A imprensa–cujo objetivo é reportar os fatos, verificá-los a fim de transmiti-los ao público– e sua liberdade só são garantidas quando não ferem os princípios da ética jornalística. A ruptura desse princípio não pode ficar impune tampouco o veículo que a perpetrou. Dois casos mostram como o abuso da liberdade de imprensa está sendo contido no Brasil. No entanto, a falta de regulamentação das plataformas de mídia digital faz com que canais digitais se transformem em multiplicadores de um fenômeno da contemporaneidade chamado ‘a crise da verdade’.(Hoggan e Kloubert, 2022) Este fenômeno se calca na difusão da distorção dos fatos e tem como consequência a divisão quase pela metade dos indivíduos numa dada sociedade sobre a percepção objetiva e histórica dela. Essa divisão é promovida pela velha máxima de Júlio Cézar “dividir e conquistar”, foi estratégia de Joseph Goebbels durante o nazismo e é ainda utilizada pelos governos de ultradireita para fomentar o ódio e polarizar a população. Isso tem que ser contido.
A Jovem Pan News é um exemplo desse acervo de fake news, propaladas para consolidar o governo de extrema direita de Bolsonaro entre 2018 e 2022. Em 1942, Antônio Augusto Amaral de Carvalho funda a Jovem Pan, uma radiodifusora que hoje faz parte do histórico jornalístico do país, contando com sua expansão em 100 emissoras, entre canais de notícias e plataformas, espalhadas pelo território brasileiro. Dois programas são o carro-chefe da emissora: “Morning Show” e Os Pingos nos Is Estreado em 2012, “Morning Show”, inspirado no formato americano de shows de matinê, no início contava com a com a chefia do jornalista Zé Luiz que um ano após deixou o programa por desavenças com a produção. O “Morning Show” foi progressivamente se transformando em canal proliferador de lorotas quando em 2021 ajudou a impulsionar desinformação sobre a pandemia de Covid-19. O negacionismo sobre os efeitos letais do vírus se deu ao mostrar entrevistas com médicos no YouTube, defendendo drogas sem eficiência comprovada e com críticas ao uso de máscaras. Uma das comentaristas do programa, a influenciadora digital Zoe Martinez, é investigada pelo Ministério Público Federal (MPF) por incitar o golpe no dia 08 de janeiro na invasão dos três poderes. Martinez defendeu que as Forças Armadas destituíssem os ministros do Supremo Tribunal Federal. A caribenha naturalizada brasileira cresceu e enriqueceu às custas das plataformas digitais e na alocação de vídeos e comentários contra o comunismo. Sem nenhuma sustentação teórica e sem bases históricas, a influenciadora ratifica o mito de uma falência comunista em Cuba sem apresentar nenhum outro contraponto; produzindo, assim, uma visão tendenciosa sobre esse cenário. Uma pergunta fica. Por que a Jovem Pan só a demitiu quando o MPF foi acionado?
O mesmo aconteceu com os comentaristas da corporação Paulo Figueiredo e Rodrigo Constantino. Figueiredo e Constantino ambos residentes nos EUAs, utilizam o mesmo apelo da primeira emenda constitucional americana para defender a liberdade de imprensa no Brasil e instituir a indecência e antiética jornalísticas. Figueiredo é neto do último presidente militar e ex-sócio de Donald Trump na rede de hotelaria, seguidor do já defunctus guru Olavo de Carvalho. Além do processo de investigação do MPF da Jovem Pan, o ardil é réu de um esquema corrupto apelidado de Operação Circus Máximo em que Figueiredo responde por falcatruas de 20 milhões de reais entre propinas de diretores do Banco de Brasília e a empresa dele na construção da Trump Tower no Rio de Janeiro. De novo, a Jovem Pan só o despediu depois que o MPF se manifestou.
Já Constantino foi taxativo ao afirmar que houve golpe do Supremo Tribunal Federal no resultado das eleições de 2022 que elegeu o candidato Luís Inácio da Silva. Constantino, detentor de uma fortuna de 50 milhões de reais, já passou pela Veja, O Globo, Valor Econômico como colunista e comentarista de economia. Como escritor, seus títulos revelam o perfil de extrema direita na atuação de sua carreira. Um deles é Esquerda Caviar (2014) cujo nome manifesta a posição pejorativa com a qual Constantino trata a oposição no Brasil. Outras produções em palestras denotam a tese central que circunda o seu trabalho, replicando o cerne da ideologia neoliberal no século XXI expressa na seguinte equação: o aumento da produtividade de uma dada sociedade é igual ao aumento da inequidade social, retirando desta sociedade os pobres e idosos. A mesma estratégia da Jovem Pan sobre a demissão se aplica ao infrator.
