Estudos para uma bailadora andaluza e a Carmen em cada uma de nós

Estudos para uma bailadora andaluza e a Carmen em cada uma de nós

Subida ao dorso da dança

(vai carregada ou a carrega?)

é impossível se dizer

se é a cavaleira ou a égua.

Ela tem na sua dança

toda a energia retesa

e todo o nervo de quando

algum cavalo se encrespa.

Isto é: tanto a tensão

de quem vai montado em sela,

de quem monta um animal

e só a custo o debela,

como a tensão do animal

dominado sob a rédea,

que ressente ser mandado

e obedecendo protesta.

Então, como declarar

se ela é égua ou cavaleira:

há uma tal conformidade

entre o que é animal e é ela,

entre a parte que domina

e a parte que se rebela,

entre o que nela cavalga

e o que é cavalgado nela,

que o melhor será dizer

de ambas, cavaleira e égua,

que são de uma mesma coisa

e que um só nervo as inerva,

e que é impossível traçar

nenhuma linha fronteira

entre ela e a montaria:

ela é a égua e a cavaleira.

(João Cabral de Melo Neto)

Era uma matéria eletiva do doutorado. Mergulhada em Camões, Pessoa, Fernão Lopes , Vieira, Alexandre Herculano, porque sou dessas, gosto do antigo, resolvi me matricular numa matéria cujo tema era Clarice Lispector. Dividi a sala com Maria Teresa Cerdeira, que hoje é das maiores especialistas na obra clariceana, era um pessoal diferente, gente mais jovem, mais escolada, tempo que podíamos fumar na sala e, não raro, barzinho com o professor depois da aula.

Clarice , assim como Dina Sfat, Yara Amaral e Lilian Lemertz, eram daquela cepa de mulheres que paira um mistério. Todas, sem exceção, morreram cedo. Uma vez, ao ler um conto de Clarice, perguntei ao meu pai como ela era. Meu pai dirigia o Museu Imagens do Inconsciente e algumas vezes ela estava lá, levando o filho que tinha esquizofrenia para pintar. Achei interessante ele só me responder: ”Tinha uma cara angulosa como a sua”. Ainda era muito nova para saber dos eslavos e suas feições, que como falei anteriormente, herdei do meu bisavô Domingos. Foi o bastante para me sentir bonita. A outra relação familiar era com o escritor Lucio Cardoso, amigo do meu avô Arthur, melhor amigo da escritora e, talvez, o seu grande amor, que só não foi realizado pela impossibilidade, por Lucio ser gay. Meu pai pegava seu fusquinha, ia até Ipanema e buscava o autor de Crônicas da Casa Assassinada, levando-o para passar a tarde com minha família, no casarão que tive a sorte de crescer. Quando ele morreu, eu ainda não era nascida, mas almoços feitos com esmero pela minha avó, cercado de intelectuais, ficou na história familiar.

Muito se fala e escreve sobre Clarice, e não é esse objetivo do texto. Apenas é um mote. Queria falar de uma das minhas colegas, uma loira de longos cabelos e olhos azuis, que ficava no canto da sala sorvendo tudo que era dito pelo professor. Ela não era de interagir muito, o que atiçou minha vontade de entrar no seu mundo. Dizem que estereotipar os outros é horrível, mas eu tenho uma opinião sobre pessoas caladas. Ou observam a tudo e tem muito o que dizer, só falando a quem lhes interessa ou são uma nulidade mesmo.

Não era o caso dessa moça. Por um lance do destino nos encontramos no café e sentamos na mesma mesa. Acho que ela nutria uma certa simpatia por mim e entramos num assunto proibido. Não há coisa mais desagradável que perguntar sobre a tese de alguém que está se matando para escrever. Falei por alto que estudava o Padre Vieira, ela riu, porque aqueles meus cabelos cacheados, vestido hippie comprido, não eram bem o padrão de quem está mergulhando na obra de um jesuíta. Ficamos a vontade, e ela então , com sua voz suave, começou a discorrer sobre o seu tema. Me disse ser apaixonada por dança e sua tese, vou resumir aqui, era sobre João Cabral de Melo Neto, mais precisamente sobre a Poesia “Estudos Para uma Bailadora Andaluza”. Contou de forma detalhada sobre a formação da Andaluzia, aquele caldeirão cultural de ciganos, judeus, árabes Ela falava com uma voz tão meiga que me lembrava a apresentadora Paula Saldanha, de O Globinho da minha infância. Falou–me sobre a música, o sapateado, os movimentos fortes que desvelam o canto, as ideias de sentimentos aparentemente díspares que evocam o medo, a tristeza, a tragédia, a alegria. Obviamente ganhei uma aula sobre João Cabral de Melo Neto, quando foi diplomata nessa região e se encantou com aquela expressão artística. Achei graça, porque sempre soube que o poeta não era lá admirador de música, sempre foi amante das artes plásticas. Já tomado pela cegueira, ele confessava aos seus pares e amigos: ”Antes tivesse ficado surdo do que cego”. Chico Buarque, em uma entrevista, comentou sobre o seu topete, quando jovenzinho, de musicar Morte e Vida Severina, sabendo posteriormente que o autor nunca foi chegado a canções.

E essa moça exprimia-se de uma forma tão apaixonada, que seus olhos plácidos se tornaram tremendamente azuis. E ela pôs-se a falar da dançarina andaluza batendo forte o pé no solo,  o que seria uma ligação entre o chão e o ar através dos pés e das mãos. Ligando o céu à terra. Uma dança telúrica, precisa, onde música e dança tornam-se uma coisa só. Sensualidade, delicadeza, disputa, todas as emoções humanas contidas ali. A dançarina andaluza afirma a gravidade. Seu trabalho consistia em fazer um contraponto entre a dançarina andaluza, que firma os pés no chão e a bailarina clássica, que ao contrário, se esforça para ir contra a gravidade. Ao vermos uma bailarina clássica flutuando, até esquecemos dos treinos exaustivos e métodos e técnicas sobrehumanas a que se submetem  para atingir a perfeição. Quem viu os pés de uma bailarina desnudos sabe do que estou falando.

Eu poderia terminar essa reflexão falando sobre as diferenças entre Portugal e Espanha, sobre até como os santos espanhóis são mais animados , vide Santa Teresa D’ávila e seus arrebatamentos. Ou entrar numa discussão infrutífera de quem foi mais filho da puta  no processo de colonização, ou até sobre o caráter melancólico dos portugueses e a extroversão de seus vizinhos.

Essa moça, da qual não lembro sequer o nome, me fez pensar em outro fato. Quando D. Sebastião cometeu a burrice de embarcar numa missão suicida ,a fim de combater os mouros no Marrocos em 1578, e foi “morrido” na Batalha de Alcácer-Quibir, sem deixar descendentes. O rei da Espanha, em agosto de 1580, foi proclamado rei de Portugal. E da porra toda, inclusive do Brasil. Foi assim que o Contreras, meu antepassado espanhol, veio parar aqui em Pindorama. Engenheiro militar, atravessou o oceano  a mando  de Felipe II, em outras palavras, nasci pela estupidez de um carola de 24 anos. Minha bisavó Anna, descendente direta dele, foi uma mulher muito a frente de seu tempo, foi tesoureira da primeira greve de mulheres no Brasil, professora de francês, sufragista, dela herdei os olhos tristes e a teimosia.

Por outro lado, ao falarmos de literatura e século XIX, não há como desvincular a figura de Carmen, no romance de Prosper Merinée, do arquétipo de mulher fatal. Cabelos negros, olhar forte como de uma Irene Papas em Zorba o Grego (ok, licença poética, Carmen era espanhola, mas aquele olhar desafiador da personagem da grega Irene tentando pegar a sua cabra de volta dos homens do povoado está gravado na minha retina), aquela cuja beleza e graça intrigam. Fascinam. Uma bandoleira que vive de contrabandos, encantos e bruxarias. Aquela que envolve o homem em perigo, visto ser dona de seu destino. Indomável, Apesar do tempo e das versões, uma réplica simbólica se presentifica em  Carmen:” Eu não quero ser atormentada, muito menos comandada. O que quero é ser livre e fazer o que me agrada.”. Nada importa mais a ela que a liberdade. E é esse desafio a sociedade patriarcal que a leva a um fim tão trágico. O conto de Merineé foi escrito há 175 anos atrás.  Segundo as atuais estatísticas, morrem hoje dez mulheres por dia de feminicídio no Brasil. Faço portanto minhas as palavras de Giovanna Dealtry: Enquanto houver dia ou mês de qualquer minoria é porque ainda não somos “gente”. Era só isso mesmo.

Elegia a Lorenzo

Elegia a Lorenzo

Neste mês,as cigarras cantam

E os trovões caminham por cima da terra,

agarrados ao sol.

Neste mês, ao cair da tarde, a chuva corre pelas montanhas,

E depois a noite é mais clara,

E o canto dos grilos faz palpitar o cheiro molhado do chão

Mas tudo é inútil.

