Yokohama, 30 de junho de 2002. Há vinte anos, uma final de Copa do Mundo de arrepiar. Brasil e Alemanha nunca haviam se enfrentado antes em Mundiais, e esta primeira vez seria justamente na final. Para um amante do esporte bretão como eu, e da seleção brasileira em particular, um dia de gala e de muita tensão.
Minhas fantasias de heroísmo sempre passavam pelos gramados, desde a adolescência. Volta e meia eu me imaginava capitaneando a seleção brasileira, um camisa 10 à altura de um Zico, liderando uma virada histórica em final de Copa do Mundo, em cima de… adivinhem qual seleção. Ganhar da Alemanha seria uma vingança virtual tardia e benigna para aquele rapaz, tão judeu quanto brasileiro, que perdeu toda a família nos horrores da Segunda Guerra Mundial. Uma vingança que trocava o horror de um campo de batalha pelo frescor da grama bem aparada de um campo de futebol. Um judeu capitaneando um time de mestiços contra uma seleção alemã ainda branca…doce e prazerosa fantasia!
Assim que os dois finalistas foram anunciados, esta fantasia juvenil voltou forte naquele homem de 42 anos. Na vida real, já havia estado na Alemanha, hospedado em Frankfurt na casa de uma prima casada com um alemão não judeu, e nunca tive problemas com isso. Meus pais já haviam visitado a Alemanha a convite do governo federal e da prefeitura de Wiesbaden, cidade natal de meu pai, e foram muito bem recebidos. Em 2008 estive em Berlim com meu pai, e nos sentimos muito bem. Nunca entrei numa posição de culpa coletiva em relação aos alemães. Quanto a racismo, tenho certeza de que hoje é mais fácil ser judeu na Alemanha do que negro ou indígena no Brasil.
Não obstante, a História ecoava dentro de mim, assim como minha história familiar. Sempre li muito sobre nazismo e seus funestos desdobramentos, fenômeno alemão em sua essência. Lia e ouvia os depoimentos dos combatentes judeus nos guetos e florestas, e me imaginava junto com eles. Fui atrás da história dos judeus de Pacanów, cidadezinha polonesa dos meus avós maternos, e recebi do historiador local o relato do dia da deportação dos judeus pelos nazistas, 18 de novembro de 1942. Mulheres em final de gravidez, crianças pequenas e idosos eram fuzilados nas ruas e em suas casas, pois atrasariam a longa caminhada até a cidade de onde partiria o trem que os levaria às câmaras de gás de Treblinka, e os trens eram pontuais… ainda são. Não é um assunto neutro para mim, e nem poderia ser. Aquela final de Copa do Mundo não era um jogo qualquer.
E eis que dos pés de Ronaldo veio a vitória, e minha redenção. Desde então, nunca mais tive aquela fantasia, até então recorrente. De alguma forma, estava vingado; faltava apenas aquele ato simbólico. Naquele dia, os combatentes do gueto de Varsóvia venceram. O capitão Cafu levantou a taça e, na sua camisa, a inscrição “100% Jardim Irene” soava como se fosse meu Bom Retiro natal, afirmação de pertinência às origens deste caleidoscópio -acolhedor para uns e cruel para outros- que é o Brasil. Anos depois, assim como Caetano Veloso viu e reviu São Paulo em “Sampa”, algo semelhante se passou comigo em Berlim. Pude passear na sua garoa e curtir numa boa.