Rio ou não rio?

Rio ou não rio?

O Datafolha informa: cerca de 60% dos cariocas sairiam do Rio se pudessem. A maioria deles alega ter medo constante de crimes contra a vida e o patrimônio. Traduzindo: sentem-se ameaçados por sequestros, assaltos em casa e nas ruas, balas perdidas, assassinato. Já que estamos no período do Pessah judaico, em que se lembra o êxodo dos escravos hebreus do Egito, imagino o que seria uma revoada semelhante na população carioca. Um bloco de 4 milhões de pessoas, organizadas em alas compactas e conduzidas pela bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel, os espectros de Clovis Bornay e Wilza Carla como mestre-sala e porta-bandeira, animadas por estandartes mostrando Anitta nos decúbitos ventrais de praxe e as celulites poliglotas, todas procurando a porta de saída. Gente da Pavuna, Barra, Catumbi, Olaria, Tijuca, se cuidando para não tropeçar nos pedintes e moradores de rua, cair nos buracos espalhados por todo canto, ser atropelada por motoristas alucinados que ignoram sinais de trânsito, se assustar com sonhos de melhoria frustrados. Multidão digna de filme do Cecil B. de Mille. Ou do impagável Cecílio B. de Milho, criado pelo Oscarito no “Carnaval da Atlântida”.

Não faz muito, eu estava fora dessa estatística. Não havia hipótese de pensar em sair do Rio. Todas as minhas referências, geográficas, oníricas, visuais, sonoras e afetivas, estavam aqui. Eu precisava vê-las ou, pelo menos, senti-las próximas. Reconstruir laços fora do lugar onde nasci não me interessava. Com a persistente desfiguração da cidade, traduzida em formas diferentes de violência, espicho um olho curioso para fora das fronteiras cariocas. Haverá alhures onde eu possa encontrar paz de espírito, presente que, de gozação, sempre peço aos que me perguntam o que gostaria de ganhar no aniversário?

Pensando bem, sempre fui um turista na minha cidade. Conheço, mal e mal, franjas das zonas sul e norte. Antes da pandemia, planejava andar por subúrbios sobre os quais tomo conhecimento apenas pelas páginas policiais. Nada sei sobre Madureira, Osvaldo Cruz, Magalhães Bastos, Marechal Hermes, Bonsucesso, São Cristovão, e por aí vai. A alma carioca, se é que existe, também habita essas áreas. Suponho, idealizo?, que rodas de choro e samba, quintais antigos, vilas de casas, botecos não gourmetizados, lá estão, em reverência a um Rio que ainda não derrapou na modernidade gentrificada.

Dia desses, estive no Leblon. Para quem não mora aqui, esclareço. É o metro quadrado mais caro da cidade, quiçá da galáxia. Experiência perturbadora. Os tipos físicos que lá gorjeiam não têm equivalência fora daquele perímetro estreito. São a aristocracia, os do andar de cima, cereja do PIB. Ali convivem extremos. No lado de fora de uma sorveteria chique, crianças de olhos tristes, que jamais tomarão os cremes gelados, tentam arrumar um trocado. Músicos andrajosos pedem esmolas. Que raio de sociedade considera isso natural?

Estaremos nos transformando numa espécie de buraco negro, que engole livrarias e comércios tradicionais e regurgita drogarias, bares com sonoridades assassinas e agências bancárias? Em Copacabana, acaba de ser inaugurada a 122ª farmácia. Livrarias? Apenas uma, heroico e acanhado sebo no chamado Shopping dos Antiquários. Aqui, na zona sul, nasceu a Bossa Nova. Os dois últimos redutos dela, as lojas Bossa Nova & Cia. e a Toca do Vinícius, fecharam durante a pandemia. Quem quiser ouvir Carlinhos Lyra, Nara Leão, João Gilberto, Zimbo Trio, Alaíde Costa, vai ter que apelar para velhas coleções de vinis e CDs. Nos rádios, com raras exceções, só dá para ouvir lixo comercial.

Continuo querendo morar aqui. Gente querida coloca chumbo em minhas asas fugitivas. Tá difícil e me atormento com sentimentos contraditórios. Às vezes acho que toda a população carioca foi abduzida e substituída por descendentes de burgúndios e frisões. Sobrou um tantinho da paixão antiga, suficiente para concordar com Millôr Fernandes, que, numa crônica de 17 de dezembro de 1980, disse o seguinte: “Meu céu existe, embora esteja mais perto que o de Sua Santidade. É esse aí, privilegiado, do Brasil – mais comumente o de Ipanema. Azul-lavado hoje, quando escrevo, neste verão maravilhoso do Rio, o que, imundícies à parte, péssima administração à parte, violência à parte, me faz continuar amando minha cidade e, por extensão, seus habitantes”.

Abraço. E coragem.

Guarda la Luna, Mamma!

Guarda la Luna, Mamma!

Eu estava só, vivendo algum tempo na Provincia di Latina, porque estava cansado de tanto ver feijoada na minha frente, e o império dos esgotos determinar relações, e padronizar condutas. Estava cansado de delinquentes sacerdotais e estelionatários com gizes à mão. Afinal, durante tantos anos vivemos de rótulos e simulações religiosas, de anéis de formatura e cartões de apresentação com balanças douradas (ou doiradas), de engodo jurídico e de um sistema educacional e político que prima pela opressão de seus pares, pelo mercenarismo e pela manutenção do status quo.

