Mary atravessa a cidade do Recife para trabalhar de cuidadora em um dos bairros nobres de lá. Ao chegar, toma banho, coloca a roupa de trabalho e vai atender a patroa que está sendo banhada pela cuidadora da noite. As duas trocam um sorriso e percebem que o dia vai ser animado. Mary alegra a patroa contando causos do Busão.
Neli fala para Mary em tom de brincadeira: “o seu pacote está banhado e perfumado!” as três caem na gargalhada. A patroa aprendeu com a dor dos dias, rir e permitir as brincadeiras sem se magoar. Ela sabia que o pacote era útil e sustentava duas famílias, portanto “afagos” trocados a divertia.
A patroa rindo, pergunta para Mary: “O que se deu no Busão hoje?” Ela sempre fala que rir um pouco das mazelas humanas é um “pecado social,” mas assim o dia corre com realismo e boas risadas e é uma forma de diálogo com um mundo que não conhece.
Mary fala do vuco vuco, que quase deu briga em uma das paradas com a freada brusca do motorista, que de tantas agruras, também não se importa com a carniça humana que transporta todos os dias, era assim que dizia: Vamos carniça!
Foi assim, minha patroa… A Desidete que havia cumprido pena por roubo, começou a gritaria e as vaias faziam coro
“Já matei, já roubei, não quero mais voltar pra essa vida!” uns se benziam, outros mandavam a mulher se calar, e um homem mais “folgado” gritou: “Vamos sensibilizar! A mulher tá arrependida!” e caiu na gargalhada… No vuco vuco, curvas, freadas, todos gritavam com o motorista… na parada da Boa Vista entrou uma senhora gorda, farta, o motorista não esperou ela se sentar e meteu o pé no acelerador… Caí cá caí lá, ela consegue se equilibrar um pouco e gritar com voz esganiçada: “Se fosse para uma com shortinho e beiradas de fora, você esperaria eu me acomodar, seu desgraçado!”
Aquieta aqui, aquieta ali, o burburinho de conversas sobre patroas toma fôlego e a cidade fica pequena para aquele mundo da linha que passa rasgando a cidade.
A patroa olha com perspicácia para Mary e fala, como é que elas apelidam a gente? Acho que a senhora não vai gostar de saber… Excitada pela linguagem daquele mundo, a patroa pede para que tudo seja narrado sem corte e censura. Então, as duas cumplices nas gargalhadas, mas não nas vidas se sentem com liberdade de contar e ouvir os inúmeros sentimentos, que através do discurso, são linhas divisórias dos dois universos sociais: ricos e pobres.
Bem, as meninas costumam chamar as patroas de Bichas ou Tristes. Me lembro de ter ouvido a Bernadete, que mora um pouco mais adiante de minha casa se referido a patroa dela assim: “Eu já estava pronta pra sair, aquela Bicha me mandou fazer qualquer coisa sem precisar…quase esganei aquela Triste!” eu caí na gargalhada e ainda futuquei o cão com a vara curta: “Tu fez Bernadete? Ela olhou com ódio em minha direção e falou para eu me foder, pois ela sabia que a senhora é ouro dezoito. A patroa olhou com muito carinho para Mary e falou: “Sou não! Me sinto uma pecadora social!”
As duas caem na gargalhada e o dia se enche de suas múltiplas realidades e dores sociais. As bernadetes tem seus motivos…