O que pouca gente se dá conta é que nos idos do século 19 o sionismo foi a resposta judaica para a onda de nacionalismo que varria a Europa. Talvez tenha sido uma resposta saudável ao crescimento do sentimento antijudeu naquele momento, mas não há como negar, essa ideologia é prima tanto do nacionalismo Italiano quanto do Alemão, Frances, Sérvio e por aí vai. Se espelhando as narrativas dos seus de continente, ele se baseou num mito histórico para conceber uma narrativa um tanto ou quanto irrealista na qual os judeus seriam descendentes daqueles que foram expulsos da “terra santa” pelos Romanos há milhares de anos atras e por isso teriam não só o direito, mas o dever de retornar à terra de onde seu sangue brotava. Os outros nacionalismos eram iguais em suas exacerbações patrióticas, só que relacionavam sua linhagem histórica com a terra onde já viviam.
Se os nacionalismos europeus tinham vários furos étnicos e históricos, o sionismo certamente não foi uma exceção. Fora das lendas recontadas de geração em geração por judeus e não judeus, examinados de perto, os fatos não comprovavam a sua ligação com o então protetorado Britânico da Palestina. Para citar apenas dois exemplos; o Talmud de Jerusalém foi escrito in loco na época em que os judeus deveriam estar exilados na diáspora, expulsos pelos Romanos, o segundo era a complexão genética e mesmo as vestimentas dos judeus ultra ortodoxos que jamais teriam saído de um clima desértico, sem mencionar a diversidade genética do povo judeu. Existem inúmeros outros exemplos, mas não estamos aqui para discutir história.
Outro segredo mal guardado do sionismo é que, na sua origem, seus maiores patronos foram religiosos cristãos do império Britânico e dos Estados Unidos que acreditavam que para Jesus retornar, os Judeus deveriam voltar a terra santa e se converter ao Cristianismo. Um dos grandes expoentes dessa vertente foi Lord Balfour, autor da famosa declaração Balfour onde o Império Britânico se comprometeu a ceder um país aos Judeus na terra santa depois que partissem. Essa declaração teve mais peso na criação do estado de Israel do que qualquer ação de um sionista Judeu na época. Essa é a origem do famoso sionismo antissemita, pois esses patronos não viam judeus como parte integrante das suas sociedades e sim um povo externo a ser convertido. Ainda encontramos ecos desses patronos nos influentes movimentos evangélicos nos Estados Unidos e no Brasil, entre inúmeros eleitores do Bolsonaro apoiadores ferrenhos do sionismo.
Sem sombra de dúvidas, até a explosão de antissemitismo nos anos trinta, essa ideologia não era popular no mundo judaico. Para os religiosos um estado laico judeu não fazia sentido nenhum, só o messias poderia levar o seu povo de volta a terra prometida. Quanto ao resto, seus tons nacionalistas eram parecidos demais com o fascismo brotando em todo lado com o seu racismo agressivo e seu viés pró patronato.
Até então, a luta dos judeus tinha sido a de se integrar no mundo que os rodeava. Queriam sair dos guetos para serem alemães, poloneses, franceses, ingleses, russos, etc… e participar do mundo novo que se abria com a revolução industrial como seus vizinhos estavam fazendo. Só que o antissemitismo acabou falando mais alto, fechando-lhes as portas. Assim, o sionismo se tornou popular, principalmente com o antes, o depois, e o durante do Holocausto.
Mais tarde, quando o país Israel foi criado, ele teria o mesmo destino dos antepassados do enorme contingente de refugiados do nazismo que havia engrossado os assentamentos na “terra santa”. Desde o início, o mundo ocidental veria Israel como um favor prestado aos Judeus para compensá-los das tragédias que eles mesmos tinham incutido. O país teria o status de um inquilino vivendo de favor, destinado a servir e a se comportar dentro dos padrões requeridos pelo senhorio. Para os vizinhos Árabes, aquela população era – e ainda é – vista como forasteiros a serem expulsos das suas terras.
É aqui que essa crítica se encontra com a realidade do momento. Com as guerras e dos batismos de fogo que atravessou, Israel se tornou um Estado, ponto final. A evolução o transforou em algo maior que um Estado sionista. Minha defesa é pelo país e pelo seu direito e dever de se defender, como qualquer outro, de ameaças terroristas. Sou admirador e amigo desse país notável, mas não do sionismo, que para mim é o responsável pela sua situação precária, motivo principal da insalubre troca de assentamentos ilegais por apoio a um governo cada vez mais de extrema direita instalado há anos ali.