E, neste caso, não importa muito se alguém chega ao governo ou à cátedra, montado a jegue ou em aviões, se conhece a língua dos botecos e churrascadas ou dos seminários universitários. Não importa que chegue aos postos de direção, aos púlpitos e ao governo, um louco avarento, um nazista, um antissemita ou um fanfarrão midiático! No final, vale ainda e sempre o poder do mais forte, a surra moral, as mentiras de Nicéia e Wittenberg – e o dinheiro na maleta!

Rótulos, apenas rótulos, lamentáveis rótulos! Há uma incessante e desastrosa busca por marcas, estereótipos e máscaras. Um indisfarçável amor pela mediocridade e idiotices pós-modernas. Nessa marcha, as pessoas vão perdendo o brilho, a grandeza, a direção e, pouco a pouco, por medo de enfrentarem os seus próprios abismos, atribuem ao outro o peso da culpa pelos males do mundo, e pelos infernos (todos quantos se possam criar pela superstição humana e desvarios religiosos).

Por isso mesmo, estamos vivendo em um tempo pesado, com pessoas doentes em todos os sentidos, carregando cavernas fantasmagóricas, com marcas artificiais de violência, de espantos e temores. Com pavor de se abrirem as janelas da casa porque lá fora habita a escuridão, o desfazimento do ser e os ruídos mórbidos.

Em que medida é visível o conjunto de tudo que se nos apresenta?

Pois, então, não poucas vezes, debilitados e corroídos pelos nossos próprios enganos e más ações, envenenamos um mundo que continua ali…

Lá fora não habita a escuridão, o desfazimento do ser e os ruídos mórbidos. Lá fora reinam o sol e seu fulgor, a leveza e a Poesia. Reinam a luz e as Forças da Creação. E uma voz que ecoa desde sempre, desde bereshit

… é muito bom

Dentro, bem dentro de cada um, também há sóis, luzes, calor e música. Há motivos para desfazer a nuvem, ou ver por intermédio dela, romper os obstáculos ou utilizá-los como referência, e prosseguir. Mesmo quando é noite, não é apenas noite, pois é possível ver estrelas, encontrar a lua…

Nesta noite, então, eu estava ali no mio paesino, e passei horas vendo o movimento dos muitos velhinhos solenemente sentados naqueles bancos que se dispõem na Via entre o Castello Baronale e a Chiesa di San Francesco, bem ali diante dos bares. E, passando, ouvi deles os reclamos da Grande Guerra, de suas vidas e de suas dores. Um deles, o mais convicto, disse ao outro:

La guerra è la guerra della coca-cola...

E, em seguida, levou seu caffé macchiato à boca, com os olhos em algum lugar, e marejados… Bem próximo dali, havia uma menina de três ou quatro anos, brincando nas escadas da Chiesa di San Francesco. E eu olhava o Castello Baronale, à distância, e pensando nas mãos que o ergueram, e na Guerra vã dos velhinhos, quando, de repente, la ragazzina gritou para sua mamma:

Mamma, guarda, la Luna!!!

E, olhei para seus olhos sorridentes, sentindo o peso das pedras que sustentam aquele Castello saírem dos meus olhos e voltei-me para a lua. Sim, lá estava ela, crescendo, aparecendo, iluminando, por entre os adornos das construções antigas… A lua, iluminada-iluminando!

Afinal, nem tudo é pedra, história e pensamento – nem tudo é política de escarro nem ignorância certificada ou fumaça religiosa! Alguma coisa é o grito de uma criança encantada com a lua! Aquela criança encheu meus olhos de alegria, de tal alegria (indizível) e a olhei, como quem olha D-us: olhar de ternura, de agradecimento, de afeto e de redescoberta!

Porque a lua estará sempre ali, renovando os tempos, “as tardes e as manhãs” de todos os dias. Nem o Castello nem a Chiesa e nem meu Quartiere Ebraico; nem a Guerra dos velhinhos, nem salas de aula infectadas de covardia e estupidez, nem governos de jegue ou políticas de sex shop (viva o Serjão!) – nada, absolutamente nada, foi capaz de desfazer a lua.

Mas, para alcançar e compreender isto, é preciso ouvir as vozes das crianças, porque trazem o segredo dos mundos, a substância da vida e a Poesia plena!

Foi assim, como aquela criança nas escadas, que os homens, um dia, olharam para o alto e começaram uma busca que os levou a terras distantes, vencendo medos e mitos, vencendo ursos nas esquinas e a ferocidade dos répteis (não eram esses idiotas de hoje!)

Mamma, guarda la luna, guarda, mamma!

É como dizer para o ventre que nos forma e para os lombos que nos trazem, talvez até para os fantasmas e marcas que nós mesmos gravamos em nós, impiedosamente, com a mesma voz daquela ragazzina, pulando em nossos degraus, ridicularizando preceitos medievais e principescos – e vencendo nossas escadas, e nossas inúteis guerras:

la luna, guarda!

Entrei, depois, na Piccola Caffetteria, um bar que fica entre o Castello e esta Chiesa di San Francesco, onde estive anos antes com meu filho. Precisava de um caffé macchiato, precisava de uma Via movimentada e precisava de uma cadeira. Fui atendido, então, por dois funcionários: 

prego, un tramezzino ma non di maiale e caffè macchiato

prego, può mangiare, è buono! Disse o primeiro.

