A culpa é do Capelobo

A culpa é do Capelobo

Está lá há algum tempo. Num cantinho recuado na boca da estação do metrô em Copacabana, a faixa rabiscada a capricho anuncia: rodízio de caldo de cana. Para acompanhar a bomba calórica, o funcionário anuncia os petiscos homicidas. Nunca dei bola ao palavrório, mas algo me chamou a atenção num dia de menos pressa. Aproveitem! Hoje tem pastel de pizza! No Rio, churrascarias rodízio oferecem também comida japonesa. Nada mais natural (sem duplo sentido) do que comer picanha mal passada acompanhada de sashimi de atum… Os estômagos cariocas têm blindagem dupla e bile à prova de bala. Pastel de pizza, no entanto, derrotou o folclórico pastel de vento da Central do Brasil no torneio dos nossos exotismos gastronômicos. Pessoal aqui gosta de viver perigosamente.

O resultado da comilança jaz nas escadas de acesso à plataforma. Restos mortais de pastéis, guardanapos, embalagens, canudos, copos, jogados nos degraus. A primeira linha de metrô do Rio foi inaugurada em 1979. Não demorou muito e comentava-se, à boca pequena, que o carioca virava sueco assim que entrava no subterrâneo. Um nível de civilidade que não se via no resto da cidade. O João que jogava a guimba na calçada vestia-se de Johanssen enquanto aguardava o trem, depositando o palito do picolé na lixeira. O malandro Kid Morengueira dava passagem para o sóbrio Ingmar Bergman.

Passados tantos anos, com uma privatização no lombo, os cariocas renunciaram à metamorfose nórdica. O metrô sintetiza hoje o comportamento comum aos que confundem espaço coletivo com território sem regras. A encrenca não se resume à sujeira crescente. As portas de acesso aos vagões estão permanentemente bloqueadas por passageiros (grudados em celulares), cada vez mais gente senta no chão dos vagões (o que é formalmente proibido), não há campanhas que orientem os usuários a usarem corretamente as escadas rolantes (quando estas não estão indisponíveis). Cada pessoa acha que é rainha do seu pedaço, cria suas próprias regras. Os incomodados que usem helicópteros ou batmóveis.

Dia desses estava num simpático bistrô perto de casa quando vejo entrar o Raymundo de Oliveira. Conhecemo-nos em várias trincheiras de resistência à ditadura civil-militar. Saudamo-nos fraternalmente e, depois de um dedo relâmpago de prosa, puxou-me para bem perto e segredou, com ironia: “Onde está o mundo melhor que você me prometeu?”. Sei muito bem o que ele quis dizer. Dá um certo travo amargo perceber que, depois de tanta luta, tanta esperança frustrada, o que vemos ao nosso redor é destruição, deixa-pra-lá e fortalecimento de segregações muitas. Nas ruas e cidades, no planeta. O que deu errado?

Falei do metrô carioca, mas há muitos puxadinhos nas vizinhanças. São os mais de 8.000 bares que entulham ruas e trovejam barulheiras. Caixas de som nas praias, urrando “música” (sic) e mensagens religiosas. Motos, patinetes e bicicletas competindo pelo título de bandalha do ano. Balas de todos os calibres em voo livre à procura de cabeças, troncos e membros. Além fronteiras, no mundo de mileis, orbans, trumps e seus parças, os pesadelos gerados há quase um século saem das tumbas e anabolizam-se. No meio do fogo cruzado, povos dizimados, êxodos forçados por miséria e violência, tecnologias a serviço da mentira e da ignorância. O que deu errado?

Talvez Luiz Antonio Simas tenha matado a charada. Simas é meu guru para temas cariocas e de cultura popular. No seu livro “Bestiário brasileiro”, apresenta-nos o Capelobo. Trata-se de um monstro com corpo peludo de homem e cabeça de animal (pode ser tamanduá-bandeira ou anta). Ardiloso, ele consegue parecer gente ao se aproximar das vítimas e, abraçando-as, abre um buraco no crânio delas e chupa-lhes o cérebro. As coitadas deixam de raciocinar e passam o resto da vida falando bobagens. Parece-lhes familiar? Será que houve, e ainda está em curso, uma invasão mundial de Capelobos? A culpa, cáspite!, vade retro!, é deles!

Abraço. E coragem.

