Silêncios

Silêncios

Olha bem no dicionário e reflita: não há nenhuma palavra com um significado só (Millôr Fernandes)

Colecionador e pesquisador precisam de sorte. Num porão semiabandonado, o filatelista sonha esbarrar no Olho de Boi. Num sebo, soterrado por livros e revistas empoeirados, o pesquisador atento, e bem-aventurado, descobrirá a edição original do Almanhaque 1949, autografada pelo Barão de Itararé. Dentro de uma lata enferrujada, amassada e descartada de Balas Balsâmicas Silva Araújo, o numismata pode encontrar a pataca há muito desejada. Pé de pato, mangalô, três vezes. Salve o pé de coelho!

Imaginem então a excitação do jornalista, escritor e pesquisador Thiago Uberreich quando descobriu o conteúdo de um lote de áudios que ganhou de um desconhecido. Eram registros sonoros de transmissões pela TV dos jogos da seleção brasileira na Copa de 70. Estavam no acervo da falecida TV Tupi (canal 6, no Rio de Janeiro) e, há muito, dados como perdidos. A transmissão naquela Copa foi feita por um pool de emissoras, com imagem e locução unificadas. Ali, ao alcance dos tímpanos de Thiago, ressuscitavam Fernando Solera, Geraldo José de Almeida, Walter Abrahão e Oduvaldo Cozzi. Equipe de lordes da voz, antíteses dos esgoeladores sem noção que dominam as narrações de hoje.

A ascensão dos locutores estridentes não é gratuita. Ela se dá no exato momento em que tudo no tecido social parece demandar algazarra e som nas alturas. Desde a praga dos bares aos shows megatônicos nas praias, dos “debates” tóxicos nas redes sociais à prática política. O silêncio, a introspecção, o murmúrio, o papo calmo, viraram esquisitices. Coisa de gente chata.

Com o excesso de ruído, perde-se o espetáculo das vozes ao redor. Drummond conversava com a amendoeira que coloria seu olhar na janela do apartamento em Copacabana. Quantas poesias nasceram desta troca silenciosa? Numa das cenas mais belas da história do cinema, com enorme carga dramática, não há palavras. No final de Eles não usam black tie, os personagens de Gianfrancesco Guarnieri e Fernanda Montenegro catam em silêncio as pedrinhas que vinham misturadas com os grãos de feijão. Tinham acabado de passar por experiências difíceis, traumáticas. Suas expressões mostram cada nervo rompido, cada angústia, cada afirmação de solidariedade. Quem precisava de palavras? The sounds of silence.

Certa vez, perguntaram ao José Saramago o que achava da morte de palavras, aquelas que desaparecem pelo desuso. Respondeu lamentando-se e projetando um futuro em que nos comunicaremos por monossílabos. O empobrecimento vocabular acentua-se com a linguagem telegráfica das mensagens eletrônicas e o tombo na leitura de livros. Este tipo de silêncio destrói conteúdos.

Há vozes sufocadas, muitos pedidos de socorro que caem no vazio. As populações periféricas nas grandes cidades não conseguem interlocução para agregar vozes à luta permanente contra violências identificadas e toleradas. Moradora do Complexo da Maré, conjunto de favelas na Zona Norte do Rio, descreve sua infância com trilha sonora de tiros e gritos. “Cresci achando que o mundo era assim. Que era normal ter tiro toda hora. Aqui na Maré a gente conhece a maldade cedo”. E vai seguindo a procissão, a cidade barulhenta, surda às vozes de seus filhos persistentes.