– Non, lascia stà, lui è ebreo e non mangia maiale come io – Replicou o segundo, um jovem muçulmano.

E, olhando-me, sorriu com a mesma satisfação do encontro Esav-Ya’akov, que só é possível em terras como a Itália, aliás, como o sul da Itália, em Napoli especialmente. E, com o mesmo ininterrupto sorriso, preparou-me um delicioso suco di arancia e un tramezzino senza maiale!

Naquele momento, eu não estava de kippah nem ele com sua cobertura islâmica. E, sentimos, apenas com a troca de nossos sorrisos e ternos olhares, que nossos mundos não estavam tão distantes assim – a distância normalmente é forjada a golpes de radicalismos!

Naquela noite (para mim, pois para as pessoas que amo, na América, era apenas a metade do dia) eu ri de mim e para mim mesmo. Bem, naquela noite, eu comprei um pacific aromatic e um vino rosso em tetrapak  para, simplesmente, descobrir que a noite não é para todos no mesmo momento e, portanto, aquela criança encantada não é para todos, no mesmo momento… A lua não é para todos!

        Io guardo una piccola principessina, di dorati capelli,

profumata e bianca pelle:

                        una principessina tenra e delicata, como botão de flor se abrindo,

rindo abertamente por todos os cantos,

 como se nada pudesse importar, somente ela.

ah, eu te vejo, figlioleta mia,

eu te vejo desde longe, de onde venho, sem saber a razão

e tenho pouco para te dar: cioccolatini e molta caramella!

e asas para te cobrir, e mãos para te abençoar. Repousa, principessina,

e aquece os seios da mulher amada,

enquanto te seguro para não caíres

e te cubro com o manto de um afeto que de outras plagas trago.

Pois, depende dos movimentos que fazemos, depende da nossa vontade-ação, buscando, criando, reagindo e avançando os olhos para a lua. Porque a lua não tem história de sangue nem de amor. Não há lágrimas na lua nem sorrisos. A lua é a lua sempre!  E os nossos castelos trazem, ainda, o som, surdo, das vozes do tempo, dos monstros, das doenças de que fomos acometidos e dos males nos esgotos que aceitamos, complacentes, pelos quais, fomos lançados sob pedras – pesadas pedras.

Va bene, amanhã vou a Capri, bem cedo, ver o sol de Napoli emprestado a Capri, e a sua beleza e movimentação. Enquanto vejo o sol de Napoli sobre Capri, as pessoas que amo, na América, estarão no meio de suas noites…

La luna, mamma, guarda la luna!

 

 © Pietro Nardella-Dellova

(A MORTE DO POETA NOS PENHASCOS E OUTROS MONÓLOGOS. São Paulo: Editora Scortecci, 2009, pp 168 e segs.)

Samba Perdido – Capítulo 34

Capítulo 34

“E no final das contas,
O amor que você leva
É igual ao amor que você faz.”