Caricaturas

Caricaturas

1982. O Brasil era governado pelo general que seria o último do ciclo ditatorial iniciado em 1964. João Baptista Figueiredo, de triste memória, havia comandado o Serviço Nacional de Informações, ninho da arapongagem que aterrorizou democratas de todos os calibres, estilos e vocações. Sujeito de maus bofes, comparáveis aos de outro infame que serviu à ditadura, o general Newton Cruz. Figueiredo não se constrangeu em dizer que preferia cheiro de cavalo ao do povo. Quem viveu aquela época, há de lembrar da expressão azeda do milico, representação facial da caserna golpista.

O imperialismo norte-americano estava de olho no seu histórico quintal. Ronald Reagan, canastrão que presidia os Estados Unidos, desembarcou em Brasília. Foi protagonista de uma gafe patética. No rega-bofe que o Itamaraty ofereceu ao caubói, ele ergueu um brinde ao “povo da Bolívia”. Imagino a revolução gástrica nas tripas do general iracundo. Tentando consertar a bobagem, Reagan emendou: “Bem, na verdade, é para onde eu vou depois”. Pequeno detalhe: a próxima parada do ianque seria na Colômbia. Na cabeça liliputiana dele, no entanto, devia ser tudo a mesma cucaracha.

Esta passagem ilustra à perfeição a visão caricata, banhada em preconceitos, que o Grande Irmão do Norte tem sobre os povos que moram no que antigamente era rotulado como Terceiro Mundo. Somos o Zé Carioca que, em pleno Rio de Janeiro, papagaiava “saludos, amigos”. Por sorte, ou acidente, sem sombrero mexicano… Vestimos turbantes enfeitados com saladas de frutas. Servimos de refúgio para escroques em produções hollywoodianas. Viramos piada quando o personagem de Audrey Hepburn em “Bonequinha de luxo” dá o bote num fazendeiro brasileiro rico, achava que o cidadão ia ser presidente e ela viraria a “rainha dos pampas”. Ainda bem que não gritou “olé!”. Às vezes, este desprezo transforma-se em violência, como aconteceu no apoio norte-americano ao golpe de 1964. Amigos, amigos, canhões à parte.

Vivi a explosão dos quadrinhos nos anos 50 e 60. Devorávamos Fantasma, o Espírito-que-anda, e Mandrake na maior ingenuidade. O Fantasma, codinome de um certo senhor Walker, tinha residência numa caverna africana forrada de joias e metais preciosos. Dominava a tribo dos temíveis pigmeus negros da tribo bandar, que lhe prestavam vassalagem e agiam como guarda pretoriana. Ao longo dos anos, sua imagem foi associada à dominação do justiceiro branco europeu sobre “raças” subalternas.

Mandrake, um ilusionista, tinha um serviçal negro, Lothar. Dizia-se que era um príncipe africano. Nunca entendi como alguém, com linhagem real e força portentosa, subordinava-se tão pacificamente a uma pessoa que não dava a menor importância para sua cultura, suas tradições, suas inquietações. Servia como cenário musculoso para a dinâmica existencial do seu patrão.

São pequenas amostras de um caldo informativo/pedagógico que ajuda a traduzir o jogo bruto das lutas de classes. Penso que quando Trump declara que “não precisamos deles (dos brasileiros)”, não está se referindo apenas ao terreno econômico. Sua presunção, sua arrogância, leva-o ao isolacionismo, à confirmação narcisista de que a América (que ele, erradamente, associa exclusivamente ao seu país) não precisa de ninguém. Econômica, cultural e socialmente. Tal como na marchinha dos carecas, eles se acham os maiorais.

Com tudo isso sambando na cabeça, decidi rever um seriado antigo da televisão. É Jim das Selvas, cópia descarada de Tarzan, criação do Edgard Rice Burroughs. Estrelada, nos dois casos, por Johnny Weissmuller, ex-campeão mundial de natação em 1922. Revi um episódio de 1954, O homem crocodilo. Foram 60 minutos quase insuportáveis. História confusa, atores medíocres. Noves fora, a ladainha que mostra os brancos trazendo a “civilização” para os selvagens, o roubo explícito de riquezas naturais (para um governo convenientemente não identificado), os nativos vestidos como foliões de baile suburbano (mudos, subservientes, ridículos). Para lembrar sem a menor nostalgia.

Sei que há muito debate sobre a influência das primeiras leituras e experiências cinematográficas sobre a forma como enxergamos o mundo na idade adulta. Tendo a acreditar que, de forma complexa, é decisiva (embora não necessariamente definitiva). Na aurora desta segunda Era Trump, é bom lembrar os antecedentes do olhar norte-americano sobre nós. Quando o Agente Laranja defender a Great America, as consequências para nós, o “resto”, “os menores”, não serão pequenas. Tomara que se encontre um caminho de unidade para enfrentar a tempestade.