Porque os teus ouvidos estão como conchas vazias,

E a tua narina imóvel

Não recebe mais notícias

Do mundo que circula no vento

(Cecília Meirelles)

Das inúmeras versões das fábulas de Dafne, que calcula-se ter surgido na Grécia na segunda metade do século II a.C, por mais variações que tenha adquirido ao longo do tempo, possui uma mesma sequência narrativa. Apolo, filho de Leto e Zeus, irmão gêmeo de Artêmis, tem aquelas qualidades que a gente não encontrará jamais nos usuários do Tinder. Lindíssimo, há quem diga ser o mais bonito de todos os deuses, toca lira divinamente, exímio conhecedor da medicina, ele é o sol, a luz, a juventude, a poesia. Sabemos da fama de seu pai e obviamente ele e a irmã foram uma pulada de cerca do deus dos deuses. Hera, a patroa oficial de Zeus, tomada por ciúmes, ao descobrir a traição ordenou que Píton, uma gigantesca cobra nascida da lama e do dilúvio, fosse catar a amante do marido onde quer que estivesse e acabasse com a raça daquela “vagabunda” (palavras de Hera). Apolo porém, o boy delícia, com flechadas certeiras matou a serpente.

Apolo, por esse feito, recebeu fama e como consequência, foi tomado pela vaidade. Eros, enciumado, resolve aplicar-lhe uma lição. Lançou-lhe uma flecha de ouro e o fez apaixonar-se pela Ninfa Dafne. Fez o mesmo com ela, porém arremessou-lhe uma flecha de chumbo. Resultado: Enquanto Apolo foi tomado por uma paixão profunda, Dafne tomou horror do deus, uma verdadeira repulsa. Apolo tentou de tudo para aproximar-se da ninfa, mas acabou por ser condenado a um amor dilacerante não correspondido. Cego pelo sentimento, passou a persegui-la. Ela, desesperada, fugiu e pediu ao próprio pai, Peneu, que desse a ela uma forma para que ninguém se apaixonasse. O pai a metamorfoseou em um loureiro e Apolo então anunciou ser essa a sua planta favorita, decidindo dar coroas de louro a todos aqueles que realizassem atos de heroísmo. Tanto na Grécia, quanto em Roma, a coroa de louros era o principal símbolo de glória para gregos e romanos.

O que adoro nesse mito, e isso tem a ver com toda a carga de humanidade que os deuses gregos possuem, é que até o fodão dos deuses sofreu por amor não correspondido. Foi assim comigo, o meu primeiro amor, aquele ser que tocou fundo minha alma infantil. Que me deixava sem respirar. Quero explicar que criança tem outro padrão estético. Nelson Rodrigues, por exemplo, aos seis anos de idade, achava uma das mulheres mais lindas do mundo a lavadeira de sua casa, uma negra gorda com um bócio enorme. O objeto de minha devoção era um caçador de cabeças maori (e que acabou sendo caçado) dentro de um frasco de formol, no Museu Nacional. Passei muitos anos visitando-o, desde a mais tenra idade até passado os meus trinta anos, Estão impressas na minha memória cada linha das tatuagens de seu rosto. Aqui confesso, despida de todo e qualquer pudor, que ao ver o incêndio terrível do Museus Nacional, com tudo que implicou, inclusive ver minha infância virar cinzas, chorei muito por ele. Por esse amor de uma vida inteira. E o pior, sem a menor possibilidade de reencontro.

Toda essa introdução é para falar dessas últimas semanas. Foi confusa, difícil, o que não faltou foi gente chorando de tristeza porque não terá mais o Genocida no comando do país. Mas não quero julgar. Antes do Exalta Samba lançar seu sucesso “Me Apaixonei pela Pessoa Errada”, o Maníaco do Parque já era o maior campeão de missivas de amor no presídio. O que me incomodou mais que tudo, nem foi a Kate Marrone de Ribeirão Preto de arma em punho perseguindo um negro na véspera do pleito (até porque no frigir dos ovos ela e o Bob Jeff fizeram mais pela eleição do Lula que o Janones), nem o Bozo no último debate falando em problema de “prosta” e usando a palavra mioma no lugar de bioma natural, mostrando que foi aluno aplicado do coach Sergio Moro. O que me pirou nem foi a tentativa de golpe ridícula de travar as estradas, muito menos o Bozo e seu manifesto de 2 minutos e alguns segundos, depois do silêncio de dois dias. Se ele for assim transando com a Micheque, usando o papo de “desculpa amor, é porque vc é muito gostosa”, irmã, melhor pedir pra Damares fazer uma terapia de conversão sexual no Agostinho, pelo menos ele vai te maquiar, te botar lá em cima e te levar para umas baladas bem dignas. O que me importunou não foi ver a tia do zap ajoelhada na Esplanada dos Ministérios, com as raízes dos cabelos pretos e o resto amarelo gema, vertendo lágrimas e rímel preto escorrendo pela cara, porque querida, se num comprou uma maquiagem à prova d’água é que a coisa não tá tão bem assim, né minha consagrada ? Nesses 4 anos perdi pessoas de VERDADE, por conta da irresponsabilidade desse pilantra e claro que fiquei mexida com os bozoafetivos botando fotinho de Luto porque o Capetão vai embora. Mas aí é só usar a minha liberdade de expressão, mandar pra casa do caralho e seguir. O que me pegou mesmo, na veia, nesses dias subsequentes e anteriores a eleição transformam esse suco Brasil estragado  numa grande bobajada.

Para me fazer entendida, convido-os a voltar a República Velha e seu último presidente. O presidente On The Road. Washington Luis, o homem que acreditava que as estradas eram o caminho do progresso do Brasil, não a toa, chamada de “Estradeiro”. Nasceu em Macaé, no Rio, em 1900, mas toda a sua carreira política foi feita em São Paulo. Cidade de que conhecia mesmo, não tarcisicamente falando. Passou três décadas na vida pública e, pelo que apurei, trabalhando mesmo. Basta falar que enquanto parlamentar atuou de forma exemplar na epidemia da gripe espanhola.

Assumiu a presidência da República em 15 de novembro de 1926. Sobre sua vida pessoal, apesar de casado e com filhos, era muito mais animada que a nossa. Era chamado de “Rei da Fuzarca” e um aficcionado por marchinhas de carnaval. Dois fatos importantes em sua vida em 1928: Foi baleado pela amante, uma marquesa italiana jovem e formosa ,Elvira Vishi Maurich, no Copacabana Palace. Foi internado e a versão oficial era de que havia  tido uma crise de apendicite. Quatro dias depois a nobre italiana foi encontrada morta pela polícia, motivo: Suicídio. Ah tá. E agora vem outra ação da sua parte nesse mesmo ano: CRIAÇÂO DA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL. Em 1930 foi deposto, uma Junta Militar assumiu a presidência, entregando-a a Getúlio Vargas. Como bom escorpiano, na despedida do Palácio do Catete, planejou vingacinha contra Getulão. Pediu ao mordomo que escondesse a faixa presidencial, símbolo delegado pelo povo. O mordomo foi tão eficiente nessa função, chegando a escondê-la no próprio corpo, que Getúlio nem viu a cor da faixa. Esta só chegou as mãos de GV em 1934, quando ele assumiu o cargo após a eleição constituinte.

Pois bem, vamos agora a Polícia Rodoviária Federal. Segundo a Constituição, seu papel é o patrulhamento ostensivo e preventivo das rodovias federais, para evitar as ocorrências de atividades criminosas que se utilizam destas rodovias, como o tráfico de drogas. É vedado a ela investigação criminal, caso identifique um crime, seu papel é registrar e repassar para a PF. Daí o meu espanto ao ver que na manhã do dia 24 de maio desse ano, uma operação conjunta com a PM e a Polícia Rodoviária Federal deixou um rastro de 23 mortos na Vila Cruzeiro, a segunda incursão mais letal desde a do Jacarezinho ,que ceifou a vida de 28 pessoas. As desculpas dadas ,de roubo de carga , para justificar a presença da PRF, não se sustentaram. O presidente Bolsonaro, como de praxe, chamou os policiais de “bravos guerreiros”. Mesmo a Defensoria Pública munida de provas contundentes que houve execução sumária, que moradores que não tinham nada a ver com o babado foram mortos, o Corno Mor da Nação , que faz seus asseclas apresentarem projetos de leis que não responsabilizam os policiais, parabenizou os assassinos de farda , por neutralizarem os “marginais”.