Tanto em formato radiofônico como digital, Os Pingos nos Is começam com o jornalista Reinaldo Azevedo em 2014, visando oferecer um panorama geral de notícias políticas com comentaristas e críticos. Azevedo, envolvido num suposto áudio comprometedor com a irmã de Aécio Neves, pede demissão em 2017 e o programa se delineia, então, como ultraconservador. Entre 2020 e 2022, Os Pingos nos Is têm em seu quadro os comentaristas Augusto Nunes, Ana Paula Henkel, Guilherme Fiuza e Guga Noblat. Os três primeiros foram responsáveis pela defesa do bolsonarismo, e, diretamente, pelo crescimento do homicídio, feminicídio e de todo potencial destruidor de uma sociedade, corroborado pela fome, miséria, doenças, baixa qualidade na educação, e sistema de saúde pauperizado, etc. Nunes foi demitido porque o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) impedi-o de chamar o atual presidente de “ex-presidiário”. Henkel se demitiu, Fiuza teve seus perfis sociais suspensos por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF). Guga Noblat, no modelo fake copiado da Fox News americana, tinha o papel mediador no debate, apresentando contra-argumentos aos temas como forma de equilibrar o rol altamente faccioso do show. Pediu demissão da Jovem Pan News em 2022.
Nunes é o exemplo de um extremista latente em que os princípios e atos ultraconservadores se manifestam na medida em haja uma liderança que os avalizam. Com uma carreira longa no jornalismo, Nunes trabalhou como repórter no Estado de S. Paulo e revista Veja, mediou entrevistas no Roda Viva e na TV Cultura, dirigiu as revistas Veja, Época e a Forbes brasileira, os jornais Jornal do Brasil e Zero Hora, for fim, foi amplamente premiado na sua função. No entanto, pelo menos na aparência, sua conduta muda justamente quase um ano após a vitória de Bolsonaro quando Nunes esbofeteia o jornalista Glenn Greenwald ao vivo no show Pânico da Jovem Pan. Greenwald, assumidamente casado com o deputado federal David Miranda e os dois sendo pais adotivos de dois filhos, investigava o imbróglio que colocou o presidente Lula na cadeia. A redação da Pan liberou uma nota se desculpando sobre o comportamento do jornalista. Contudo, nenhuma advertência ou punição mais severa veio da emissora, muito pelo contrário, ela só se pronunciou no momento em que o TSE se manifestou contra a retórica vilipendiosa do jornalista contra Lula.
Surpreendentemente, Fuiza é neto do jurista Sobral Pinto e com uma carreira difusa no jornalismo e na literatura tombou para a ultradireita, defendendo o discurso do ódio e tomando uma postura antidemocrática.
A resposta à negligência da Jovem Pan face à responsabilidade de seus profissionais reside no que é conhecido como capitalismo predatório. Neste sistema, o foco central é o lucro e notadamente o ganho que a veiculação da imagem e da notícia trazem no índice de audiência da corporação comunicativa junto com a influência política e o poder que geram. Neste tipo de comunicação, não cabe nenhum comprometimento ético do profissional e nem da empresa que o representa, muito menos as consequências em que esse veículo produz direto na população (a desinformação elevando o número de vítimas da Covid-19, etc.), ou seja, sua capacidade em provocar mortes. Como representação latente, esta máquina de poder comunicativo funciona conforme a teoria freudiana da psique. O Id social é um depositório das forças inconscientes contra tudo o que é progressista e diferente do padrão de ideias e comportamentos da época e encontra um superego (líder) que lhe escancara a porta para se manifestar. A Jovem Pan serviu de canal para todos aqueles que cultivaram o ódio da diferença se expressarem e só foi barrada agora por pais disciplinadores (STF e TSE). Neste país, precisamos mais desses pais em formas de leis e decretos que impeçam as plataformas digitais de lesionarem a ética com que o jornalismo se compromete. Precisamos desenvolver a consciência de que este é o fio condutor que o capitalismo usa para continuar empreendendo suas desumanidades.
