Paralelamente à contradição de estar vivendo o sonho de pertencer a uma boa banda enquanto o clima em casa era de fim de festa, o Brasil passava por um momento importante.
A inabilidade dos militares em lidar com as complexidades de uma recessão e de uma inflação pesadas junto com as medidas de austeridade impostas pelo Fundo Monetário Internacional – o FMI – ao país em 1983 causou uma queda brutal na qualidade de vida dos brasileiros e das brasileiras. O descontentamento era geral. Porém, o mais frustrante era que não se podia votar para presidente. De acordo com os militares, os brasileiros não eram capazes de tomar tal decisão. A ditadura impunha que podiam escolher seus representantes no Congresso mas só dos únicos dois partidos permitidos, a ARENA e o MDB. Embora o lema do golpe miltar de 64 tenha sido reestabelecer a democracia e salvar o pais do comunismo os presidentes eram generais apontados pelas forças no poder. Havia a promessa – que ninguém acreditava – de que num futuro não especificado, permitiriam eleições para presidente. Confrontando essa mistura inaceitavel, as forças democráticas do país se uniram e, marchando juntas, lancaram um movimento que tomou as ruas sob o slogan “Diretas já! ”.
Gigantescas manifestações aconteceram em cidades por todo o Brasil. Após um comício em São Paulo que atraiu 1,7 milhões de manifestantes houve um outro no Rio que levou mais de um milhão de pessoas às ruas, a maior concentração política que a cidade já tinha visto.
Uma revolução em tempo real era algo imperdível. O evento foi no auge no verão, em Janeiro, e devido a uma greve dos professores a faculdade ainda estava funcionando. Matei aula para chegar cedo na Candelária. Já havia uma pequena multidao e passando apertado por entre o povo consegui subir numa banca de jornais para ver melhor. Fiquei ali vendo a rua lotar. Quando ja não dava para ver onde o mar de gente terminava na avenida Presidente Vargas, o primeiro discurso começou. Enquanto tentava me concentrar nas palavras do orador, senti alguns pingos no meu ombro. Quando olhei para trás, havia alguém mijando em uma coluna bem atrás de mim.
“Que porra é essa, meu irmão!? Tu acha que tu tá sozinho aqui!?”
“Ih! Foi mal! ” E o idiota mirou para outro lado.
Dali para frente as coisas só melhoraram. Artistas famosos, líderes do congresso, governadores, juristas e outras figuras eminentes da política foram se revezando no palanque fazendo discursos históricos e sendo aplaudidos em peso pela massa reunida. O comício demorou horas e terminou com a multidão cantando o Hino Nacional com todos marcando aquele momento na memória coletiva brasileira com lágrimas nos olhos.
Brasília, a capital federal, ficava longe dos grandes centros, de maneira que os governantes só viam o que estava acontecendo pela televisão. Isso os conferia um distanciamento e um senso de imunidade. Sua concessão foi permitir que o congresso elegesse um presidente civil, Tancredo Neves, uma figura amplamente respeitada e que tinha sido tolerado pelo regime no Congresso fantoche como oposição simbólica ao golpe desde o seu início. O candidato oficial que eles deixaram perder as eleições indiretas foi Paulo Maluf. Esse era um político impopular, notoriamente corrupto, que no auge da ditadura foi apontado pelos militares para ser o governador de São Paulo.
Com a vitória de Tancredo, um presidente civil finalmente tomaria posse no Brasil pela primeira vez em mais de 20 anos. Entretanto, o presidente eleito adoeceu sériamente poucas semanas antes da diplomação. Esse drama manteve o Brasil em suspense: ninguém sabia a real gravidade da enfermidade de Tancredo, se ele poderia assumir a presidência ou se havia algum tipo de conspiração em andamento. Com Tancredo hospitalizado e possivelmente em coma, José Sarney, o vice-presidente, escolhido para agradar segmentos militares e governadores da situação no Nordeste, tomou posse em março de 1985. Semanas depois, Tancredo morreu.