Como Thiago, eu gostaria de recuperar vozes do passado. Melhor dizendo, uma voz. No Bar Mitzva, o Menino discursou por cercaintimidade de 15 minutos. Texto decorado depois de meses de ensaios. Escrito em ídish, idioma com o qual tinha pouca . O Grande, enfatiotado e cabelo reco fazendo dupla com o Menino, segurou o microfone e lascou: “Manda brasa!”. A coisa foi toda gravada, mas a expressão robertocarlista acabou cortada na edição final. Tantos anos depois, eu queria ouvir novamente o Zissinho sair do sério por breves segundos e me animar daquele jeito. Se pudesse, eu pediria que, depois, ele largasse o microfone e me abraçasse. Em silêncio cúmplice. Faria muita diferença.

Abraço. E coragem.

Silêncios

Silêncios

Olha bem no dicionário e reflita: não há nenhuma palavra com um significado só (Millôr Fernandes)

Colecionador e pesquisador precisam de sorte. Num porão semiabandonado, o filatelista sonha esbarrar no Olho de Boi. Num sebo, soterrado por livros e revistas empoeirados, o pesquisador atento, e bem-aventurado, descobrirá a edição original do Almanhaque 1949, autografada pelo Barão de Itararé. Dentro de uma lata enferrujada, amassada e descartada de Balas Balsâmicas Silva Araújo, o numismata pode encontrar a pataca há muito desejada. Pé de pato, mangalô, três vezes. Salve o pé de coelho!

Imaginem então a excitação do jornalista, escritor e pesquisador Thiago Uberreich quando descobriu o conteúdo de um lote de áudios que ganhou de um desconhecido. Eram registros sonoros de transmissões pela TV dos jogos da seleção brasileira na Copa de 70. Estavam no acervo da falecida TV Tupi (canal 6, no Rio de Janeiro) e, há muito, dados como perdidos. A transmissão naquela Copa foi feita por um pool de emissoras, com imagem e locução unificadas. Ali, ao alcance dos tímpanos de Thiago, ressuscitavam Fernando Solera, Geraldo José de Almeida, Walter Abrahão e Oduvaldo Cozzi. Equipe de lordes da voz, antíteses dos esgoeladores sem noção que dominam as narrações de hoje.

A ascensão dos locutores estridentes não é gratuita. Ela se dá no exato momento em que tudo no tecido social parece demandar algazarra e som nas alturas. Desde a praga dos bares aos shows megatônicos nas praias, dos “debates” tóxicos nas redes sociais à prática política. O silêncio, a introspecção, o murmúrio, o papo calmo, viraram esquisitices. Coisa de gente chata.

Com o excesso de ruído, perde-se o espetáculo das vozes ao redor. Drummond conversava com a amendoeira que coloria seu olhar na janela do apartamento em Copacabana. Quantas poesias nasceram desta troca silenciosa? Numa das cenas mais belas da história do cinema, com enorme carga dramática, não há palavras. No final de Eles não usam black tie, os personagens de Gianfrancesco Guarnieri e Fernanda Montenegro catam em silêncio as pedrinhas que vinham misturadas com os grãos de feijão. Tinham acabado de passar por experiências difíceis, traumáticas. Suas expressões mostram cada nervo rompido, cada angústia, cada afirmação de solidariedade. Quem precisava de palavras? The sounds of silence.

Certa vez, perguntaram ao José Saramago o que achava da morte de palavras, aquelas que desaparecem pelo desuso. Respondeu lamentando-se e projetando um futuro em que nos comunicaremos por monossílabos. O empobrecimento vocabular acentua-se com a linguagem telegráfica das mensagens eletrônicas e o tombo na leitura de livros. Este tipo de silêncio destrói conteúdos.

Há vozes sufocadas, muitos pedidos de socorro que caem no vazio. As populações periféricas nas grandes cidades não conseguem interlocução para agregar vozes à luta permanente contra violências identificadas e toleradas. Moradora do Complexo da Maré, conjunto de favelas na Zona Norte do Rio, descreve sua infância com trilha sonora de tiros e gritos. “Cresci achando que o mundo era assim. Que era normal ter tiro toda hora. Aqui na Maré a gente conhece a maldade cedo”. E vai seguindo a procissão, a cidade barulhenta, surda às vozes de seus filhos persistentes.