Como diriam críticos judeus no seu início; o sionismo é uma ideologia onde a religião é usada por não-religiosos para criar uma ficção nacionalista e, para alguns, justificar uma ocupação ilegal. Já o país Israel é uma realidade. Sim, foi criada a partir do mito nacionalista, mas não há nada de fictício naquele país pujante que conta com uma população de dois milhões de Palestinos vivendo com mais direitos, futuro e prosperidade do que seus irmãos em países vizinhos. Esse é um país que lutou e ainda luta para existir, como qualquer outro do planeta na sua história, com realizações tecnológicas surpreendentes, uma democracia rara na região e um dínamo econômico. Os Israelenses, obrigados a fazer serviço militar por três anos, são um povo resiliente, criativo e, em sua maioria, com uma cabeça e um coração aberto, embora vivendo num eterno e inconveniente estado de alerta militar. Talvez por isso, pouca gente fora de Israel entenda o Israelense, e o confunde com estereótipos culturais antigos de Judeus ou os veem no seu preconceito como sionistas genocidas e sedentos por sangue.
Mais do que nunca, é preciso separar Israel, sionismo e judaísmo, três coisas que, apesar de terem uma raiz comum, são muito diferentes. Sua ideologia oficial não ajuda em nada, nem ao país, nem à região, nem a nação judaica espalhada. É necessário renovar e se distanciar dessa maneira de pensar francamente ultrapassada para que todos na região floresçam, não só Judeus, como também Árabes e Cristãos. É necessário que todos os envolvidos no conflito se coloquem acima de heranças culturais e ajam como habitantes responsáveis pela região que têm em comum.
Finalizando, é claro que o(s) outro(s) lado(s) tem que colaborar e que Israel não pode baixar a guarda no quesito segurança, ninguém está sendo ingênuo aqui, mas alguém tem que dar o primeiro passo. Torço para Israel virar um Estado sem uma missão étnica ou cultural, sem um status especial, integrado no mundo, adaptado ao seu tempo, amigo dos seus vizinhos e um exemplo para o mundo. Chega de ser o eterno violinista no telhado do mundo.
A tragédia em Gaza coloca em evidência a raiz da maioria dos conflitos que afligem e afligiram a humanidade, e em particular aquela região do mundo. Falo de maneiras de pensar distorcidas, visões de mundo irrealistas, preconceitos e medo.
É isso que políticos desonestos exploram na hora de pedir votos, e são essas patologias coletivas que tem colocado, ou colocaram, a extrema direita no poder, tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos, quanto em Israel e na faixa de Gaza.
É preciso, mais do que nunca, pensar diferente.
Em primeiro lugar, é preciso questionar fantasias. Às vezes é difícil perceber que fora do âmbito das nossas crenças particulares, compartilhamos, todos, a mesma realidade e o mesmo planeta. Essa universalidade complexa – as vezes até demais – quase sempre se contrapõe aos diversos nirvanas políticos, nacionalistas, religiosos e espirituais que somos ensinados e prometidos desde a mais tenra idade.
Essa realidade contraditória, muitas vezes de difícil assimilação, pode ser tolerada, mas a imposição de sonhos alheios quase nunca.
Não deveríamos nem estar falando da promessa de paraísos espirituais. O mundo já cansou de ver o que acontece quando tentam impor “escrituras sagradas” sobre a realidade: inquisições, jihads, fascismos religiosos e por aí vai.
Isso vale também para sonhos políticos e nacionalistas, que muitos na sua arrogância intelectual acham superiores às ilusões religiosas. Por exemplo, inúmeras pessoas acreditam que se a esquerda chegar ao poder mundialmente, haverá igualdade, justiça, paz, amor e prosperidade para todos num futuro utópico. A história prova o contrário. Governos de extrema esquerda não foram justos, não houve igualdade, nem paz, nem amor e muito menos prosperidade sob a sua guarda. Quando, na maior sinceridade, tentaram impor suas utopias igualitárias acabaram criando ditaduras terríveis, inclusive assassinatos em massa na União Soviética e na China. Invariavelmente, o resultado foi que a população acabou se voltando contra os sacerdotes daquelas fantasias. No outro extremo, o mesmo vale para o as promessas de pureza racial e nacionalista dos regimes nazistas e fascistas nos anos 30.
No ocidente atual, o sonho liberal do “estado zero” está se transformando num caos insuportável, com o disparo de desigualdades sociais, guerras, governos fascistas, pandemias e ódios raciais.
A tragédia em Gaza é o resultado final de mais uma incompatibilidade entre fantasias e a realidade. No caso, o sonho de dois povos de possuir exclusivamente o mesmo território. Por sinal, isso parece ser a especialidade da casa daquele recanto do mundo.
Volto a mesma frase: é preciso pensar diferente.