Beatles
Alguns amigos da antiga turma de malucos do Colégio Andrews foram acampar em Lumiar. Tal como Visconde de Mauá o  vilarejo – celebrado numa música famosa do Beto Guedes – era famoso por sua paisagem rural paradisíaca, parecida com a Européia. O pessoal que ia lá era igual, hippies light; urbanóides a fim de curtir uma paz rodeados de gente parecida e leegal. Na manhã de irem embora, resolveram se despedir do lugar dando uma nadada em uma represa antes de pegar estrada. Na chapação saideira um dos caras, Luis Fernando, viu um pequeno redemoinho que parecia lhe estar desafiando a um mergulho para experimentar ser atirado de um lado para o outro. Ele subestimou o poder de sucção da água, foi puxado pelo tubo de canalização e morreu afogado.
Nosso amigo tinha 20 anos e pertencia a uma família de diplomatas: um expoente do “Novo Brasil” no qual a gente cresceu. Ele partiu desse mundo seduzido pela quase invisível, porém imensa, força da água sendo contida por um mecanismo naquele lago artificial. Esta tragedia trazia uma alegoria à nossa saida da placenta da vida encantada da Zona Sul do Rio fomentada e protegida pelo defunto regime militar. Para nós sua morte seria o selo que encerraria uma época, ou nosso nascimento para o mundo real. Depois daquilo, cada um seguiu seu próprio caminho e o espírito que compartilhávamos nunca mais retornou. Tempos, turmas, anos dourados, todos também morrem. O corpo dele só seria resgatado depois que seus pais influentes “convenceram” as autoridades a explodir com dinamite o concreto que tinha aprisionado seu filho.
*
Minha saida daquele fim de festa foi assim: num sábado à noite quando estava de saída, o telefone tocou. Era Renée ligando de Teresópolis dizendo aflita que Rafael tinha passado mal com dores no peito e que tinha sido levado para um hospital no centro da cidade. A situação era séria e ela precisava de mim ali pois teríamos que nos revezar dormindo no seu quarto no hospital. Sarah, embrulhada num relacionamento complicado, só que agora casada, não estava falando com a família e não participou da comoção.
Quando cheguei no hospital  deparei com meu pai em um estado de confusão, cheio de tubos por todos os lados. Ele parecia envergonhado pela inconveniência que estava causando e por estar tão mal. Aquela noite era a segunda noite e era a vez de minha mãe ficar com ele. Após bater um papo com eles e dar boa noite dirigi sozinho para a sítio. Fazia séculos que não ia lá e voltar sob aquelas circunstâncias tão incertas, acendendo sozinho as luzes naquela casa no meio do nada foi muito estranho.
Na noite seguinte, era minha vez de ficar no hospital. Rafael já estava começando a perder a lucidez. Tinha delírios, acreditando que estava no barco usado para escapar dos nazistas a tantos anos atrás, perdido no Mar do Norte, quase morrendo de fome e de sede. De início, não percebeu que estava no quarto, mas após algum tempo retomou os sentidos, se acalmou, a gente conversou um pouco e trocamos um boa noite.
Fui acordado de madrugada pelos médicos apressados me pedindo para sair do quarto. Ainda meio dormindo obedeci sem entender bem o que estava acontecendo e sem saber se estava fazendo a coisa certa. Conforme os minutos foram passando e o resto da equipe medica foi entrando apressada no quarto tive a certeza de que algo grave tinha acontecido. Depois de uns cinco minuto mais ou menos, o olhar sério e frio do médico pálido e gorducho seu  disse tudo quando saiu para falar comingo. Não esperei para que tentasse transformar aquela expressão em palavras. Abri caminho para encontrar os olhos azuis de meu pai ainda abertos, mas sem vida.
Aquela visão me atingiu como uma flecha no meio da cabeça. Minha reação foi sair novamente, sentar no chão do corredor e chorar. Nosso relacionamento tinha acabado antes de sequer começar. Amava meu pai e tinha um respeito infinito por ele.  Tenho certeza de que o sentimento era recíproco, mas nós nunca conseguimos expressar aqueles sentimentos. Agora ele estava ali no leito, rígido e impenetravel como uma esfíge sem respostas, sem história e sem vida.
Rafael tinha vindo de um vilarejo judeu no interior da Polônia e o destino o tinha levado para o distante Brasil. Em vez de curar as dores do passado, perto do fim o paraíso tropical antropofagico acabou se alimentando de seus sonhos e transformando seu mundo em algo irreconhecível. O Brasil tinh dao vida a um filho igualmente enigmatico para ele. Na volta para o sitio, me senti tão impotente e distante como ele estivera de seu próprio pai quando foi morto em Auschwitz. Mesmo assim, era sua continuidade na busca por um lugar são no meio da insanidade deste mundo.

Samba Perdido – Capítulo 31 – parte 01

Capítulo 31

 

“A gente somos inútil.”
Inútil - Ultraje a Rigor

 

Voltei para casa exausto. Dois dias depois, quando me recuperei, ao invés de estar contente por ter vivido uma viagem épica e de poder me deleitar novamente nos confortos que sempre tinha considerado como dados, a sensação foi de estranhamento. Ter uma empregada para arrumar minhas coisas, um quarto só para mim e comida sempre à disposição sem que precisasse trabalhar para nada daquilo parecia errado. Apesar da mordomia, me sentia como um animal enjaulado numa existência protegida que agora parecia limitada e limitante. 

O clima estava péssimo. Renée e Rafael, ansiosos e um tanto decepcionados comigo, achavam que minhas aventuras tinham ido longe demais. estava perdendo um tempo precioso; precisava tomar um rumo na vida, fazer sentido, mudar de visual e de atitude. Para um casal já idoso e com o passado complicado deles, ver o filho largado daquela maneira era difícil . O método paterno de mostrar descontentamento foi o de sempre; passar semanas sem me dirigir uma palavra, uma postura passivo-agressiva à qual já tinha me acostumado. Do lado da materno, muita gritaria e ofensas. 

A liberdade que vivi no Nordeste era incompatível com aquela realidade. Não era só em casa; na faculdade e nos outros círculos era como se todos tivessem voltado para a sala de aula menos eu. Nada me interessava e passei a achar tudo e todos insuportáveis. Me sentia como Ícaro, caído dos céus por ter voado alto demais, ou Gulliver, imobilizado por liliputianos por não caber em seu mundinho. 

Lá fora a situação também estava pesada. Por conta da crise econômica, o instinto de gado era rei e todos estavam mais caretas do que nunca. Para manter minha identidade e meus princípios vivos, tinha que nadar contra uma corrente de medo e de conformismo. Visto de fora, parecia que havia perdido o contato com o que se considerava a realidade do dia a dia; um cidadão de segunda classe a ser evitado.

Foi difícil voltar às aulas. O curso estava se aprofundando em teorias micro e macroeconômicas, cálculo e outras matérias exigentes. Completamente fora de sintonia, não tinha nem a concentração nem a vontade para continuar. A necessidade de digerir o que estava acontecendo, meu sonho antigo de ser diretor de cinema, a descoberta da música, a falta de pessoas com quem me identificasse, a distância da minha família e dos amigos, a falta de um relacionamento amoroso para ajudar a amenizar o caos; tudo era difícil. 

Precisava de tempo e espaço para refocar. Pedi a meus pais para que me deixassem passar um ano trabalhando em um kibutz, um tipo de comunidade agrícola anarquista em Israel, mas a resposta foi um sonoro não. Para eles, o tempo de diversão e divagações tinha se esgotado. Agora era hora de virar homem e trabalhar duro para construir um futuro. É claro que os argumentos faziam sentido mas não encontrava nem forças, nem razão para pairar acima daquele mar de confusão e capitular.