Como Thiago, eu gostaria de recuperar vozes do passado. Melhor dizendo, uma voz. No Bar Mitzva, o Menino discursou por cercaintimidade de 15 minutos. Texto decorado depois de meses de ensaios. Escrito em ídish, idioma com o qual tinha pouca . O Grande, enfatiotado e cabelo reco fazendo dupla com o Menino, segurou o microfone e lascou: “Manda brasa!”. A coisa foi toda gravada, mas a expressão robertocarlista acabou cortada na edição final. Tantos anos depois, eu queria ouvir novamente o Zissinho sair do sério por breves segundos e me animar daquele jeito. Se pudesse, eu pediria que, depois, ele largasse o microfone e me abraçasse. Em silêncio cúmplice. Faria muita diferença.

Abraço. E coragem.

Imprensa, ditadura e golpismo

Imprensa, ditadura e golpismo

Assisti recentemente os dois primeiros episódios do documentário Folha Corrida, que tem na direção e equipe de pesquisa/apoio os queridos irmãos Chaim e Rachmiel Litewski. O tema é a colaboração do Grupo Folha com a repressão durante a ditadura civil-militar instalada em 1964. O Ministério Público Federal abriu inquérito que analisará a responsabilização do grupo em violações dos direitos humanos cometidas no período 1964-1985.

Assinante da Folha de São Paulo há mais de trinta anos, resolvi aproveitar o gancho para refletir sobre o papel geral da imprensa na implantação e consolidação da ditadura. Como cauda do cometa, dou uma espiada nas reiteradas acusações de golpismo que determinados setores lançam sobre a Folha. Como a acusação é genérica, suponho que este golpismo refira-se aos dias que correm.

Parto de uma premissa: abandonem-se as ilusões sobre a imprensa na sociedade capitalista. Sem duvidar da integridade e da competência de muitos jornalistas aqui e alhures, que têm minha admiração e respeito, os objetivos de jornais e grupos de comunicação não são diferentes dos de qualquer empresa privada. Os proprietários visam o lucro, vivem da exploração de mais-valia e defendem, com estratégias mutantes e linguagem adaptável, os interesses da classe dominante. Noves fora, este é o resumo da ópera.

Isto posto, vejamos o que disse a mídia impressa na alvorada da ditadura. O Globo, entre 2 e 4 de abril de 1964: “Ressurge a democracia! Vive a nação dias gloriosos”, “Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares que os protegeram de seus inimigos”, “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restaurada, atendendo aos anseios nacionais de paz, tranquilidade e progresso”. Correio da Manhã, 31 de março e 1 de abril: “Basta! Fora! Só há uma coisa a dizer ao senhor João Goulart: saia!”. Tribuna da Imprensa, 2 de abril: “Escorraçado, amordaçado e acovardado, deixou o poder como imperativo de legítima vontade popular o Sr João Belchior Marques Goulart, infame líder dos comuno-carreiristas-negocistas-sindicalistas”. Jornal do Brasil, 1 de abril: “Desde ontem se instalou no País a verdadeira legalidade”.

O que pensava O Estado de São Paulo, jornal que representava as elites quatrocentonas da pauliceia desvairada? Júlio de Mesquita Filho, dono do jornal, propôs a dissolução do Poder Legislativo em todos os níveis, a anulação dos mandatos dos governadores e prefeitos e a suspensão do habeas corpus. Perfil e sombra dos “democratas” dantanho. Mesquita, Marinho, Nascimento Brito e outros “empresários da notícia” afinados aos interesses burgueses ameaçados pelas tímidas reformas do governo João Goulart.

