Um ano depois, a guerra entrou num labirinto

Um ano depois, a guerra entrou num labirinto

“A Rússia é uma charada embrulhada num mistério”

Ao comemorar um ano, a guerra da Rússia contra a Ucrânia não avançou um milímetro rumo à paz. Não se vislumbra neste momento, apesar da resolução da ONU (votada pelo Brasil) exigindo a retirada das tropas invasoras e a favor de uma paz justa, nenhuma possibilidade de negociação, nem sequer de diálogo. Ao contrário, depois de mais de 300 mil mortos, nos próximos meses o risco é a multiplicação do número de vítimas. Moscou prepara a grande ofensiva da primavera, que, segundo Zelenski, já teria começado. O ocidente acelera o fornecimento de armas à Kiev e se prepara para um conflito duradouro.

Putin, escrevia o Financial Times, “só ouve Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande, e Catarina, a Grande. Para ele e para os seus émulos, a captura da Ucrânia é um desígnio da Santa Rússia reclamado pela História grandiosa dos seus heróis. No discurso sobre o estado da nação, esta semana, o déspota do Kremlin referiu-se à guerra como uma ameaça do Ocidente à existência da Rússia, repetindo o que vários Romanov, Lenine ou Staline disseram”.

“Muito claramente, a hora não é de diálogo”, anunciou o presidente francês, Emmanuel Macron, na Conferência de Segurança de Munique, onde aproveitou para fazer o seu mea culpa por ter acreditado na palavra de Vladimir Putin.

“Há um ano falei com Putin e ele assegurou-me que o grupo de mercenários Wagner não tinha nada a ver com ele – que era apenas um projeto empresarial. Acreditei nisso. Hoje vemos que o grupo Wagner está envolvido na guerra russa contra a Ucrânia. Tornou-se numa nova ferramenta mafiosa para criar crimes e injustiça”.

Para quem não sabe, Wagner é uma organização paramilitar de origem russa, que se apresenta como uma espécie de empresa militar privada, uma rede semioficial de mercenários ligada ao governo russo, que atua em várias regiões do mundo, sobretudo no Donbass, leste daUcrânia, Síria e África. Muitos o descrevem como sendo um grupo de fachada do Departamento Central de Inteligência (GRU) das Forças Armadas Russas, utilizado como braço de apoio em conflitos onde a Rússia está engajada. O grupo recebe equipamento e usa instalações das Forças Armadas.

Em Munique, os dois países motores da construção europeia falaram de uma só voz. “Penso que é sensato que nos preparemos para uma guerra longa”, disse o chanceler alemão Olaf Sholz, que salientou a necessidade de armar a Ucrânia. “Não são as armas que fornecemos que prolongam a guerra, é exatamente o oposto. Quanto mais cedo o presidente russo perceber que não conseguirá atingir o seu objetivo imperialista, maiores são as probabilidades desta guerra acabar em breve e da tropa conquistadora russa bater em retirada.”

Os tambores de guerra soam e os ocidentais fingem acreditar que a Ucrânia pode ganhar a guerra. Ou sonham com isso. Temem que após uma eventual vitória russa na Ucrânia eles serão os próximos alvos.

O fato de o conflito ter a Europa como palco não é um mero detalhe.

Além de partilharem a cultura europeia, os ucranianos surpreendem ao resistir à agressão de um inimigo que, além dos horrores que já praticou na Ucrânia, pretende ir mais longe e, se o deixarem, atingirá a UE e os seus regimes democráticos. Isto é particularmente claro nos países da zona tampão dos tempos da URSS (criada a partir do pacto germano-soviético assinado por Molotov-Ribentrop), que têm mostrado solidariedade ativa com a Ucrânia. Esses países conhecem o sentimento hegemônico do gigante russo desde os tempos do império czarista, tanto assim que aderiram todos à OTAN, para obter proteção.

O poderoso Exército russo foi humilhado, para surpresa de muitos observadores ocidentais que sobrestimavam a sua força (e, sobretudo, a sua qualidade), enquanto se enganavam nos efeitos das sanções econômicas, até hoje pouco eficazes.

Putin, segundo o jornal lisboeta Público, errou os cálculos e os ucranianos ridicularizaram os seus sonhos imperiais. Mas jamais se confessará vencido e será tentado por uma grande escalada. Esta aliás já começou com os ataques às infra-estruturas e objectivos civis, procurando vergar a Ucrânia pela exaustão. É contudo altamente improvável que Moscou consiga obter vitórias militares decisivas.

A parte mais forte, a Rússia, não consegue vergar a mais fraca. Enquanto a a parte mais fraca, a Ucrânia, não pode vergar a mais forte. Sem soluções militares, restam as opções diplomáticas, mas também aí não há soluções à vista, apesar do plano chinês de paz. A Ucrânia, prometem Biden e os aliados europeus, não pode perder um centímetro do seu território. Mas a Rússia jamais admitirá negociar a paz sem recuperar a Crimeia, que lhe pertenceu, de fato, do século XVIII até 1954.

Winston Churchill escreveu um dia que “a Rússia é uma charada embrulhada num mistério dentro de um enigma”.

A leitura da extrema-direita europeia (com exceção da Itália de Giorgia Meloni) e de uma parte da extrema-esquerda, relativiza a gravidade da invasão, já que, em última instância, seriam os EUA e as forças militares submetidas a Washington os verdadeiros responsáveis, por terem montado “um cerco à Rússia”. Ou seja, sugerem que o conflito não é uma questão de invasão ilegal de um país – a Ucrânia – por outro – a Rússia -, mas sim uma proxy war da Rússia com a OTAN e o Ocidente, que no fundo exprime uma atitude nostálgica e “ocidentalofóbica”.

Os que pensam assim são nostálgicos dos tempos da Guerra Fria e da URSS, da divisão do mundo em zonas de influência, em que cada país teria uma soberania limitada em termos de política externa e de alianças geopolíticas face à potência dominante. Assim, as Repúblicas Socialistas Soviéticas (como os Bálticos, a Ucrânia, a Moldávia, os países do antigo Pacto de Varsóvia), seriam “o quintal dos russos”. Enquanto a América Latina e a Europa Ocidental seriam “o quintal dos Estados Unidos”.

A guerra levou a Europa a olhar para o passado, para os conflitos que a destruíram na primeira metade do século XX, e que acreditava enterrados para sempre. Foram precisos 11 meses de resistência ucraniana para que os líderes europeus percebessem que esta é uma guerra europeia. E que o fim do caminho levará à integração de Kiev à União Europeia. Os líderes europeus, na sua maioria, perceberam que é essa a sua missão neste momento preciso da história. Como escreveu o jornal Le Monde, em editorial, “se a guerra russa começou como uma ameaça existencial para a Ucrânia, transformou-se, um ano depois, numa ameaça existencial para a Europa”.

Putin, escreve a analista Teresa de Sousa, cometeu um erro colossal: “quanto mais intensificar os combates, quanto mais destruição causar, quanto mais crimes de guerra cometer, maior será o apoio e a solidariedade europeus.