Foi Einstein que disse: ficar fazendo a mesma coisa e esperar um resultado diferente é um dos sinais de insanidade. De um lado, não é possível conceber de uma Palestina sem um estado Judeu, do outro não é possível conceber que os Palestinos irão algum dia aceitar a ocupação de seus territórios.
Não dá para continuar com um lado acusando o outro e achar que vai se conseguir algum resultado positivo depois de 75 anos de conflito. É preciso pensar em soluções, é preciso dizer chega! Existem várias vozes dizendo isso, mas elas foram caladas pelos clamores por linchamentos dos dois lados.
É preciso não ter medo de entrar num espaço desconhecido onde os dois lados confiem nas suas semelhanças enquanto seres humanos, se preocupam com os seus problemas em comum e se concentram em resolvê-los. É preciso arriscar novos caminhos.
Podemos extrapolar esse princípio para outras esferas. Enquanto vivemos numa realidade regada a redes sociais ecoando nossas fantasias, nossa torre de Babel está pegando fogo; há uma emergência climática sendo ignorada, milhões de pessoas passando fome, uma super concentração de renda com bilionários que não pagam impostos e uma montanha de aberrações que precisam ser resolvidas urgentemente. Não é pensando em moldes com prazo de validade vencido que vamos resolver isso.
Já tive umas boas brigas acerca do autor Shlomo Sand. Agora caído no esquecimento, esse ex-professor titular de história da universidade de Tel Aviv, enveredou por um caminho pouco popular no “establishment” Israelense e Judaico quando resolveu analisar a história do povo Judeu de maneira objetiva e científica. Raríssimos historiadores, tanto judeus como não-judeus, tinham se atrevido a trilhar esse caminho por causa dos pesados mitos religiosos, preconceitos e lendas cercando talvez o povo mais bizarro desse planeta, do qual eu faço parte. Esse assunto é um campo tão minado em Israel, que as principais universidades têm o curso de história judaica separado do curso de história universal.
Seu “A Invenção do Povo Judeu”, é um livro de fácil leitura, mas de difícil digestão para muitos. Nele, se descontrói vários mitos centrais tanto ao sionismo e quanto as religiões monoteístas. Para citar alguns exemplos, ele prova que o Talmud de Jerusalém foi escrito na Palestina na época em que, segundo a narrativa oficial, os Judeus estariam na diáspora expulsos pelos romanos, e que muito provavelmente nunca houve a expulsão dos Hebreus da Palestina. Ele também salienta que não há um hieróglifo que mencione Moisés nem o afogamento de um exército de um Faraó e que se analisarmos a história documentada, os seguidores de Moises teriam fugido do Egito para o Egito. Ele também apresenta inúmeras provas documentadas de conversões em massa para o judaísmo – e até rabínicas onde no final livro Esther se fala de conversões de populações inteiras ao judaísmo. Para o desgosto dos dois lados envolvidos no conflito em Israel, ele também mostra que há fortes indícios de que os Palestinos seriam os descendentes dos habitantes dos reinos Judaicos da antiguidade. Ha inúmeras outras descobertas interessantíssimas no livro, mas não estou aqui para vendê-lo.
Estamos aqui para falar sobre o tema central do livro, que agora se torna relevante não só diante dos acontecimentos em Israel, mas também nas suas repercussões pelo mundo. Falo de antissemitismo e da pergunta: quem são de verdade os Judeus?
As respostas são múltiplas, mas conclusão de Sand é interessante, esse povo é uma tapeçaria de etnias e culturas que adotaram uma religião por diversos motivos (que fazem parte de outra discussão).
Para ele, é como se tivessem escolhido alguns quarteirões em uma cidade multiétnica e dissessem; daqui para frente quem mora nessa área será considerado judeu. Quem já foi a Israel sabe que se observarmos o movimento nas ruas é impossível conceber que os judeus são uma etnia única, descendente da multidão que recebeu a Torah (compilada em Alepo, na Síria) sob uma montanha flutuante.
É nesse espaço de indeterminação étnica e histórica, que entra, segundo o historiador, talvez a influência mais determinante na formação de nosso povo: o olhar alheio. Através dos tempos, houve várias atitudes em relação ao Judeu; algumas de aceitação plena e amistosa, como em muitas partes do mundo Árabe, e menos na Europa. No entanto, o que mais observamos é a rejeição por parte dos locais e dos donos das terras aos apátridas de religião alternativa que, dependendo do tempo e do local, contradiziam o poder estabelecido.
A Inquisição, a necessidade de Igrejas de dar tons negativos os que não aceitavam suas doutrinas, muitas vezes a recusa de Judeus de irem à guerra por seus senhores, talvez o fato dos Judeus serem a primeira nação do mundo a possuir cem porcento de escolaridade, o sucesso financeiro e social de muitos Judeus com a chegada da renascença e do iluminismo, ou mais provavelmente a conjunção de vários desses fatores, criaram uma repulsa contra eles, ou algo que no século XIX seria denominado, talvez etimologicamente incorreto, de antissemitismo.