Indo para a Folha de São Paulo. Eu a leio desde os anos 70, quando o regime exercia draconiano poder de censura e coerção. Ao longo de todos estes anos, o jornal não foi uma linha reta. Fez coberturas importantes no assassinato do jornalista Vladimir Herzog (quadro do PCB, morto sob tortura nas dependências do DOI-CODI), na campanha pelas Diretas e no atentado do Riocentro. Acho que a direção percebeu, nestes dois últimos casos, o aroma de mudanças no ambiente político. A ditadura dava sinais de esgotamento, a linha do jornal acompanhou esta percepção, em benefício dos que lutávamos pelo fim do regime.

É importante lembrar alguns dos jornalistas/colaboradores que passaram pela Folha e lhe deram uma personalidade sem equivalente na imprensa brasileira. Alberto Dines, Claudio Abramo, Newton Rodrigues, Jânio de Freitas, Carlos Heitor Cony, Otto Lara Resende, Isac Akcelrud, Lourenço Diaféria, Ricardo Kotscho, Florestan Fernandes, Marcelo Coelho, Aloysio Biondi, Vladimir Safatle: globetrotters do ofício. Como registro adicional, lembro de uma série de matérias que o Eduardo Suplicy escreveu sobre a China, numa época em que isso podia resultar numa visitinha noturna de agentes do DOPS.

Dando um salto para o presente, o jornal desidratou e perdeu muito do peso que tinha, especialmente nas seções de economia e política. Apesar disso, mantém uma equipe respeitável, que, como leitor e atento observador de coisas e loisas, não posso prescindir. Ruy Castro, Alvaro Costa e Silva, Mariliz Pereira Jorge, Drauzio Varella, Mario Sergio Conti, Thiago Amparo, Vera Iaconelli, Antonio Prata, Muniz Sodré, Juca Kfouri, Tostão, Conrado Hübner Mendes, Laerte, Jean Galvão e Bennett (cartunistas), ensaios do caderno Ilustríssima. Fora esses e alguns colaboradores eventuais, há o João Pereira Coutinho, um liberal inteligente, com quem mantenho diálogo silencioso em torno de muitas divergências. Sobre ele, que não apela para ofensas, usa bons argumentos e tem muito bom-humor, vai uma observação. Acho mutilante ler apenas os que, a priori, pensam como nós. É a tal da bolha, que, no fundo, funciona como espelho narcísico e ignora a mais rica das tradições da esquerda: o diálogo com os contrários. Marx debatia com Bruno Bauer, Engels enriqueceu seu tempo contestando Dühring, Leandro Konder propôs conversa com Mário Henrique Simonsen.

Não leio “a” Folha, mas artigos, reportagens e colunas da Folha. Como acredito que fazem todos os leitores de qualquer jornal. E aqui chego à acusação recorrente que mencionei no início. Seria o jornal da família Frias um órgão a favor do golpismo (assim mesmo, genérico, atemporal, que é como aparece nos dedos apontados)? Estaria ombreado, por exemplo, à estrutura recém desarticulada que tentou impedir a posse de Lula em 2023 e implantar uma nova ditadura? A alegação dos acusadores é de que isso fica claro nos editoriais e, adicionalmente, numa cobertura enviesada por supostos apoios velados ao bolsonarismo (as entrevistas com o JMB e Carla Zambelli o “demonstrariam”).

Confesso, mea maxima culpa, que não costumo ler os editoriais da Folha. No entanto, aqueles que li mostram uma oposição antipetista, que se manifesta em críticas a programas econômicos e escolhas políticas, mas não estimula, promove ou defende golpe para derrubar governo (como no caso clássico, já mencionado, do Correio da Manhã, em março/abril de 64). Alguma surpresa? Só para ingênuos.

Por outro lado, o jornal publica uma imensa diversidade de opiniões sobre a conjuntura político-econômica nacional. Dezenas delas claramente antigolpistas e com chamada de capa. Cito, pela contundência, o artigo Biblioteca oficial do crime bolsonarista, do dia 3 de abril passado, assinado por Conrado Hübner Mendes (professor da USP, doutor em direito e ciência política e membro da SBPC). Esta diversidade, longe de ser tóxica, é estimulante. Ler não é aderir, pensar não é concordar. Em tempo: achei ótima a ideia de entrevistar JMB e a Zambelli. Com perguntas pertinentes, o jornal desnudou com elegância estes personagens pérfidos. Quando se quer matar um vampiro, joga-se luz sobre ele.

