Muito poucos leram o discurso de 17 páginas de Vladimir Putin às vésperas de fazer o que negou por várias semanas, ou seja, invadir a Ucrânia com a intenção de destroçar o país e a vida de seus habitantes. Uma versão completa está no perfil do Prof. Renato Janine Ribeiro, no Facebook e talvez em outros lugares.
Entre os principais tópicos, um me chama muito à atenção: a intenção declarada de “desnazificar” a Ucrânia. Ora, tal assertiva de que a Ucrânia está “nazificada” não encontra suporte razoável nos dados de realidade. A extrema direita recebeu parcos 2% dos votos e não elegeu deputados. Desconheço qualquer ato de ofício ou discurso de Zelensky com conteúdo ou ideação nazista. As eleições foram monitoradas por entidades internacionais e não pesam suspeitas de fraude ou manipulações. Zelensky é um novato na política, e de fato, talvez a guerra possa ter caído no seu colo como uma oportunidade de ficar realmente (mais) famoso do que já era e tendo que responder a um desafio do tipo “um camundongo contra um urso”.
Se há extrema direita na Ucrânia? Claro que sim, e pode até ser da pior espécie. E falta extrema direita política e miliciana no mundo hoje? Por que a Ucrânia seria uma exceção a nos chamar tanto à atenção? Conflitos territoriais e geopolíticos no Leste contribuíram para o ódio aos russos e a Putin. Mas será que a verdadeira dimensão desse fenômeno é nacional, governamental e encravada no estado? Sinceramente não creio. Doentes graves apresentam sinais e sintomas graves. Desses que vemos com clareza no despotismo de Putin e sua intenção de se estabelecer no poder até 2037, quando por pouco não completará 4 décadas, se isto se concretizar. Mas as intenções estão claramente colocadas.
Putin ataca duramente o sentimento nacional ucraniano, chegando a afirmar, em apertada, mas verdadeira síntese, que “a Ucrânia não existe”, deixando claro a sua avaliação de que o nacionalismo ucraniano e a independência e autonomia desse estado são meras pretensões culturais e étnicas que não se fundamentam na história, na sociologia, na política, constituindo assim uma mera mitologia artificial. As 17 páginas detalham extensamente esta visão.
O termo “nazismo” pode ser aplicado a diferentes contextos, e pode facilmente ser apropriado por manipuladores dos significados e significantes. Outros termos sofreram o mesmo destino, sendo o mais clássico, o termo “sionismo”, que originalmente é o nome do movimento político que defendeu a criação do Estado de Israel como nação judaica, que atualmente é aplicado distorcidamente à aberração de uma política de governo expansionista da direita israelense. O movimento sionista culmina com a declaração da ONU que propôs a partilha da Palestina para dois povos e dois estados. O sionismo claramente abarca esta proposição. O que vem depois disso e alterando esta conformação não pode receber o nome de “sionismo”, devendo receber os nomes apropriados.
Quando Hitler iniciou a grande política nazista a partir de 1933, propagava a ideia (entre outras mais radicais e sombrias) de que a Alemanha precisava de extirpar a cultura judaica de suas estruturas de estado. Isto foi registrado em uma famosa entrevista à imprensa estadunidense, onde ele prometia não perseguir ou destinar judeus à morte ou sofrimento, mas simplesmente “desjudaizar” a Alemanha, lembrando que à época os judeus perfaziam 4% da população alemã, se tanto, e com parca expressão política. Ironicamente, esta população judaica era orgulhosa de sua condição germânica, o que deixa até hoje traços culturais nas comunidades judaicas de todo o mundo.
Usando esta figura histórica como analogia, fica muito claro que quando Putin afirma querer “desnazificar a Ucrânia” ele refere-se a algo muito semelhante ao que Hitler descreveu uma década antes da “solução final”. A intenção clara de Putin é de erradicar o sentimento nacionalista ucraniano, suas pretensões de independência e de integração com a União Europeia, fato que por si mesmo denuncia a mentira no “nazismo ucraniano”, pois sabem eles muito bem que a a entidade é avessa aos totalitarismos e fascismos, sendo que um regime democrático institucional e regular é condição essencial para esta adesão. Assim, Putin considera esse nacionalismo, legítimo a qualquer país – não existiriam países não fosse o legítimo nacionalismo – , como uma “contaminação”, uma doença a ser extirpada a qualquer preço, ficando em absoluto paralelo com o sentimento de Hitler ao querer “desjudaizar” a Alemanha.
Nesta esteira, manipulando a realidade a seu favor e corrompendo o sentido histórico peculiar do nazismo, Putin inaugura algo que ultrapassa as restrições históricas do termo, criando um metanazismo ou um ultranazismo, ou seja, utilizar a mecânica de Hitler e aplicá-la doravante ao contexto que ele considere atender às suas necessidades, fazendo algo muito parecido com o que certos setores de diferentes campos políticos fazem com o sionismo, quando tentam associá-lo aos desvios de governos israelenses e de algumas de suas forças políticas que nada tem a ver com a simples ideia de um estado judeu legítimo e independente projetado pelo verdadeiro sionismo.
Vivemos um período de crise dos significados e significantes, como bem define em suas palestras o Prof. Michel Gherman, quando examina a questão do nazismo infiltrado no Brasil e em seu governo atual. Desta crise, aproveita-se sorrateiramente Vladimir Putin para atingir seus objetivos totalitários e imperialistas, atirando seu belo país em uma guerra que será a sua ruína.