É importante salientar que em 2020, o então diretor geral da PRF, Adriano Furtado, foi demitido. Seu erro: Publicar nota de pesar pelo falecimento de um membro da corporação de covid, naquele momento que Bozo era muito criticado pela condução dada a pandemia. Em maio de 2021, justamente no momento da carnificina da Vila Cruzeiro, Silvinei Vasques, amigo pessoal de Flavio Bolsonaro, foi premiado com o cargo. Ou seja, se a PRF já emitia sinais de alinhamento com o bolsonarismo, a ascensão de Vasques só intensificou esse processo. Segundo o Globo “Durante o atual governo a corporação foi contemplada com recursos para a construção de novas sedes, aquisição de helicópteros, etc. Também passou a ser utilizada em investigações , ampliando a sua função para além da fiscalização das estradas”. Não podemos esquecer o protagonismo que a PRF ganhou com episódios que beiram as técnicas nazistas, como GENIVALDO DE JESUS SANTOS, morto por asfixia no porta-malas de uma viatura da PRF, no litoral de Sergipe, em julho desse ano. Ele foi parado por agentes e, ao reclamar da abordagem e estar sem capacete, foi jogado à força num compartimento de trás do carro , onde foi atirado gás lacrimogênio, criando uma câmara de gás. Só para perversidade da situação assumir nível máximo, a família recebeu, três meses depois da morte do rapaz, uma correspondência da Corporação. Até acreditaram inocentemente que era um pedido de desculpas. Por estar sem capacete naquele dia, sem habilitação e de sandálias, Genivaldo foi punido: recebeu quatro multas da PRF. O valor total: R$ 1800.

O fato é que não foram mudanças legislativas que determinaram essas novas atribuições. Uma portaria do Ministro da Justiça, estabeleceu que a Polícia Rodoviária Federal pode ir além das suas funções. Sobre os bloqueios dos “ditos” caminhoneiros e de mais um papel vergonhoso na condução dessa corporação, a imprensa tem falado exaustivamente sobre. O que posso afirmar é que o confronto de Bolsonaro com a PF, relacionado a aumentos salarias não concedidos para a categoria, foi o caminho para que a PRF se tornasse a sua guarda pretoriana.

Vamos aqui ao que realmente me deixou muito mal. No dia 27 de novembro, três dias antes da eleição, o agente rodoviário federal Bruno Vanzan, foi assassinado numa tentativa de assalto na Transolímpica, no Rio de Janeiro. Então foram helicópteros da PRF, homens da corporação, sobrevoando e procurando os meliantes em todo o entorno. Através de uma denúncia anônima, ficaram sabendo que o carro do policial estava no Complexo do Chapadão. Óbvio que chegaram tocando o terror. Não é o presidente deles que diz que na favela só moram marginais ?  Lá, apreenderam dois menores e neutralizaram o segundo, alegando que o menino era do tráfico.

O “neutralizado” se chamava Lorenzo Dias Palinhas. Tinha 14 anos. Segundo seu avô e outras testemunhas, um dos policiais abordou ele, revistou, mandou que subisse na moto e, ao subir, foi alvejado na cabeça, de costas. Execução sumária. Lorenzo ajudava a mãe fazendo entregas de sanduíches na favela. Morreu com dez reais numa mão e um guaravita na outra. Estudava. Os moradores, como sempre ocorre quando se trata de um inocente, se mobilizaram. A PRF ainda tentou mandar o caô que foi bala perdida, mas as testemunhas, que não são poucas, desmentem essa versão. Como muitos meninos carentes, seu sonho era ser jogador de futebol e aguardava ansioso o jogo para vaga nas Libertadores,

Iniciei essa crônica falando do mito de Dafne e Apolo. A etimologia do nome Lorenzo vem de: ”aquele natural de Laurento”, que foi uma das mais importantes cidades do Lácio, no Antigo Império Romano. Laurento vem do latim laurus, louro e Lorenzo significa: ”coroado de louros”. Foi negada a Lorenzo a alegria de um primeiro amor. Ele não vai, como Apolo (e todos nós em maior parte) sofrer pela dor do amor não correspondido. Ele sequer viu o tão esperado jogo do Flamengo. Vi a imagem de seu avô, um vigia, quase da minha idade, e de sua mãe, inconsoláveis no enterro e só consegui chorar. Por todas as vítimas desse Governo Fascista deixo aqui o nome do Lorenzo, que ao invés de uma coroa de louros, simbolizando a vitória por terminar um curso, iniciar uma profissão, recebeu uma coroa de flores de defunto, para ser enterrado. O Chapadão é um complexo que tem um dos IDHs mais baixos do país e um número gigantesco de evasão escolar. No dia que pararmos de identificar como nossos as crianças que se parecem com nossos filhos, brancos e de classe média e percebermos que independente de qualquer coisa o filho de uma é o filho de todas, talvez seja o pontapé para uma mudança. Todo o meu sentimento, meu abraço apertado na família de Lorenzo. E sim, o tamanho dessa dor é imensurável. Que se faça justiça. Era só isso mesmo.

Sobre Cartomantes

Sobre Cartomantes

“Já está escrito, já está previsto
Por todas as videntes, pelas cartomantes
Tá tudo nas cartas, em todas as estrelas
No jogo dos búzios e nas profecias
Ahhhhhhh
Cai o rei de Espadas
Cai o rei de Ouros
Cai o rei de Paus
Cai não fica nada
Cai o rei de Espadas
Cai o rei de Ouros
Cai o rei de Paus
Cai não fica nada”

(Ivan Lins)                                     

Era uma viagem um pouco longa. O taxista, para mim um senhor (deveria ter minha idade na época) começou a puxar conversa. Dei corda e lá pelas tantas estávamos falando de tarô, baralho cigano e outras artes divinatórias. E foi então que ele me contou uma história deliciosa. Ele queria se casar, juntou um dinheiro e foi até o Catete, local onde ficava o famoso cinema Azteca e virou uma galeria. Lá comprou um par de alianças. Porém, antes de pedir a moça em casamento, achou por bem consultar uma cartomante e vidente. Chegando na mulher, em bairro afastado do Rio, falou que queria pedir a mão da namorada, mas antes queria consultá-la. A mulher pediu as alianças, que ele levava numa caixinha de veludo sem nada escrito. Fechou os olhos, meio em transe, perguntou: ” Essa moça é estrangeira ?” Diante de sua negativa, falou:  ”Porque estou vendo algo relacionado com os astecas”. Sim, o nome da galeria que ele adquiriu as alianças. E completou: ”Vai sem medo menino, essa moça vai te fazer muito bem”. Ele boquiaberto, impressionado com a história do Azteka, seguiu o conselho da mulher. E me disse orgulhoso: Vinte cinco anos juntos e felizes!

Segundo os antigos gregos, nossas vidas estão nas mãos das Moiras, filhas de Nix, a deusa da noite. Elas são as tecelãs de nossos destinos. Cloto, engendra o fio da vida, Láquesis, puxa e fia a nossa história e cabe a   Átropos, cortar o final. É uma ideia de um destino preconcebido, em que nascemos com um caminho determinado. Cabia a um oráculo tentar mostrar as surpresas dessa estrada, talvez barganhar, para tentar um pouco mais de tempo na Terra. As Moiras estão acima dos deuses. Do jeito que encontramos cartazes por aí prometendo a volta de um amor em três dias (via de regra querem sempre um embuste de volta, afinal, segundo o grande filósofo Hegel: ”figurinha repetida não completa álbum”) , baralhos ciganos, tarot e outras artes divinatórias, o brasileiro muito acredita nisso. O esporte aqui é passar a perna nas Moiras. Até nelas, três simples costureiras, enfiadas num subterrâneo, idosas, vivendo insalubramente como escrava boliviana em fábrica de confecções em São Paulo. Todo mundo sonhando em dar um golpe nas véias.Em vão, porque chegou a hora não tem para onde fugir.

Ao contrário dos meus compatriotas, nunca estive numa cartomante. Mas vivo coisas estranhas que parecem trama do destino. Recém-chegada no mestrado, meninota de vinte e poucos anos, numa turma que a maioria já era bem mais velha e tinha experiência em sala de aula, fui acolhida por uma mulher com uns 20 anos a mais  que eu. Icleia, era seu nome. Ela, na década de setenta, havia estudado com todos os nossos professores, inclusive estava de volta ao mestrado pela segunda vez. No primeiro, já terminando os créditos e se preparando para escrever a dissertação, tomou-se de amores por um francês e largou tudo para viver em Paris. O que a fez gostar de mim foi que no dia da prova eu estava com uma saia indiana, cheia de colares e ela lembrou do tempo que era jovem. Achou interessante uma moça de outra geração estar vestida com roupas setentonas. E foi se aproximando. Com ela aprendi todos os códigos velados que regem a academia, soube também de todas as fofocas de bastidores que envolviam seus antigos colegas de classe, agora nossos professores. E nos tornamos muito amigas, apesar da diferença de idade. Um dia Icleia me ligou e perguntou: ”Céu, seu pai por um acaso foi aluno da Georgina Albuquerque ?” Eu realmente não sabia, aliás nem sabia quem era essa senhora, então aproveitar o ensejo e falar um pouco sobre ela. Nascida em 1885, Georgina foi a primeira brasileira a se matricular na Escoa Nacional Superior de Belas Artes em Paris. Foi a primeira mulher brasileira a se firmar como artista internacionalmente, antes de 22.  Suas pinturas são fortemente influenciadas pelas técnicas pictóricas do Impressionismo, foi também a primeira mulher a dirigir a Escola Nacional de Belas Artes. É considerada pioneira em vários ramos da arte. Abriu uma escola de desenhos para crianças talentosas e sim, meu pai foi seu aluno.