Para complicar as coisas, um dia Rafael, já nos seus 80 anos, passou mal ao sair para almoçar no escritório, desmaiou no elevador e seus funcionários, assustados, o levaram depressa a um hospital. Quando fomos vê-lo no CTI, os médicos disseram que seu coração estava fraco. Ainda que em retrospecto isso fosse previsível dado ao stress que estava passando, o episódia e a notícia pegaram a família de surpresa. 

Meu velho estava enfrentando o caos econômico aos trancos e barrancos. Continuava com suas andadas solitárias de madrugada na praia de Ipanema durante a semana e nos fins de semana repousava na tranquilidade de Teresópolis. Isso, e uma dieta saudável o tinham levado a uma idade avançada com saúde e lucidez, mas estava difícil. O paraíso tropical onde havia desembarcado trinta anos atrás estava irreconhecível. Após tantas conquistas, o Brasil parecia agora estar reclamando tudo que lhe havia dado. Com uma inflação mensal beirando os trinta por cento ao mês e uma estagnação econômica devorando o país, tudo parecia de cabeça para baixo. 

Como tantos outros, o negócio dele estava em dificuldades. Do seu ponto de vista, a família estava em frangalhos; eu tinha enlouquecido e, apesar da Sarah – ainda a sua grande esperança – estar indo bem em sua carreira de dentista, tinha entrado em um relacionamento tóxico e não estava falando com nenhum de nós. O sítio em Teresópolis, que deveria ser o lugar onde aproveitaria sua aposentadoria, tinha se tornado um problema de manutenção sem fim, um ralo financeiro e mais uma pedra no seu sapato.

Apesar das recomendações do médico, meu velho não se permitia descansar. Se parasse de trabalhar o estilo de vida da família desapareceria. Viciados que estávamos no seu esforço, a gente achava ele estaria ali para sempre provendo o nosso sustento e nao davamos valor ao seu martírio. Quanto a mim, estava absorvido demais comigo mesmo para oferecer qualquer tipo de ajuda e, de qualquer forma, ele descartava de cara qualquer sugestão que eu desse – como a de vender o negócio e a casa para que pudesse aproveitar seus últimos anos em paz.

Embora pensasse muito a respeito, sair de casa e mandar tudo para “aquele lugar” não era uma opção. Naquele tempo, jovens de classe média no Brasil só saíam de casa quando achavam um bom trabalho ou quando se casavam. Na Zona Sul carioca, ninguém jamais consideraria dividir um apartamento com amigos ou alugar um quarto na casa de estranhos. Mesmo se tivesse resolvido, pesquisando os classificados nos jornais descobri que os poucos empregos disponíveis para gente sem qualificação e sem experiência pagavam menos que a minha mesada. 

A tensão em casa foi escalando até chegar a um patamar insano. Quando ficou insuportável, conseguimos chegar a um acordo. Eu abandonaria meu curso de Economia para seguir meu plano original de estudar cinema. Para mim, essa escolha me colocaria minimamente de volta nos trilhos, para eles a opção era melhor do que eu largar tudo e ficar em casa de vagabundagem. O plano era tentar uma vaga em uma faculdade de cinema em São Paulo.

*

Alheia aos dramas familiares, meus e os de muitos outros, a intensidade da vida no Rio seguiu em frente. havia novidades e a estrela da hora era o grupo de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone. De várias maneiras, eram o que a nova geração estava precisando: uma voz própria. Sua inovação é que eram “gente como a gente”, meninos e meninas de classe média aprendendo a viver e a lidar com as dificuldades dentro e fora de casa. Diferente do que rolou em gerações passadas e o que ainda rolava nas universidades, eram totalmente apolíticos. 

Esse grupo era icônico para as mudanças que estavam acontecendo na cena cultural carioca e, consequentemente, na de todo o Brasil. Influenciados por Monty Python e pela contracultura em geral, o Asdrúbal era uma versão mais inteligente, inclusiva e bem humorada dos surfistas e dos roqueiros. A trupe, em sua maioria era formada por atores e diretores amadores da Zona Sul carioca, se lançou com a peça “Trate-me Leão”. Por sua postura atrevida e engraçada, tocando em assuntos fáceis de se identificar, a peça foi um tremendo sucesso e viajou pelo Brasil afora.

O Asdrubal entrou – ou melhor, não entrou – na minha vida da seguinte maneira:

Estava em casa já de calção preparando para ir ao Nove num glorioso sábado de praia. Meus pais tinham ido para Teresópolis e estava batendo papo com Dona Isabel na cozinha almoçando o meu habitual bife acebolado com arroz e feijão. A televisão estava ligada e, de relance, vi alguns dos atores do já famoso Asdrúbal dando uma entrevista. No final, anunciaram que estavam oferecendo aulas de teatro grátis e pedindo a todos que  participassem.

Aquilo chamou minha atenção e fiquei tentado. Enquanto fui andando descalço para a praia fiquei pesando os prós e os contras de participar do curso ou não. Aquilo poderia ser uma oportunidade para conhecer gente parecida comigo e, quem sabe, uma chance para me aproximar do objetivo de fazer cinema. Porém, no fim das contas, meu instinto de rato de praia falou mais alto, dizendo que aquilo era coisa de usuário de fio dental e de caretinha tirador de onda do tipo que queria evitar. Além do mais não dava para ator, com e sem trocadilho.