Estávamos escalados para fazer um show na noite em que confirmaram a morte de Tancredo. Enquanto um Brasil abalado se unia no luto, ficamos sentamos na escadaria da boate em Copacabana torcendo para que alguém aparecesse. Eduardo ficou andando ansioso de um lado para o outro, parando apenas para perguntar porque não havia ninguém lá. Nós pacientemente explicamos que o Brasil havia acabado de perder o seu presidente de direito, ao que ele retrucou.
“Sério? Morreu de quê?”
Ele não estava brincando e caímos na gargalhada sem conseguir acreditar como alguém poderia estar tão completamente fora da realidade.
*
Naquele momento político conturbado e da tempestade econômica o Rio estava vivendo a febre do rock. De uma hora para outra, parecia que todo mundo fazia parte de uma banda e aqueles que não faziam pareciam desesperados para se envolver de uma maneira ou de outra. Em meio a toda essa agitação, apareceu a primeira estação de rádio do estado a se dedicar exclusivamente ao rock; a Rádio Fluminense. Ela transmitia do outro lado da Baía de Guanabara, de Niterói. O seu jovem dono tinha acabado de herdar a estação e estava disposto a deixar sua marca. Graças à ele, ninguém mais precisava comprar discos para ouvir bandas como Led Zeppelin, Yes, Jethro Tull, Pink Floyd e The Who. A festa acabou quando as grandes gravadoras foram bater na porta da rádio exigindo direitos autorais.
Sem poder pagar, a Rádio Fluminense passou a tocar exclusivamente artistas internacionais recentes, produzidos por selos independentes ansiosos para tornar seus artistas conhecidos no Brasil. Ainda que acabasse perdendo o status de rádio pirata voltada para uma geração mais velha, a Maldita FM, como eles gostavam de se apresentar, fez sucesso com um público interessado em ouvir as bandas de vanguarda sobre as quais viviam lendo em revistas importadas, mas às quais não tinham acesso. Foi assim que o Rio entrou de vez nos anos oitenta.
Daniel, que mais tarde seria um colega de trabalho quando me tornaria professor de inglês, foi fundamental para o sucesso da Rádio Fluminense. Na época, ele era comissário de bordo internacional e durante suas paradas em Londres e Nova York, comprava os últimos lançamentos das bandas mais recentes. Quando voltava ao Rio, os entregava na Rádio Fluminense. Isso dava à emissora uma vantagem que nenhuma outra poderia ter.
Mas não eram só bandas internacionais que a radio tocava e a gente estava doido para aparecer lá.
Charles, o dono do estúdio e agora nosso empresário informal, levava fé na banda e começou a conseguir shows para a gente. Com a pouca grana que ganhamos com eles, investimos em uma fita demo na esperança de viver o sonho de tocar na Maldita FM. Ainda que sua sala de ensaio fosse excelente, para seu espanto, decidimos que o que o Charles oferecia em termos de estúdio de gravação não era bom o suficiente. Isso nos levou a melhores estúdios, onde trabalhamos com engenheiros de som fazendo pose de profissionais de verdade sem tempo para riquinhos pretensiosos da Zona Sul.
Apesar da arrogância e da impaciência dos caras, levavamos a coisa a sério. As preparações e as gravações em si nos fizeram parar para ouvir o que estávamos fazendo e tomarmos uma distância do trabalho. Ficamos mais conscientes do que estávamos tocando, aprendemos bastante e melhoramos. No entanto, o pseudo profissionalismo dos estúdios não permitiu que a banda mostrasse o seu melhor. O método deles, ainda que utilizasse tecnologia de ponta, era contra-intuitivo e contra-produtivo: cada um gravava sozinho em uma sala escutando as faixas dos outros com fones de ouvido. Não havia prazer ou calor humano nas gravações. As sessões eram chatíssmias, normalmente tarde da noite ou de madrugada porque era mais barato, Algumas vezes alguém perdia a concentração errava sua parte no meio da gravação, enquanto noutras quem se confundia era o engenheiro, quando não eram os dois. O resultado era repetições sem fim onde a essência da banda sucumbiu aos detalhes técnicos.
“ Nosso suor sagrado
É bem mais belo que esse sangue amargo. ”
Tempo Perdido - Legião Urbana
Ninguém gosta de derrotados, mesmo quando torcem para você perder. Por isso a receptividade da volta de São Paulo foi morna, mesmo que no fundo seu Rafael e a dona Renée tivessem ficado felizes por ter seu filho de volta em casa, na esperança de que deixaria de lado uma luta que nunca entenderam. Da minha parte, apesar do gosto amargo de retornar com o rabo entre as pernas, estava claro que os dias de meu pai estavam contados e queria tentar diminuir o fosso que nos separava antes que fosse tarde demais.
Por falta de melhores opções, no fim do verão, destranquei minha matrícula e voltei para o curso de Economia. O que aconteceu foi previsível. Não me sentia mais parte do que acontecia ali enquanto o pessoal que tinha entrado comigo me menosprezou por não ter ido até o fim naquilo que buscava e meus novos colegas de turma ou me viam como um rebelde incompreensível ou como um idiota que tinha ficado para trás nos estudos. Minhas notas eram baixas, detestava as aulas e sentia a realidade implacável de perder um ano inteiro para voltar ao ponto de onde tinha saído. Com o país e a família se desintegrando era difícil encontrar um sentido naquela realidade.
No entanto, a vida continuou. A eterna cura carioca para pressões e frustrações – a praia – era infalível. No Posto Nove de Ipanema o tempo, as crises e os problemas pareciam não existir. Depois de um dia regado a mar, sol e beleza natural tanto paisagística quanto humana o mundo parecia voltar ao lugar de onde nunca deveria ter saído. Num daqueles domingos ensolarados, encontrei o Eduardo, um antigo colega de sala do Colégio Andrews. Estranhei vê-lo ali já que nunca tinha sido frequentador da área, muito menos tinha sido parte da galera. Agora estava mudado, não era mais o cara introvertido e magricela que todos conheciam, estava cabeludo e parecendo descolado. Era óbvio que também tinha dado uma passada pela academia pois estava todo bombado.
Uma das primeiras coisas que me contou, com orgulho, foi que tinha aprendido a tocar guitarra. Sem ter certeza de qual era a dele, mas sempre interessado em levar um som, concordei em marcar uma guitarrada na casa dele depois da praia. Na despedida, Eduardo me perguntou se poderia chamar seu amigo Pedro, um baixista. Concordei e me lembrei do Mauro, um amigo da universidade que tocava bateria, e fiquei de ver se ele poderia ir também. Foi assim que a banda nasceu.
Adoramos a primeira sessão e depois dela aquilo virou uma rotina obrigatória nos fins de semana. Descobrimos naquela barulheira uma diversão recompensante, barata e terapêutica. Quando a música entrava alta, havia a sensação quase delirante de flutuar acima de todo o baixo astral que nos cercava. As frustrações se canalizavam na agressividade das guitarras e do baixo, nas pancadas da bateria e nos gritos no microfone. Quanto a qualidade, bem… estávamos aprendendo.
De qualquer forma, a partir daquele primeiro ensaio, como qualquer outra banda da época, havia a esperança e a meta de um dia tocar no Circo Voador e quem sabe alçar voos mais altos. As músicas que levávamos eram de outras bandas; classicos dos Rolling Stones, Deep Purple e Jimi Hendrix além de algumas nossas que fomos introduzindo, todas fáceis de tocar e catárticas
Como num início de namoro, depois que a coisa se tornou mais séria vieram as formalidades. A principal foi achar um nome. No começo fomos de “Papa Clitóris e os Oligofrênicos”, mas depois de algumas rejeições pensamos melhor e decidimos por um nome mais palatável, “Arrepio”, uma gíria surfista para se dizer impressionado – “O cara arrepiou na guitarra.”
*
A casa do Eduardo era meio apertada para ensaios e passaram a ser na minha, sempre liberada nos fins de semana devido às idas dos meus pais para Teresópolis. Porém não demorou para que os vizinhos fizessem um abaixo assinado por causa do barulho. Voltamos à casa do Eduardo. Seus pais também sempre estavam fora nos finais de semana e lá os vizinhos pareciam não se importar com o ruído. O local escolhido foi o escritório do apartamento, um cômodo que ficava de frente para a favela do Morro do Leme, no final de Copacabana. Nos mesmos dias que ensaiavamos, tinha uma banda punk que também ensaiava num dos barracos. Havia uma rivalidade muda mas tambem um acordo de cavalheiros, quando fazíamos uma pausa, eles começavam e vice-versa. Igual ao punk inglês, suas letras cruas refletiam uma realidade mais dura e simples do que a nossa. Mas não tinha jeito, sua revolta inocente nos fazia rolar no chão de tanta risada.
“Mulher foi assaltada,
a moça estuprada
e a polícia nada, nada, nada!”
Prefiro não pensar a respeito do que pensavam sobre a gente.
A liberação dos vizinhos de prédio do Melo era boa demais para ser verdade. Não demorou muito para que também fizessem um abaixo assinado exigindo o fim da barulheira. Isso nos forçou a procurar uma sala de ensaio de verdade, o que, por sua vez, nos fez entrar ainda mais fundo na toca do coelho do rock carioca. Com todo mundo formando bandas, as guitarradas viraram centrais na juventude carioca e os estúdios de ensaio eram uma extensão do Posto Nove. Entrando e saindo das salas apertadas repletas de equipamento a gente cruzava com as mesmas pessoas que víamos na praia. Lá ficávamos sabendo das melhores festas, das melhores transações de bagulho além das fofocas a respeito das outras bandas, tanto as já estabelecidas quando as em ascensão.
Com os ensaios e os novos contatos veio o primeiro show. A nossa estréia foi num palco armado em frente ao Museu de Arte Moderna no aterro do Flamengo. O evento fazia parte do aquecimento para o primeiro Rock in Rio que estava deixando a cidade desvairada. Excitados com a oportunidade de ouro, fomos vestidos a caráter, todos com roupas bizarras. Como vocalista e guitarrista coloquei uma cartola do meu avô, um blazer superdimensionado sem camisa por baixo, uma bermuda listrada verde e branca e um tênis de basquete laranja. Quando chegou a hora, vencemos o medo e encaramos a pequena multidão com garra. O público adorou e respondeu dançando frenéticamente durante as músicas e gritando o nome da banda nos intervalos. Um dos números que mais causou sensação foi nossa versão de “Wild Thing” do the Throggs e eternizada pelo Jimi Hendrix, Vadia.
Vadia!
Você é uma vadia!
Você cutuca a minha ferida!
Atazana a minha vida!
Depois daquele sucesso prematuro nos animamos e caímos na armadilha de nos levarmos a sério. Em nossa busca pela perfeição, experimentarmos várias salas de ensaio e acabamos por escolher uma na favela do Morro de São Carlos. O dono era o professor de bateria do Mauro, Charles – um cara alto com cabelos louros cacheados e barba encaracolada que faziam com que ele se parecesse com uma figura grega. Charles tinha sido o baterista do lendário Tim Maia, e da musa da Tropicália, Gal Costa, entre outros.
A favela, porém, era famosa por pertencer a uma das mais perigosas facções criminosas do Rio, o Terceiro Comando. Esse era um lugar onde polícia só se aventurava em subir lá com veículos blindados e protegida por helicópteros. Os muros altos do estúdio, o arame farpado e os cinco rottweilers faziam com que aquela propriedade parecesse uma fortaleza de um chefão do narcotráfico.
Por sermos a primeira banda a ter a corajem de ensaiar lá, tivemos uma acolhida VIP na espaçosa sala ainda cheirando a cimento. Depois de alguns meses, o lugar se tornaria um dos estúdios de ensaio mais procurados do Rio, utilizado por pelos artistas e bandas mais consagrados da cidade, como Cazuza, Hanói Hanói, Barão Vermelho e Azul Limão. Charles nunca se esqueceria da gente e continuaria fazendo um preço camarada. Ele também era generoso ao nos deixar tocar nos amplificadores profissionais que os famosos deixavam por lá.
Ainda que adorassemos o estúdio e, melhor ainda, tocar a todo volume no equipamento dos astros, chegar lá era sempre uma experiência tensa, principalmente com equipamento e instrumentos caros na traseira do carro. Sempre que dirigíamos pelas ruas estreitas, o pessoal da favela nos observava, sem saber direito se éramos da polícia, membros de uma facção rival ou clientes. Charles devia ter algum acordo tanto com os traficantes quanto com a polícia pois nunca fomos abordados, embora de vez em quando ele ligasse para o Marcos avisando para a gente não ir naquele dia porque o bicho estava pegando.
Desci no ponto final, na Praça da Sé. Perdido no labirinto das ruas do centro, saí perguntando e consegui encontrar um ônibus que ia para o campus. Àquela altura, tudo o que queria era descolar uma cama para passar a noite e tirar um cochilo. Contudo, quando as coisas estão fadadas a dar errado, elas só pioram. Quando cheguei na cidade universitária, me deparei com um confronto entre os estudantes e a polícia justamente por causa do dormitório onde estava planejando passar os próximos meses. As autoridades do campus tinham intervido e os estudantes queriam o controle do seu espaço de volta. Na confusão fiquei sabendo que por conta daquele atrito não estavam podendo aceitar gente que não estudava ali. Sem saber o que fazer, me dirigi à administração da universidade para explicar minha situação e pedir ajuda. Só que meu ar de playboy e meu sotaque carioca não conseguiram convencer ninguém de que estava em apuros.
Sem outra opção, voltei para o diretório dos estudantes para ver se conseguia arranjar um lugar para ficar, mesmo se fosse para dormir no chão por algumas noites. Quando caiu a noite, a sorte sorriu para mim. Em meio à uma assembleia, cruzei com o Carlinhos, um maluco que conheci em Canoa Quebrada, a paradisíaca aldeia de pescadores no Ceará. Expliquei minha situação e depois de alguns telefonemas, ele me convidou para ficar na casa dele.
Agradeci de coração e depois que as coisas acalmaram pegamos um ônibus e fomos lá. A família morava bem, num apartamento amplo perto da Avenida Paulista com vista de cima para a teia de telhados de São Paulo. A acolhida não podia ter sido melhor, todos eram muito gente boa e a hospitalidade acabou sendo impecável a ponto de ser embaraçosa. Me trataram como se fosse da família: tinha um quarto só para mim, comiamos juntos e depois iamos para a sala de estar para ficar coversando ou assistindo televisão até tarde. Quando saia com o Carlinhos ele me apresentava para seus amigos como um herói. Além disso, tinha a irmã mais velha do Carlinhos, Alice, uma gata, que também tinha conhecido no Nordeste. Ela ficou contente – achei que até demais – em me ver, mas a última coisa que precisava era pôr tudo a perder tentando alguma coisa com ela.
*
São Paulo era muito mais sofisticada que o Rio. Em todas as áreas e camadas sociais, os paulistas eram mais profissionais e mais polidos. Para um carioca, tudo era limpo, organizado e funcionava bem: ônibus, sinais de trânsito, metrô, lojas, padarias. Havia mais formalidade e o nível intelectual em geral parecia padrão de Primeiro Mundo. Os jovens não eram os ratos de praia da Zona Sul se achando a aristocracia da cidade, na paulicéia nao havia tempo para aquele tipo de hedonismo arrogante e de pretensão. Seu estilo urbano, descolado porém de pé no chão, se aproximava ao que a gente via da juventude londrina através de revistas e de video clips. O punk e o estilo gótico caiam bem, ali os anos oitenta faziam sentido.
Após uma semana com a família do Carlinhos veio a hora de ligar para casa. Falei com minha mãe, expliquei que estava tudo bem e onde estava com a intenção de acalmá-la. Contudo, como era de se esperar, a reação da Renée foi a de pânico. Minutos depois da gente se despedir e de dar o telefone da casa no caso de uma urgencia, um amigo que estava morando em São Paulo me telefonou perguntando porque não o havia procurado. Larry era um americano com uma história parecida com a minha. A diferença era que tinha um lar nem mais usual que o meu , a família não estava sofrendo com a crise e por ter uma personalidade menos curiosa e aventureira nunca tinha se atrevido a sair dos padrões esperados da sua situação social. O conhecia o das aulas de Bar Mitzvá e da Escola Americana. Pra falar a verdade, tinha seu telefone mas não o havia procurado porque era caretíssimo e um tanto chato. Quando éramos crianças a amizade só existiu por causa da insistência da dona Renée, maravilhada com a posição do pai dele, CEO da filial brasileira de um importante banco americano.
Larry tinha acabado de voltar de Miami. Apesar de seus dois irmãos mais velhos terem se estabelecido por lá, ele não havia gostado e agora queria fazer faculdade no Brasil. Assim que soube que estava em São Paulo, ficou louco para que ficasse com ele pois na sua cabeça eu representava o Rio da sua adolescência surfista. Quanto a seus pais – acreditem se quiser – me viam como uma boa influência pois era bom aluno quando estudávamos juntos.
Tive que aceitar o convite, pois não queria abusar da hospitalidade da família do Carlinhos. Além do mais, Larry também tinha que se preparar para o vestibular da FUVEST e com a ajuda de meus pais, nos matriculamos juntos no famoso curso Objetivo da Avenida Paulista, perto das sedes da maioria dos bancos e das grandes companhias e do enorme apartamento da família do Larry . Materialmente, minha situação ficou excelente: fiquei com um quarto e com comida por conta e com duas empregadas e um motorista à disposicao, não tinha que mover um dedo. Apesar do vazio que sentia e da frustração de ter caído de volta na teia da família, volta e meio me animava a acompanhar o Larry para azarar paulistinhas usando nosso jeito de carioca. Neste quesito o sucesso foi surpreendente.
No dia da prova, não havia praia para nadar na véspera nem o bom presságio de um desconhecido parecido com meu avô me olhando da calçada. Não estava nervoso, mas assim que abri o folheto e comecei a ler as questões, me dei conta de que o vestibular de São Paulo também era um nível acima do Rio. Primeiro, havia um teste de múltipla escolha onde fui bem, mas uma semana depois, teve uma prova específica da área escolhida envolvendo respostas dissertativas e uma redação. Havia matérias que não faziam parte do currículo do Rio e quando confrontado por quatro ou cinco questões dissertativas sobre literatura portuguesa, que nunca havia estudado, não deu para enrolar e tive a certeza de que era o fim da linha para mim.
Essa foi a primeira derrota após uma longa fase de vitórias. Pensei em ficar em São Paulo num quarto alugado por mais um ano para tentar novamente, mas no auge da depressão econômica, até eu conseguia entender que aquela não era uma opção viável. Além disso, as coisas tinham piorado em casa; Rafael tinha sofrido outra parada cardíaca. Senti que era hora de voltar para o Rio para ser um bom filho pelo menos uma vez na vida.
“Porque és o avesso do avesso do avesso”
Caetano Veloso - Sampa
A inabilidade dos meus pais em me enquadrar e minha fixação na guitarra elétrica foi gerando uma uma pressão ansiosa que ninguém aguentava mais. Me tornei agressivo, Rafael não me dirigia a palavra e Renée surtava direto por tudo e por nada que eu fazia. