O Poeta estava ali, forasteiro, olhando o pó de florestas moídas e, então, ela veio e entrou pelos corredores apressadamente e foi deixando os sapatos, altos e pretos, pelo portão.
Aqueles sapatos lançados ao chão resmungaram uma voz concentrada, como se fosse possível ouvir por intermédio deles a voz musical distante, intensa. Porque há mulheres que usam os pés para dançarem, mas, outras, usam-nos para primeiro gemerem e depois para se libertarem, para o salto que as tire da cola asfáltica e o impulso que arrebente paredes – e muros.
Quem tira os sapatos busca a leveza e o conforto de um ato libertário – busca o mar, e busca a brisa, e busca o estado de comunhão, e busca a poesia, e busca aqueles olhos que enxerguem, e busca o espaço, e busca o vento, e busca a tempestade, e busca o toque das mãos feito escultura renascentista.
Em algum ponto dos pés femininos começa o caminho ao paraíso!
Ela, então, agora descoberta mulher e gente, tirou os sapatos e os manteve ali, jogados, feito símbolo de resistência e escárnio, marco de libertação, desenho melódico, expressão de inteligência, convite ao encontro dialógico pleno. Aquela mulher tirou os sapatos em busca da pele, dos poros e do corpo, em busca da alma que transita pelas veias, e da vida que organiza os músculos e arrebata os seios, em busca da luz que cintila nos lábios e faz dilatar as pupilas.
Aquela mulher tirou os sapatos porque as asas não estavam em suas costas, mas, nos pés, e ela buscou asas em seus pés, asas que a levassem para as cabanas alpinas, de onde chegara o Poeta, e para beber na mão da Poesia ou, quem sabe mais próximo, ao alcance de um dedo, nas vias e pousadas andinas ou, simplesmente, para o risco de um verso possível no encontro de gente e seres apenas.
E, agora, Aquela mulher, Esta mulher, tão próxima assim, com os pés soltos, sapatos jogados, pisaria uvas com intensidade, cantando e dançando por toda a noite. Ela ergueria os vestidos para pisar uvas mais profundamente ainda e, ao amanhecer, lançaria mais uvas ao lagar e continuaria cantando alegremente com os vestidos levantados, mergulhada em vinho e poesia, poesia achada na rua, no corredor, no portão e naqueles pés, agora, libertos.
Ela ergueu o homem das camadas inferiores e o colocou em pé, ensinando-o as notas musicais e o fez abrir os olhos e ver ali, diante de si, o elemento feminino transbordando música e vida! A Torá deu, enfim, sentido ao homem, e deu encanto, inteligência e poesia à mulher, e cada uma de suas letras afogueadas desde o alto, brilha em uma coroa que movimenta e organiza sabedoria e compreensão, bondade, poder e beleza, eternidade, esplendor e fundamento e, por isso mesmo, o reino da humanidade vai se estabelecendo em busca de harmonia e paz. A Torá é para a humanidade como presente – e para alguns como experiência de vida!
Por isso mesmo amo a Torá, porque não estou só no mundo e em qualquer parte reconheço meus pares que se vestem dela. E não importam quais sejam aqueles que investem contra nós (de dentro ou de fora), de ontem e de hoje, com lanças ou tiros, discursos ou fogo – ela alimenta uma alma plenamente agigantada na sua experiência! Ela renova minhas forças a cada vez que ergo um menino nos seus primeiros dias de vida ou ouço o nome de uma filha anunciado como disposição de bênção de seu pai. A Torá nos leva à Bimá – e não o contrário, onde somos profundamente humanos porque dali e em direção ao sol nascente nossas faces são iluminadas e voamos ao centro do mundo, ao lugar por onde passaram Shem – o Mestre de Justiça, e Avraham, Ytzchak e Ya’akov. O lugar por que sonhou Moshè rabenu!