Há um outro detalhe, nada irrelevante. Qual seria a atitude de jornalistas experientes e nada conservadores se percebessem que o jornal colabora para derrubar governo? Fariam voto de silêncio? Participariam, “vendidos” e na calada da noite, da conspiração para quebra da legalidade? Imagino a cena surrealista de gente como Mario Sergio Conti e Alvaro Costa e Silva, iluminados por lampiões trêmulos, esfregando as mãos e passando o pano para bacanais golpistas. A coisa é tão verossímil quanto acreditar que Eurico Miranda não passava de um rubro-negro infiltrado nas hostes vascaínas.

Acho que a ditadura deixou um rastro de intolerância no convívio com as diferenças. Isso é agravado com a lógica das redes sociais. Vejo em setores da esquerda uma reação pavloviana quando esbarra em posições/opiniões divergentes. Atira-se de imediato e sem delongas, com evidente fragilidade conceitual, os rótulos de “golpismo” e “fascismo”. A generalização, como sempre, esvazia o sentido destas palavras. Claro que existem fascistas e golpistas, o combate a eles deve ser implacável. É preciso, entretanto, identificá-los e diferenciá-los dos adversários conservadores. Sob pena de se montar uma estratégia equivocada para enfrentá-los.

Abraço. E coragem.

Duas vezes 31 de março

Duas vezes 31 de março

Hoje é um dia de coincidências desconfortáveis. Em 31 de março de 1685, nascia em Eisenach, Alemanha, um dos maiores gênios de todos os tempos. Johann Sebastian Bach atravessa os séculos desconcertando, surpreendendo, convocando. Certa vez, um confrade ateu disse que, se deus existisse, sua voz seria uma melodia de Bach. Vou mais longe. O grande mestre escreveu muitas peças com temas religiosos, de inspiração cristã. Pois ouvi-las e incorporá-las independe das convicções religiosas/ateias do ouvinte. Experimente ouvir a ária Erbarme dich mein Gott, da Paixão Segundo São Mateus. O diálogo voz humana – violino que lá aparece atinge uma dimensão sublime, difícil de rotular, difícil de desgrudar. Dá algum sentido ao tempo de viver.

Duzentos e setenta e nove anos depois do nascimento de Bach, no mesmo 31 de março, uma conspiração vitoriosa iniciou no Brasil uma ditadura que durou 21 anos. Classe média reacionária, burguesia e imprensa golpistas, e militares que vomitaram sobre suas atribuições constitucionais depuseram o governo democrático de João Goulart e submeteram o país a toda sorte de arbítrio: censura, perseguição política, assassinato de dissidentes, cancelamento de eleições, extinção de partidos políticos, vigilância policial em sindicatos e organizações populares, intimidação nos meios acadêmicos.

Ainda hoje, tem gente ignorante ou de má-fé que fala em “contrarrevolução” e aponta o dedo-duro para Jango, chamando-o de “comunista”. Logo ele, próspero estancieiro gaúcho, quadro histórico do PTB, partido reformista criado por Getúlio para minar a influência da esquerda revolucionária sobre as massas. A verdade é que defender, como Jango o fez, a reforma agrária (democratizando o acesso à terra), a reforma eleitoral (dando direito de voto aos analfabetos) e a democratização do sistema educacional, era tabu para a classe dominante brasileira, cujo atraso jamais deve ser subestimado. Com providencial apoio material e logístico do imperialismo norte-americano, fartamente documentado, o golpe civil-militar jogou o Brasil nas trevas da ditadura.