Como uma obra original pode ser reescrita por vários meios a fim de enfatizar um de seus discretos aspectos interpretativos?Linda Hutcheon em Uma Teoria da Adaptação (2013) elabora e reúne em seu livro conteúdos sobre a destreza e capacidade criativas do criador que adapta a partir de uma obra já criada. Adaptar, então, é reeditar uma arte e fazê-la ressaltar suas nuances por ângulos ainda não explorados, mantendo uma fidelidade com o original. Às vezes, a adaptação, por excelência, supera o original como em Jogos Vorazes (2012) de Suzanne Collins, um livro cuja emulação cinematográfica bateu récorde e foi mais bem elaborado e recebido do que o romance. Neste, a previsibilidade da trama contida na narrativa destituía dela o suspense que foi bem capturado no filme. Em outros casos, a adaptação é o próprio romance escrito a partir de um filme ou seriado de TV. Denominados de “tie-ins”, esses gêneros já consagrados, atendem a um público seleto de leitores que desejam ter acesso à linguagem da imagem traduzida em palavras. Bem, então, a adaptação se baseia num universo criativo e racional em que histórias podem ser recontadas pelo viés de um observador que mantém o princípio fidedigno na cópia.
Infelizmente, no universo bolsonarista, as histórias de seus fiés políticos vão além de uma racionalide plausível e viram uma chacota sensacionalista. Histórias dessa estirpe passam por diferentes versões da original, criando, em vez de adaptações, uma multitude de inverdades. Marcos Do Val, Senador da República pelo partido PODEMOS, ė um exemplo desse mundo paralelo de falácias que revelam uma dúzia de tramas mirabolantes sobre um golpe de estado. Os personagens desse conciliábulo são seu comparsa o deputado Daniel Silveira e o ex-presidente Bolsonaro. Abaixo são apresentadas as versões de Do Val:
O ex-presidente Bolsonaro e Daniel Silveira participam de uma reunião na presença de Marcos Do Val. O intuito da reunião era grampear o ministro do STF Alexandre de Moraes a fim de pegar qualquer deslize e usá-lo contra ele. Isso facilitaria um golpe porque o ministro faz linha dura contra o governo bolsonarista.
A reunião acontece, mas o ex-presidente não se envolve na trama.
O ministro recebe a denúncia de Marcos Do Val e pede para formalizá-la no Ministério Público.
Marcos Do Val desmente que o ministro tenha feito tal pedido
Marcos Do Val não se lembra exatamente onde a reunião aconteceu, se na Granja do Torno (residência oficial dos presidentes da república) ou no Palácio Jaburu (residência oficial dos vice-presidentes)
Marcos Do Val resolve fazer a denúncia influenciado por seu assessor Leonardo
Desmente isso depois.
Após essas declarações, Do Val apresenta um laudo psiquiátrico atestando sua sanidade mental. A lógica aplicada para explicar essas versões está longe do contexto da adaptação. Adaptação é arte e exige maestria do adaptador. Requer uma coerência dos fatos narrados e uma precisão quanto ao uso da linguagem, quaisquer fatos ou linguagens que sejam. Nas entrevistas, o senador demonstra que não tem essas habilidades. Não encadeia sentenças lógicas e comete erros graves no uso da língua. Poderia ter ficado na área de segurança privada e não ter ousado na política. Mas, é oportunista como os vários políticos que aproveitaram a bocada de 2018, ano em que o país deu uma guinada de 360º para trás e elegeu, dentre suas mais preciosas pérolas, Carla Zambelli, Damares e Do Val. Estes são os clássicos bolsonaristas em que o cosmos das mentiras e realidades se misturam num caldo de sururu cujas partes (o dendê, o leite de coco e o molusco, que dá o nome à sopa) se tornam indiferenciáveis do todo. Definitivamente, o CASO DO VAL é um fenômeno para a psiquiatria, bem como os bolsomínios e o psiquiatra que forneceu esse laudo. Sururu neles.