Não se trata apenas de uma questão de dever de solidariedade para com um povo que sofre a brutalidade do agressor. É uma questão de avaliação geopolítica. No Palácio do Eliseu, ao receber Zelensky em 9 de fevereiro, na companhia de Scholz, Macron foi explícito: “A Rússia não pode vencer, não deve vencer.” Macron abandonou seu discurso sobre “garantias de segurança” para Moscou e a necessidade de “não humilhar” Putin. Em dezembro passado, já tinha prometido apoiar a Ucrânia “sem falhas, até à vitória”. Os sinais são inequívocos, a Europa vive o pior conflito desde a 2° Guerra Mundial.

O fato de Suécia e Finlândia abandonarem a neutralidade para bater à porta da Aliança Atlântica é significativo. Por outro lado, os países bálticos olham para a Ucrânia e vêem o legado de opressão durante a era soviética: execuções e prisões em massa, expropriações, deportações em massa para o gulag etc. E as minorias russófilas nestes países não são mais do que os descendentes dos colonos que Stalin lá plantou para dominar esses países, onde a língua oficial era – por imposição do Kremlin – o russo.

Para Susi Dennison, investigadora de assuntos políticos no European Council on Foreign Relations, “a guerra em curso na Ucrânia fomentou a união do Ocidente e da Europa em particular, além de expor um abismo entre a percepção do Ocidente sobre a Rússia e a de outros países.”

“Um ano após a invasão russa, está em curso uma remodelação determinante da ordem internacional. O Ocidente, unido pela primeira vez em anos, redescobriu o seu propósito. Entretanto, noutras latitudes, há uma competição crescente pela liderança geopolítica entre as potências emergentes.

Na Europa, o conflito suscitou preocupações quanto à capacidade do continente se defender e à escala do seu apoio ao esforço de guerra ucraniano, com as ofensivas de primavera se aproximando. Ao mesmo tempo, também pôs a nu a complexidade da UE se retirar, a longo prazo, da dependência que há muito tem da energia russa.”

A opinião pública europeia está convencida da necessidade de apoiar a Ucrânia na sua luta. Uma nova pesquisa, levada a cabo em dez países europeus, bem como na Índia, na Turquia, na China e na Rússia – divulgada pelo European Council on Foreign Relations constatou que os europeus continuam unidos no seu apoio à Ucrânia e no seu desejo de ver a Rússia derrotada no conflito.

Apesar das dificuldades no abastecimento energético do bloco e dos danos causados nas economias nacionais, a Europa mantém o embargo ao combustível russo. Quanto à percepção que os europeus têm da Rússia, mais de dois terços dos cidadãos da UE (66%) e da Grã-Bretanha (77%) veem a Rússia como um “adversário” ou “rival” , contra 71% dos americanos.
Há um abismo entre a percepção do Ocidente sobre a Rússia e a de outros países. Embora exista alguma semelhança em quererem o fim do conflito, as condições em que isto pode ser conseguido diferem. Na Europa e nos EUA, por exemplo, a opinião predominante é de que a Ucrânia precisa recuperar todo o seu território, mesmo que isso signifique uma guerra mais prolongada. Já na China, Turquia e Índia, a maioria prefere um fim rápido da guerra, com a cessão de uma parte do território ucraniano à Rússia.

O resultado mais relevante revelado pelo estudo mostra como os cidadãos vêem o estado do mundo e a futura ordem global. No Ocidente, o legado da Guerra Fria continua a moldar a opinião pública. Há uma forte convicção de que estamos entrando novamente num mundo bipolar, liderado, respectivamente, pelos EUA e pela China. Mas, noutros países, em particular entre potências emergentes, como a Índia e a Turquia, a visão é outra. Seus habitantes vêem seus países como atores em crescimento no panorama internacional e prevêem o desenvolvimento de uma ordem mundial multipolar, dividida entre diversos centros de poder. O Ocidente seria apenas um polo dentre muitos, e não seria nem o definidor da ordem internacional nem o líder da democracia global.

Os próximos meses serão determinantes para a construção deste mundo pós-Ocidental cada vez mais dividido. A guerra deixou visível a ponta do iceberg. Num futuro, provavelmente próximo, estaremos mergulhados num mundo novo, extremamente instável e conturbado.

Os novos negacionistas

Os novos negacionistas

Faz dois anos e meio que convivemos com a narrativa desinformadora dos negacionistas da covid-19 e suas expressões, algumas das quais viraram chavões, que nos ferem os ouvidos: “versão oficial”, “ausência de contraditório”, “deriva autoritária”, « politicamente correto », “pensamento único”. Tudo é bom para desacreditar a ciência e abusar das fake news para atacar a democracia.  O termo « pensamento único » virou até tese de doutorado, a partir do best-seller La Pensée unique, de 1995, do polêmico jornalista francês Jean-François Khan. Ocupa hoje o centro do pensamento populista de extrema-direita e também da esquerda stalinista. A expressão é considerada por Ignacio Ramonet, ex-diretor do Le Monde Diplomatique e ícone da esquerda latinoamericana, como uma « doutrina intimidatória controlada por uma polícia de opinião que asfixia qualquer reflexão livre ».
Estes termos traduzem a vitimização de quem se acha impedido de contestar o conhecimento científico das matérias relacionadas com a pandemia. São pessoas que se sentem ameaçadas pela perda de direitos, liberdades e garantias decorrentes das medidas sanitárias, que classificam de “ditadura sanitária”.

O mais surpreendente é que essas expressões foram transportadas para o linguajar militar, no contexto da invasão da Ucrânia. Enredados num emaranhado de análises geopolíticas de difícil compreensão, muitos se recusam a nomear o agressor e a manifestar solidariedade à vítima. Optaram por viver num mundo paralelo.

Muito se fala por exemplo, do papel da extrema-direita ucraniana no conflito, mas se omite toda referência às organizações congêneres russas.
A história da extrema-direita ucraniana remonta ao período stalinista e ao colaboracionismo com o invasor nazista. Com o colapso da URSS e a independência da Ucrânia, em 1991, estas organizações floresceram, mas nunca atingiram relevância eleitoral. O melhor resultado em eleições foi obtido pelo Svoboda (Partido de todos os Ucranianos), em 2012, com 10,44% de votos e conquista de 37 dos 450 assentos parlamentares. Nas últimas eleições, em 2019, o mesmo partido concorreu em coligação com outras forças de extrema-direita, tendo obtido 2,15% de votos e eleito um deputado.

Apesar da sua impotência eleitoral, o ativismo de algumas destas organizações reforçou-se nas ruas depois do processo do Euromaidan, com o beneplácito de instituições governamentais que permitiram a integração de grupos paramilitares em subunidades da Guarda Nacional. Foi o caso do batalhão Azov, do Corpo de Voluntários Ucranianos do Setor Direito, Kiev-2, e do batalhão OUN, entre outros. Estas organizações combateram nas províncias separatistas do Donetsk e Lugansk a partir de 2014, mas com a invasão da Ucrânia, em fevereiro deste ano, foi o Azov que assumiu o protagonismo na linha da frente, sobretudo em Mariupol, onde se tornou a tropa de elite.