A ingestão desse olhar não só por parte dos outros, mas também da parte dos próprios Judeus, está profundamente enraizada na cultura ocidental e por mais que se ache que esse passado ficou para trás, volta e meia somos lembrados de que esse não é o caso, não só por não-judeus, mas internamente, como judeus.
Agora, quando o antissemitismo está no seu ápice depois da segunda guerra, de repente nos damos conta do quão judeus somos. Não por nossa culpa ou iniciativa, mas, como sempre, por culpa e iniciativa dos outros.
A meu ver, desde que nossos antepassados “viraram” Judeus, nossa maior luta tem sido a de sermos aceitos pelo mundo que nos rodeia (e não a de termos nosso Estado – isso também é assunto para outro artigo, complicadíssimo por sinal). Agora que temos Israel, sua maior luta é a de ser tratado como qualquer outro Estado.
Os tropeços de Israel são inúmeros, mas é inegável que, fora uns poucos amigos, Israel não é tratado como um país igual aos outros, assim como infelizmente percebemos em várias instancias, nós não somos tratados como qualquer outra minoria ou qualquer outro cidadão. É a história se repetindo, embora fantasiada de outra forma, e o antissemitismo mais uma vez nos moldando enquanto nação dentro e fora de Israel. Não deveríamos nos deixar afetar por isso, mas é difícil.
Quem frequenta as redes sociais e tem alguma simpatia por Israel não pode ter deixado de perceber o verdadeiro linchamento do país onde muitos de nossos familiares e amigos moram, e pelo qual tantos tombaram. O triste é que esses ataques muitas vezes vêm de companheiros na luta pela democracia que respeitamos e por quem temos apreço.
Mas não adianta, o antissemitismo é o racismo de estimação da esquerda. O arquétipo do judeu dinheirista, rico, capitalista e explorador é fortemente enraizado na cultura ocidental. Por causa dele, vemos gente que luta por igualdade social, por democracia e contra o racismo, ecoar esses preconceitos culturais; na hora de falar dos judeus e de Israel, perdem as estribeiras e o racional e não há argumentos que furem o bloqueio do preconceito.
Em seu livro “The Ecology of Freedom” o pai do anarquismo ecologico Murray Bookchin aponta para o fato de que preconceitos e hierarquias informais herdadas de geração em geração são o verdadeiro inimigo dos ideais progressistas. São por causa deles que as revoluções igualitárias não funcionaram e com certeza estão na raiz tanto da incapacidade de Judeus e Palestinos chegarem a um acordo quanto de grandes segmentos da esquerda mundial não conseguirem aceitar que existem dois lados que estão ao mesmo tempo certos e errados. Enfim…
Quando vi as primeiras imagens dos ataques do Hamas, sabia que a indignação seletiva de sempre viria à tona. Ela determina que quando Muçulmanos são mortos por outros, como os Sírios ou o Daesh, ou são torturados pelo governo Iraniano, são considerados pobrezinhos inocentes que acabaram envolvidos em guerras cuja origens de alguma forma são sempre relacionadas a Israel. Mas quando Israel está diretamente envolvido os cabelos púbicos começam a ser arrancados.
Dessa vez a histeria foi a alturas jamais vistas: um grupo terrorista invadiu outro estado matou 1400 pessoas, tomou mais de cem como reféns sabendo que as retaliações seriam severas. Depois, como sempre, usaram seus civis como escudos humanos e as suas mortes como instrumento de propaganda.
Se não houve empatia pela morte dos 1400 Israelenses, quando veio a resposta, simplesmente mencionar a barbárie que deu origem a tragedia é considerado como propaganda nazi-sionista como li em várias postagens. É deprimente, mas é isso.
O antissemitismo é velho. Embora simplista, ele sempre atraiu e uniu pessoas desavisadas tanto na esquerda quanto na direita. Ele vem em forma de uma simplificação de fácil assimilação para explicar complexidades econômicas e sociais em momentos difíceis. Diferente do racismo a outras minorias, vistas como inferiores, o ódio ao Judeu é visto como “justo”. Nele, tudo o que há de ruim e errado no mundo é relacionado a nossa gente. No nosso sofrimento fazemos com que os outros se sintam melhor por ter alguém relativamente indefeso para culpar pelos males que os assolam.
Isso fica patente nos julgamentos de Nuremberg onde o discurso de defesa dos carrascos era que estavam fazendo seu dever para o bem-estar do povo Alemão. Nas suas cabeças, se os Judeus desaparecessem, a tranquilidade voltaria não só a Alemanha, mas ao mundo.