A Rota das Lágrimas (Trail of Tears)– alcunha dada ao genocídio de índios pelo governo americano-, é uma cicatriz aberta na história dos EUA, deixando mais um rastro de desonra no marco da colonização no que tange às primeiras nações. Apesar de terem lutado para permanecerem em seus territórios originais, cinco nações foram deslocadas pelo Ato de Remoção Indígena– uma lei federal que vigorou entre 1830 a 1850 para a remoção pacífica dos índios, visando a permanência deles no leste do Rio Mississippi. Um dos motivos da transferência foi o ouro e as outras riquezas encontradas nas terras indígenas, principalmente as dos Xeroques. Lamentavelmente, em 1831, os indígenas, forçados a fazerem o translado, foram brutalmente assassinados no caminho. Além das lágrimas vertidas pelas milhares de famílias que perderam seus entes queridos durante a rota, bem como o suor propriamente dito da longa caminhada, uma grande mácula de sangue ficou registrada na morte a sangue frio de anciãos, mulheres e crianças durante o percurso. Muitos perecerem de fome ou não resistiram às doenças transmitidas pelos homens das tropas que os conduziram.
Dois séculos após, o que encontramos no estado de Roraima é uma outra rota das lágrimas dos yanomamis brasileiros, seguida do mesmo raciocínio de extermínio. Garimpeiros, ávidos por lucrar com o ouro das reservas dos indígenas, destruíram seu habitat natural, impedindo, pelo punho da arma de fogo e força, que ajuda médica chegasse à população, produzindo, assim, uma condição de precariedade nunca vista nesta nação. As terríveis fotos de crianças yanomamis, desnutridas por causa da poluição da terra e dos rios por conta da grilhagem, só são superadas pelas da Etiópia no ápice da guerra civil em 1984. Fotos estas de cidadãos cadavéricos cujas imagens produziam reações viscerais no público.
Em geral, os órgãos responsáveis pela tutela das minorias foram desbaratados no governo de Bolsonaro num projeto para alavancar (sem nenhum requinte e pudor, porque “a boiada passou”) os mecanismos do capital predatório no país. Evidentemente, a rota das lágrimas não é o primeiro e nem o único projeto de exterminar índios. Entre 1518 a 1521, Hernan Cortês dizimou os astecas no México, em 1622, O capitão Smith tombou 500 em Jamestown- ex-colônia dos EUA, a Tierra del Fuego, a Argentina e o Chile perderam seus Selk’nam nos séculos XIX e XX, os aborígenes australianos sucumbiram aos europeus, e a lista vai e vai. Por que, então, Bolsonaro livraria os yanomamis?
A lógica que associa o nazismo, o psicanalista Sigmund Freud, o psiquiatra Carl Jung, o escritor R. Louis Stevenson aos bolsomínios se reduz a duas teorias psíquicas e um contexto histórico atual em frangalhos.
O renitente emprego de símbolos, os gestos, as cantarolas de hinos, e a hipnotizante cadência de voz de Hitler eram as estratégias de propaganda repetidas pelo partido nazista para arregimentar e conduzir as massas. No rol dos panfletos, os nazistas ressaltavam as características imponentes do líder, colocando-o acima do povo. Um panfleto com Hitler, num plano elevado, usando a veste de um cavaleiro da Ordem Teutônica– uma das mais poderosas e influentes ordens da Alemanha nas Cruzadas–, mostra-o empunhando sua espada e dirigindo seu olhar à população. Num plano abaixo, chamas luminosas, advindas de candeeiros erguidos pela juventude nazista, expõem a celebração do solstício. O efeito dessa composição sugere que o poder de elevar as massas está nas mãos do cavaleiro divino (que utiliza do jogo das luzes dos candeeiros para iluminar seus fiéis com sua espada) cuja missão é quase um salvamento messiânico delas.