Mas, ela não me aliena. Não me faz desperdiçar energia com fantasias nem com o desconhecido além do rio. Ela me remete à minha boca, ao meu peito, às minhas mãos, aos meus pés e aos meus olhos. Ah, eu amo a Torá porque ela me faz amar meu corpo plenamente abençoado por HaShem e, sobretudo, porque, tomado pela mão, ela me ajuda a construir um mundo de sentimentos bons e em seu contexto crio tantas coisas boas, desde o campo ao espaço, das águas aos desertos, de onde tiro a multiplicação do meu pão, e abro asas de fogo, e transformo sal em vida, e faço nascer o algodão e a romã. A Torá me realiza e me dá o poder de discernimento do sim e do não, da proximidade e da distância, e da solidariedade.
Eu amo a Torá porque ela me ensina o tempo e o espaço, onde vivo na máxima expressão humana. E me ensina a ver tudo como Jardim do Eterno, pois não importa onde esteja ou aonde eu possa vá, seja no hemisfério sul ou norte, no gelo perpétuo dos Alpes ou na Floresta Amazônica, no vale verdejante do Jordão ou na solidão do Neguev, no leste ou oeste – em qualquer lugar, em qualquer terra, em qualquer mar, por onde navego, ou céu, por onde voo. Não importa a cor das pessoas que encontro, se negras, brancas ou orientais – em tudo e em todos a Torá me ensinou a música e a partitura em que ouço o devir dos Espíritos do Eterno e sua voz abençoando o Poiema de sua Justiça e a Poiesis de sua Misericórida em um eco continuado e imutável, dizendo: é muito bom!
Por isso ouço compositores e musicistas, e sopranos, tenores, barítonos, contraltos e baixos, e as vozes de meio, sejam italianos, judeus, árabes, alemães, espanhóis ou brasilianos, de hoje e de séculos passados, porque me parece que todos os que são feitos de música e de poesia querem alcançar os acordes e a melodia deste “é muito bom!”.
Por isso, também vejo dançarinas que abrem seus braços como as asas da borboleta e mulheres em um ritmo do voo da águia – porque me parece que todas as mulheres que são feitas de delicadeza e doçura, inteligência e força, dança e asas, querem revelar algo daquele elemento feminino que cobriu um mundo sem forma e vazio e lhe deu colorido e beleza. Porque em cada voz em soprano ou contralto, em cada passo da dança da águia elas mostram o porquê da mulher ser a Bênção criativa do Eterno!
Ah, como eu amo a Torá! Porque ando com meus filhos e filhas pelo campo e pela neve, no sol ou na chuva, e tudo que vejo abençoa o Nome do Eterno – e não lhes ensino a reza, mas a vida, a sensibilidade, o sentir cada passo e a brisa no rosto. E porque ela, a Torá, me faz repousar em paz, sem medo nem pesadelo, quando durmo apenas descanso, e não grito nem choro, porque o pão que divido com as mãos para meus filhos e filhas formou-se dos princípios vívidos de Torá!
Então, o fogo da Torá me leva ao máximo de minha humanidade, e onde estou, dos poros brotam energias de comunhão com o bem e com a paz. Por isso mesmo, antes de um livro de rezas, dei um piano, um violino e uma flauta aos meus filhos e, ainda, antes de ensinar as bênçãos da manhã, da tarde e da noite, ensinei as notas musicais, simplesmente porque elas vieram primeiro. E, além disso, alguém que não saiba música nem apreciar música, que não saiba dançar nem apreciar a dança, que não saiba andar pelo campo ou pela neve, que nada saiba de elemento feminino ou da mulher como bênção do Eterno, não saberá o que significam as bênçãos da manhã, da tarde e da noite…
E quando me debruço sobre o Sêfer, a Torá me permite ver na superfície multicolorida da letra-princípio e aprofundar, ainda, em mares profundos das idéias humanizadoras, abrindo conexões sutis de insights vigorosos até, enfim, voar como águia em busca do brilho da coroa de que emanam as Forças da Criação!