Vejamos agora sob um outro ângulo. Na Federação Russa, o universo das organizações de extrema-direita e neonazistas é muito mais diversificado que na Ucrânia. A Unidade Nacional Russa (RNU), o Partido Nacional Bolchevique (NBP), a Sociedade Nacional Socialista (NSO), a União Eslava (SS), o Movimento contra a Imigração Ilegal (DPNI), o Obraz, o Conselho do Povo Russo (SRN), o grupo terrorista Organização Lutadora dos Russos Nacionalistas (BORN), envolvido em assassinatos de jornalistas, imigrantes e ativistas, são algumas das organizações que os russos veem desfilar a cada 4 de Novembro, desde que Putin substituiu as celebrações da Revolução de Outubro pela efeméride czarista do Dia de Unidade Nacional.

Dentre a extrema-direita leal ao Kremlin, conta-se o Partido Liberal Democrático da Rússia (LDPR), fundado em 1992 por Vladimir Zhirinovsky (1946-2022), representado na Duma por 21 deputados. O ex-vice-primeiro-ministro Dmitry Rogozin esteve muitos anos associado ao partido nacionalista Rodina e foi fundador, em 2007, do partido Grande Rússia, que integrou o xenófobo DPNI.

No quadro do conflito nas províncias do Donetsk e Lugansk o envolvimento político e militar da extrema-direita russa pró-separatista, casos da União da Juventude Eurasiana (EYU), NBP, União Nacional Russa (RNU), o batalhão Svarozhici e a brigada Oplot, sempre foi superior ao dos grupos ucranianos. Disso porém pouco se fala, muito se esconde.

As ligações do Kremlin com líderes e ativistas da extrema-direita europeia também são bem conhecidas e estão descritas no livro Russia and the Western Far Right: Tango Noir (2017), de Anton Shekhovtsov.

Numa vista d’olhos pelas redes sociais e artigos de opinião dos russófilos convictos ou envergonhados, constata-se que qualquer menção à extrema-direita russa é omitida, ou substituída por palavras de desprezo ao encontro do “presidente-comediante” Zelenski e ao seu Governo de “fascistas e nazistas”. Isso demonstra, para além da desonestidade intelectual e da desinformação propagandística, a desorientação daqueles que vivem num limbo ideológico desde a queda do Muro.

Contra os fatos descritos, faltam argumentos até para o eterno chanceler Sergei Lavrov, que ao tentar explicar a inexplicável “desnazificação” da Ucrânia, não teve outra saída senão apelar para o antissemitismo mais abjecto. Em entrevista ao canal italiano de notícias Zona Bianca, Lavrov menosprezou o fato de Zelensky ser judeu e, portanto, antinazista, ao lembrar que Hitler também tinha origens judaicas. Isso não quer dizer nada; disse, acrescentando: “O sábio povo judeu diz que os maiores antissemitas são os próprios judeus.”

Na falta de ter o que falar, podia ao menos ter ficado calado. Mas não, preferiu invocar “o nível mais baixo de racismo contra os judeus, que é acusar os próprios judeus de antissemitismo”; como replicou Yair Lapid, ministro das relações exteriores de Israel.

As críticas jamais se referem ao regime russo, que proibiu o uso da palavra guerra, restringiu a liberdade de expressão e o direito de manifestação, condenando a 15 anos de prisão todos os que se opuserem à verdade oficial. Negam-se a condenar Moscou, seja porque Putin é o grande apoiador dos partidos de extrema-direita no mundo, seja em nome do anti-imperialismo americano. Vindos da esquerda stalinista como da direita extrema, se insurgem contra o que consideram ser uma “deriva autoritária” e a imposição do “pensamento único” na abordagem da guerra na Ucrânia. Vão ainda mais longe na sua ânsia negacionista, usam e abusam das mensagens desinformadoras sobre a invasão, por exemplo ao levantar dúvidas sobre os autores do massacre de Bucha, o que os coloca num plano próximo da infâmia. Espalham fake news, sendo que alguns pseudojornalistas convertidos em pseudo-experts em relações internacionais, não se envergonham em receber ordens diretamente do Kremlin ou do « ideólogo » do regime, Aleksander Dugin, muito próximo do « filósofo » Olavo de Carvalho.

Para estes, stalinistas e ultradireitistas, o regime russo é uma democracia “relativa”, expressão criada, vale a pena lembrar, pelo ditador Ernesto Geisel para explicar que o Brasil sob o jugo militar não era um regime autocrático.

Aqueles que recusam uma palavra de solidariedade para com a luta do povo ucraniano contra o invasor, pelo fato de existirem organizações “fascistas e neonazistas”, ainda não perceberam (porque se negam a fazê-lo) que a agressão russa, ao invés de “desnazificar” a Ucrânia, contribui para o reforço da extrema-direita. E não apenas dentro do território ucraniano. No entanto, dizem-se humanistas.

É hora de dar nome aos bois. O invasor é quem invade, a vítima é o invadido. Simples assim. Quem nega a verdade quer reescrever a história, e quem o faz é revisionista.

O risco de aceitarmos o revisionismo é que fechemos os olhos para os fatos e achemos natural a ameaça de uma guerra nuclear, saída da boca de Sergei Lavrov, o homem que teve a impudência de pedir que a comunidade internacional pare de livrar armas à Ucrânia. O perigo de baixarmos a guarda é que não nos rebelemos quando mísseis são atirados contra alvos residenciais em Kiev, a poucos metros do secretário-geral da ONU, que representa, queiramos ou não, os 8 bilhões de habitantes da nossa casa comum.

Os mísseis russos disparados da Crimeia contra Kiev quando Antonio Guterres se reunia com Volodymyr Zelensky e que mataram a jornalista ucraniana Vira Hyrych, da Rádio Liberdade, foram a prova definitiva de que Putin não negociará, a não ser para evitar uma derrota demasiado humilhante.

Hoje, no momento em que a guerra muda de natureza, ainda há quem minimize a invasão da Ucrânia, da mesma forma que se negou a pandemia, uma “simples gripezinha”. Lembram?
Amanhã, quem sabe, fecharemos os olhos para aqueles que reescrevem a história para negar o holocausto, o genocídio armênio, o ruandês, a apartheid, os territórios ocupados por Israel e, por que não, a ditadura civil-militar brasileira e o nazifascismo bolsonarista.

Delírio? Não, certamente não, pois já estamos a caminho da barbárie, e como diz o ditado gaulês “Impossible n’est pas français!”, impossível não é francês, nem tampouco português.