Ao responder que sim, a história tomou corpo.  A irmã da Icleia trabalhava no Arquivo Municipal e muitos anos atrás, ao receber trabalhos de ex-alunos da pintora, encantou-se com uma aquarela. Pensou em emoldurar, mas o tempo foi passando. Um dia que Icleia estava na casa dela, tiveram que procurar um documento do pai, a irmã achou a pintura, mostrando a beleza e falando que estava guardado há anos para emoldurar. Foi aí que Icleia viu a assinatura L.C.Bahiense, 8 anos de idade. Sobrenome igual, não custa perguntar. E sim, era uma aquarela pintada por ele. Peguei de volta, coloquei numa moldura e não sei nem falar da emoção que meu pai teve. Era o homem de mais de 60 anos frente ao menino de 8.É uma loucura imaginar os caminhos tortuosos que esse desenho fez para, finalmente, voltar ás suas mãos.

Eu sou aquela que não acredita em nada mas acredita em tudo. Tomo banho de pipoca de Omulu, mando meu nome para grupos de orações das mais variadas crenças, porque mal não faz. Sobre a cartomancia, o assunto inicial, existem várias teorias sobre seu surgimento. Segundo a antropóloga Gloria Prado, a arte foi levada para a Europa pelos Cruzados e assim chegou na Península Ibérica: “Esses povos já utilizavam, no século 12, as cartas para fazer previsões, parecidas com as de hoje”. Pouco se sabe realmente sobre a sua origem. Há quem diga que surgiu na China e foi trazida ao Ocidente pelos ciganos. Os historiadores concordam e reconhecem que não foi uma invenção casual. Para o professor de Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, Sávio Antunes “Existem diversas influências sobre essa arte mística, sua origem pode ser bem mais antiga do que se sabe até hoje”. 

Acredito que meu primeiro apreço por cartomantes foi pela que dá o título ao conto do Machado de Assis. Meu pai leu para mim em voz alta, quando eu ainda estava começando a ligar as letras e mesmo sem entender muito bem, fiquei muito impressionada. A figura altiva de uma italiana magra, alta, de olhos grandes, sonsos e agudos, que acalma Camilo com a frase: — Vá,vá, ragazzo innamorato, enquanto com seus dentes brancos comia uma tigela de passas,  ficou bem marcada na minha cabeça. Isso me faz lembrar que tem tantos estudos profundos sobre esse conto, enquanto minha filha assim resumiu o enredo: ”A história de um corno que não sabia escolher amigos”. Machadinho, perdoe essa infanta.

Outra obra da literatura brasileira e que ao ser transformada em filme ficou tão maravilhosa quanto, é A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Macabeia, nordestina, órfã, feia, que tomava aspirina para ver se curava a dor que tinha dentro dela, sem saber que era angústia. Ouvia rádio relógio, tomava café frio, uma pessoa tão tola, segundo a autora “que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham”. Invisível como tantas pessoas nesse Brasil, sozinha num Rio de Janeiro que tritura almas. Ficou trabalhando como datilógrafa, mesmo não sabendo direito o ofício, por pena do chefe. E quando pensava em si, era: ”sou datilógrafa, virgem e gosto de coca-cola”. Seu envolvimento com o operário do sertão da Paraíba, Olímpico, e a falta de jeito dela, quando ao faltar assunto se vê em frente a uma loja de ferragens e diz: ”Eu adoro prego e parafuso, e você”, é de uma candura ímpar. O tal pretendente acaba sendo roubado pela colega loira e bem fornida do trabalho. Resta a Macabeia procurar uma cartomante. Dessa vez uma ex-cafetina, D.Carlota, interpretada magistralmente por Fernanda Montenegro. Macabeia queria saber o que podia esperar do futuro, já que do presente não dava para aguardar nada e tem como resposta que vai ao seu encontro um homem rico, bonito, glamouroso.  Ao sair, é atropelada por uma Mercedez. Único momento em quem teve atenção de alguém na vida, pois como disse o narrador: “Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes

O elenco do filme inteiro é afiado, a direção da Suzana Amaral é primorosa, Marcelia Cartaxo foi a decisão certa para interpretar a Macabeia e o Olímpico de José Dumont é absurdo de bom. Na cena que ele carrega um grande urso de pelúcia, para dar para a mulher que apenas o usou, andando com aquele trambolho pelas ruas do Rio de Janeiro, é fabulosa. Estou tão triste com a história dele guardar material de pedofilia e ter pagado a uma criança de 12 anos para fazer sexo, que sério, se ele tivesse morrido minha dor seria menor. Mas, como diria Madame Zoraide: Nunca confunda a pessoa física com a pessoa jurídica. É isso.

 A Cavalgada do Dragão

 A Cavalgada do Dragão

A sad fact widely known
The most impassionate song
To a lonely soul
Is so easily outgrown
But don’t forget the songs
That made you smile
And the songs that made you cry

(The Smiths)                                                   

               

       Das cismas e manias que carrego vida afora, uma é não reler livros que com a distância do tempo podem perder a magia. Nunca reli A Pequena Fadette de George Sand, que marcou minha infância. Nem Os Meninos da Rua Paulo, que me fez desaguar de emoção. Muito menos O Estrangeiro de Camus, que li concomitantemente com um amigo de sala, com quem ainda mantenho contato. Ele antes da pandemia me falou: ”Esse livro devia ter uma restrição, adolescentes não deviam lê-lo”. Aqui explico: Ficamos os dois tão mexidos com a obra que ela decretou, ali, o fim da nossa Idade do Ouro juvenil. Percebemos, eu carioca, ele paulista, em terras soteropolitanas, que ser estrangeiro independe de estar em outro país. Éramos esquisitos, é verdade. Hoje ele é um cineasta bem sucedido e respeitado, mas fui testemunha do garoto de longos cabelos, all star surrados, que mordia a caneta até quebrar. Eu não era muito diferente. Usava jeans rasgados antes de virar modinha, era a nerd louca que fazia historinhas em quadrinhos usando os colegas de sala como personagens, de uma acidez que nem Sonrisal resolvia e colava minhas obras na hora do recreio na parede da sala de aula. É certo que fazia sucesso, mas os atacados, movidos pelas paixões adolescentes, geralmente gente com quem eu tinha contas a acertar, me odiavam. Hoje olho para trás e até rio, porque essa foi a forma eficaz que encontrei de vencer o bullying, conseguia ser pior que os autores das chacotas destinadas a mim. O que pensando bem, é feio pra caramba. Esse Marte em escorpião sempre foi uma faca de dois gumes na minha vida. Melhor botar a culpa nos astros que no meu gênio ruim e vingativo. Outra coisa que não faço é ver filmes baseados em livros que tenho apreço. Vou adiando até que não dá mais. Foi assim com a Casa dos Espíritos, por exemplo. Acho sempre que o elenco escolhido não tem nada a ver com os personagens que tomaram corpo na minha imaginação. Via de regra fico irritada e quase sempre termino o filme com a impressão de que o diretor e o roteirista banalizaram e traíram a obra.

          Fernando Pessoa, com seu heterônimo Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, bem traduziu o que me move a isso, quando fala do seu primeiro contato com os sermões do Padre Vieira: “Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me tem feito chorar. Lembro-me como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa seleta, o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. “fabricou Salomão um palácio” … E fui lendo, até o fim, trêmulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade me fará imitar. Aquele movimento hierático, da nossa língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de página porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais. – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei hoje, relembrando, ainda choro. Não é- não a saudade da infância, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfônica.”   Os únicos livros que releio, e acontece sempre a cada mudança de rumo de vida, são Cem Anos de Solidão, do Garcia Márquez e Terra dos Homens, do Exupéry. Ali não tem erro, as duas obras sempre apresentam novas nuances a cada fase que as reencontro. Mas não trazem o impacto da primeira vez. No filme As Invasões Bárbaras, quando o Remy, professor  marxista (é uma continuação do filme O Declínio do Império Americano, que assisti no início da faculdade, daí meu carinho)  vê o novo mundo neoliberal vencendo, na figura do filho que é tudo o que ele sempre lutou contra, um capitalista convicto e que, por ter dinheiro, vai lhe dar uma morte digna, porque a vida é filha da puta mesmo, tem um momento que a filha junkie de uma colega de trabalho e ex-amante, a pedido de seu filho , vai lhe aplicar heroína para aplacar as dores do câncer. O filme todo é maravilhoso, mas faço esse recorte: Ela, ao dar-lhe a picada, diz que os viciados vivem em função dessa primeira emoção. E que ela não volta. Todas as vezes que um heroinômano se droga é em busca dessa sensação proporcionada pela primeira dose, por isso ela é chamada por eles de “Cavalgada no Dragão”. Nunca usei heroína, mas tenho isso em relação aos livros. Esse sentimento primeiro, essa emoção que te tira do chão, quando vc desconhece a obra e o autor e fica maravilhado com ela, é a cavalgada no dragão no mundo literário. Soube que vão filmar Cem Anos de Solidão e combinei comigo mesma que não assistirei tão cedo. 

