do tempo, por causa dos efeitos da radiação. Mais de 70% de todas as edificações foram destruídas. O calor gerado pela explosão chegou a 6.000 graus Celsius. Três dias depois, outra bomba, a Fat Man, seria lançada em Nagasaki, matando instantaneamente cerca de 50.000 pessoas.

Como classificar estas carnificinas, que se seguiram aos bombardeios de saturação sobre outras cidades japonesas (numa única noite, causaram 80.000 mortes em Tóquio, civis em sua enorme maioria)? Uma boa ideia é comparar com a definição que o presidente norte-americano Harry Truman usou para os bombardeios nazistas sobre Espanha (durante a Guerra Civil), Inglaterra e Holanda: “Barbárie desumana que chocou profundamente a consciência da humanidade”.

Batman e Coringa, Super-Homem e Lex Luthor, Sherlock Holmes e James Moriarty, Branca de Neve e a Bruxa da Maçã, Popeye e Brutus, Tio Patinhas e os Irmãos Metralha. Tudo bem que na ficção é oito ou oitenta, mas a História real não pode ser entendida como uma contenda simples entre a Virtude absoluta e o Mal definitivo. Há cruzamentos, opacidades, linhas sinuosas, tentações, idas e vindas. Difícil, trabalhoso, mas quem disse que viver e compreender é um passeio na orla?

Abraço. E coragem.