Em 1919, em seu ensaio, Sigmund Freud cunha o termo Del unheimlich (O Inquietante) para se referir à atração da coletividade aos aspectos sombrios e ocultos que imagens, fatos, ou impressões suscitam nos indivíduos, agindo sobre eles como verdadeiros feitiços. Em O Homem e seus Símbolos (1968), Carl G. Jung dá um salto adiante para mostrar essa mesma atração pela via dos arquétipos. Manifestados como imagens ou símbolos do inconsciente, os arquétipos são forças psíquicas dissociadas da consciência, possuindo autonomia própria e atuando de forma coletiva. Essas forças podem cooptar participantes para seitas, criar novas religiões e arrastar multidões arrefecidas. Aos arquétipos, se fixam os rituais que replicam seu poder magnético, resultante de uma deficiência na humanidade. A despeito dos avanços materiais da civilização, os psíquicos ainda carecem de atenção e se revelam por intermédio de forças inconscientes coletivas. Enquanto existirem guerras, fome, miséria, e rejeição à velhice e à morte, a humanidade continuará produzindo arquétipos.
Na ficção, essa atração se evidencia nos filmes, peças de teatro, revistas em quadrinhos e videogames que reiteram o arco temporal da transformação do personagem de R. Louis Stevenson no romance O Médico e o Monstro (1886). O fascínio que esse fenômeno exerce no público reside no jogo entre os polos opostos das personalidades de Jekyll e de Hyde e numa sedução da coletividade acerca dos aspectos sinistros e camuflados do renomado e bem-sucedido médico.
Del unheimlich e os arquétipos são construtos que explicam as bizarras transformações de indivíduos normais em bolsomínios, tornando-os verdadeiros monstros trogloditas. É como se a personalidade pré e pós-bolsomínia coincidisse exatamente com a mudança ocorrida na alegoria de Stevenson há quase um século e meio em que os caracteres diametricamente opostos são absorvidos um pelo outro ao alvorecer do dia. Como no nazismo, o bolsonarismo explora a força dos arquétipos e o fascínio em se emergir seus poderes funestos e latentes (delunheimlich). Sabendo da fragilidade socioeconômica da população, da ausência de uma robusta base educativa e das deficiências políticas na sociedade, o bolsonarismo se utiliza desses calcanhares de Aquiles para criar o seu projeto político. Conta com a massificação da mídia social e com a retórica propagandista para dar cabo ao seu projeto, empregando para isto, o mote da pátria, da família e de Deus a fim de avalizar suas desumanidades. Assim como no nazismo, essa narrativa hipnotiza a população que conta com o messias para lhe dar o acolhimento psíquico bem como resolver as mazelas sociais. Seu instrumento de poder não é a espada do cavaleiro teutônico, mas, sim, uma arma de fogo para a população se proteger de uma retroalimentada violência. Com isso, Bolsonaro abona os homicídios e dá álibis para lunáticos como Roberto Jefferson e Carla Zambelli protagonizarem cenas de bang-bang, vistas nos filmes hollywoodianos, filmes estes somente passados em vídeos de motéis de beira de estrada. Suas palavras tersas e de baixo calão rebaixam as minorias e oportunizam agressões verbais e físicas. Bolsonaro (não ele propriamente dito porque é incapaz para tal) soltou a fera voraz que habita os recônditos cantos da psique e fez a metade do Brasil ser habitada por senhores Hydes.
Lucia Ribas/PhD em Literatura e Cultura Americana-Universidade de Haifa, Israel
Uma miríade de teses caberia para avaliar o capitólio brasileiro e outras tantas para evitá-lo. Uma delas se pauta na anatomia e na estruturação do nazi-fascismo que se repete no Brasil, se reproduziu na gestão Trump, e vem se camuflando como regime autoritário na Turquia, Hungria e Polônia. Ondas e ecos antidemocráticos na candidata Marie Le Penn nas últimas eleições na França e no flerte (aí, sim, flerte) no atual comando da Itália e das Filipinas e numa espécie de ressurreição do nazismo na Alemanha (coibido recentemente com vigor) refletem as tendências de posições extremistas no século XXI. Com muita segurança, afirmo, baseada nos estudos de (Adorno, Arendt, Baumann, Hilberg, Hirsch, Silveman, Knittel, etc.) que o nazismo foi um projeto minuciosamente arquitetado e consolidado em etapas, tendo suas repercussões desacreditadas e minimizadas por parte da elite alemã e pelo próprio povo, deixando, o que o alemão Theodor W. Adorno assegurou em Dialética Negativa, uma profunda cicatriz na humanidade sendo que muitas catarses sociais seriam necessárias para sua depuração. (Minha especialização é tecer um paralelo entre as obras de ficção pós-apocalípticas no imaginário dessa depuração assim como revelar sua evolução no cenário norte-americano, incluindo o surgimento da extrema nova direita na era Trump).