Aquele homofobismo juvenil foi um dos maiores erros da minha vida. Muitos dos maiores atores e roqueiros cariocas da minha geração, como a banda Blitz, o cantor Cazuza, comediantes como Luís Fernando Guimarães, a atriz e apresentadora Regina Casé, entre outros, surgiram daquele curso ou eram os professores lá.

A resposta foi forte e com tantos alunos inscritos separaram a galera em grupos. Bruno, um amigo meu, entrou para um deles. Ainda que não fosse um ator nato, tinha uma câmera de vídeo e talento para filmar e editar. Para o Asdrúbal, os dois atributos foram um presente dos deuses e começaram a lhe pedir que filmasse as peças e outros eventos. O Asdrúbal cresceu e o Bruno cresceu junto. Uma década mais tarde, Bruno tinha ganho vários prêmios como melhor diretor de vídeo musical na MTV Brasil e é hoje um dos maiores produtores do país.

*

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Cárcere

Fui preso em um sábado de outubro, era tarde, quase noite.

Os primeiros cinco dias, fui mantido em uma solitária, cela sem janelas, não se via nada. Mesmo agarrado aos tubulões da grade, uma  porta,  o mundo lá fora era escuro.

O espaço era  espremido, havia  um colchão, solitário, no canto  direito.

Cheiro de rato. Mantive minhas mãos  sobre as grades,  grudadas.   Dormi um tanto, eu acho, em pé, com fome e cansado.

Ouvi gritos, fortes. Tortura! um preso, talvez em cela próxima. Vou ser o próximo

Tortura, tortura e morte! Durante todos os dias da minha prisão, fui tomado por essa ideia, de ser torturado até a morte.  Seria torturado, fortemente torturado  e depois,  morto. Ou morreria  nas sessões  de tortura.

Havia poucos exemplos assim, dos relatos das prisões da ditadura. Todos,  no dia da prisão, quase todos, eram bastante  torturados,   apenas o começo da história.

Ouvi passos, entre quase saudar a volta á vida e alimentar o medo.

Pouco antes, imerso no longo tempo da noite, longa noite,  fechei os olhos  e tentei recompor as horas da manhã do sábado, acho que ainda era a mesma jornada.

Eu estava no Centro Técnico  da Aeronáutica, Vale do Paraíba.  Lembro da aula de computação, ás nove, a  de sempre, umas duas ou três horas  depois de um café.

Imaginei o mundo mais longe, minha mãe, sempre tão terna, falava baixo.  Desejei que ela não soubesse .

Rodando o filme,  tela da memória;  as três irmãs, cada uma na sua foto,  bonitas, alinhadas, como a  mãe dizia. Vi a namorada, linda, carinhosa. Saudade e tristeza. Depois, parentes e amigos, o povo dos meus caminhos.

 Tanta gente, nesse mundo. Nunca mais vou ver ninguém

 Lembrei da Celinha que sempre me dizia, o tom da advertência: cuidado, não se deixe ser preso. Se te pegarem, vão esmagar teus bagos, com alicate.

A porta se abriu, lenta. Dois homens   se postavam na soleira.  De repente, estava caminhando no meio dos dois

Longos corredores escuros,  que leva à tortura e depois à morte.  Por fim, a luz, um pouco de claridade.   Consegui entender o significado da dupla.

O que ia atrás, estava fardado, soldado  da aeronáutica, segurava uma arma, parecia pronto para atirar e era o mandado.  O outro, o da  frente, ao contrário da ordem convencional, era o que mandava, até ali.  Descobri, muito tempo depois que era sargento, sargento Martins.

Final de todos os corredores. Uma porta, aqui chego ao fim do meu destino, minha passagem;

Sargento bateu, pediu licença e entrou.

Sentado em uma cadeira, quase poltrona e com mesa de escritório, imaginei meu algoz, um  Major. Deste,  nunca soube o nome.

Disse que eu eu sentasse. Sobre a mesa um sanduiche, meio desembrulhado, ainda com os aromas de coisa nova

Eu estava com muita fome. Fome, cansaço e medo.

Ele me ofereceu. Fome? Pode pegar;

Responde que não, segurando angustia.

Obrigado, eu estou sem fome.

Foi meu primeiro ato de resistência, em  tantos que precisei ter nos muitos dias  da prisão e depois, na minha vida lá fora.

 