Certa vez, meu filho perguntou como era o cotidiano sob o regime dos generais. Senti que ele tinha uma imagem sombria muito abrangente, como se debaixo de cada marquise e tapete, dentro cada latão de lixo e sacola de supermercado, atrás do trio elétrico, tivesse um tira, um milico, um araponga, de tocaia, pronto para distribuir coices e ejacular “teje preso!”. Não era bem assim. A repressão tinha múltiplas faces. Das mais violentas, como a que dizimou, com apetite assassino e sob torturas medievais, a resistência armada antiditatorial, às que se manifestavam sem derramar sangue, como a censura a todos os tipos de manifestação cultural e a perseguição nos locais de trabalho (tenho um amigo que passou em primeiro lugar no concurso para o BNDES e foi descartado por ter “ficha suja” para o padrão brucutu dos meganhas). No entanto, não bastava sair à rua para ser algemado. Os tentáculos do Estado autoritário eram assustadores porque, muitas vezes, invisíveis, e sempre irrecorríveis.

Comecei a faculdade na Ilha do Fundão poucos meses depois da promulgação do infame Ato Institucional número 5, em 13 de dezembro de 1968, que fechou de vez o regime. No primeiro semestre de 1969, a ilha era frequentemente invadida por militares, que cercavam o Bandejão, formavam o chamado corredor polonês e exigiam documentos de nós, frangotes aterrorizados pelos covardes armados. Os que, por azar, não dispunham de documentação, eram sumariamente levados para camburões. Este foi o clima que vigorou por bastante tempo naquele espaço criado para celebrar a ciência e o conhecimento. Palavras vazias para as nulidades fardadas.

Sessenta e um anos depois do golpe, ainda somos assombrados pelos herdeiros assumidos da aventura protofascista. Descobrimos que nossa luta para derrotar a ditadura não terminou. Usando as palavras do jornalista Bernardo Mello Franco, “a extrema-direita fincou raízes, cresceu e se tornou hegemônica no campo conservador”. O país que imaginávamos construir, mais solidário e menos injusto, ainda é uma miragem remota, cercada por resistências ferozes e nostálgicos de cadeiras do dragão.

Lembrar do que aconteceu em 1964 é importante como polimento da memória histórica e alerta para a geração que está chegando. Hoje, no entanto, vou dar-me o direito de viajar para 1685, olhar para o outro 31 de março, e celebrar o gênio que nos torna mais humanos. Vou ouvir o CD (!) com as Variações Goldberg, interpretadas pelo pianista chileno Claudio Arrau, fechar os olhos e imaginar que este mundo ainda tem jeito. Serei, por breves momentos, aquele sobre o qual disse Maiakovski: “Dizem que, em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”.

Abraço. E coragem.

Heal me

Heal me

Não é segredo./Somos feitos de pó, vaidade,/E muito medo. (Millôr Fernandes)

Foi puro acidente. Procurava alguma novidade na plataforma de filmes quando esbarrei na série britânica “Adolescência”. Não tinha referências sobre ela, desconhecia atores e diretor, o trailer não foi especialmente animador. Resolvi arriscar. O impacto da história é avassalador. Vai muito além dos limites da sequência dos fatos e transita para questões universais. É material farto para uma boa conversa, e muitos sustos. Não darei spoilers.

Para início de conversa, esqueça clichês hollywoodianos. Não há heróis e vilões e, neste sentido, a série reproduz à perfeição a fase adolescente de todos nós. É uma etapa turbulenta, que traduz no terreno pessoal o que Gramsci observou na dinâmica da história social: “O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”. São estas criaturas assustadoras, que lutam para desvencilhar-se dos adultos, relíquias subitamente indesejáveis, mas ainda não construíram novas referências, que coagulam em Jamie, protagonista da série (que ator fantástico está incubado em Owen Cooper!).