Abraço. E coragem.

Duas vidas

Duas vidas

Minha irmã vivia seus últimos momentos. Antes da sedação profunda, seguida de redução gradual da respiração e colapso final do corpo, conversamos rapidamente. Embora enfraquecida, conseguiu dizer que tinha muita curiosidade sobre a Morte. Entendi que desejava confirmar a veracidade de tudo o que costumamos ouvir sobre o assunto, em grande parte versões de uma jamais provada continuação da Vida post mortem. Encontraria nossos parentes? Se encontrasse, teriam a mesma aparência de quando morreram? Como seria o mundo destas ex-pessoas? A dor da vida estaria extinta? Quem comandaria a orquestra e como seria a rotina dos músicos? Haveria hierarquia, desigualdade, carências afetivas, fronteiras? Desafios? Tédio? Se alguém se ferisse, onde compraria a competente Maravilha Curativa do Dr. Humphrey’s para tratar o ferimento? Os espectros masculinos precisariam aparar a barba ?

Muita gente boa fica aflita quando desenterra a pergunta-chave: Vida é só isso? Entenda-se “isso” como o tempo curto (ah, como tudo passa rápido!) e a condenação certa ao esquecimento, as angústias muitas e a paz volúvel, os encantos raros e os desencantos insistentes. Daí ser um pulo  inventar soluções sobrenaturais para aliviar a ansiedade que a dúvida traz. Não dá para contar a quantidade de descrições de uma suposta segunda vida, com seu repertório de almas e realidades etéreas. Às vezes, sofistica-se a fábula descrevendo o processo de transição, enfeitado por luzes brilhantes, túneis camaradas, harpas afinadas, vozes tranquilas.

A ciência, que não costuma dar refresco para tanto delírio, pesquisa o funcionamento do cérebro, aglomerado extraordinário de células e memórias. Como subproduto, debruça-se sobre o mistério do momento em que se morre. As primeiras conclusões são fascinantes porque desmistificadoras. Ao contrário do que se pensa, o cérebro continua ativo durante algum tempo após a parada final do coração. Aumenta a emissão de uma onda cerebral associada a sonho, meditação e recuperação de memória. Os primeiros resultados, espetaculares, sugerem que nosso cérebro pode permanecer ativo e coordenado na transição para a Morte. Esta atividade seria responsável, por exemplo, por certas alucinações vividas por pessoas que passam por experiências de quase morte (paradas cardíacas, por exemplo). Quanto mais conhecermos as complexas capacidades cerebrais, mais nos afastaremos das fantasias do Além Túmulo.

Drácula e Frankenstein, clássicos do terror (Bela Lugosi e Boris Karloff inesquecíveis), são assombrações que dramatizam a busca impossível pela vida eterna. Para o conde, que opera na penumbra com seus caninos salientes, a eternidade é maldição. Colecionar para sempre sangue alheio, e aqui pensa na grife Klaus Kinski, é uma tarefa que o deprime. Já o velho Frank, espécie de Lego orgânico, vive em permanente crise de identidade. Cada parte de seu corpo deformado nasceu de outrem. Qual delas é a hegemônica? A cabeça do açougueiro ou o tronco do coveiro? O braço do acadêmico ou a perna do peladeiro? Uma boa dica para ambos seria que levassem em conta o que disse Mark Twain, um grande gozador: “Quem viveu bastante para descobrir o que é a vida, sabe que dívida de profunda gratidão devemos a Adão, primeiro grande benfeitor da nossa raça. Foi quem trouxe a morte para dentro do mundo”.

Eternidade mesmo parece repousar na natureza. Vejam só. Uma pesquisadora israelense teve acesso a uma semente descoberta numa caverna no deserto da Judeia. Testes indicaram que ela tinha cerca de mais de 10 séculos. Replantada e fertilizada, brotou e deu origem a uma árvore sem congênere no mundo atual. Suas folhas contêm substâncias com grande potencial medicinal. Resumo da ópera: tratada com delicadeza e respeito, a natureza pode regenerar-se e produzir, aí sim e sem contorcionismo, uma segunda vida.

Abraço. E coragem.

O que diria dona Zenaide?

O que diria dona Zenaide?

Podemos apenas imaginar o sofrimento daquela mãe. Em 2018, perdeu um filho recém-nascido e, desesperada, carregou o corpo durante mais de duas semanas. O que se passou na mente atormentada pela dor? Alguém consegue colocar-se em seu lugar?