         Saindo da literatura e indo para o cinema de entretenimento, e vocês vão rir disso, fiquei meio cismada de assistir Eduardo e Mônica. Poxa, de Gabo pra Renato Russo mana…Sim, de Gabo pra Renato Russo. Voltemos a 1986.Eu era uma garota de 15 anos quando foi lançado o Disco Dois. Tempo Perdido, Índios e Eduardo e Mônica foram minha trilha sonora durante um ano inteiro. Legião Urbana falava coisas que eu gostaria de ter falado e musicado, no meu mundo adolescente. Um ano depois eu conheci o amigo citado acima, o do Estrangeiro e ele me apresentou Janis, Hendrix, o rock inglês da época, os Titãs, Garotos Podres e outras paradas. Comecei a achar Cazuza muito mais solar e interessante que Renato. Mas aquele 1986 não saiu de mim. Tanto que uns 5 anos depois, já terminando a universidade, o destino (na verdade um amigo DJ, que me chamou numa boate e estava com o vocalista do Legião) me colocou na mesma mesa que o Renato Russo.  Meu amigo precisou voltar para as pick-ups e disse:” Céu, faz companhia pra ele”. Carioca, safa, não sou de dar moral pra famoso. Então a cena que se desenhou foi: Eu de frente para o Renato, tomando uma vodka e ele sorvendo um copo de uísque. Ele agia como se eu não estivesse ali e eu na mesma toada. Eram dois desconhecidos, colocados forçosamente num mesmo espaço, que não tinham o que falar. Ele provavelmente não, mas eu me fazendo de blasé só lembrava da garota de anos atrás que se emocionava com sua música. Queria ter falado para ele que meu amigo de adolescência, vítima de um acidente de carro, foi enterrado ao som de Tempo Perdido. Queria ter dito que “Nos deram espelhos e vimos um mundo doente, tentei chorar e não consegui” dizia respeito a ele, porque eu ao ouvir a música a primeira vez chorei baldes. Só que aquele homem meio esverdeado (sim, sim, era meio verde, na época já era soropositivo), blasé por demais, me tolheu. E só me restou dar um tchau com cara de “ainda bem que um gatinho tá me chamando pra me livrar de vc” e cair na pista dançando ao som do The Smiths.  Foi assim, enganando a mim mesma, me convencendo que assistir um filme comercial sobre uma música do Legião era uma enorme perda de tempo, que encarei a película. E ao final do filme, eu entendi minha resistência. E sim, desaguei.  Porque vi na tela a adolescente que eu fui. E aquele momento tão meu, que não compartilhei nem com o autor da música, se presentificou. 

            Nascida no fim de 1970, uma infância passada na ditadura militar, a minha geração não era a do Renato, que pegou a barra pesada na adolescência e brigou para o Brasil se redemocratizar, nem a dos meus pais, que perdeu amigos e parentes na luta contra o governo dos Anos de Chumbo. Éramos a princípio espectadores das mudanças. Para ser sincera, eu não estava tão ligada na política. Como eu, grande parte dos meus contemporâneos. Estava muito mais preocupada com a AIDS, sinceramente. Quando falo para minha filha de 16 anos do horror que foi a chegada daquele vírus, um professor de Geografia que eu amava foi uma de suas primeiras vítimas, amigos dos meus pais se foram e tudo isso no período da minha puberdade, uma doença mortal sexualmente transmissível que não tinha cura, ela não tem ideia do que representou. Aí só de sacanagem, na adolescência dela vem uma pandemia em que se pegava a doença tendo um simples contato com um contaminado e que até um ano atrás não tinha nem vacina, para me desmoralizar. Na escala de tragédias da humanidade, ela ficou dois anos presa comigo, o pesadelo de qualquer adolescente de 13-14 anos. O que pode ser pior que isso? Enfim, a maior parte de nós era atormentada pelo medo de pegar HIV, liberdade sexual passou longe da gente. Também não éramos politizados como a geração anterior, não pegamos em armas nem vivenciamos uma rebeldia que podia levar aos porões da ditadura. Nem hippies, nem revolucionários. Tínhamos, porém, uma ideia do privilégio que era votar em presidente pela primeira vez depois de anos de regime militar. Votei no Lula, em 1989, no primeiro e no segundo turno. Minha filha vai viver isso, seu primeiro voto vai ser no Sapo Barbudo, que até agora aponta como o favorito na corrida presidencial. Na minha vez o Collor ganhou e tive que entubar. Já era bem esperta para não cair nos Caras Pintadas em 1992, achava que era manipulação da mídia. Sabia que independente de qualquer movimento o homem “Daquilo Roxo” ia cair porque a República de Alagoas tentou dar um passo maior que as pernas. Já não interessava ao sistema aquela gente. Esse é um resumo, bem simplista, do que foi a minha geração.

           Ao ver o filme, recheado de músicas daquela época, acabei lembrando de uma pá de coisas. Tinha um mundo pela frente. Possibilidades se abriam, a vida era uma página em branco. Então fiquei mexida com isso, nem eu sabia que tinha saudades daqueles tempos. Era também um mundo que se transformava rapidamente. Queda do Muro de Berlim, a globalização saindo da teoria e se transmutando numa realidade na qual eu estava inserida, revolução tecnológica. O mundo deu uma virada nos últimos trinta anos em que longe de me sentir sujeito da História é como se eu tivesse sido arrastada por ela. Sou da época do Atari e ser campeã de River Raid só me torna velha diante do agora. Não tenho manhã para crescer financeiramente nesse admirável Mundo Novo, minha cabeça ainda teima em ser analógica. Bem que tentaram dar um nome para minha geração, a galera que assistia Speed Racer na infância, que consultava enciclopédias, que chacoalhava ao som de B 52 nas danceterias da vida, que usava cortes de cabelos e roupas de gosto duvidoso na adolescência, como uma saia balonê dourada e um scarpin branco, a bordo de um vistoso mullet, de Geração X.  Mas aí vieram os Y e os Millennials, que tem um povo que aos 30 anos já tá bilionário. Somos uma geração entre gerações. Chatos para os mais novos, alheios e um pouco alienados para os mais velhos. Sobreviventes da bala soft e de passeios aboletados na traseira de Caravan, sem cinto de segurança. 

       O mundo, porém, independente das sofisticações técnicas, caminha para trás. Andou rolando nas redes vídeos do Cazuza e do Renato Russo falando sobre autoritarismo, fascismo e tal. Eles não sobreviveram para ver os nossos anos 20 tão parecidos com os anos 20 do século passado. Depois do filme, fui olhar quem era o Eduardo e a Monica da música, sabia apenas que existiam e que era um casal amigo do compositor. Leonice, a Mônica da música, é artista plástica, Fernando Coimbra é o Eduardo. O casal está junto há 42 anos. Os dois conheceram Renato lá atrás, quando o músico fazia shows no Colina, um conjunto de prédios, na Asa Norte de Brasília, onde moravam professores da UNB e que no fim dos anos 70 uma turma de adolescentes se reunia para fumar maconha, encher a cara de vinho, falar de rock e ensaiar. Lá nasceu o rock nacional dos anos 80, inicialmente com uma banda chamada Aborto Elétrico. Paralamas, Plebe Rude, Capital Inicial e Legião Urbana começaram ali. Era o som underground de uma juventude que morava na cidade que era palco do governo militar. Foi nesse contexto que Renato ficou amigo do casal. Muito da música é criação, mas eles foram os inspiradores.

         Fernando Coimbra, o “Eduardo”, é filho do embaixador Marcos Coimbra e vem a ser enteado de Leda Collor, irmã vocês sabem de quem. Seu pai foi um dos articuladores da campanha do Collor, em 1989, o estrategista principal. Lembram daqueles escândalos relacionados à vida pessoal do Lula, como o da mãe de sua filha Lurian que foi a TV falar que Lula pediu que ela abortasse a criança??? Adivinhem de quem foi a ideia e orquestração??? Pois é. Envolveu-se em vários escândalos, ligados aos rolos do PC Farias. Irmão de Marcos Coimbra, sociólogo, presidente do Instituto Voz Populi, Fernando seguiu a carreira diplomática e serviu em vários países. Sobre o seu posicionamento político, o que posso falar é que quando era embaixador no Quênia, em 2019, foi duramente criticado na Cúpula de Nairobi, na qual foram comemorados os 25 anos da Conferência Internacional da População e Desenvolvimento do Cairo, por um documento apresentado por ele, que nada falou sobre direitos humanos, um dos pilares do programa de ação dessa conferência, muito menos de desigualdade social e da pobreza que grassa no mundo. Limitou-se a fazer uma pregação antiaborto, mandando para a puta que pariu os acordos intergovernamentais do qual o Brasil é signatário, que reconhecem o aborto como um problema de saúde pública e pedem a revisão de leis que punem a interrupção da gravidez. Em 2022 foi indicado pelo Bozo para o posto de embaixador no México, onde está no momento. Pois é, essa o Renato Russo não poderia prever, Eduardo se transformou num bozolóide. 