Nunca se esqueça

Uma luz pareceu brotar da penumbra, no fundo do quarto. Reconheci o meu irmão. Eu estava na parte clara da casa, uma pequena sala. Ele estampava um olhar radiante e sorria para mim. De repente, vi que a luz saia do seu rosto, que estava lindo, corado e tão bem delineado que parecia uma imagem saída de uma pintura. Pensei que ele veio para me redimir, aplacar minha culpa, porque não havia nenhum sinal, nenhuma cicatriz, na sua face, marca daquele passado triste e miserável.
Mas logo ele alcançou a parte clara da casa e o rosto foi se transformando e revelando o profundo talho, que começava rente ao olho direito e escorria torto até o queixo ; lembrança da madrugada terrível, que eu nunca poderia esquecer.
Acordei assustada! Não havia ninguém no quarto. Por uns minutos chamei por ele , mas a casa estava silenciosa e vazia. Eu sabia, a cena era sempre a mesma. O sonho se desfaz e trás de volta o filme de uma infância distante que me atormenta e que me acompanha sempre, todos os dias da minha vida! Rápido, liguei para a casa dele! Como sempre fazia “Fique tranquila” , ele me disse “fique sempre com Deus! está tudo bem e assim vai continuar. Está tudo bem!” “E nunca se esqueça, minha irmãzinha, eu gosto muito de você!”
Da janela do carro eu ouvia o burburinho alegre daquela cidade clara e encantadora, distante em tudo da pequena Maribela da minha infância . O sol iluminava as flores dos jardins, era um bonito dia do início da primavera a caminho do hospital eu pensava a minha agenda, as consultas, uma pequena cirurgia, um pouco da rotina de sempre. “Vai ser um dia bom”, pensei, mirando sonolenta, a claridade daquela linda manhã.
Eu gostava de cuidar das pessoas, da saúde e da alma, como minha mãe sempre me desejou, e eram muitas, e eram pobres e quase sempre preferiam falar seus medos e suas esperanças, pelos língua eloquente dos olhos. Dentro do carro parado, me dei conta dos quinze minutos de cochilo que o relógio me doava.
Fechei os olhos e projetei as horas doces do fim da tarde e por fim a noite tranquila e até divertida, ao lado do meu homem, “aquele que cicatriza minhas feridas e me faz gostar da vida e do prazer de amar”, eu me repeti, gostosamente ! E me regozijava, imaginando a gente se abraçando, passeando pelas ruas, olhando as vitrines e as pessoas e, por fim, indo para a minha casa, que era onde curtíamos as nossas mais ternas cumplicidades.
“Maribela nunca mais”, eu pensei, quase gritando, abafando as imagens do terror com aquelas confortáveis lembranças de agora. Mas o filme de imagens tristes e de miséria, continua vivo na minha mente e me machuca forte, uma ferida de porta escancarada.
 MARIBELA, INFÂNCIA
Era uma casa de chão batido, e o teto era de sapé, Minha irmã, com nove anos, eu com oito e o irmão, que tinha completado seis , éramos as únicas pessoas dentro do casebre, fazia três semanas! Foram dias de muita fome e desolação. Chegamos a passar dois dias inteiros sem comer.
No terceiro dia apelamos para o vizinho.
Era um homem que nos assustava, rude, calado, bravo. Ganhamos, cada um, uma caneca de café com um pedaço de pão. A Generosidade veio com uma cobrança; tínhamos que preparar as paredes da sua latrina, com bambu cortado do fundo do terreno, que era para a que ele pudesse usar sua fossa onde fazia as necessidades, – defecava e urinava, escondido do olhar do mundo.
Meu irmão, nos seus seis curtos anos, já tinha feito aquele serviço algumas vezes. A primeira , ele sempre lembrava, mas não por palavras, era porque a lágrima sempre vinha e a raiva fazia ele cerrar os punhos. Nossa vó. mãe da mãe, obrigou que ele cortasse os bambus e construísse a latrina, a privada, e como não gostou do serviço , exigiu que ele derrubasse tudo e fizesse uma nova. Suas mãos sangravam  e ela, brava com o choro, aplicou-lhe uma surra. Depois, pediu que ele lavasse as mãos, colocou uma folha arrancada do mato que ela dizia que era para fechar as feridas e enrolou cada uma das suas mãos em panos sujos, que disse que era para estancar o sangue.
Rápido, os outros vizinhos se deram conta de que podiam usar nossas habilidades para também construírem as paredes das suas privadas. Assim, por muitos dias conseguimos garantir nosso café acompanhado do pão, para aplacar a fome, que doía fundo Era o único recurso que os moradores tinham na época, para terem uma privada, uma fossa e mais as paredes de bambu; e para nós, passou a ser a garantia daquela ração da manhã, café e pão, saudada pelos nossos raquíticos corpos.
 A gente pensava na mãe, com muita saudade, chorava de lembrar dela “Ela foi atrás do macho”, dizia o vizinho bravo , explicando que esse macho era oque ela chamava de namorado e que até andou passeando com ela pelas ruas da nossa vila. Um dia até nos levou junto.
“A mãe disse que foi procurar ajuda, comida e emprego em uma cidade grande”, Minha irmâ ficou brava com os comentários do velho . Ela se percebia como a nova dona da casa, meio mãe meio irmã “Lá ela tem muito amigo de verdade”, ela disse, “e até gente da nossa família”. olhando para o homem, severa e zangada, cuidando da imagem da mãe de quem ela gostava muito E todo dia a gente sonhava com ela, a nossa mãe que tinha ido embora, e sonhava que ela ia aparecer com sacolas cheias de comida e até, quem sabe , doces e balas, e que ia nos abraçar muito e que ia por a gente eu seu colo, passar a mão em nossos cabelos, alisar carinhosamente nossos rostos, como às vezes lembrava de fazer; eram momentos em que a gente esquecia a vida miserável e se deixava embalar por esses afagos, que nos faziam sonhar e dormir.