Na atualidade, quando se discute o Oriente Médio na esquerda, a ideia retorna: se tirarem o Judeu, todos vão viver em paz. Isto simplesmente não é verdade. Em 1948 a área (que me desculpem os apoiadores da causa, mas não havia um país chamado Palestina), era uma de contenção entre os países vizinhos, e certamente continuaria a ser se tivessem expulsado os Judeus. Enfim, estou falando o óbvio tão fácil de perder de vista.
Terminado o desabafo acima, voltemos ao tema desse artigo: Como se posicionar como um Judeu progressista – e no meu caso como um ‘yid’ pouco convencido pelo sionismo – diante da monstruosidade, e continuar ativos e fiéis aos nossos princípios no meio de tanto preconceito?
Vou atentar uma resposta: me parece que além da batalha acontecendo no terreno, há duas outras guerras, tão ou mais importantes, sendo travadas; uma por corações e mentes dos não envolvidos, e outra do discurso de paz contra o de guerra.
Para mim as duas são uma coisa só. Para caminharmos em direção a uma paz justa e duradoura, não dá para nem palestinos (ou Árabes), nem israelenses (ou judeus) continuarem com as mesmas premissas e os discursos de sempre, basicamente o “eu estou certo e ele está errado”.
A premissa tem que ser “Chega!”
É evidente que essa mudança de paradigma não pode ser feita unilateralmente, mas é preciso, mais do que nunca, de um movimento dos dois lados – de preferência de todos os lados – dizendo que este ciclo de mortes e desgraças tem que parar. E é aqui que entra o confronto ao antissemitismo, e a islamofobia heranças peçonhentas de um passado que devemos enterrar. Todos temos que nos engajar numa batalha da civilização contra a barbárie.
Como judeus, temos que permanecer firmes na denúncia não só do Hamas e do que ele representa mas também do governo Netanyahu e do que ele também representa. Mais importante, como seres humanos, devemos zelar pelo futuro do planeta e trabalhar para pôr fim nesse e tantos outros conflitos, golpes, pandemias, tragedias ecológicas e fome que pipocaram pelo mundo depois da implantação do caos pós-neoliberal.
Nossa batalha transcende o conflito Israel Palestina, mas uma resolução pacífica e racional dele seria um grande passo para começar a curar o mal do qual o nosso mundo padece.
“E no final das contas,
O amor que você leva
É igual ao amor que você faz.”
Beatles
Alguns amigos da antiga turma de malucos do Colégio Andrews foram acampar em Lumiar. Tal como Visconde de Mauá o vilarejo – celebrado numa música famosa do Beto Guedes – era famoso por sua paisagem rural paradisíaca, parecida com a Européia. O pessoal que ia lá era igual, hippies light; urbanóides a fim de curtir uma paz rodeados de gente parecida e leegal. Na manhã de irem embora, resolveram se despedir do lugar dando uma nadada em uma represa antes de pegar estrada. Na chapação saideira um dos caras, Luis Fernando, viu um pequeno redemoinho que parecia lhe estar desafiando a um mergulho para experimentar ser atirado de um lado para o outro. Ele subestimou o poder de sucção da água, foi puxado pelo tubo de canalização e morreu afogado.
Nosso amigo tinha 20 anos e pertencia a uma família de diplomatas: um expoente do “Novo Brasil” no qual a gente cresceu. Ele partiu desse mundo seduzido pela quase invisível, porém imensa, força da água sendo contida por um mecanismo naquele lago artificial. Esta tragedia trazia uma alegoria à nossa saida da placenta da vida encantada da Zona Sul do Rio fomentada e protegida pelo defunto regime militar. Para nós sua morte seria o selo que encerraria uma época, ou nosso nascimento para o mundo real. Depois daquilo, cada um seguiu seu próprio caminho e o espírito que compartilhávamos nunca mais retornou. Tempos, turmas, anos dourados, todos também morrem. O corpo dele só seria resgatado depois que seus pais influentes “convenceram” as autoridades a explodir com dinamite o concreto que tinha aprisionado seu filho.
*
Minha saida daquele fim de festa foi assim: num sábado à noite quando estava de saída, o telefone tocou. Era Renée ligando de Teresópolis dizendo aflita que Rafael tinha passado mal com dores no peito e que tinha sido levado para um hospital no centro da cidade. A situação era séria e ela precisava de mim ali pois teríamos que nos revezar dormindo no seu quarto no hospital. Sarah, embrulhada num relacionamento complicado, só que agora casada, não estava falando com a família e não participou da comoção.