Pensamentos sobre a intervenção Russa na Ucrânia e suas consequências

Pensamentos sobre a intervenção Russa na Ucrânia e suas consequências

Autor: Regis Cabral

Estive acompanhando os comentários e opiniões sobre o conflito entre a Ucrânia e a Rússia. Muito do que se lê é cópia da mídia de um lado ou outro com pouca informação sobre quem tenha contato direto. Eu tenho estes contatos, na sua maior parte com comunidades Russas, dentro e fora da Ucrânia. Devido aos meus vínculos com serviços funerários no Norte da Europa, fui contatado para dar apoio voluntário a famílias em situações de perdas, tanto de um lado quanto do outro, durante a guerra de 2014. Portanto me perguntaram se poderia fazer a mesma coisa desta vez.

Recusei, pois, como muitos, tinha a certeza de que esta guerra não iria levar mais que cinco dias. Oficiais Russos, meus conhecidos, tinham a certeza que seria menos. Poucos estavam preparados para mais do que quatro dias. Tinha fundamento pensar assim. O exército e oficiais Russos estavam com sólida experiência da Chechênia e da Síria. O exército da Ucrânia era mal treinado, despreparado, desorganizado e com muitos equipamentos Russos velhos e de segunda mão. Além disso, era bem conhecido que o governo da Ucrânia se recusava a distribuir armas às milícias e corpos de defesa civil e, quando feito, sem munição suficiente. A ideia da Presidência da Ucrânia de fazer uma defesa social e cultural parece bem bonita no liberalismo de teatro e circo, mas nada se relaciona com a realidade. Ouvindo meus contatos Russos em fevereiro, parecia que ia ser um turismo até Odessa. Não foi e as perdas são brutais.

Eu compreendo que existam aqueles que queiram apoiar a Putin neste conflito. É conhecido que entre os amigos de Putin estão os partidários de Trump, Orban, Le Pen, Bolsonaro, e outros mais à extrema direita, apesar da liderança desses movimentos pedirem a seus partidários para ficarem quietos. Existem também aqueles que apoiam a Putin devido à relação inimigo do meu inimigo. Entretanto, apoiar Putin com argumentos de democracia popular, ou movimentos contra o capitalismo ou a favor da esquerda, é muito ofensivo para os partidários de Putin na Rússia. Estas pessoas vêm de famílias e grupos que sofreram com o Stalinismo, algo que não esquecem nem perdoam. Toleram a democracia social que consideram ligadas a Kautsky, grande inimigo dos Bolchevistas. Mas o comunismo, o socialismo e outras esquerdas consideram mais do que errado. Consideram repugnante.

Esta repugnância aumentou durante o princípio da intervenção Russa na Ucrânia. Na Duma, foram os delegados e representantes da esquerda, socialistas e comunistas, que criticaram a Putin, dividindo ainda mais a opinião pública Russa e enfraquecendo a coesão dos corpos militares. As divisões entre os militares resultaram em comandos divididos e com conflitos internos.

Pior do que isto foi o que aconteceu com as milícias pró-russas em Donetsk e Luhansk. Estas milícias não são pequenas, entre 40000 e 50000 militantes em cada uma. No princípio da ofensiva tinham a função fundamental dupla de rapidamente conquistar os territórios pró russos e atrair as formações principais do exército da Ucrânia. Entretanto ficaram temporariamente paralisadas, exigindo a transferência de outras unidades, prejudicando toda a campanha. Por que ocorreu a paralisia?

Foi resultado de como o discurso de Putin circulou nas mídias sociais e notícias. É bem conhecido o discurso antinazista de Putin. Ele se vê como continuador da grande guerra patriótica. Era de se esperar que a propaganda de guerra tivesse este tema. Mas mal informados a este ponto a maioria dos Russos, exceto fanáticos e quem trabalha para o governo, não são. Sabem que durante as eleições da Ucrânia os grupos e partidos de extrema direita e antissemitas em quase nenhum lugar receberam mais de 2% dos votos. Mais do que o atual Presidente, muitos candidatos associados à comunidade Judaica foram eleitos. Os Russos sabem muito bem que grupos Ucranianos de extrema direita são pequenos, como o Azov, que faz muito alarde, não passam de 650 pessoas com membros substituídos por regulares à medida que o conflito avança. Mas é parte do discurso oficial de Putin e não é muito aconselhado criticar.

Mas do lado Russo, em particular em Donetsk, existe presença antissemita forte. Existe uma explicação para isto, além de uma tradição local deste tipo de comportamento. Putin, apoiado por vários membros da hierarquia da Igreja Ortodoxa Russa, levou adiante uma campanha de êxito contra o Nazismo e o antissemitismo na Rússia. Parte da campanha teve várias válvulas de escape, inclusive para famílias se deslocarem para Donetsk e para os mais militantes, integrarem-se aos grupos Wagner e semelhantes. Quando grupos de esquerda internacionais justificaram o discurso, as milícias em Donetsk e Luhansk o “compraram” como verdadeiro. Foi um медвежьи объятия, abraço de urso, das esquerdas. Os militantes pró Rússia, alguns com suas bandeiras Soratnik, não atacaram imediatamente, acreditando em irmãos ideológicos na Ucrânia. Se arrependeram. Exemplo disto foi o tenente Roman Vorbyov que mostrou orgulhosamente seus emblemas Totenkopf e Valknut ao receber uma medalha do governo pró Russo em Donetsk por haver eliminado mais de 40 ucranianos. Mas foi tarde, o comando Russo já havia deslocado os mariners que deveriam participar da campanha em Odessa. Esta campanha de Odessa se reduziu em trocas de artilharia, com perdas Russas. Odessa é chave para qualquer campanha na Ucrânia. Sem Odessa tudo se transforma em um sangrento e violento zig-zag militar.

Além disso, o comando Russo considerou que era preciso aumentar o volume de tropas. O deslocamento de unidades necessárias para o esforço logístico prejudicou a situação precária em várias frentes. A logística, já ruim devido à corrupção, incompetência e desorganização, ficou insustentável em muitos lugares.

Muitas unidades ficaram paralisadas pela falta de combustível, lubrificante e até alimentos para as tropas. Qualquer coisa ficou uma desculpa para desistir, abandonar e desertar. O abandono é de tal dimensão que hoje o exército da Ucrânia tem mais veículos blindados, tanques e helicópteros do que tinha antes da guerra começar. A qualidade deste equipamento, ainda mais prejudicada pela falta de manutenção (veja se a falta de ERA em vários tanques), não se compara ao material estrangeiro chegando à Ucrânia.

É mais do que abandono, tem corrupção também.  Apesar de não ser generalizada como a propaganda da Ucrânia indica, é bastante comum. Sei de pelo menos onze casos, onde se suspeita que 10000 euros, um passaporte e uma passagem de avião foram suficientes para alguns oficiais Russos terem entregado sistemas. A grande maior parte do material capturado pelos Ucranianos foram abandonados pelos Russos. Muitas vezes alguns tiros ou uns poucos veículos destruídos, resultaram em unidades todas abandonadas. Ademais, muitas unidades foram simplesmente abandonadas quando acabou o combustível, porque as rodas quebraram ou ficaram sem ar. É bem conhecida as situações onde agricultores da Ucrânia levam os tanques e veículos Russos, filmados também pelos militares Russos. Entre estes veículos se encontram, entre outros, Kalas Typhon, T-72, T64-BV, sistema de comando aéreo PU-12, lançadores de foguetes com munição completa, sistemas termobáricos, tanques de engenharia IMR, Monteiro 2s9 Nonna autopropulsados, e até helicópteros de ataque KA-50.

