Vi esta inscrição algumas vezes, em portas de banheiros de dois cursinhos pré-vestibulares diferentes, em 1977 e 1978. Na face interna da porta e à altura de quem estava sentado, certamente fazia parte do que melhor seus autores conseguiam produzir, em lugar apropriado para excreções e excrescências. Esta frase ficou registrada em minha memória, e voltou à tona nestes últimos tempos. Brincadeira com fundo elogioso para a competência de muitos orientais (“japoneses”) nos vestibulares? Demonstração potencialmente perigosa de inveja assassina? Ambos?
Vivíamos sob a ditadura, ainda sob o tacão do AI-5, com abertura incipiente sob ameaça da linha dura do exército. Ainda “falando de lado e olhando pro chão” (Chico), pichações e inscrições feitas às escondidas eram formas de expressão frequentes. No Brasil onde o mito da democracia racial era cantado em verso e prosa pela ditadura de modo imperativo, manifestações de intolerância contra minorias eram abafadas. Falava-se de lado do “japonês do Geisel”, o ministro das Minas e Energia Shigeaki Ueki, depositário de preconceitos contra esta minoria. O ministro seguinte da mesma pasta, César Cals, foi questionado por constar em relatório secreto que vazou de seu ministério em 1980, que “setores da comunidade judaica” faziam parte daqueles que orquestravam uma suposta campanha contra o programa nuclear brasileiro. É claro que a imprensa (sempre ela) também foi acusada pelo complô, mas tudo isso era rapidamente abafado naquele Brasil-país-do-futuro. Parafraseando o general-presidente Figueiredo, “quem negar que somos uma democracia racial, eu prendo e arrebento!”
Na esteira destas recordações, vieram outras. Em 1978, quando o professor de História do cursinho falou na política genocida de Hitler, um colega coreano se vira para mim e diz: “se Hitler fez isso com os judeus, é porque alguma coisa eles fizeram”. Retruquei com a mesma violência: “e se o Japão fez o que fez com os coreanos durante a guerra, é porque alguma coisa eles fizeram. É isso?” No ano seguinte, um colega de turma da faculdade, também coreano, quando soube que eu era judeu, abriu um sorriso e falou de sua admiração pelo povo judeu: “90% dos Prêmios Nobel vão para os judeus!” Apenas sorri, sem contestar sua falsa estatística, inflada às alturas. Com pouca diferença de tempo e vindo de duas pessoas do mesmo extrato minoritário e faixa etária, duas falas distintas que se unem pelo preconceito para com outra minoria. Da culpabilização das vítimas à idealização fantasiosa, são faces opostas da mesma moeda. Como não lembrar de Martinho Lutero? Ao iniciar sua Reforma, tinha opinião positiva sobre os judeus. Em “Que Cristo Nasceu Judeu”, disse que, se os judeus ainda não aceitaram Cristo como messias, é porque a Igreja Católica sempre os maltratou e excluiu. Com o tempo, ao constatar que os judeus não adeririam à sua igreja reformada, virou um antissemita furibundo. Textos dele como “Os Judeus e suas Mentiras” foram citações constantes nas campanhas nazistas. Eis um bom exemplo de como, a depender da época e das circunstâncias, o preconceito inicialmente positivo muda de sinal, com consequências funestas. O ódio pode vir embrulhado em belas embalagens. Quando abertas, pode ser tarde.
Ódio este que, com o governo Bolsonaro, saiu do armário. E saiu orgulhoso de sua ignorância e macheza, com armas à mão e munição de sobra, estimulados e acobertados por um sociopata que usa e abusa do discurso violento contra todos que se opõem a ele. Basta abrir os jornais e ver a quantidade de negros, indígenas, transexuais e mulheres que morrem quase todo dia de modo violento, além das ameaças constantes a seus desafetos. Este é o clima. Com a pandemia, veio também o preconceito contra orientais, acusados de disseminar o “vírus chinês” e lucrar com sua “vachina”, discurso de Trump, ídolo confesso de Bolsonaro. O capitão não inventou o racismo e a misoginia, mas joga lenha na fogueira da intolerância quase todo dia. Triste constatar também que tem judeus que ainda se iludem com a face oposta da moeda do preconceito com que o capitão joga. O Bolsonaro “amigo dos judeus”, que empunha a bandeira de um Israel superior, criação de delírios religiosos, é tão sincero quanto o recente “amigo dos índios”, cocar à cabeça, ao lado de índios recrutados para a pantomima. Ainda não perceberam que os únicos amigos de Bolsonaro são seus filhos, e que os aliados de hoje podem ser descartados a qualquer hora. Quanto aos judeus que se sentem lisonjeados pela “amizade” do capitão, certamente inflariam o peito de orgulho com os “90% de Prêmios Nobel” de meu colega de faculdade. Não aprenderam a lição da História, a melhor das professoras, de que vestir a fantasia de Povo Eleito pode, em outras épocas, elegê-los para o pior dos mundos.
Para finalizar, volto às privadas e suas descargas de ódio. Aquelas inscrições sugerem uma meritocracia às avessas, que dispensa esforço: vence quem elimina seu concorrente, literalmente. Hoje, teriam que eliminar também cotistas, algo que só alimenta seu ódio aos diferentes. Cotistas que, aliás, se saem muito bem ao final dos cursos, na comparação com seus colegas não cotistas. Na era das redes sociais, nunca foi tão fácil culpar os diferentes pelas próprias dificuldades, algo bem menos trabalhoso do que, por exemplo, participar da luta pela defesa do ensino público gratuito. O ódio está ao alcance dos dedos. Nas mãos de populistas como Bolsonaro, o ódio é combustível para se manter no poder, ao culpar os bodes expiatórios da ocasião pela própria incompetência. Estejamos atentos para o ódio, em suas mais diversas embalagens e disfarces.