Quando cheguei no hospital deparei com meu pai em um estado de confusão, cheio de tubos por todos os lados. Ele parecia envergonhado pela inconveniência que estava causando e por estar tão mal. Aquela noite era a segunda noite e era a vez de minha mãe ficar com ele. Após bater um papo com eles e dar boa noite dirigi sozinho para a sítio. Fazia séculos que não ia lá e voltar sob aquelas circunstâncias tão incertas, acendendo sozinho as luzes naquela casa no meio do nada foi muito estranho.
Na noite seguinte, era minha vez de ficar no hospital. Rafael já estava começando a perder a lucidez. Tinha delírios, acreditando que estava no barco usado para escapar dos nazistas a tantos anos atrás, perdido no Mar do Norte, quase morrendo de fome e de sede. De início, não percebeu que estava no quarto, mas após algum tempo retomou os sentidos, se acalmou, a gente conversou um pouco e trocamos um boa noite.
Fui acordado de madrugada pelos médicos apressados me pedindo para sair do quarto. Ainda meio dormindo obedeci sem entender bem o que estava acontecendo e sem saber se estava fazendo a coisa certa. Conforme os minutos foram passando e o resto da equipe medica foi entrando apressada no quarto tive a certeza de que algo grave tinha acontecido. Depois de uns cinco minuto mais ou menos, o olhar sério e frio do médico pálido e gorducho seu disse tudo quando saiu para falar comingo. Não esperei para que tentasse transformar aquela expressão em palavras. Abri caminho para encontrar os olhos azuis de meu pai ainda abertos, mas sem vida.
Aquela visão me atingiu como uma flecha no meio da cabeça. Minha reação foi sair novamente, sentar no chão do corredor e chorar. Nosso relacionamento tinha acabado antes de sequer começar. Amava meu pai e tinha um respeito infinito por ele. Tenho certeza de que o sentimento era recíproco, mas nós nunca conseguimos expressar aqueles sentimentos. Agora ele estava ali no leito, rígido e impenetravel como uma esfíge sem respostas, sem história e sem vida.
Rafael tinha vindo de um vilarejo judeu no interior da Polônia e o destino o tinha levado para o distante Brasil. Em vez de curar as dores do passado, perto do fim o paraíso tropical antropofagico acabou se alimentando de seus sonhos e transformando seu mundo em algo irreconhecível. O Brasil tinh dao vida a um filho igualmente enigmatico para ele. Na volta para o sitio, me senti tão impotente e distante como ele estivera de seu próprio pai quando foi morto em Auschwitz. Mesmo assim, era sua continuidade na busca por um lugar são no meio da insanidade deste mundo.
A entrada de Felipe, ex-colega do Colégio Andrews e frequentador do Posto Nove, no Arrepio mudou muita coisa. Ligado ao teatro desde sempre, após deixar a escola tinha se tornado ator profissional e tinha impressionado a todos com um papel de destaque na peça Os doze Trabalhos de Hércules, de onde surgiriam muitas carreiras de sucesso no teatro brasileiro. Foi num papo de praia que arrisquei o convite para ser vocalista da banda. A gente se dava bem mas mesmo assim fiquei surpreso com seu interesse instantâneo. Talvez, como todos, estava morrendo de vontade de deixar sua marca no rock. Convocamos um ensaio de introdução que correu às mil maravilhas; ele curtiu nossas músicas de cara, sua voz era boa, sua presença de palco soberba e a química foi perfeita. Agora, com um novo vocalista de primeira, e com seus contatos, sentíamos que a banda era uma séria candidata à fama e à fortuna.
O show de estreia da nova formação foi num bar em Ipanema. O local era especializado em bossa nova, mas a mãe do Felipe, antiga frequentadora, tinha convencido o gerente a nos acolher. Não havia estrutura para bandas ali. Por isso, além dos instrumentos, fomos obrigados a pegar emprestado microfones e o equipamento poderoso cedido pelo Charles. Contudo, parecia bom demais para ser verdade e no dia fomos lá empolgados, sentindo que aquilo era o início de uma era de ouro. Enquanto subiamos e desciamos as escadas com aplificadores e partes da baterias e montávamos o equipamento no terraço, ficou óbvio que os funcionários, acostumados com músicos recatados de bossa nova, nos viam como invasores bárbaros ameaçadores e inusitados.
Com tudo montado veio a hora de passar o som. Não tínhamos engenheiro de som e mal sabiamos como manejar aquela parafernalia. Mesmo assim, depois de tocarmos duas ou três músicas e de ficarmos relativamente contentes com o que estavamos ouvindo demos uma parada. Quando estavamos nos preparamos para dar uma volta. o gerente, um cara elegante, baixinho e de cabelo engomado, subiu no terraço para falar conosco e manifestar sua preocupação com o volume.
