O obsceno como regra

O obsceno como regra

A tentativa de diminuir (ou anular) a importância dos áudios gravados no ambiente do STM à época da ditadura militar por parte do Presidente do STM Gen. Luis Carlos Gomes de Mattos converteu-se na realidade em um verdadeiro estrondo que sacudiu as bases tectônicas da sociedade brasileira. Talvez o melhor ponto para se iniciar a análise seja a própria iniciativa tida pelo STM há tantas décadas, de gravar suas sessões e preservar o material. Aquela instância, certamente naquele tempo repleta de apoiadores do golpe de 1964, certamente deixou uma cápsula do tempo com um claro recado sobre os limites que o STM gostaria de impor ao arbítrio, à exceção e à brutalidade, o que àquela altura já era tarde demais. Assim, os áudios gravados são da mais fundamental importância histórica e documental, talvez o melhor documento sobre aquele tempo, pois é indiscutível e irrevogável. É o pensamento dos ministros de então eternizados em sua própria voz. Assim, a tosca tentativa de desqualificação por parte do atual presidente já revela no imediato o baixíssimo nível intelectual de seu autor, que ocupando o status de juiz militar supremo, tem por obrigação primária reconhecer que jurisprudência é algo construído pela história, e a história se revela por documentos hábeis ou provas científicas, das quais, a gravação em áudio seja talvez a mais cristalina forma de registro.

É próprio das mentes autoritárias um certo grau de paranoia, pela qual a leitura da realidade é sempre percebida como algum grau de ameaça. No caso, parece que a paranoia foi acompanhada de outras comorbidades, como um sério déficit de capacidade de abstração, interpretação de valores e contextos, além de alguma desorganização de pensamento e dos afetos, especialmente quando faz referência à sagrada Páscoa pretensamente “não estragada” pela revelação dos áudios e quando produz um delírio interpretativo ao entender que os áudios comprometem a reputação e a honra do STM, quando na verdade, o efeito é o oposto.

Ao expor sua torpe linha de raciocínio baseado em falsos pressupostos e ausência de afetos humanos, o pobre general expõe de forma obscena o abismo que o separa dos autores e atores dos áudios quando revelam sua indignação com a degeneração do regime que lhes chegava através dos autos. Esse abismo, por sua vez, representa a enorme diferença entre um general que fez sua carreira bem antes do golpe militar e os que se formaram algum tempo depois, já sob influência das novas doutrinas que desembocaram nesta era onde o obsceno parece ser a regra e o sincericídio desconhece a profundidade dos abismos morais à frente.

O que o degenerado general fez, portanto, foi vandalizar a sua própria imagem e a da instituição que ora dirige sem qualquer pudor, e pior, demonstrando às escâncaras a sua absoluta incapacidade de compreender a realidade de uma república constitucional democrática fundada com base na dignidade humana, e de carona, vandalizando ainda a língua que por dever de ofício deveria dar sinais claros de domínio (sem qualquer preconceito aos que assim não o fazem por outras razões). E este “conjunto de obra” revela-nos que a herança da ditadura militar vai muito além das torturas denunciadas pelas gravações do STM, deixando claro que muitos quartéis e academias tiveram suas tradições sucateadas, convertendo-se em masmorras de cérebros a produzir oficiais como este ao qual nos referimos, entre outras eminentes figuras do atual contexto político e administrativo do país.