Todos já atravessamos este terreno movediço. Com estratégias diferentes, pelejamos contra a solidão e as rejeições, vivenciamos a descoberta de novas sensações no corpo e as inadaptações. Olhando por este lado, o adolescente dos anos 50 não difere do que está nas paradas nos dias que correm. Há, no entanto, elementos novos que potencializam as enormes inseguranças da garotada. Refiro-me aos efeitos das redes sociais no cotidiano. Estamos, afinal, no reino das telas e seus mecanismos de sociabilidade não raro tóxica.

A vergonha que eu, espinhas no rosto e dúvidas na alma, tive ao levar LPs de música clássica para uma festinha dançante (Schubert e Tchaicovsky não tinham culpa de serem os únicos do pobre acervo do Menino) não ultrapassou as paredes de um modesto apartamento na Tijuca. Hoje, eu seria ridicularizado em redes implacáveis, execrado como um sem noção, banido sem direito a recurso de muitos círculos. Os assédios, as crueldades, os ódios, ocupam Maracanãs de audiência e multiplicam a dor que pode ter consequências graves. Quem pode avaliar e julgar os limites dessa dor?

Durante um bom tempo, o Menino em transformação fechava a porta do quarto, bunker batizado de Grumânia, território onde ditava as regras. Na mais absoluta solidão. Faltou ali o que percebo faltar em muitos ambientes familiares: diálogo, percepção do Outro, quebra de hierarquia. Hoje, é muito comum terceirizar-se a comunicação. O Outro é uma tela, turbinada pela última e sedutora tecnologia. As consequências já estão em curso. É uma doença que se instala aos poucos e tem a cumplicidade de adultos que renunciam ao dever de orientar e, se necessário, divergir/confrontar.

Pesquisa recente feita pela Fiocruz mostrou que, entre 2000 e 2022, houve, no Brasil, uma aceleração da taxa de suicídio entre as pessoas de 10 a 19 anos. Claro que há múltiplos fatores que determinam esta tendência, não sou tolo de simplificar uma questão cabeluda. Suspeito, entretanto, que, por trás dela, há uma espécie de crise de solidão e indisponibilidade para o diálogo. Num mundo acelerado, a pausa para as trocas afetivas vira vertigem. O poeta Paul Valéry viajou profeticamente quando disse (no início do século vinte!) que “o ser humano atual não cultiva nada que não se possa abreviar”.

No início afirmei que não daria spoilers. Vou quebrar um tantinho esta promessa. Já na curva final da série, pai e filho conversam mediados pelo celular. De repente, o pai solta a palavra “filho”. Sai sem perceber. Há um silêncio do outro lado da linha. Ao quebrá-lo, o filho diz (a imagem não aparece, mas acho que ele devia estar cabisbaixo) “você nunca tinha me chamado desta maneira”. Os minutos seguintes são dilacerantes, transformadores. Eu me pergunto: quantos destinos seriam alterados por uma palavra afetuosa, que não fosse apenas insinuada, mas dita como oferta de abraço e atenção? Há, no ar, um permanente pedido de socorro, que poderia ser sintetizado por um trecho da ópera-rock Tommy (interpretação antológica do The Who, em Woosdstock): See me/Feel me/Touch me/Heal me.

Não percam “Adolescência”.

Abraço. E coragem.

Contrastes

Contrastes

O documentarista chileno Patricio Guzmán produziu uma pequena obra-prima ambientada no deserto do Atacama. Em Nostalgia da luz, ele movimenta o olhar para o alto e para baixo. Acima, devido ao ar despoluído, está uma das imagens mais amplas e claras do céu, que permite observação cósmica sem paralelo. É no Atacama que estão alguns dos mais potentes telescópios do planeta, visitados por pesquisadores de todo canto em busca de pistas sobre mistérios, belezas e assombros. Entre eles, a origem do universo.