“Gostei do som, animado, né?” Soou meio falso, mas, fazer o quê? “O problema é que aqui é uma área residencial e às vezes os vizinhos reclamam do barulho, sabe como é?”
“A gente conhece esse problema bem até demais.” A galera concordou com sorrisos.
“Pois é, se vocês entendem, melhor ainda. Eu queria pedir para vocês tocarem mais baixo. Seria possível?”
“Olha, já estamos tocando o mais baixo possível. O problema é a bateria. Ela não está amplificada. Tá vendo? Não tem microfone nenhum nela.” Estava na cara que o cara não estava entendendo nada, mas continuei tentando. “Se a gente tocar mais baixo, só vai dar para ouvir a bateria. Os instrumentos vão soar baixo. A bateria vai continuar no mesmo volume. Ou seja, não vai fazer diferença nenhuma, mas a banda vai soar mal.”
“Mas não dá para a bateria tocar mais baixo também?”
Querendo ser o mais prestativo possível virei para o Mauro: “Fala aê, Mauro? Dá para tu tocar mais baixo?”
A resposta não ajudou muito. “Cara, dá para bater mais fraco, mas o som sai nessa altura mesmo.”
O gerente não se deu por vencido. “Então tá combinado, hoje à noite vocês tocam mais baixo!”
Ele desceu e nos deixou ali, um olhando para cara do outro.
Mauro levantou de trás da bateria e falou: “Foda-se, vamos beber uma cerveja.”
À noite, os convidados começaram a chegar. O Felipe estava fazendo uma ponta em uma novela da TV Globo e por isso havia alguns rostos famosos bem como várias aspirantes a estrelas e umas beldades inacreditáveis entre os convidados. Talvez ciente disso, o gerente tinha mudado o visual do lugar. Tinham coberto o terraço com panos e colocado luz de velas. Tudo estava muito bonito. Quando o terraço encheu a gente ficou esperando o Felipe fazer a social dele. Quando ele veio dizer que estava pronto, pegamos os instrumento, o pessoal do restaurante apagou as luzes e deixou só as onde estavamos acesas, Felipe apresentou a banda de maneira teatral e começamos. A coisa foi bem. Dava para ver que tinha gente curtindo de verdade. No meio da segunda música, ouvi um barulho no meu ouvido. Quando olhei para trás vi que era o gerente gritando que estávamos tocando alto demais.
“Tá alto demais, baixa isso!!”
Tentando não perder a concentração respondi: “Não dá para tocar mais baixo por causa da bateria! ”
Ele sumiu e continuamos. Depois de uns outros dois números, o gerente voltou a bater no meu ombro no meio de uma música.
“Tem alguém querendo falar contigo lá embaixo!”
“Fala que não dá para eu descer agora!”
A próxima coisa que vimos foram seis policiais subindo as escadas. Entraram e foram direto nas tomadas e puxaram os fios dos equipamentos. O som e o clima bom morreram na hora, o show acabo. Todos ficaram boquiabertos vendo os caras descerem sem dizer nem boa noite.
Os dias com o Felipe foram poucos. Pouco depois daquele incidente ele assinou um contrato para um papel importante numa série de televisão e abandonou a carreira musical. Retornei aos vocais, mas discussões começaram a pipocar. Havia conflitos de egos, principalmente entre Eduardo e eu. Tinha o problema que o resto da banda estava preocupada em desenvolver suas habilidades enquanto eu confiava demais nas minhas. O Mauro e o Eduardo ainda estavam pegando aulas particulares – o que para mim era incompatível com o rock. Eles me pressionavam para fazer o mesmo e não conseguiam entender que não podia por causa de grana. Por outro lado, levava o negócio mais a sério que eles, acreditando que se conseguíssemos encontrar o nosso som, poderíamos ter sucesso. Os demais viam a banda mais como uma atividade divertida para os finais de semana. Continuamos, tentamos outros vocalistas, mas depois de um tempo, com a banda indo para lugar nenhum, acabamos enchendo o saco daquilo.
*
Nossa música não era exatamente na moda. Aquela era a época dos góticos, novos românticos, punks e outras criaturas afins. O templo deles era uma boate em Copacabana chamada Crepúsculo de Cubatão. O nome era uma homenagem a Cubatão, uma cidade industrial no estado de São Paulo, famosa por ser o lugar mais poluído da América Latina. Um dos donos do clube era Ronald Biggs, o famoso ladrão de trem inglês, que fugiu de Londres para o Rio de Janeiro em 1970. O local parecia em outra cidade, senão em outro mundo. Sua decoração neoclássica exuberante misturava elementos clássicos com elementos futuristas e tudo o que se poderia esperar de uma casa noturna dos anos 1980. Os frequentadores eram diferentes de tudo o que se via nas ruas e se vestiam como vampiros, usavam maquiagem pesada e provavelmente nunca haviam tocado num baseado em suas vidas.
