Como diz a lei de Velpeau, as coisas incomuns não ocorrem isoladamente, sempre vem aos pares. Recentemente terminei a leitura do fantástico “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior e escrevi um texto aqui publicado sob o título “A insustentável delicadeza da brutalidade” (pode buscar no meu perfil com este termo). Pois mal recuperei o fôlego um novo “meteoro” cai sobre a minha horta. Desta vez sob a lavra de Cristiane Alves, professora e escritora que tive a felicidade de conhecer há mais de 20 anos e de tê-la como amiga.

Seu livro Nossas Vidas Pretas tem muito em comum com a fantástica epopeia de Belonisia e Bibiana, mas desta vez a protagonista é única e fala da vida real em um ambiente bastante diverso daquele descrito em Água Preta. Afinal, se em Água Negra os personagens ainda que fictícios têm na sua ligação com a terra e a natureza a sua redenção e conexão com a vida, a vida concreta no Buraco Fundo (região de Diadema, SP) nem aquela romantização permite.

Cristiane é de uma pureza rara, e como Itamar, não é chegada às concessões, o que forma um sobressaltante contraste entre as dores descritas e a escrita das dores, algo que nos desafia permanentemente durante a leitura da sequência de eventos da sua vida, que nos oferece uma boa amostragem daqueles mistérios insondáveis que fazem do presumidamente impossível a regra e o encanto da vida.

O livro é escrito de forma quase aforismática, em pequenos capítulos, cada um deles de alta densidade, e que embora não sejam unidos por um fio de narrativa, rapidamente nos permitem transformá-los mentalmente nos tijolos de uma existência, muito simbolicamente retratados na figura da capa do livro, esta que merece um destaque especial.

O edifício de concreto (e tijolos) ao fundo certamente simboliza a rigidez e a compartimentalização da vida nas cidades e no modelo de sociedade que construímos sobre e a partir das almas pretas representadas pela estampa feminina (preta), cujos olhos, invisíveis refletem a invisibilidade da vida que foi transformada em serventia para outros no longuíssimo processo de escravidão ainda não resoluto, hoje mais representado pelo isolamento, abandono e violência estrutural.

Como ressalta Rodrigo Mendonça na orelha esquerda do livro, uma das essências da obra é o deslocamento, o não pertencimento, algo que coloca a vida preta brasileira, aqui tão bem retratada na sua “paisagem” urbana, em algo ainda mais desolador do que a sempre presente falta de futuro do povo de Água Negra.

O livro de Cristiane é um verdadeiro documentário sem ter a pretensão de sê-lo. É história na carne, na alma, que vai muito além do papel e se entalha na pedra. Mas uma pedra que grita a cada pancada, chora na expectativa da próxima, mas consegue sair desse corpo e contemplar a beleza dos entalhes, convertida a cada momento em força de vida, regeneração, superação e geração.

É muito forte.