Depois de registrar estas maravilhas do engenho humano, Guzmán muda o ângulo para baixo e mostra silhuetas encurvadas, raspando o chão árido. O que faziam aqueles espectros? O que buscavam? A resposta é terrível. Durante a ditadura Pinochet, centenas ou milhares de presos políticos foram assassinados, seus corpos despedaçados e fragmentos de ossos espalhados pelo deserto. Mulheres ligadas aos presos tentavam localizar, com ferramentas rudimentares, estes fragmentos, que poderiam sugerir valas comuns. Fizeram isso durante anos. Impressionantes seus rostos tristes, sua perseverança sobre-humana, sua esperança dilacerante.

Andei pensando (faço isso de vez em quando…). O contraste flagrado por Guzmán (cujo antológico A batalha do Chile é uma lição política seminal), o sublime em contato íntimo com o sórdido, é o caldo nutritivo de nosotros viventes. É como caminhar em êxtase pela pista Cláudio Coutinho, na Praia Vermelha, e, na saída, esbarrar nos banidos da sociedade, esparramados pelas calçadas, sem esperança e ignorados por quem passa. O conjunto é inseparável.

Não digo desde os cueiros, mas desde muito cedo acreditei que a trajetória humana seria uma escalada rumo à Razão e ao aperfeiçoamento da política, do homem como animal político. Uma construção em escala sempre ascendente (com os solavancos presumíveis). Permaneço fiel, em grandes traços, a este desenho, mas o Fradinho sacana que habita minhas entranhas anda puxando-me as orelhas. Ajusta aí o foco, perceba a loucura!

Vamos lá. Guerras cada vez mais letais espalham-se, começa uma nova corrida armamentista com aroma nuclear, a fome não para de crescer, doenças preveníveis estão voltando amparadas por negacionismos de coturno variado, crises humanitárias de todo tipo açoitam milhões, preconceitos vestem fantasia respeitável. O quadro dantesco, entretanto, não tira o sono de um mundão de gente, aquela que está no que Elio Gaspari chama de “andar de cima”. A obscena distribuição de riqueza no planeta, que não mudará pacificamente, gera bolhas de consumo ostentatório e cenas francamente ofensivas.

Um anúncio no jornal divulga o Dinner in the Sky. Os abonados farão uma refeição nas alturas, pendurados num guindaste, que transformará a simples forragem do estômago, o rango saciador, numa “experiência”. Claro, acompanhada de imagens para acariciar o infinito narcisismo de quem já não sabe onde gastar fortunas e orbita seus próprios umbigos.

Novos modelos de celulares (o último multiplica a tela original por três) agravam a dependência generalizada de telas. Os brasileiros são campeões neste vício. Passam, em média, mais de 9 horas diárias na internet (um terço disso em redes sociais). A sociedade passou a girar em torno destas geringonças. Pesquisa recente mostrou que, no mundo, pais consultam em média 70 vezes os celulares durante o tempo de convívio com familiares, interrompendo dois terços das interações. É uma imensa válvula de sucção que prejudica a qualidade dos relacionamentos e multiplica solidões.

Uma amiga, que convive com muitos pais de adolescentes, contou o seguinte. Nas festas eles acabam entrando em estado de grande ansiedade. Sabem por quê? Fora do contato virtual pelas telas, olho no olho, ficam sem ter o que falar. Sem o amparo de memes, emojis, réplicas de futilidades, são forçados a olhar o Outro sem filtro. Pelo que ouvi, a experiência é, não raro, aflitiva, e pode derivar em aumento de consumo de álcool para aliviar a tensão.

No ritmo que a banda está tocando, talvez não precisemos esperar que um asteroide gigante, rocha peregrina, colida com a Terra e nos leve à breca. Consta que os gregos antigos, sempre eles, afirmaram que os deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem querem destruir. Daí então, dar-te eu irei… Desculpem, contrabando do Sinhô. Voltando. Daí então, a Razão fará uma mesura, dará um triplo carpado e acabará em cortejo febril no Irajá. Junto com toda a Humanidade.

Abraço. E, apesar de tudo, coragem.