O ultranazismo de Vladimir Putin

O ultranazismo de Vladimir Putin

Muito poucos leram o discurso de 17 páginas de Vladimir Putin às vésperas de fazer o que negou por várias semanas, ou seja, invadir a Ucrânia com a intenção de destroçar o país e a vida de seus habitantes. Uma versão completa está no perfil do Prof. Renato Janine Ribeiro, no Facebook e talvez em outros lugares.
Entre os principais tópicos, um me chama muito à atenção: a intenção declarada de “desnazificar” a Ucrânia. Ora, tal assertiva de que a Ucrânia está “nazificada” não encontra suporte razoável nos dados de realidade. A extrema direita recebeu parcos 2% dos votos e não elegeu deputados. Desconheço qualquer ato de ofício ou discurso de Zelensky com conteúdo ou ideação nazista. As eleições foram monitoradas por entidades internacionais e não pesam suspeitas de fraude ou manipulações. Zelensky é um novato na política, e de fato, talvez a guerra possa ter caído no seu colo como uma oportunidade de ficar realmente (mais) famoso do que já era e tendo que responder a um desafio do tipo “um camundongo contra um urso”.
Se há extrema direita na Ucrânia? Claro que sim, e pode até ser da pior espécie. E falta extrema direita política e miliciana no mundo hoje? Por que a Ucrânia seria uma exceção a nos chamar tanto à atenção? Conflitos territoriais e geopolíticos no Leste contribuíram para o ódio aos russos e a Putin. Mas será que a verdadeira dimensão desse fenômeno é nacional, governamental e encravada no estado? Sinceramente não creio. Doentes graves apresentam sinais e sintomas graves. Desses que vemos com clareza no despotismo de Putin e sua intenção de se estabelecer no poder até 2037, quando por pouco não completará 4 décadas, se isto se concretizar. Mas as intenções estão claramente colocadas.
Putin ataca duramente o sentimento nacional ucraniano, chegando a afirmar, em apertada, mas verdadeira síntese, que “a Ucrânia não existe”, deixando claro a sua avaliação de que o nacionalismo ucraniano e a independência e autonomia desse estado são meras pretensões culturais e étnicas que não se fundamentam na história, na sociologia, na política, constituindo assim uma mera mitologia artificial. As 17 páginas detalham extensamente esta visão.
O termo “nazismo” pode ser aplicado a diferentes contextos, e pode facilmente ser apropriado por manipuladores dos significados e significantes. Outros termos sofreram o mesmo destino, sendo o mais clássico, o termo “sionismo”, que originalmente é o nome do movimento político que defendeu a criação do Estado de Israel como nação judaica, que atualmente é aplicado distorcidamente à aberração de uma política de governo expansionista da direita israelense. O movimento sionista culmina com a declaração da ONU que propôs a partilha da Palestina para dois povos e dois estados. O sionismo claramente abarca esta proposição. O que vem depois disso e alterando esta conformação não pode receber o nome de “sionismo”, devendo receber os nomes apropriados.
Quando Hitler iniciou a grande política nazista a partir de 1933, propagava a ideia (entre outras mais radicais e sombrias) de que a Alemanha precisava de extirpar a cultura judaica de suas estruturas de estado. Isto foi registrado em uma famosa entrevista à imprensa estadunidense, onde ele prometia não perseguir ou destinar judeus à morte ou sofrimento, mas simplesmente “desjudaizar” a Alemanha, lembrando que à época os judeus perfaziam 4% da população alemã, se tanto, e com parca expressão política. Ironicamente, esta população judaica era orgulhosa de sua condição germânica, o que deixa até hoje traços culturais nas comunidades judaicas de todo o mundo.
Usando esta figura histórica como analogia, fica muito claro que quando Putin afirma querer “desnazificar a Ucrânia” ele refere-se a algo muito semelhante ao que Hitler descreveu uma década antes da “solução final”. A intenção clara de Putin é de erradicar o sentimento nacionalista ucraniano, suas pretensões de independência e de integração com a União Europeia, fato que por si mesmo denuncia a mentira no “nazismo ucraniano”, pois sabem eles muito bem que a a entidade é avessa aos totalitarismos e fascismos, sendo que um regime democrático institucional e regular é condição essencial para esta adesão. Assim, Putin considera esse nacionalismo, legítimo a qualquer país – não existiriam países não fosse o legítimo nacionalismo – , como uma “contaminação”, uma doença a ser extirpada a qualquer preço, ficando em absoluto paralelo com o sentimento de Hitler ao querer “desjudaizar” a Alemanha.
Nesta esteira, manipulando a realidade a seu favor e corrompendo o sentido histórico peculiar do nazismo, Putin inaugura algo que ultrapassa as restrições históricas do termo, criando um metanazismo ou um ultranazismo, ou seja, utilizar a mecânica de Hitler e aplicá-la doravante ao contexto que ele considere atender às suas necessidades, fazendo algo muito parecido com o que certos setores de diferentes campos políticos fazem com o sionismo, quando tentam associá-lo aos desvios de governos israelenses e de algumas de suas forças políticas que nada tem a ver com a simples ideia de um estado judeu legítimo e independente projetado pelo verdadeiro sionismo.
Vivemos um período de crise dos significados e significantes, como bem define em suas palestras o Prof. Michel Gherman, quando examina a questão do nazismo infiltrado no Brasil e em seu governo atual. Desta crise, aproveita-se sorrateiramente Vladimir Putin para atingir seus objetivos totalitários e imperialistas, atirando seu belo país em uma guerra que será a sua ruína.
Onde vamos viver?

Onde vamos viver?