Mais importante do que todas essas maquinárias e as munições apreendidas, estão os sistemas de comunicação. A Ucrânia tem condições de seguir a comunicação Russa, inclusive entre soldados e seus familiares. Por isso, muitas das agressões cometidas pelas tropas Russas são conhecidas. Os próprios Russos protestam sobre o que está acontecendo. Muitos destes canais de comunicação estão abertos e podem ser ouvidos. Junto com outras fontes, por exemplo plataformas russas comparáveis ao Facebook, Telegram, páginas de blogs, todas com muitas páginas das unidades Militares Russas, é possível ter uma ideia bem sólida das trágicas perdas Russas.

Mas aconselho cuidado para quem fizer isto. É emocionalmente pesado, experiência que eu tive. Acontece quando se está ouvindo as conversas, as unidades podem ser atacadas. Existem situações Jack-in-the-box, assim como o efeito das deserções, onde para evitar isto os oficiais fecham as portas dos APVs. As regras dizem para ser mantido silêncio, mas a prática é outra. Além disso, tanto tropas quanto oficiais Russos utilizam linhas abertas e mesmo telefones celulares comerciais e públicos. Nem sempre é algo emocionalmente simples ouvir. Você pode estar ouvindo quando um veículo é atingido. Hoje se utiliza muita arma de plasma e as munições nos veículos Russos não estão protegidas.

As perdas Russas são muito grandes. A estimativa é que nas três primeiras semanas, a Rússia perdeu tantos soldados quanto metade do que a União Soviética tinha perdido durante toda a campanha do Afeganistão. Ninguém esperava isto. O filho de minha conhecida Tatiana realmente achava que iam ser recebidos por молодежь и дети с цветами и подарками (jovens e crianças com flores e presentes). Sabemos que não foi assim. O filho de Tatiana apenas tinha planos de fazer um tempo militar rápido e depois voltar aos seus planos de escrever óperas. Sua unidade desapareceu perto de Kiev, sendo sua última mensagem sobre as refeições velhas, de 2015. Fiquei com a tristeza de falar com Tatiana sobre memórias de óperas nunca escritas.

Olhando os desenvolvimentos militares na Ucrânia, parece agora compreensível a crescente e violenta resistência enfrentada pelos Russos. A estratégia do alto comando Russo de atacar alvos civis nunca funcionou na Europa central e no norte da Europa. Ao contrário, a experiência histórica é que dá o efeito contrário. Veja o exemplo de quando os nazistas bombardearam Londres. Além disso, isto significa que as tropas de defesa continuam ativas. As perdas fazem as tropas russas procurarem por responsáveis: incompetência, corrupção, erros logísticos, falta de prioridades definidas, e muitos outros. Isto tudo somou a todos outros problemas resultando em desestímulo, deserções e qualquer desculpa para não seguir ordens. Como consequência, numa tentativa de reverter a situação, oficiais de patente superior foram à linha de frente para dar exemplo às tropas. Também aqui o resultado foi trágico. Apenas, e apenas, entre meus contatos e amigos e familiares deles são seis generais e 11 coronéis perdidos. Possivelmente muitos mais agora. Entre estes está o general Andrei Sukhovetsky, que teve uma participação brilhante na conquista da Crimeia em 2014.

Estas perdas também criaram a necessidade de trazer tropas voluntárias internacionais. As tropas da Chechênia já estavam participando desde o princípio. Já tiveram muitas perdas, em particular unidades motorizadas. Reservas já os substituíram, mas os oficiais com experiência só surgem com o tempo e a prática de campo. Elementos ligados ao grupo Wagner foram deslocados em grandes números. Entretanto, estes grupos têm vínculos com grupos de extrema direita, inclusive neonazistas, não respeitam regras de guerra e os direitos humanos, criando muita resistência da população civil.

Existe também um crescente número de voluntários da Síria. Oficialmente foram chamados 14000 combatentes, mas acho improvável terem chegado mais do que dois mil. A presença Síria não foi bem recebida. Soldados e oficiais com este tipo de experiência, ao retornarem, vão ser uma ameaça para Israel. Existe um cenário ainda pior. A Ucrânia tem muitos reatores atômicos, não apenas Chernobyl. Tem alguns dos maiores complexos nucleares do mundo. Apesar do material nuclear não ser “weapons grade”, o material radioativo pode ser utilizado para sabotagens e para tornar uma grande área não habitável. Várias vozes (até eu, na minha pequena posição) levantaram a necessidade de tomar cuidado com a possibilidade de agentes sírios terem acesso a qualquer “coisa” nuclear. Esta situação é mais uma ameaça a Israel. Existem indicações de que as autoridades Russas estariam tomando cuidado com isto. Mas a corrupção é muito grande, a desorganização também. A incompetência é visível. Por exemplo, os soldados Russos receberam ordens de cavarem trincheiras e abrigos nas terras radioativas de Chernobyl. Também cortaram as árvores radioativas, muitas vezes queimando a madeira para calor e fazer comida. Ninguém sabe quantos foram contaminados. Pude identificar dois filhos de ex-alunos nisto tudo. É apenas uma questão de tempo até que os efeitos apareçam. O tratamento é impossível, pois significaria deserção.

No momento em que a guerra entra em nova fase, é possível observar uma série de pontos. Temos que partir do princípio inalienável de que, nas condições em que o mundo se encontra hoje, a existência de Israel não pode nem deve ser questionada. Podemos, e muitas vezes devemos, questionar e criticar o governo de Israel, mas não a existência do estado de Israel. A tentativa de Putin de reintegrar com violência a Ucrânia, ou parte desta à esfera Russa, se transformou em uma ameaça para a existência de Israel. É mais do que o retorno dos voluntários e oficiais da Síria, agora com uma vivência militar não comum no Oriente Médio. Qualquer pequeno ou grande (ou que se ache grande) líder pode se achar justificado em conquistar territórios que, realmente ou imaginariamente, tenham sido seus no passado.

A população judaica em todo mundo também está sendo prejudicada. Apesar de existir uma presença, ainda que pequena, de nazistas hoje na Ucrânia, e ainda mais na Rússia, a tentativa de Putin de justificar tudo em termos de luta contra o Nazismo, está produzindo uma banalização da ameaça neonazista e do antissemitismo. O perigo disto não pode ser minimizado. Vivemos com isto e com a sombra disto diariamente. É fácil antever situações onde a ameaça vai ser descartada porque “Putin também falou isto”. Outros que se espera utilizem para suas agendas isto tudo sejam os negacionistas, ao levantarem a pergunta, “tinha mesmo Nazistas?”

