No meio de todo o transtorno que vivemos por força da pandemia de COVID-19, uma estranha linha de pensamento se avoluma nos meios sociais. Tal linha advoga que o debate sobre o COVID-19 está “politizado”, “partidarizado” ou “polarizado”. A questão é que há claramente um vício de entendimento do cenário, que leva a esta percepção (falsa) de polarização. Mais precisamente, uma ilusão, própria dos que tem um repertório restrito do entendimento da realidade e suas complexidades.
Vivemos em um mundo pós-iluminismo, construído sobre alicerces racionalistas, cartesianos, reforçados pelas colunas do estado moderno que desde a sua concepção luta para crescer e viver afastando-se progressivamente do despotismo, do autoritarismo e para aproximar-se de um cenário onde haja equilíbrio e liberdade para um debate permanente e continuamente auto aprimorado.
Assim, quando a defesa da ciência e seu ferramental, que foram desenvolvidos neste espírito há pouco descrito e que justamente existe e prepondera sobre o atávico desejo imperialista de apropriação da verdade e conhecimento, é encarada como posição partidária ou ideológica, temos um problema. Um grande problema.
Quem é capaz de tal formulação, é simetricamente incapaz de se aperceber do mundo onde vive, de seus sustentáculos filosóficos, éticos, políticos e sociais. Vivemos (ainda) sob a égide dos grandes contratos sociais expressos em constituições, legislação ordinária e eventuais discricionaríssimos autorizados pela representação democrática, todos eles construídos sobre a lógica e o racionalismo, que são plenamente incorporados à nossa linguagem (ao arrepio de Nietzsche) mas que literalmente galvanizam nossas relações sociais e políticas em todos os níveis.
Certamente o universo dos conhecimentos não alcançáveis pela metodologia científica é muito maior do que aquele das coisas que podemos dividir por partes examinando-as individualmente ou em pequenos arranjos. O conhecimento sobre o cérebro talvez seja o exemplo mais marcante à mão, no imediato. Mas moramos em edifícios concretos e abstratos construídos com essas substâncias igualmente concretas e abstratas.
Pretender classificar, portanto, a defesa do universo da ciência como divergência política ou partidária é esta sim, escancaradamente uma posição política “per se”, que só pode ser fruto de um autoritarismo vulgar e rasteiro, ou de profunda ignorância (real ou dissimulada), de um transtorno mental delirante, ou da combinação de tudo isso em ordens e proporções as mais variadas, e certamente associada a propósitos não alcançáveis no campo da legalidade, da ética e da civilização tal qual a conhecemos.
Se prosseguirmos na aceitação do argumento “partidário” aplicado a quem defende a ciência e todos os valores sobre os quais nossa civilização (ou o pedaço dela) estaremos sob o risco de perder nossa bússola. E sem ela, seremos em tempo próximo incapazes de saber onde viveremos. Ou, se viveremos. A ameaça às instituições nunca foi tão grave.