No meio de todo o transtorno que vivemos por força da pandemia de COVID-19, uma estranha linha de pensamento se avoluma nos meios sociais. Tal linha advoga que o debate sobre o COVID-19 está “politizado”, “partidarizado” ou “polarizado”. A questão é que há claramente um vício de entendimento do cenário, que leva a esta percepção (falsa) de polarização. Mais precisamente, uma ilusão, própria dos que tem um repertório restrito do entendimento da realidade e suas complexidades.
Vivemos em um mundo pós-iluminismo, construído sobre alicerces racionalistas, cartesianos, reforçados pelas colunas do estado moderno que desde a sua concepção luta para crescer e viver afastando-se progressivamente do despotismo, do autoritarismo e para aproximar-se de um cenário onde haja equilíbrio e liberdade para um debate permanente e continuamente auto aprimorado.
Assim, quando a defesa da ciência e seu ferramental, que foram desenvolvidos neste espírito há pouco descrito e que justamente existe e prepondera sobre o atávico desejo imperialista de apropriação da verdade e conhecimento, é encarada como posição partidária ou ideológica, temos um problema. Um grande problema.
Quem é capaz de tal formulação, é simetricamente incapaz de se aperceber do mundo onde vive, de seus sustentáculos filosóficos, éticos, políticos e sociais. Vivemos (ainda) sob a égide dos grandes contratos sociais expressos em constituições, legislação ordinária e eventuais discricionaríssimos autorizados pela representação democrática, todos eles construídos sobre a lógica e o racionalismo, que são plenamente incorporados à nossa linguagem (ao arrepio de Nietzsche) mas que literalmente galvanizam nossas relações sociais e políticas em todos os níveis.
Certamente o universo dos conhecimentos não alcançáveis pela metodologia científica é muito maior do que aquele das coisas que podemos dividir por partes examinando-as individualmente ou em pequenos arranjos. O conhecimento sobre o cérebro talvez seja o exemplo mais marcante à mão, no imediato. Mas moramos em edifícios concretos e abstratos construídos com essas substâncias igualmente concretas e abstratas.
Pretender classificar, portanto, a defesa do universo da ciência como divergência política ou partidária é esta sim, escancaradamente uma posição política “per se”, que só pode ser fruto de um autoritarismo vulgar e rasteiro, ou de profunda ignorância (real ou dissimulada), de um transtorno mental delirante, ou da combinação de tudo isso em ordens e proporções as mais variadas, e certamente associada a propósitos não alcançáveis no campo da legalidade, da ética e da civilização tal qual a conhecemos.
Se prosseguirmos na aceitação do argumento “partidário” aplicado a quem defende a ciência e todos os valores sobre os quais nossa civilização (ou o pedaço dela) estaremos sob o risco de perder nossa bússola. E sem ela, seremos em tempo próximo incapazes de saber onde viveremos. Ou, se viveremos. A ameaça às instituições nunca foi tão grave.

Nossas vidas pretas

Nossas vidas pretas

Como diz a lei de Velpeau, as coisas incomuns não ocorrem isoladamente, sempre vem aos pares. Recentemente terminei a leitura do fantástico “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior e escrevi um texto aqui publicado sob o título “A insustentável delicadeza da brutalidade” (pode buscar no meu perfil com este termo). Pois mal recuperei o fôlego um novo “meteoro” cai sobre a minha horta. Desta vez sob a lavra de Cristiane Alves, professora e escritora que tive a felicidade de conhecer há mais de 20 anos e de tê-la como amiga.

Seu livro Nossas Vidas Pretas tem muito em comum com a fantástica epopeia de Belonisia e Bibiana, mas desta vez a protagonista é única e fala da vida real em um ambiente bastante diverso daquele descrito em Água Preta. Afinal, se em Água Negra os personagens ainda que fictícios têm na sua ligação com a terra e a natureza a sua redenção e conexão com a vida, a vida concreta no Buraco Fundo (região de Diadema, SP) nem aquela romantização permite.

Cristiane é de uma pureza rara, e como Itamar, não é chegada às concessões, o que forma um sobressaltante contraste entre as dores descritas e a escrita das dores, algo que nos desafia permanentemente durante a leitura da sequência de eventos da sua vida, que nos oferece uma boa amostragem daqueles mistérios insondáveis que fazem do presumidamente impossível a regra e o encanto da vida.

O livro é escrito de forma quase aforismática, em pequenos capítulos, cada um deles de alta densidade, e que embora não sejam unidos por um fio de narrativa, rapidamente nos permitem transformá-los mentalmente nos tijolos de uma existência, muito simbolicamente retratados na figura da capa do livro, esta que merece um destaque especial.