É obviamente mais do que isto. Já tive que confrontar situações onde se argumenta que é tudo culpa nossa. A liderança da Ucrânia é a comunidade Judaica, mas muitos dos oligarcas de Putin também são. Putin raramente admite que comete ou cometeu erros. Logo vai se começar a buscar “os culpados” pelas perdas. Acho que é apenas uma questão de tempo para que a comunidade Judaica na Rússia seja vítima de maiores perseguições. Talvez seja hora de começar a trazer para Israel esta população.

O argumento de Putin, de que uma vez no passado a Ucrânia foi da Rússia, está abrindo outro tipo de precedentes. Se o argumento for aceito, justificamos todo tipo de imperialismo e colonialismo. Cuba já foi dos Estados Unidos, assim como Filipinas e mesmo Nicarágua. O Uruguai já foi do Brasil, assim como grande parte do Brasil já foi de Portugal. E Portugal já foi da Espanha, assim como quase todas as Américas já foram da Espanha também. Muito do mundo já esteve sob controle da Inglaterra. Na Europa quase todos foram de todos e ninguém nunca deixou de ser de alguém. O argumento de que as origens históricas da Rússia estariam em Kiev é uma típica manipulação da história. Pois a palavra Rus vem da Escandinávia, onde a cultura que hoje chamamos de Viking era em sua época conhecida como Norseman, Varang ou Rus. A origem da humanidade é a humanidade e isto a ninguém dá o direito de tirar a liberdade de outros.

Os problemas militares Russos estão criando outro tipo de problema. Problemas com equipamento, incompetência e corrupção entre oficiais, dificuldades com logística, vulnerabilidade dos sistemas de comunicação entre outros, indica que países com militares treinados e com equipamentos Russos são frágeis. Cuba está com problemas, a Venezuela está com problemas, muitos países na Ásia e na África estão com problemas. É preocupante se os militares Sírios demonstrarem estar aprendendo com isto. As perdas militares Russas são um cartão de convite para aventureiros tentarem desestabilizar ou mesmo conquistar estes países. Um conhecido meu Cubano Americano vivendo na Flórida, tristemente me comentou que lamentava que Trump não fosse Presidente, pois se fosse, já estaria indo para Habana.

Para os movimentos sociais que hoje conhecemos como a esquerda, tudo isto se transforma em uma coleção de dilemas. Confundir interesses nacionais com esquerda ou direita, parece ser um absurdo que nos leva de volta ao imperialismo do século XIX e princípios do século XX. Talvez seja hora de voltar às origens. Temos necessidade de reconstruir um internacionalismo que respeite culturas e sistemas nacionais, apesar de isto também parecer contraditório. Entidades nacionais deveriam ser reflexos administrativos da solução de problemas práticos. As propostas iniciais para a construção do estado moderno de Israel seguiram isto. Hoje sabemos que eram propostas idealistas para um mundo imperfeito. A grande tarefa é reconstruir um socialismo internacionalista, possivelmente inspirado por uma combinação das ideias de Kautsky e da Segunda Internacional, tendo em consideração este mundo imperfeito. Mais do que imperfeito, é um mundo ameaçado pelas consequências de um modelo econômico, social e ecológico sem futuro. O tempo é curto.

Nome Emmanuel, sobrenome Macron

Nome Emmanuel, sobrenome Macron

A se acreditar nas pesquisas de opinião, o futuro presidente da República francesa tem por nome Emmanuel, sobrenome Macron. Ele está a pouco mais de 30 horas (desde que liguei o computador) de ser proclamado novamente presidente, pelos próximos cinco anos, do segundo país mais rico da Europa. Entre 12 e 15 pontos o separam da populista neofascista Marine Le Pen. As últimas horas até o final do voto poderão aumentar a vantagem de Macron, o que vem acontecendo desde o debate de quarta-feira, vencido pelo presidente, que se mostrou muito mais competente que sua adversária. Le Pen quis transmitir a imagem de uma candidata tranquila, mãe de família e amiga dos gatinhos como se autodenomina. Mas além de errar ao citar números, ao falar de imigração e segurança mostrou ser o que realmente é : uma política de extrema-direita, islamofóbica e racista até o último fio de cabelo. E nada além disso. Revelou, uma vez mais, sua total ignorância no que diz respeito à economia e desmoronou ao falar de internacional.

Marine Le Pen e seu partido, União Nacional, são devedores de um grande banco russo, que serve aos interesses do Kremlin, portanto de Vladimir Putin. Macron aproveitou a ocasião para acusá-la de falar com seu banqueiro ao se entrevistar com Putin. Xeque-mate. Paralelamente, o presidente-candidato beneficia de uma aura de estadista em meio à guerra da Rússia na Ucrânia.
As diferenças entre ambos ficaram ainda mais claras com relação à Europa. Le Pen quer transformar a União Europeia numa aliança de nações soberanas, independentes. Em outras palavras, destruir o bloco. Ele, ao contrário, quer reforçar a UE, aumentando a unidade em questões como saúde e defesa.

Os dirigentes europeus aliás, seguem as eleições franceses com o maior interesse e preocupação.
Ao publicar um artigo em grandes jornais europeus, o chanceler alemão Olaf Scholz, o primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez e o chefe do governo português António Costa conclamaram indiretamente os eleitores franceses a votar Macron, salientando o papel de primeiro plano desempenhado pela França na Europa durante a pandemia e a guerra.

Esta « não é uma eleição como as outras »; disseram.

« A escolha é entre um candidato que valoriza a democracia, a soberania, a liberdade e do Estado de direito e um nacionalista que se alinha a dirigentes autocratas como Vladimir Putin, que lembram os momentos sombrios da Europa. »

Costa, Sánchez e Scholz salientaram que a França “está no coração do projeto europeu” e que a escolha de domingo se dará entre um “candidato democrata, que acredita que a França é mais forte em uma União Europeia poderosa e autônoma, e uma candidata da extrema direita, que está abertamente do lado daqueles que atacam nossa liberdade e nossa democracia”.

“Precisamos da França do nosso lado”. “Uma França que defende nossos valores comuns, em uma Europa na qual nos reconhecemos, que é livre e aberta ao mundo, soberana, forte e generosa. É esta França que está também na cédula de votação de 24 de abril. Esperamos que os cidadãos da República francesa a escolham.”

Vencer a extrema-direita também é o objetivo de Lula, que declarou de maneira clara seu apoio no segundo turno a Emmanuel Macron. Nesta quinta-feira, em tuites publicados em português e francês, Lula diz que “o futuro da democracia está em jogo na Europa e no mundo” e pede união “em torno do candidato que melhor encarna os valores democráticos e humanistas”, marcando o perfil de Macron na rede.