Mas, ao passar pelas suas letras, nada encontro que me leva à obscuridade religiosa, porque não a busco pela morte, mas pela vida. Amo a Torá porque ela me mantém à distância dos desvarios religiosos multifacetados! Porque ela me ensina que o Eterno me abençoou para viver e não para morrer, para expandir e não para cair moribundo, com culpas opressivas, para ser libertário, o que significa que a liberdade é para todos e todas, contra toda sorte de idolatrias, coisificações, mitificações e submissões…
Amo a Torá porque ela me faz ver em profundidade e extensão, porque me dá saúde e paz, e nela não tropeço nem manco. Porque nela todo deserto se converte em jardim e todo gigante em pão. Amo a Torá porque ela é uma canção para a minha vida e por ela abençôo o Nome do Eterno. Amo a Torá porque ela fez pessoas diversas, e em suas pluralidades, me abençoarem à distância, em tempos remotos,e por ela, abençôo meus filhos e filhas, e aqueles que viverão à distância em tempo remotamente futuros.
Pietro Nardella-Dellova é Poeta, Professor, Escritor e Pesquisador. É Doutor e Mestre em Direito/Filosofia do Direito (pela UFF – Universidade Federal Fluminense e pela USP – Universidade de São Paulo). Doutor e Mestre em Ciência da Religião/Literatura/Judaísmo (pela PUC/SP). Pós-graduado em Literatura. Pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil. Graduação em Filosofia e Bacharel em Direito. Pós-doutoramento PUC/SP.
Professor, desde 1990, de Filosofia, Literatura, Ciência Política, Direitos Humanos, Direito Civil e Direito Hebraico. Atuou na Advocacia Operária no Sindicato dos Trabalhadores/CUT. De 2000 a 2011, foi Coordenador Acadêmico de Cursos de Direito. Desde 2004, atua também na Pesquisa CNPq “Direito Civil Constitucional, Teorias Críticas, Direitos Humanos e Educação Jurídica” e “Direito e Religião”. Bolsista CAPES, e Pesquisador do GP CNPq/PUC-SP do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciência da Religião da PUC/SP.
Professor de Direito Civil e Filosofia do Direito, assim como Coordenador do Curso “Análise Econômica do Direito”, na EMERJ – Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. É Autor de vários livros, entre os quais, DIREITO CIVIL REL OBRIGACIONAIS, Vol 2 (2024); DIREITO CIVIL TGDC, Vol 1 (2023); DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL (2023); “PIERRE PROUDHON E SUA TEORIA CRÍTICA DO DIREITO: PROUDHONISMO, PROPRIEDADE E KIBUTZIM” (2021); DIREITO, MITO E SOCIEDADE (2020); ANTROPOLOGIA JURÍDICA (2017). Publicou os livros de Poesia AMO; NO PEITO; ADSUM e o A MORTE DO POETA NOS PENHASCOS (2009). Foi Articulista convidado pela Folha de SP (1990-1992), da Revista Z, (2000-2014). Prepara os livros JUDAÍSMO E DIREITOS HUMANOS (no prelo) e CRISE SACRIFICIAL DO DIREITO, UM ESTUDOS DOS SACRIFÍCIOS HUMANOS, ABUSO DA PROPRIEDADE, DIREITO SACRIFICIAL E JUSTIÇA.
É Coordenador da REVISTA DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL. Apoia o Grupo Martin Buber (Judaísmo, Islamismo e Diálogo entre Israelenses e Palestinos), Itália, e o Grupo MUSLIM-JEWISH SOLIDARITY COMMITTEE, de NY. Membro das Comissões da OAB (Bioética; Direito e Liberdade Religiosa, OAB/SP, e do Conselho de Notáveis da OAB/BC, SC); membro da UBE, União Brasileira dos Escritores, SP, e da Accademia Napoletana, Napoli. Desenvolveu estudos no Seminário Rabínico Latinoamericano Rabino Marshall T. Meyer, de Buenos Aires, Argentina.
Atualmente está ligado à HUJI – Universidade Hebraica de Jerusalém, Israel, onde desenvolve estudos sobra a Filosofia e Educação Judaicas e suas conexões com os Direitos Humanos.
É Pesquisador do Programa de Estudos Pós-graduados (pós-doutoramento) da PUC/SP no tema “Religião, Ciência Política e Neofascismo”