O edifício de concreto (e tijolos) ao fundo certamente simboliza a rigidez e a compartimentalização da vida nas cidades e no modelo de sociedade que construímos sobre e a partir das almas pretas representadas pela estampa feminina (preta), cujos olhos, invisíveis refletem a invisibilidade da vida que foi transformada em serventia para outros no longuíssimo processo de escravidão ainda não resoluto, hoje mais representado pelo isolamento, abandono e violência estrutural.

Como ressalta Rodrigo Mendonça na orelha esquerda do livro, uma das essências da obra é o deslocamento, o não pertencimento, algo que coloca a vida preta brasileira, aqui tão bem retratada na sua “paisagem” urbana, em algo ainda mais desolador do que a sempre presente falta de futuro do povo de Água Negra.

O livro de Cristiane é um verdadeiro documentário sem ter a pretensão de sê-lo. É história na carne, na alma, que vai muito além do papel e se entalha na pedra. Mas uma pedra que grita a cada pancada, chora na expectativa da próxima, mas consegue sair desse corpo e contemplar a beleza dos entalhes, convertida a cada momento em força de vida, regeneração, superação e geração.

É muito forte.

A insustentável delicadeza da brutalidade (Análise do livro Torto Arado)

A insustentável delicadeza da brutalidade (Análise do livro Torto Arado)

Torto Arado é uma obra gigante que doravante ninguém que queira ser qualificado como brasileira ou brasileiro poderá ser completo sem a sua leitura. Mas antes de descrever a obra em si, como gosto de fazer com quase tudo na vida, vou do geral para o particular.

Minha vida e minha mente foram (e são) fortemente influenciadas pela exploração de nossas noções de realidade, e nesta aventura, o mundo da física nos dá mensagens muito ricas. O começo do século XX foi marcado por grandes rupturas na ciência (e na filosofia) na medida em que se descobriu que a realidade do muito grande (física relativística), mesmo sendo fruto da soma de todas as realidades do muito pequeno (física quântica) tem com esta uma difícil relação, pelo menos à nossa apreciação enquanto humanos ansiosos por explicações fáceis para a nossa realidade que fica no meio do caminho entre esses mundos, o que nos deixa perplexos quando estamos diante da microrrealidade onde nada é determinável ou exato, nem mesmo a existência em si mesma de alguma coisa.

Viver no Brasil e imaginar que a realidade visível e palpável tem algo a nos dizer diretamente é certamente algo pior do que uma alucinação. Nada pode ser mais incompleto, delirante e confuso, e certamente o que vivemos neste momento de nossa história é a perfeita representação deste “pathos”.

Água Negra é um átomo da nossa história, algo como um átomo de carbono, este que integra toda e qualquer matéria viva tal qual a conhecemos por enquanto, e assim, estrutura nossa existência na sua imensa complexidade. As “partículas sub-atômicas” desse micromundo são os imensos personagens que exploram as possibilidades em um ambiente que fica entre a escravidão e algo que ainda não veio a ser, pelo menos aos descendentes dos ecravos do Brasil, e sua situação no contexto atual é bem retratada pela protagonista que tragicamente perde sua capacidade de falar já na infância, em um simbolismo sobre o qual não tenho certeza sobre o quão intencional foi por parte do autor, mas que identifiquei durante a leitura.

O romance é delicadamente e ricamente floreado de forma envolvente e verdadeiramente saborosa, a ponto de fazer que nos sintamos parte daquela terra, das chuvas, secas, das crenças, dos encantados, e do contraste permanente entre o amor pelo lugar e sua trágica história com o das dores dessa história, o que de tal forma impregna a vida de alguns personagens que os paralisa os sentidos de eventual revolta e transgressão, algo que fica reservado aos mais jovens e expresso em diálogos que algumas vezes lembram o folclórico Tevie (Um Violinista no Telhado) e seus choques com os jovens proto-socialistas de Anatevka, o vilarejo russo onde se passa aquela narrativa. Esta semelhança eventual é realmente notável, e se presumo que o autor dificilmente conheça aquela obra, ele terá confirmado a universalidade dos dramas humanos que conhecemos.

Neste micromundo de partículas infinitesimais da nossa realidade vai sendo destilada a substância da vida, que sempre mais forte que tudo, insiste em provar que o impossível é algo a ser permanentemente desafiado e os personagens, embora fictícios, seguem as trajetórias que certamente foram percorridas por milhões de pretas e pretos que no século XX e XXI ainda não sabem o que são direitos fundamentais, não por que não os queiram, evidentemente, mas por que a vida bruta de uma terra da qual tiram tudo e com a qual têm uma relação mais que carnal simplesmente não lhes é permitida como própria, em um processo massacrante e alienante que é vivido pelos mais velhos como natural e como única forma de preservar suas próprias tradições, crenças e saberes, em um paradoxo que verdadeiramente nos angustia.