            Porém, nem tudo é tristeza. Renato usou licença poética para falar dos gêmeos, filhos do Eduardo e da Mônica, mas na vida real o casal só teve uma filha. O líder da Legião Urbana era louco pela garota, ia buscá-la na escola, onde rolava um ajuntamento de gente para ver o “tio famoso da Nina”. Fui dar um rolé no Instagram dela. É artista plástica, tem uns trabalhos bem bacanas e participou de duas cenas do filme, numa delas era uma das performers da “festa estranha com gente esquisita”. Corajosamente descasca o Bolsonaro, chama de fascista e o caramba. Seu sócio é um gay que anda com roupas femininas e numa das fotos carrega um cartaz com a inscrição:” pelo direito de andar amado!# ele não!” Se a música Tempo Perdido fala da angústia que acomete os jovens de estarem desperdiçando a vida, minha vontade é de falar para Nina:” nada melhor que estar do lado certo da história, certeza que seu tio ia ter orgulho de você nesse momento tão duro do nosso país. Você não está desperdiçando a vida…nem o voto”.  Era só isso mesmo.

Deu no poste

Deu no poste

O Jogo do Bicho é algo tão entranhado na cultura brasileira, que deveria ser considerado patrimônio nacional, assim como o samba, o acarajé e as rodas de Exu. Quem nunca sonhou com uma pessoa desagradável e não fez sua fezinha na cobra? É algo tão presente no cotidiano brazuca que tem até lendas familiares. Minha avó materna encontrava-se em situações de apuros financeiros e viu no seu quintal um cachorro correndo atrás de uma borboleta. Apostou o pouco que tinha, valendo-se da máxima brasileira, já que estou fufida, fudida e meia e tirou dinheiro grande, salvando-se naquele momento de um sufoco. Ou a avó de amiga que morreu, o marido da prima dela jogou o número da sepultura e acertou na cabeça. Hoje você pode carregar o seu pré-pago também nos pontos de jogos, todas as operadoras. São muitas facilidades. Tantas que minha filha outro dia ficou boquiaberta ao saber que era ilegal. Perguntou-me chocada: ”Vc tá me falando que aquela tiazinha maneira lá da banquinha da esquina é contraventora?”  É daquelas coisas que só no Brasil mesmo. Sua origem parece até pueril, criada pelo Barão de Drummond em 1892, para salvar o antigo Zoológico do Grajaú. O apostador escolhia ente 25 animais do zoológico numa loteria. Entre idas e vindas, acabou por cair na ilegalidade em 1941, por meio da Lei de Contravenções Penais que proibiu a realização de todos os jogos de azar no país.

Claro que a jogatina não parou. O que houve foi uma competição animalesca entre os banqueiros, para usar uma palavra que orne com a situação. O objetivo era concentrar os pontos de jogos em torno de alguns donos. Lei da Selva. Pistolagem rolando solta. Até que nos anos 60 coube a Castor de Andrade botar ordem na putaria. Aí entra Antonio Salamone. Esse senhor nada mais era que um dos chefes da temida Cosa Nostra, da Itália. Em 63, depois de sua organização matar 7 carabinieris, num atentado a bomba em sua terra natal, Salamone veio se refugiar no Brasil. No Rio conheceu Castor, ainda na flor de seus 36 anos e dessa aliança surgiria a máfia tupiniquim. Salamone ganhou um emprego nas Tecelagens Bangu, negócio de fachada da família (os pais de Castor estavam no jogo do bicho desde os anos 40) e de quebra recebeu a cobertura da ditadura brasileira. Por influência de Castor, apesar de condenado nos EUA e na Itália, foi-lhe concedida, pelo Ministro da Justiça Armando Falcão, a naturalização brasileira. Como uma mão lava a outra, com seu novo amigo Castor absorveu todos os códigos que regem a máfia italiana, sua forma organizacional e profissionalizou-se no metier. Sob sua liderança, estabeleceu a Cúpula do Jogo do Bicho, organizada legalmente pela LIESA.E foi assim que os desfiles de escola de samba se tornaram espetáculos luxuosos, grandiosos, caríssimos e, claro, uma boa forma de lavar dinheiro.

Não sofreram repressão da ditadura, pelo contrário, aliaram-se a ela. Três nomes sobressaem aí nessa história:  Castor, Abrãao Davi e Capitão Guimarães. Esse último, oficial da AMAN, participou ativamente das torturas e morte de presos políticos, tendo como comparsas os coronéis Paulo Manhães e Freddie Perdigão Pereira. Esses dois ostentam em seu currículo a articulação da terrível Casa da Morte, em Petrópolis. Durante a fase mais repressiva do regime, sua vida se baseava em caçar e matar os “subversivos”, recebendo até elogios de Costa e Silva, ministro de Guerra do apescoçado General Castello Branco, por seu valoroso trabalho. Concomitantemente, extorquia contrabandistas, era o líder da quadrilha, e por tal motivo foi afastado do exército em 1976.O fato é que com a abertura iniciada por Geisel e concluída pelo equino General Figueiredo, os militares da linha dura começaram a se sentir entediados, diria mesmo abandonados e sem função. Então o famoso tio Patinhas, bicheiro que recebeu esse nome por ser uma espécie de banco central da galera do bicho, abriu caminho para Guimarães. Em 1979 fechou-se a aliança e Guimarães teve uma carreira meteórica. Levou a sério o plano de “virar capo”. Ambicioso, sua primeira providência foi matar o próprio sócio. Importante falar que pelas suas mãos fortaleceu-se o elo entre o Jogo de Bicho e o Esquadrão da Morte. Sua ligação com o Esquadrão vem dos tempos da Scuderie Le Cocq, tanto que ainda militar ajudou o bandido galã (sim, temos isso) Mariel Mariscot, o Ringo de Copacabana, um dos líderes do grupo de extermínio, a fugir da cadeia. Ironicamente, anos depois, por suas mãos e com o aval da Cúpula, mandou executá-lo.  O fato é que de todos, o que tinha uma visão neoliberal, de aproveitar todas as oportunidades, era Guimarães. Por ser oficial de Intendência, conhecedor de administração, logística (que vergonha ele deve ter do Pazuello) e contabilidade, ele acabou com a desorganização e o improviso. Sua chegada inaugurou no jogo a adoção de procedimentos empresariais e se informatizou.

Aqui conseguimos traçar, ainda que de forma grosseira e superficial, um paralelo entre as milícias e o jogo de bicho. A milícia tem sua base nos grupos de extermínio, mas não podemos negar que possui aspectos estruturais e de organização sofisticados. Segundo o sociólogo e autor do livro Dos Barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense (2003), José Claudio Souza Alves,” a impunidade dos grupos milicianos é decorrente da sua própria penetração nas esferas do poder público. Ou seja, o Estado não foi corrompido, nem deturpado, nem sequestrado. Não é uma ausência de Estado. O Estado é o organizador, sendo uma estrutura atuando desde a década de 1970 de maneira intocada e com o surgimento das milícias amplia-se a sofisticação da dominação econômica na atuação de tais grupos. Os modos de operar o poder se sustentam em bases do controle territorial e econômico de certas atividades lucrativas. Entretanto, a forma de atuação não se dá de maneira homogênea entre estes grupos e a diversificação dos modos de operacionalizar e controlar as atividades em seus territórios adquirem uma discricionariedade contextual a partir dos objetivos e interesses dos agentes inseridos no poder “. A relação do jogo de bicho com a milícia é tão imbricada que basta falar das máquinas de caças níqueis. Esse mercado foi introduzido no Brasil pelos mafiosos da Itália, ideia comprada por Castor de Andrade, e hoje estão sendo alugados pelos milicianos. A questão territorial, além da crescente diversificação dos negócios, deixa bem explícito esse parentesco.