A música que saia do seu excelente sistema de som era de bandas praticamente desconhecidas e intencionalmente deprimentes como Joy Division, New Order, Echo and the Bunnymen e Bauhaus, todas ignorando as guitarras e abusando dos teclados, um sacrilégio para qualquer roqueiro raiz criado nos anos setenta. Com relação à paquera, para fazerem sucesso, os caras lá dentro tinham que parecer afeminados. Para alguem de fora, parecia não haver qualquer chance de sexo heterossexual. A entrada era controlada por uma gótica minúscula e invocada, protegida por dois seguranças nada fashion e apropriadamente gigantescos. Sempre havia uma aglomeração de esquisitos na porta implorando para entrar. Quem decidia o acesso era ela apontando o dedo e acenando a cabeça. Para os rejeitados ficava a sentença de morte quando virava para os seguranças e dizendo: “ela/ele parece gente boa”.
Pessoas estranhas passaram a surgir em festas e outros eventos sociais dando declarações sobre o pós-modernismo ou Nietzsche sem entender muito do que estavam falando. Londres era a nova Jerusalém daquela galera e as revistas inglesas iD e The Face, as novas bíblias. Naquele meio, tudo era uma mistura de pose com uma boa dose de arrogância social. A superficialidade ditava que os papos girassem em torno de tendências da moda nas revistas importadas ou nas bandas e artistas que melhor tinham abandonado a estética e a temática das décadas passadas.
Para muitos, pegar um bronze na praia era coisa de neanderthal e pouquíssimos aproveitavam as maravilhas naturais do Rio de Janeiro. Havia um absurdo elementar naquele movimento, se é que poderia se chamar disso. A beleza exuberante da cidade e o seu cenário natural eram perfeitos para a grandiosidade dos delírios tropicalistas de fusão cultural, de experimentação existencial e de gozo dos prazeres da vida inerentes aos anos setenta. O cenário carioca não tinha nada a ver com a temática urbana importada da cinzenta e distante Londres.
A ironia sobre a obsessão com Londres era que, considerando que era inglês de nascença, poderia ter aproveitado a oportunidade para me dar bem. Se não tivesse mergulhado tão a fundo no Brasil, teria. Ao invés disso, me apeguei a a noção de que era um revolucionário derrotado que se recusava a se entregar. Aquilo representavam o oposto do que eu amava e do que queria no meu mundo. De uma perspectiva cômica, era impressionante ver góticos e punks em jaquetas de couro pretas e botas saíndo de madrugada das festas num calor de 40 graus e desfilando em frente dos banhistas em biquínis e shorts de banho. Pareciam vampiros procurando caixões para se esconder até a noite, quando podiam sair das sombras para invadir a cidade.
Os punks de classe média então eram de um absurdo especial. As roupas que vestiam e os lugares que frequentavam não tinham nada a ver com o que os punks dos Sex Pistols e do Clash, inglêses da classe operária, queriam dizer ao gritarem “não há futuro”. Os punks ingleses ridicularisariam aqueles filhinhos de papai tirando onda usando sua rebeldia, enquanto a maioria dos “punks” da zona sul ficaria horrorizada se parasse para tentar compreendesr o conteúdo de protesto social do movimento. Se entendessem saberiam que, aqueles que tentavam personificar eram contra elitistas metidos a besta. A verdade é que as pessoas apinhadas nos ônibus da periferia industrial de São Paulo ou mesmo as que como eu etavam sendo esmagadas por um choque econômico ceifador de sonhos – eram muito mais próximas ao movimento punk. Caso tivésse alguma ideia sobre o que o movimento punk realmente representava teria aderido, provavelmente adicionando uma pitada tropical, mas para a a galera do rock carioca aquilo era apenas música ruim feita por gente estranha e negativa. Por causa da minha criação e da situação de estar aprendendo a viver num país em formação fez com que a expressão cultural mais importante da minha geração passase ao largo.
Havia muitas razões para estar zangado: o sistema que havia prometido um futuro brilhante para nós estava nos dando um pé na bunda. Mesmo assim, entre muitos havia o papo reacionário de que o momento era para a sobrevivência dos mais fortes. Para eles, só os fracos estavam se dando mal. Apesar do discurso, na prática, o que estava rolando era a sobrevivência daqueles com os pais mais ricos.
Richard Klein, formado em economia pela UFRJ, autor do livro Samba Perdido, radicado em Londres, artista de Efeitos Especiais para cinema, eco-anarquista.