A condição feminina é alvo também preferencial do autor, revelando matrizes das tantas disfuncionalidades estruturantes de tragédias que nos são bem conhecidas, mas que no caso particular derivam da catástrofe criada pelo sequestro de um povo de suas terras e nações, cruelmente submetidos a uma realidade brutal e perversa que extraiu boa parte das suas essências culturais e antropológicas, antes harmônicas, sem nada oferecer em troca senão a condição sub-humana institucionalizada.

Torto Arado é o Brasil profundo, sincero, sem concessões, mas descrito com poesia suficiente para nos angustiar sobre um imenso vir-a-ser que não se realizou no país, mas que pelo menos foi vivida nos corações dos heróis retradados nesta magnífica obra.

NELSON NISENBAUM

Por que a variante delta da COVID-19 não “explodiu” no Brasil?

Por que a variante delta da COVID-19 não “explodiu” no Brasil?

No momento em que vários países da Europa com boa situação vacinal experimentam o maior “boom” da pandemia, com recordes de casos, o Brasil segue em queda sustentada de casos. O que será que explica a nossa “salvação”?

Tenho as minhas teorias, que já deixo bem claro, não tem valor científico, mas penso serem razoáveis e plausíveis. Vamos lá.

Desde antes do início da vacinação eu defendia que a plataforma da Coronavac seria superior pela sua composição de “vírus inteiro”, em contraposição a todas as outras, que independente da plataforma entregam apenas o antígeno “spike” ao nosso organismo. Este antígeno é o que forma a ponte entre o vírus e nossas células. Ocorre que é justamente este antígeno o que mais sofreu mutações ao longo da pandemia, o que poderia explicar que muitas pessoas com duas doses adquiriram a doença, ainda que com redução de gravidade e mortes em aproximadamente 90%. Os países onde a Coronavac está em alta não receberam Coronavac ou outra vacina de vírus inteiro, ao passo que o Brasil, Uruguai, Chile e Argentina (sem falar da China, obviamente!) usaram a vacina em larga escala. Como os anticorpos e células de defesa induzidos pela Coronavac dirigem-se a vários antígenos ao mesmo tempo, ficaríamos mais protegidos das mutações da proteína Spike. Claro que a Coronavac mostrou fragilidade entre os mais idosos, mas sem dúvida, quando usada em massa produz um bom “escudo imunológico” que protege a todos, inclusive os idosos, e os números mostram isso com clareza.

O segundo ponto, é que quando a nossa vacinação começou, já havia disseminação em massa do vírus em todo o país, especialmente a variante gama, que certamente em meados de março já havia batido em 100 milhões de brasileiros. Mas como fazer esse cálculo? Não é tão simples e nem tão complicado. Basta ter como parâmetro o fato de esta doença ter uma mortalidade “bruta” de 1% ou menos dos infectados. Como a nossa mortalidade chegou a 4,5% dos notificados em alguns momentos, fica claro que há cerca de um ano a subnotificação era em torno de 80%, em números arredondados. Assim, quando a vacinação começou de fato e em ritmo adequado, pelo menos metade dos brasileiros já tinha uma “dose” da vacina, que era a infecção prévia, fazendo com que esta primeira dose funcionasse de fato como segunda, e por sua vez, a segunda, como terceira. Assim, o verdadeiro “escudo imunológico” já estava em formação quando a vacinação começou, colocando o Brasil em uma situação incomparável com a de outros países, onde o vírus não circulou tanto. Isto confirmaria o “sucesso” do projeto de Bolsonaro, que foi o de construir imunidade de rebanho por disseminação do vírus, ao custo de 609.000 mortos pelos números oficiais de hoje. Que fique claro que o termo “sucesso” foi usado aqui em tom de fria ironia.

Nos meus cálculos, neste momento, o vírus já infectou pelo menos 75% da nossa população, principalmente nos grandes centros como a cidade de São Paulo, que experimenta no momento mortes diáirias na escala da unidade, e números de casos na casa de poucas centenas em trajetória de queda, o que só se explica, diante da potência da variante delta exibida em outros países, por uma imunidade coletiva muito forte, que somente a conjugação infecção+vacina poderia explicar.

Que venham os cientistas e testem as minhas teorias.