Foi pensando nessa correlação, que lembrei de uma triste coincidência. O bicheiro Miro, também da cúpula, deixou o controle de tudo nas mãos de seu dileto filho, Maninho. Aquele que em 1986 perseguiu o carro do filho do Tarcisio Meira, porque cismou que ele estava olhando acintosamente para sua mulher num restaurante, efetuando disparos que acabaram pegando no amigo de Tarcisinho, que estava no carona, deixando o rapaz paraplégico. Maninho era vizinho de porta do ex-marido, então namorado, da minha prima. E Grelha, o rapaz que levou o tiro, colega de sala e amigo da minha outra prima, irmã da primeira. O bicheiro conheci de boa noite ao cruzar no elevador, o Grelha conheci de churrascos na minha prima. Sim, coisas malucas que o destino me traz.  Em 2004 Maninho foi metralhado ao sair de uma academia. E aí a coisa toma rumos de novela que envolve disputa por caça-níqueis, duas gêmeas em guerra, uma enorme herança, um ex-cunhado, um pecuarista, e lá vem história…

Maninho teve três filhos. Um, assassinado em 2017 numa história mal contada de um sequestro. E duas gêmeas, Shanna (vamos combinar que ter um nome desses e não sofrer bullying na escola, só sendo filha de gangster) e Tamara. Em 2019 Shanna sofreu um atentado. Estava indo a um centro de beleza no Recreio, quando foi atingida por dois tiros, mas conseguiu se defender, abaixando-se no carro blindado. Acusou Bernardo Bello Barbosa, seu ex-cunhado, ex-marido de Tamara, controlador de mais de 14000 máquinas de caça níqueis entre outros negócios, de ser o mandante. O rolo entre a Ruth e a Raquel do Jogo de Bicho é longo, envolve o inventário do pai, em que Shanna foi nomeada inventariante, mas a irmã acusa- a de ter tentado passá-la para trás. O tal ex-cunhado também é acusado de matar o marido de Shanna ,Zé Personal, em 2011, no Centro Espírita Seara do Caboclo Cipó, na Praça Seca. Aos 39 anos ele foi alvejado por três homens encapuzados, enquanto se consultava com um Pai de Santo. Sério gente, eu não seria capaz de inventar essa história. Em 2020 morre Bid, irmão de Maninho, na Barra da Tijuca, voltando de um evento de uma escola de samba. Seu carro foi alvejado por mais de 40 tiros de fuzil. Em 2009 ele havia denunciado a própria sobrinha, a menina Shanna, de tê-lo ameaçado e de ter ordenado a morte do pecuarista Rogério Mesquita, morte essa orquestrada pelo chefe de segurança da moça:  Adriano da Nóbrega. E é aí que quero chegar…

Adriano quando criança passou um tempo na Zona Norte do Rio, com a mãe e em Cachoeiras de Macacu, para onde seu pai se mudou. Cresceu andando a cavalo no haras que seu pai era empregado, cujo dono era…Maninho. Quem cuidava do local era o pecuarista Rogério Mesquita, braço direito do bicheiro, a quem Adriano chamava de padrinho e que o chamava de afilhado. Sempre foi louco por armas, então ao invés de se dedicar a contravenção, já que vivia cercado por ela, preferiu ingressar na polícia. Em três anos entrou no BOPE. Gostava tanto do seu trabalho, que mesmo quando não havia uma ação programada, ele fazia por conta própria. Ele pegava uma Kombi, chamava alguns praças, enchia de armamento e invadia a favela na madrugada, sem alarde. Ações que invariavelmente terminavam em mortes. Ah sim, era tido na Corporação como um Herói.  Recebeu muitas honrarias, mas em 2003 se viu envolvido num esquema de suspeitas e acabou sendo saído do Grupo de Operações Especiais. Segundo o Jornal Globo, “Foi então transferido para o batalhão do bairro de Olaria, na Zona Norte, e lá seu currículo foi oficialmente manchado. O que antes eram apenas suspeitas de abusos e torturas contra moradores de comunidades se provaram reais. O Grupamento de Ações Táticas (GAT) da unidade que o capitão comandava ficou conhecido como “guarnição do mal” pelas favelas do bairro. Os policiais sequestravam, torturavam e extorquiam moradores em troca de dinheiro. Uma investigação da PM identificou pelo menos três vítimas do grupo chefiado por Adriano em 2003. Uma delas era Leandro dos Santos Silva, de 24 anos, que foi executado logo depois de denunciar que havia sido agredido.” Foi preso, condenado, deixou de receber a admiração dos colegas. O mesmo porém não se pode dizer dos políticos. Era endeusado pela família Bolsonaro. Recebeu naquela época do 01 a Medalha Tiradentes e Bozo, num discurso na Câmara, rasgou-se em elogios ao policial, chamando-o de “brilhante oficial injustiçado”, afinal seu único crime foi torturar moradores do morro.  Foi na prisão que ele se iniciou de fato na vida do crime. Com a morte de Maninho, passou a ser o chefe de segurança da família do bicheiro. Nessa época que pediu ao colega de Batalhão, o Queiros, que arrumasse um trabalho para a mãe e para a mulher no gabinete do Flavio Bolsonaro, no esquema de Rachadinha. Solto em 2006, levava uma vida dupla. Era policial, mas trabalhava para o então marido de Shanna, o Zé Personal, aquele que foi assassinado no centro espírita. Zé Personal pediu que ele matasse o gerente do Haras, aquele a quem ele chamava de Padrinho e ele topou. A emboscada não deu certo, Mesquita entregou-o, mas acabou sendo morto em 2009.  A partir daí Adriano resolveu se manter por contra própria, virou pistoleiro profissional e fundou o Escritório do Crime. Ganhava 250 mil por cada crime encomendado que desse certo.  Só foi desligado da polícia em 2014. E o resto a gente já sabe. Viveu um bom tempo na clandestinidade, acabou sendo assassinado pela polícia na Bahia e imortalizou-se no post de lamento de Flavio Bolsonaro falando do amigo “brutalmente assassinado”. Só me resta terminar essa explanação com uma frase do velho Castor (que perto do Bozo parece um lord): “A Contravenção tem um princípio. Ela é governo e não tem culpa que o governo mude toda hora”. E sim, o Jogo de Bicho e a Milícia dançam um samba bem juntinho e compassado.

Milícia, Cel Jairo e menino Henry

Milícia, Cel Jairo e menino Henry

“Capital do sangue quente do Brasil
Capital do sangue quente
Do melhor e do pior do Brasil
Cidade sangue quente
Maravilha mutante
O Rio é uma cidade de cidades misturadas
O Rio é uma cidade de cidades camufladas
Governos misturados, camuflados, paralelos
Sorrateiros, ocultando comandos
Rio 40 graus
Cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos”

                Início dos anos 90. Estudava na PUC e o point daquela época era o Baixo Gávea, mais precisamente o bar Hipódromo. Quando comecei a frequentar era um pé sujo e ir fazer xixi era uma aventura. A porta não fechava direito e papel higiênico na bolsa era item indispensável. Ao entrar naquele horror, vc se sentia transportado para a Escócia. De repente Edimburgo. Naquele banheiro de Trainspotting. Depois teve a reforma, o bar ficou bacana, mas hoje ele só sobrevive na nossa memória, visto que fechou e seus 75 anos de existência foram reduzidos a um bar boutique, um pé limpo, ou seja lá o que isso quer dizer.

          Sei que nesse dia que se perde no tempo eu precisava voltar logo pra casa, teria prova na manhã seguinte. Então alguém me levou até o ponto e peguei o 750, que dava uma puta volta no Itanhangá, passava pelo Rio das Pedras, mas me deixava perto de casa. Entrei, sentei. Ao meu lado no banco estava um senhor (que nem era tão velho assim, mas pra uma molecota de vinte anos qualquer um com mais de 30 é idoso), cara de trabalhador, cansado, provavelmente garçom de algum bar da Zona Sul, abraçado a bolsa, querendo tirar um cochilo. De repente o ônibus, ainda parado no ponto, foi invadido. Vários jovens com a camisa do Flamengo, vindos de um jogo, entraram pelas janelas, até que o motorista diante do caos liberou as portas para eles. Estavam indo para a Rocinha, o que significava alguns minutos de viagem. Era só atravessar o túnel Zuzu Angel, na época conhecido como Dois Irmãos e chegariam ao destino.

              Pois bem, no ponto da favela eles foram descendo. Mas não o garoto que estava de pé ao nosso lado. Esse virou para o meu companheiro de viagem, que estava adormecido e gritou: “Passa o relógio, filho da puta!”. O cara ostentava um Orient, com fundo azul metálico, que para ele naqueles tempos deve ter custado muitas horas de trabalho. O homem não acreditou e olhou sem entender. Um soco foi o que ele levou, no meio da cara, com força e covardia. Entregue o relógio, aquele que parecia o líder do lado de fora, gritou: “O que está acontecendo aí, que demora é essa?” Um dos meninos que assistia tudo, respondeu de volta:” É o Caverna, tá ganhando o relógio do coroa”.Caverna já estava na porta para descer. E aí que digo, a autoridade do líder é inconfundível. Só ouvi: “Caverna, ta maluco porra, vai lá devolver o relógio do coroa e pede desculpa caralho!”. Então eu testemunhei umas das cenas de assalto mais nonsense da minha história. Caverna entrou no ônibus, mesmo sob coação, cabeça baixa, devolveu o relógio da vítima e sim, entre os dentes pediu desculpas pra o assaltado.