A mãe garantiu que voltava logo, mas os dias passavam, formavam semanas e a gente continuava sozinho. Todo fim de tarde meu irmão ficava na frente do casebre, mirando o por do sol quase com febre de imaginar que ela ia apontar lá longe.
Para cortar e recolher os bambus , nós tínhamos que atravessar um pequeno córrego que passava no fundo das casas . Era um mutirão de trabalho árduo. Meu irmão, que mal se avistava, corpo franzino no meio do bambuzal , cortava um a um, e passava para a minha irmã, que ficava com o corpo no meio do córrego, com a roupa molhada e com os pés mergulhados na lama Depois ela passava pra mim,: “Segura logo” ela falava sofrido, meio que chorando do desconforto da roupa molhada e dos pés mergulhados na lama.  Eu catava os bambus cortados e começava a raspar e a preparar, depois ia juntando em feixes .No final do serviço, a fome voltava a bater forte e o estômago reclamava barulhento. Restava dormir logo e sonhar com a manhã do outro dia! Ah! O dia começava sempre, e já fazia muitos dias, com a caneca de café e com um pedaço de pão! As canecas eram todas iguais, de latão, amassadas, velhas e sem asas , feitas pelos homens das casas da vila, que sempre tinham uma pequena oficina no fundo daqueles casebres.
Dois dias de muita chuva, em que não aparecia ninguém para pedir o nosso serviço. Voltamos ao estado da fome que só não foi completo porque a vó resolveu praticar uma bondade –foi isso que ela disse- e nos deu a ração da manhã, de todos os dias, que também servia de almoço e janta, a caneca de café e o pão.
Preocupados porque ninguém batia em nossa porta, saímos para buscar trabalho e comida, e demos conta de que ninguém precisava mais da gente. Todas as casas da vila já tinham suas fossas com as paredes de bambu. Passamos a pedir outros serviços: limpar a casa , cortar o mato, carregar tijolo.
As pessoas começaram a olhar feio. De repente, pedimos que nos dessem alguma comida. Elas se irritaram e passaram a nos xingar e até ameaçar bater, empulhando vassouras. Foi então que voltamos pra casa chorando, de fome, de raiva e de muita tristeza! “Cadê a mãe?” Perguntou o irmão, meu irmãozinho de seis anos, com um olhar molhado. “Eu quero a mãe” ele dizia chorando e apertando o próprio rosto. “Ela abandonou a gente” disse a minha irmã, com ar de muita raiva e sem olhar para ele De repente, ele pareceu indiferente e resignado. Deitou-se no colchão de palha estendido no chão, espaço que a gente dividia para dormir, folear revistas velhas e até para comer , quando havia o que. Ele fechou os olhos, encostou a barriga na parede e pareceu dormir. Nós duas também deitamos
A noite passava e eu, de olhos fechados, não consegui dormir! Percebi que um dos dois se movimentava forte: Com um dos olhos meio aberto, notei que o irmão se apoiava na parede e tentava se levantar, com muito cuidado, para que a gente não acordasse.
Seu corpinho era assustadoramente magro e, por uns poucos segundos, eu fiquei como muita pena, pensando o duro trabalho que tantas vezes ele fazia em seu seis anos de vida. A pena foi trocada pela curiosidade e a fome me bateu forte: vi que ele se levantou e caminhou, com muito cuidado, na direção do armário velho, o único que tinha na casa para guardar comida.
Puxou uma cadeira, subiu em seu assento e tratou de alcançar uma lata posta sobre o armário, que minha mãe usava para guardar farinha.  Lembrei do medo que ele tinha de apanhar da minha irmã e também de mim, por nos desobedecer. E mais uma vez, o sentimento de pena foi esquecido. Escondida e silenciosa vi ele abrir a lata e retirar de lá, dois pedaços de pão, duros e envelhecidos.
 Avancei sobre a cadeira e fiz ele descer, muito assustado. Retirei um pão de dentro da boca dele e outro da mão. A fome fez ele esquecer o medo; reagiu, tentando tomar de volta! Surpresa com a reação, eu cravei minha unha no rosto dele, muito forte e fiz minha mão descer sobre seu rosto. O sangue correu forte sobre o rosto e depois alcançou o pescoço Minha irmã apareceu na nossa frente e, vendo o sangue começou a chorar, desesperada!
Dois pedações de pão, resto, única coisa que minha mãe tinha deixado e uma profunda cicatriz no rosto daquele menininho, meu irmão de seis anos! Madrugada para não esquecer . E se quisesse, não ia dar, que a porta do coração ficou aberta . escancarada, impossível de ser fechada. E doía, sempre. Era a minha cicatriz: a culpa que se misturava com as dores daqueles anos, tristes memorias da nossa infância, em Maribella!
Acordo assustada, os braços espalhados sobre o banco do carro. Ao meu lado, encostado à porta do veículo, o vigia do estacionamento, meio sorridente, meio sem jeito de ter me acordado: “Doutora, a senhora me desculpe, ouvi seu grito e percebi que estava dormindo, acho que teve um pesadelo! Abri a porta, agradeci e caminhei para a recepção do Hospital
Pronto, eu estava de volta para a parte confortável da minha vida O celular tocou, era o meu irmão, que morava com sua esposa a bons quilômetros da minha cidade
 “ Um sentimento forte, que bateu agora, me fez te ligar!”, ele disse.
 E repetiu a sua santa terapia de sempre, que me recompunha por algumas boas horas “Fique tranquila” , fique sempre com Deus” “está tudo bem e assim vai continuar. Está tudo bem! “E nunca se esqueça, que eu gosto muito de você!”