Não bastasse a ferida emocional, inapagável, descomunal,  seis anos depois voltou a gerar um filho que resistiu pouco. Os que a acompanhavam à distância desconhecem por quanto tempo voltou a carregar o corpo sem vida, com o mesmo cuidado que as mães doam aos recém-nascidos.

Chama-se Tahlequah, a mãe enlutada. É uma orca e seu martírio duplo foi acompanhado por cientistas de Seattle, nos Estados Unidos. As cenas impressionantes parecem o luto que costumamos viver quando perdemos alguém próximo e levamos um tempo indeterminado para absorver o choque e tocar a vida.

Caso isolado na Natureza, essa imensa, complexa e bela engrenagem que nos habituamos a olhar com soberba? De jeito nenhum. Num zoológico espanhol, Natalia perdeu seu bebê 14 dias após o nascimento. Inconformada, carregou o corpo por sete meses, incapaz de separar-se daquele pequeno ser que emergiu de suas entranhas. Mesmo com a decomposição inevitável do corpo, continuou a carregá-lo, numa expressão de cuidado e, talvez, de desejo de que tudo aquilo não passasse de ilusão e o filho, de repente, abrisse os olhos para a mãe amorosa. O rosto triste atraiu a solidariedade de seus vizinhos, que a acompanharam no calvário.

Natalia é uma chimpanzé da subespécie Pan troglodytes verum, que se encontra em risco crítico de extinção. Mesmo submetida ao cativeiro no zoo, instituição escravocrata que cada vez mais desprezo, ela demonstra como não estamos sós na complexidade de sentimentos e de vivências na maternidade, nos tempos multicores da existência. Somos apenas um subgrupo de tripulantes presunçosos nesta esfera enlouquecida.

Lá atrás, dona Zenaide, pilotando desenvolta o quadro-negro, nos ensinava que éramos animais racionais. Sim, nossa superioridade sobre as demais espécies viventes, todas irracionais, era óbvia nos manuais escolares. Na cabeça quase virgem do Menino, esta informação se traduzia como direito inquestionável de subordinar a Natureza às nossas vontades. A Razão dos homens era soberana. Ao longo dos séculos, extinguimos animais em massa por caça predatória e destruição de habitats. Tudo se passa como se o planeta só existisse para saciar nossos apetites, não importa a que custo.

A vida na Terra é um processo bioquímico extremamente complexo. Pelo conhecimento atual da ciência, ela surgiu há quase 4 bilhões de anos. No início, muito antes da explosão de múltiplas formas de vida, eram seres unicelulares. Os hominídeos, nossos parentes remotos, desceram das árvores nas savanas africanas há 5 milhões de anos. Eram resultado de uma sequência de eventos absolutamente acidentais e que jamais se repetirão. Somos parte de uma imensa cadeia orgânica vital, delicada e única. A cada dia, por prepotência e cobiça, estamos destruindo seus elos.

Pode ser que existam formas de vida em outros planetas. Afinal de contas, apenas na “nossa” Via Láctea existem cerca de 200 bilhões de estrelas. Ao redor de muitas, devem gravitar corpos celestes semelhantes a planetas. Quem sabe em alguns, ou muitos, existirão condições propícias para o nascimento de organismos vivos. Provavelmente, nada a ver com os monstrinhos verdes imaginados pela ficção científica ou os habitantes do planeta Mongo, familiares ao Flash Gordon e à Dale Arden.

Uma coisa parece certa. O Sol, alma mater da vida na Terra, vai esfriar completamente e explodir em 5 bilhões de anos. Nosso planeta, então, se transformará num imenso vazio, estéril, sem vida. Do jeito em que a banda está tocando, vamos acelerar o tempo da destruição. A ação do homem fez com que o ano passado tenha sido o mais quente da história, rompendo a marca de 1,5 º C de aumento da temperatura média da Terra em relação aos níveis pré-industriais. Os resultados estão aí. Enchentes no Saara, incêndios e secas devastadores em todos os quadrantes, furacões com força inédita. Eventos extremos são o novo normal.

Enquanto seu lobo não vem, percebamos com humildade o contraste do desprezo à vida que desfila todos os dias em cada canto do planeta e o comportamento belo das Tahlequahs e Natalias que nos cercam. Irracionais? O que diria de tudo isso a dona Zenaide?

Abraço. E coragem.