De acordo com as pesquisas realizadas na sexta-feira, Macron lidera com 55,5% a 58% das intenções de voto contra 44,5% a 42% para Le Pen. A diferença é grande, porém muito menor que os 32% que os separaram em 2017. O que poderá pesar para o partido A República em Marcha, de Macron, nas legislativas de junho.

Uma fascista no poder

Uma fascista no poder

24 de abril de 2022, 20:00 em Paris, 3 da tarde em Brasília. Eis que surge em todos os canais informativos da televisão o rosto do presidente eleito da França, ou melhor da presidente, Marine Le Pen, a primeira mulher chefe do estado francês.
O terremoto político é sem precedentes na Europa, só comparável à invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin.

Dentro de alguns dias, a eleita neofascista anunciará a primeira medida simbólica, de efeito muito mais nefasto que o fim do horário de verão decretado pelo capitão no primeiro dia de seu mandato. A bandeira europeia será retirada da fachada de todos os edifícios públicos.

É o início do golpe de estado contra o Estado de Direito, como bem sintetizou o constitucionalista Dominique Rousseau.
Todos os democratas choram e desesperam. Os próximos cinco anos serão marcados por ataques sistemáticos à democracia e aos Direitos Humanos.

Como todos os populistas, Le Pen vai governar por medidas provisórias e, quando não for possível, apelará para o referendo popular, que prefere à democracia representativa, diante da dificuldade em ter uma maioria suficiente no Parlamento para mudar a lei máxima.

A nova presidente usará o seu primeiro referendo para incluir na Carta Magna a discriminação dos estrangeiros, através do princípio da preferência nacional. A saber : prioridade no emprego para os franceses de sangue gaulês, « pure souche », no acesso aos benefícios sociais, às escolas e universidades, à habitação social ou ainda a determinadas profissões, como acontecia com os judeus europeus. Em bom português, a xenofobia passará a ser um princípio constitucional.

Há muito Marine Le Pen abandonou a fantasia de lobo para vestir a de cordeiro. Multiplicou selfies com seus gatos, a ponto de ser « carinhosamente » chamada « la femme aux chatons », a mulher dos gatinhos. – Uma gracinha, como diria Hebe Camargo.
Desistiu de tirar a França da zona do euro, nunca mais falou em Frexit (Brexit à la francesa), e em vez de defender a impopular saída da União Europeia agora propõe fórmulas mágicas para bloquear todas as decisões do bloco que não a satisfaçam. Por isso submeterá a referendo a superioridade das leis francesas sobre as europeias, pouco importa que ela, como advogada, conheça perfeitamente o princípio de direito que estabelece a supremacia da lei internacional sobre a nacional. Ela não quer apenas mudar a França, quer mudar o próprio Direito.

Le Pen acredita numa União Europeia à la carte, rejeitando os pontos que não lhe convém: os tratados de livre-comércio, a adesão de novos países, a Europa da Defesa, o espaço Schengen de livre circulação de pessoas.

É claro que a inscrição na Constituição da primazia da lei nacional sobre o direito europeu faria da França um paria dentro do bloco, a exemplo da Hungria de Viktor Orbán. O seu programa é incompatível com a União e com os tratados europeus.

Meu amigo Phillipe Bernard, editorialista do Le Monde, escreve : « A estratégia de doçura de Marine Le Pen mascara um projeto brutal de destruição das instituições e de divórcio com a União Europeia. »

Como visto, seu modelo institucional é o recurso sistemático ao referendo como forma de contornar o Parlamento. Seu desejo é generalizar o referendo de inciativa popular sobre todos os assuntos, sem exceção, inclusive para anular leis aprovadas por deputados e senadores. Esta aliás era uma das principais reivindicações dos coletes amarelos, movimento claramente infiltrado pelos dois extremos.
Porém – no caso de Le Pen há sempre um porém – para adaptar a regra aos interesses do poder ela se reserva o direito de bloquear toda proposta de referendo caso entenda que é contrária aos « interesses vitais do país ».

Além de mudar a Constituição para incluir a superioridade da lei francesa sobre a europeia, outras medidas xenofóbicas estão previstas : a mudança da lei sobre a nacionalidade e da política de imigração.

A nova regra da aquisição da nacionalidade deixará de reconhecer o direito do solo – jus solis, para adotar o jus sanguinis. Ou seja, quem nascer na França não será francês, nem terá a nacionalidade francesa quando atingir a maioridade. Só serão franceses os filhos de pais franceses. Obter a nacionalidade francesa por outra razão será um sonho impossível.

Quanto à política de imigração, as fronteiras irão se fechar, inclusive para os refugiados candidatos a asilo político. O reagrupamento familiar deixará de existir.

Marine Le Pen, versão 2022, coloca em causa a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789, o preâmbulo da Constituição de 1946 (marcada pelo fim do nazismo), e a Constituição de 1958, que instituiu a Quinta República. Tudo para alegria de um tal Vladimir Putin, ditador da Rússia e credor da líder neofascista francesa, que assim obteria um raríssimo sucesso político depois da campanha militar que poderá levá-lo aos tribunais por crimes de guerra e contra a humanidade. Terá a presidente da França em suas mãos.

Felizmente, o segundo turno ainda não aconteceu, Marine Le Pen não foi e se depender dos meus orixás não será eleita. Dia 24, dentro de uma semana, o que resta da França democrática elegerá Macron, e o país sobreviverá, evitando-se assim uma crise europeia de alta intensidade e o risco de uma guerra nas instituições e nas ruas. Inchallah !

P.S. A última pesquisa, publicada sábado, 16, aponta a vitória de Emmanuel Macron, com 55,5% dos votos válidos

Putin no TPI?

Putin no TPI?

Procurador-geral do TPI vai investigar crimes de guerra russos na Ucrânia, mas não será fácil levar Putin ao Tribunal de Haia

Embora reconheça que não será fácil levar Vladimir Putin ao banco dos réus do TPI, o procurador-geral do Tribunal Penal Internacional, Karim Khan, prometeu abrir investigações “independentes e objetivas” tão rapidamente quanto possível. “Existe uma base sólida” para se acreditar que houve “crimes de guerra e crimes contra a humanidade” na Ucrânia por parte da Rússia.

O ditador russo poderá, ou melhor, deverá ser acusado pelo Tribunal de Haia por fomentar crimes de guerra e contra a humanidade na Ucrânia e não apenas pelas atrocidades cometidas desde o último 24 de fevereiro.

O TPI já havia promovido uma investigação preliminar, com base em alegações de que teriam sido cometidos esses crimes no conflito armado que, desde 2014, opõe o governo ucraniano às forças separatistas apoiadas pela Rússia na região do Donbass, no leste do país. Neste mesmo ano, as tropas moscovitas invadiram e anexaram a Crimeia. Agora, “perante a expansão do conflito no último mês”, Karim Khan quer investigar novos relatos de crimes que entrem na alçada do TPI.

39 países, incluindo a União Europeia e a União Africana, já pediram oficialmente a abertura das investigações sobre a invasão russa.