Do “The Beer Hall Putsch”–o golpe para destituir o Weimar que colocou o algoz Hitler na prisão–à “Solução Final” foram aproximadamente 18 anos. Enquanto isso, um verdadeiro trabalho calculado de eugenia era executado pelo alto comando nazista, contando com a colaboração dos policiais da SS, Gestapo, e infelizmente do povo alemão cujo dedo apontava para dedurar os marginalizados pelo regime. Sendo Bauman, Adorno e Arendt marxistas, seus olhares enfocaram os fatores sociais para tal regime se materializar. Bauman trouxe à baila o conceito definido por Marx de lupemproletariado—a camada social inconsciente da sua exploração, e, por conseguinte, iludida por forças reacionárias e contrarrevolucionárias. Ele o revelou em face à conjectura da liquidez das instituições, ameaçadas pelo outro projeto nefasto do Neoliberalismo, iniciado na década de 1980. Suas metáforas caem como preciosas luvas para se costurar o fio condutor entre o fantástico e a realidade, visto que Baumann constrói a alegoria do zumbi para ressignificar a condição do lupemproletariado na contemporaneidade. Condição esta deslindada por uma desumanidade (estado zumbi) e entremeada pela cegueira (da sua condição morto-vivo) da qual a sociedade sofre. Adorno atribuiu aos atos de Treblinka e Auschwitz uma ruptura com qualquer possibilidade de uma reformulação ontológica. Morrendo em 1969, deixou como um de seus legados ponderações em Aspectos do Extremismo da Nova Direita, o título dado a palestra que proferiu dois anos antes de sua morte na Universidade de Viena, recentemente reeditada com um posfácio por Volker Weiss em 2020. Tal visão era de Adorno que mostrou uma projeção de sua diversificada análise na Alemanha quase 50 anos após o nazismo e mais outros 50 pela frente que coincidiram com os fatos atuais. Arendt joga o holofote no julgamento do arquiteto da solução final, Adolpho Eichmann, preso pela inteligência israelense e sabatinado por um ano pelas autoridades competentes. No julgamento, Eichmann mostrou ser um tenente-coronel capacho, chocho sem a mínima noção da gravidade de seus atos. O engenheiro da máquina da morte se revelou pau-mandado, dessensibilizado das 6 milhões de vidas perdidas. Eichmann acabou por inspirar Arendt a cunhar a frase “a banalidade do mal” cujo significado se enseja na estupidez e na banalização da crueldade. Para se combater o nazi-fascismo é necessário preparo. É necessário ir a fundo na história e descortinar seus mecanismos de ação e seus modos operandi. É acreditar que se pode chegar a uma situação limítrofe em que milhares de vidas serão perdidas. É acreditar que nenhuma outra alternativa existe, por enquanto, para a produção dos estados-zumbi, ratificados pelo isolamento social, pelo narcisismo exacerbado e pelas lideranças lunáticas de mídia social que esquizofrenicamente inventam um sem-número de realidades paralelas para os enxotados da periferia, os marginalizados. Depois do Holocausto, não dá mais para minimizar a desumanização, não dá para mais para se consentir capitólios.
Mantidas todas as proporções históricas, temporais e geográficas, vemos certa similaridade entre a ¨banalidade do mal¨ descrita por Hannah Arendt, ao se referir a Adolph Eichmann, e o personagem Anderson Torres, ex-ministro da justiça de Bolsonaro, agora preso, que se presta acriticamente ao papel de protagonista central no planejamento/execução de tentativas de golpe de estado engendradas pelas Forças Armadas e seu preposto político Bolsonaro. Assim como em Eichmann, percebemos em Torres a subserviência aos desígnios dos mandantes, sem avaliação dos aspectos morais, éticos e históricos da missão recebida, agindo como um verdadeiro pau-mandado, sem noção das consequências de seus atos, tanto para a sociedade como para sua própria vida pessoal e profissional. Torres poderia facilmente ser visto como um personagem de um conto de ficção especulativa pós-apocalíptico, um zumbi acéfalo, capturado pela realidade paralela criada pelas fake news produzidas pela ultradireita internacional. (Lucia Ribas)