Promiscuidade bíblica

Promiscuidade bíblica

Podia cair na prova. As professorinhas ensinavam que um dos primeiros nomes do Brasil foi Terra de Santa Cruz. Deve ter sido uma imagem deslumbrante para os velejadores portugueses que chegaram à costa do nordeste brasileiro em 1500. O que fizeram depois não merece medalha, mas aí já é outra história.

Hoje, na zona oeste carioca, há um bairro chamado de Santa Cruz. Abandonado pelo poder público e infestado de milicianos, seu IDH é quase lanterninha entre os bairros. Lá falta quase tudo. Em meio às carências muitas, há uma área de quase 200 mil metros quadrados onde funciona a Cidade das Crianças Leonel Brizola, concebida para dar esporte e lazer para a garotada local.

Sem apoio oficial faz tempo, a área degradou-se e está semiabandonada. O que você faria, perguntaria Lenine numa de suas canções e indagaríamos nós em santa aflição? Ora, recuperaríamos o local e incentivaríamos seu uso por escolas e comunidades vizinhas, às quais faltam estrutura para acolher criativamente crianças e adolescentes. Todos, aliás, muito cortejados pelas gangues para movimentar atividades criminosas.

É isso que pensa fazer o janota sorridente que nos governa, do alto de seu chapéu de palha demagógico? Claro que não. Ele acaba de anunciar o plano de transformar a Cidade da Criança em Parque Terra Prometida, um empreendimento dedicado aos evangélicos. Seria, em bom português, um parque de diversões religioso, que simularia lendas consagradas pela Bíblia. A piscina viraria o Mar Vermelho, prontinho para abrir-se aos hebreus em fuga do Egito. Não faltariam o Paraíso, os Montes Sinai e das Oliveiras. Este obsceno favorecimento de um segmento confessional em espaço público é uma agressão ao princípio da separação entre religião e Estado. Está virando rotina.

Fosse completo, não apenas idealizado, o parque deveria reservar uma área para castigar os ímpios, usando métodos sancionados pela Bíblia. Os pais insatisfeitos com as malcriações de seus filhos ganhariam varas para espancá-los, metaforicamente ou não. A morte por apedrejamento seria incentivada, num espaço privé, para os “crimes” de heresia, adultério, homossexualismo e idolatria. Não duvido que surgissem patrocinadores para o fornecimento dos meios para cumprimento das sentenças bíblicas, legitimadas por uma suposta autoridade divina. Pode parecer um roteiro inspirado no filme A Vida de Brian, mas as intenções do alcaide não têm qualquer semelhança com o espírito do Monty Python.

Muitos anos atrás, li um livro de popularização da matemática, escrito pelo soviético Yakov Perelman. Num dos capítulos, ele usa os dados fornecidos pelo Velho Testamento para calcular o que aconteceria no planeta caso chovesse exatamente como sugere o Dilúvio. O resultado é surpreendente. Na pior das hipóteses, a Terra seria coberta por uma película de cerca de 2,5 cm de água, claro que insuficiente para afogar todas as formas de vida como pretendia o deus implacável, de índole cruel e sentenças irrecorríveis. Sei que razão e crença são imiscíveis, a lenda continuará a ser contada e os fieis acreditarão que a arca de Noé tinha capacidade para abrigar casais de todos os seres vivos e comportava estoque de alimentos suficiente para alimentá-los durante longa jornada. Haja tecnologia, haja imaginação. Pré-história em estado bruto.

O prefeito é esperto. Está ampliando apoios para futuros voos políticos e afaga os evangélicos. Religião deixa de ser um assunto estritamente privado para se transformar em ferramenta de poder. Dentro de grupos e seitas há disputas ferozes pelo mercado da fé, que resvalam, não raro, para interesses bem materiais. Bom exemplo disso é a chamada Teologia da Prosperidade, que já deu luxo e riqueza para alguns espertalhões.

Respeito quem pratica sua fé com atitude introspectiva, no silêncio do diálogo com transcendências e na esperança de que encontrará interlocutor atento. Minhas buscas são outras, meus caminhos são diferentes, mas com estas pessoas compartilho as imensas interrogações sobre a existência humana. A combinação imprópria de aparelho estatal com prática religiosa nada tem a ver com estas vivências.

Abraço. E coragem.

2024, adeus!

2024, adeus!