         No dia seguinte, no café da manhã, contei para o meu pai o absurdo que vivenciara. Obti como resposta: “Não assaltam esse ônibus. A maioria dos passageiros mora no Rio das Pedras. Polícia Mineira minha filha, se Caverna não devolvesse, eles iam catá-lo no inferno”. Acostumada a uma cidade dominada pelo tráfico, fiquei boquiaberta.

         Cabe aqui uma explicação para os não cariocas. Rio das Pedras é uma comunidade extensa da Zona Oeste, entre os bairros do Itanhangá, Jacarepaguá e Anil. Nascida na década de setenta, foi formada sobretudo por migrantes nordestinos. Hoje é a terceira maior favela do Brasil, com 54000 habitantes, perdendo apenas para a Rocinha e para a Favela Sol Nascente, no DF. Se você leu Cidade de Deus, o livro, de Paulo Lins, deve saber do enorme preconceito entre nordestinos migrantes e negros nas favelas do Rio de Janeiro. Não vou entrar nesse mérito, o que posso dizer é que lá atrás, os negros eram considerados os responsáveis pelo tráfico de drogas, que durante um tempo se limitava a maconha. Nessa comunidade, basicamente nordestina, formada principalmente por cearenses, havia um rígido código moral no qual as drogas não estavam incluídas.  

             Li o relato de um morador antigo da comunidade e o que ele narrou é que havia inicialmente o casal Otacílio e Dinda. A ideia era proteger a favela do tráfico de drogas e de tudo que advém daí. E sim, essa atitude era completamente aceita pelos moradores. Eles eram aquela força que substituía a polícia, mas dentro de suas próprias leis. Marido batia na mulher, era colocado pra fora. Moleque era pego roubando na área, era “desaparecido”. Otacílio morreu, Dinda iniciou o seu comando e foi desastroso. Começou a abusar do poder, tomar a casa de desafetos, mas não durou muito, logo foi assassinada. Começou aí uma briga interna, matança sem fim. E foi nesse vácuo que os agentes de estado acharam por bem tomar conta da parada. Tomar conta, entendam, no sentido de explorar comercialmente o que a favela tinha a oferecer. Pois é, eis a milícia no sentido que bem conhecemos. Esse é só um resumo, para aqueles que não conhecem o caos da cidade camuflada.

            O que eu achava incrível é que a mídia e a classe média propagavam que aquilo era uma boa. Antes nas mãos dos policiais e ex-policiais, que não permitiam o tráfico, do que na mão dos psicopatas que transformavam menores em soldados, que matavam com requintes de perversidade, etc etc etc  Ninguém porém perguntou a um morador quem ele preferia de algoz. A classe média sempre nos dando motivo de orgulho! A voz mais dissonante foi a do meu pai, o que provocou várias celeumas: ”Não vende drogas? Ainda. É questão de tempo”

        O que me provocou a escrita dessa crônica foi na sexta-feira o julgamento, transmitido ao vivo, do caso Henry Borel, de 4 anos. No Brasil, morte violenta de criança não é nenhuma novidade. Segundo levantamento da Unicef em conjunto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2016 e 2020, 1070 crianças de 0 a 9 anos foram assassinadas. A maior parte dentro de casa. A grande maioria negra. Casos, porém, como o do menino Henry, de Bernardo Boldrini e de Isabella Nardoni, nos atingem mais por dois motivos: O primeiro é por se tratar de crianças brancas, com pais supostamente esclarecidos, o que gera uma identificação na classe média. O segundo é que todos três foram mortos por aqueles que deviam estar cuidando deles, com tudo que a relação pai e mãe impõe. Bernardo foi morto pela madrasta, mas com conhecimento do pai, Isabella atirada pela janela pelo próprio pai depois de viver momentos de pânico, surra e terror com a participação da madrasta e Henry, por um sádico infanticida, entregue ao algoz pela própria mãe. Poucos dias depois da morte do garoto, testemunha disse que Monique e Jairinho falavam em ter um filho. Pois é. Filho pra essa gente é peça de reposição.

     Não vou me ater ao julgamento, que apesar do circo armado pela defesa, parece que vai a júri popular. Mas, já que começamos falando da Polícia Mineira, quero focalizar um personagem que participa dessa triste história. Sobre o “Doutor” Jairinho já sabemos muita coisa. Não vou chamar de suposto assassino um homem com histórico de agressões e torturas em crianças (dos outros, não há registro que fizesse algo do gênero com os 3 filhos naturais), que sempre se envolvia com mulheres com filhos pequenos (ora, ora, por que será?) até finalmente dar a sorte de encontrar uma mãe omissa, mais preocupada com as vantagens financeiras que a união lhe trazia do que com a criança (isso está nos autos) visto que avisos sobre as agressões não faltaram .23 lesões encontradas no corpo de um bebê de 4 anos, como laceração do fígado, danos nos rins e hemorragia na cabeça, me impedem de chamar esse sujeito de suspeito.

         Jairinho é acostumado com a impunidade. O que ocorreu foi uma morte que deixou rastros. Esse que foi o ponto fora da curva. E ele teve um ótimo professor. Jairão, seu pai, que deve estar agora com muita raiva. Não pelo ato abominável do filho, mas pelo desleixo que acabou incriminando-o. Vamos a esse senhor: Jairo Souza Santos, coronel aposentado da PM, tem três grandes paixões: Bangu, o bairro que nasceu e foi criado, futebol (foi presidente do time Ceres de Bangu, uma agremiação fundada em 1933 por marinheiros que residiam na rua Ceres, que deu nome ao time e cujo maior êxito foi em 1990, quando se sagrou campeão da Terceira Divisão. Adhemir da Guia jogou em suas bases, antes de ir para o Bangu, nem tudo é derrota) e escola de samba, quase se tornou presidente da Mocidade Independente de Padre Miguel, mas foi preso antes, pela Operação Furna da Onça, acusado de receber mesada para aprovar os projetos do então governador Sergio Cabral Filho. O Coronel Jairo foi um precursor da milícia que conhecemos hoje. O bairro de Bangu é seu. Está nas suas mãos. Aliás, ao lado de Rio das Pedras e Duque de Caxias, foi lá que teve origem os primeiros grupos milicianos com a configuração que possuem hoje. Pesquisas acadêmicas, relatório produzido pelo Laboratório e Análise da Violência da UERJ, além da CPI das Milícias conduzida por Marcelo Freixo na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, citam o Coronel como fundador da Liga da Justiça, a maior liga paramilitar do estado do Rio de Janeiro.

     Fundada em meados dos anos 90, o grupo iniciou-se com transporte público, ocupações de terra, cobrança de taxa de segurança, distribuição de gás, gatonet.  A Liga da Justiça ao longo dos anos foi mudando de nome e expandindo suas atividades. Atualmente conhecida como Bonde do Ecko , domina mais de 60 por cento da cidade. Dois de seus líderes foram presos, muitos membros assassinados, mas Jairão e seu filho infanticida continuaram firmes. O que só revela uma grande capacidade de articulação e uma filha da putice sem limites.

      O Coronel e seu filho foram envolvidos na tortura de jornalistas do Dia, amplamente divulgada. A milícia nada mais é que grupos armados criminosos tomando territórios e coagindo moradores. Execução sumária é brincadeira para essas pessoas. Eles só visam uma única coisa: DINHEIRO. De acordo com o sociólogo José Claudio Souza Alves (UFRRJ), a relação desses grupos com a política é onde assenta o seu funcionamento e é uma imensa evidência do porque as investigações com os envolvidos empacam no sistema Judiciário. Sim queridos, eles se elegem. E são bem votados. E ele diz mais:”A milícia é estruturada a partir da sólida base com a política institucional, é isso que a protege e faz com que ela se projete cada vez mais. Não vai haver atuação do Estado para investigar ou trazer algum dano a eles, pelo contrário, a estrutura do Estado em todas as suas dimensões, do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, vai ser movimentada para proteger, para impedir que sejam investigados, para fazer escapar da operação”.O coronel, com apoio do Flavio Bolsonaro, concorreu em 2018 mas não levou. Porém, devido ao remanejamento do deputado do qual era suplente, que foi trabalhar com o governador do Rio, ele cheio de pendenga na justiça, com habeas corpus que ainda não foi julgado, foi pegar o que é seu. Tá na ALERJ.

        Jairão não é miliciano, é poeta. Palavras dele, chamada de uma matéria inclusive. Há dez anos atrás lançou o livro de poemas Pedaços da Vida, ou seja, comete versos. É bom desmistificar aquele papo de que todo homem deve ter um filho, escrever um livro e plantar uma árvore. Tivesse ele se limitado a plantar um pé de pitanga, o mundo estaria muito mais feliz. Tem onze stents no coração, mas vaso ruim não quebra. Seu grupo está completamente fechado com o Terceiro Comando, facção criminosa do Rio e claro, drogas rolam. Narcomilícia na veia. Como disse o meu pai, para idiotas que defendiam os milicianos por coibirem o tráfico: ”É só questão de tempo”.