Embora nem a Rússia nem a Ucrânia tenham ratificado o Estatuto de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional em 1998 (o que em princípio colocaria os dois países fora da sua alçada), o tratado prevê que o TPI terá jurisdição caso um país que não o integre aceite a autoridade do Tribunal, apresentando uma declaração formal nesse sentido. E foi justamente isso que a Ucrânia fez em dois momentos: primeiro através de uma declaração em que aceitava a jurisdição do TPI para investigar e julgar crimes cometidos no seu território no início do conflito com as forças separatistas russas, entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014; depois através de uma segunda declaração enviada em setembro de 2015, de “duração indefinida”, que autoriza o Tribunal de Haia a “identificar, processar e julgar os perpetradores e cúmplices de atos criminosos cometidos em território ucraniano a partir de 20 de fevereiro de 2014”.

Em 2020, a então promotora do Tribunal, Fatou Bensouda, concluiu que havia uma base procedente para acreditar que três tipos de crimes foram cometidos: no contexto da condução das hostilidades, durante as detenções e aqueles cometidos na Crimeia pós-invasão. Agora, o atual promotor do TPI, Karim Khan, está abrindo oficialmente a investigação proposta por sua antecessora e ampliando-a para incluir a recente invasão da Ucrânia.

Khan diz ter pedido à sua equipe que aproveite todas as oportunidades para obter e preservar provas e explicou que a abertura do processo poderia ser agilizada se um país membro do TPI pedisse ao seu gabinete que averigue a situação na Ucrânia, o que a Lituânia anunciou já ter feito. A ministra lituana da Justiça, Evelina Dobrovolska, falou por telefone com o seu homólogo ucraniano, Denys Maliuska, informando-o que o seu governo estava “apelando ao procurador do Tribunal de Haia”, de acordo com o Estatuto de Roma. O que foi confirmado pela primeira-ministra lituana, Ingrida Simonyte, ao jornal norte-americano Washington Post.
A Lituânia é um país báltico, portanto vizinho da Rússia, extremamente preocupado com o risco de que Putin avance para além das fronteiras da Ucrânia.

A decisão anunciada pelo TPI é consequência de inúmeras denúncias de crimes de guerra que estariam sendo cometidos pelas forças russas nesta invasão. O embaixador ucraniano na ONU lembrou, dias atrás, que as tropas de Putin atacaram civis e que entre os seus alvos contam hospitais, ambulâncias, escolas, teatros, orfanatos e outros alvos não militares. O embaixador apelou também à punição do líder bielorrusso Alexander Lukashenko, acusando-o de ataques à Ucrânia e de ter oferecido o seu território como base para a invasão russa.
Em Bucha, nesta segunda-feira (4), o mundo viu estupefato as imagens de centenas de cadáveres nas ruas próximas de Kiev, numa região retomada pelas forças ucranianas. De acordo com as autoridades da Ucrânia, mais de 300 corpos foram enterrados em valas comuns. A Rússia contesta a autoria do massacre.

Há de se falar também dos refugiados e deslocados internos, que já somam 10 milhões (o maior número desde a Segunda Guerra), dentre os quais mais de 4 milhões de crianças, ou seja, a metade da população infantil da Ucrânia, segundo a UNICEF.

E isso sem dizer que não houve, por parte da Rússia, nem sequer uma declaração formal de guerra, nem é claro um pedido de autorização para o uso da força à ONU, como exige o Direito Internacional.

O promotor do TPI deve provar que os supostos crimes são crimes de atrocidade: genocídio, crimes contra a humanidade ou crimes de guerra. Mesmo que seja extremamente difícil provar a intenção de cometer tais crimes e designar com certeza absoluta seus autores. Tão difícil que apenas seis pessoas foram condenadas pelo TPI e cumpriram pena.

O Direito Internacional Humanitário é baseado nos princípios de humanidade, necessidade, distinção e proporcionalidade. Um crime de guerra ocorre quando os civis não são diferenciados das tropas militares, quando os danos aos civis não são minimizados e quando há destruição, sofrimento e baixas desnecessárias.

Se um dia o TPI emitir um mandado de prisão contra Putin, ele não poderá viajar para os 123 estados que fazem parte do Tribunal, pois outros Estados podem decidir entregá-lo à Justiça. Mas um mandado de prisão não é uma garantia de condenação. E é difícil, senão praticamente impossível, vincular um chefe de Estado em exercício a crimes cometidos pelas forças armadas no terreno.

Por isso, é quase certo portanto, que não veremos Putin em Haia. Muito embora o candidato a czar venha sendo acusado de violações dos direitos humanos praticamente desde que chegou ao poder, em 1999. Ainda como primeiro-ministro, liderou a repressão do separatismo checheno. Depois, em 2008, no conflito com a Geórgia em torno das províncias da Ossétia do Sul e da Abkházia, as tropas russas foram acusadas de atacar alvos civis. Em 2016, o TPI abriu uma investigação de eventuais crimes de guerra cometidos na Geórgia em 2008. E em 2020, como já dissemos, a promotora do TPI acusou Putin de três crimes cometidos na Crimeia.

De qualquer maneira, independentemente das provas de crimes que o TPI recolha no contexto desta nova invasão da Ucrânia, a possibilidade de Putin vir a sentar-se no banco dos réus em Haia é remotíssima. Primeiro porque a jurisdição do TPI só abrange crimes ocorridos no território de um país-membro ou que tenham sido cometidos por um cidadão de um desses países. Rússia e Ucrânia assinaram o tratado, mas os seus parlamentos não o ratificaram. Há duas exceções: a primeira, como falamos, se refere à possibilidade de um país que não é parte do TPI aceitar expressamente a sua autoridade (o que a Ucrânia já fez), a outra implicaria que a própria ONU levasse a questão ao Tribunal de Haia; um cenário impossível na medida em que a Rússia, juntamente com Estados Unidos, China, França e Reino Unido, é um dos cinco países membros permanentes do Conselho da Segurança com poder de veto.

No entanto, teoricamente não é impossível que Putin possa vir a ser detido e posteriormente julgado em Haia, após ter deixado o poder (se reeleito, poderá ser presidente até 2036). A procuradora-geral ucraniana, Iryna Venediktova, mostra-se confiante de que esse será o seu destino: “Cidadão Putin, habitualmente respeito a presunção de inocência, mas não no seu caso. Provaremos num julgamento justo que você é um assassino e o principal criminoso de guerra do século XXI. Eu, como procuradora-geral do Estado soberano da Ucrânia, e no interior das suas fronteiras, que não são suas, declaro-lhe isto oficialmente: virá o tempo em que lhe direi em Haia, cara a cara.”

Como quase impossível não significa impossível, podemos sonhar com Putin e Bolsonaro vestidos com roupas listradas, sentados lado a lado no banco dos réus do TPI, ouvindo a sentença de condenação à perpetuidade pelos crimes cometidos. Bolsonaro terá então todo o tempo livre para negociar a compra de fertilizantes enquanto Putin ensina xadrez ao “ilustre” colega.