Esta é a última crônica de 2024. Para registro dos autos, detesto o mês de dezembro. Não combino com a agitação mandatória das gentes, tomadas por um espírito de urgência e preparativos para um “ano novo” que, a rigor e como dizia Drummond, é apenas a continuidade de um fluxo que não se interrompe, nem se acelera por causa de champanhes e rituais a gosto do freguês.
Não farei balanços gerais do ano que se encerra, que estes já os há que bastem em todos os meios de comunicação. Sem grandes novidades, gente conhecida bateu as botas (os desconhecidos, os anônimos, estes nunca mereceram manchetes), catástrofes ambientais continuaram acelerando o desfecho cada vez mais irreversível da morte do planeta, guerras seguiram matando a rodo e devastando gerações e esperanças. Antonio Meneses e Ziraldo levaram consigo alguns pedaços meus.
Meneses, um carioca do mundo, continua frequentando meu aparelho de CD (não abro mão dele) com interpretações magistrais no violoncelo. Ziraldo entrou na minha vida pelo Pasquim e a Turma do Pererê e seguiu acariciando filhos e netos com um monte de novos personagens. Cada vez que ouço uma suíte para violoncelo de Bach ou releio a saga do Pererê e sua turma na Mata do Fundão, Meneses e Ziraldo ressuscitam. De qualquer forma, dá uma ponta de tristeza sabê-los fora do meu alcance visual. Morte tem dessas coisas.
Troco, leitor paciente, o balanço geral pelo pessoal. No ano que se encerra, tive algumas experiências contrastantes. No departamento Surpresas & Lamentos, testemunhei os últimos dias de vida de minha irmã. Final doloroso, a mostrar nossa fragilidade estrutural e levantar a questão urgente da abreviação consentida da vida, um direito tão óbvio que deveria ser universal. Também tive uma inesperada aula prática sobre loucura, neurastenia e colapso da razão. Alguém, ante estupefação geral de amigos, trocou a tulipa do chope por um copo de cólera. Sobraram para mim os estilhaços do surto psicocanalha daquele Mark Forest flácido. Li nos seus olhos transfigurados o beabá da ignorância, da alma ressentida e da indignidade. O faniquito sulfuroso do Maçaranduba, que o deixou isolado, serviu para reforçar uma pergunta que faço há tempos: de onde surge e de quê se alimenta o ódio?
No departamento Criação, um prazer longamente sonhado nasceu para o mundo dos vivos. Lancei um livro com seleção de crônicas. É o testemunho impresso da minha valsa com palavras. Quem rodopia neste tipo de dança, sabe como é difícil alinhar sentimentos, pensamentos vadios, memórias, com as palavras que melhor os traduzem. Pior é quando a seção de cordas desafina ou o maestro dormiu mal. Como transformar a hesitação num texto que convide à mesa quem lê? O que fazer quando é o silêncio que deve, que precisa, predominar?
Fim de ano também é época de ações regressivas. Reflexo persistente dos medos ancestrais, multidões procuram filiais das Organizações Tabajara, em busca de elixires que materializem o slogan “seus problemas acabaram!”. É aí que adentra o gramado, triunfal, a Superstição. Como o Homem das Cavernas ou a Maga Patalógica, toda a galera anonovista passa a acreditar em poderes mágicos da Natureza. Na aurora do homo sapiens, o Brucutu acreditava que raios e trovões eram comandados por forças sobrenaturais. Nada diferente de quem hoje acredita que, para atrair dinheiro o ano todo, basta passar a virada com uma nota de real e uma folha de louro (!) na carteira, mantendo-as ali o ano inteiro. Ou que comer 12 uvas à meia-noite do dia 31 de dezembro atrairá toda sorte de fortuna e sucesso. Impressionante como estas “simpatias” convencem gente que ficará ofendida se você perguntar se acredita em terraplanismo.
No ano novo, que não passa de uma convenção, espero apenas continuar seguindo velhos passos que me construíram e alimentar curiosidades que ajudem a dar sentidos aos mistérios que me intrigam. Ah, e também irrigar os afetos que me unem aos que acham que valho a pena.
Comecei citando o Drummond e termino com trecho do poema dele “Receita de Ano Novo”: “Para ganhar um ano-novo/que mereça este nome,/você, meu caro, tem de merecê-lo/tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,/mas tente, experimente, consciente./É dentro de você que o Ano Novo/cochila e espera desde sempre”.
Daí, esqueça as ondinhas, a cor que “dá sorte”, o banho de sal grosso (?), o chá disso e daquilo, os superpoderes da pobre lentilha. A bola não está nas estrelas. Ela está contigo mesmo, mermão. Caminante, já dizia outro poeta, no hay camino, se hace el camino al andar.
Abraço. E coragem.
Jacques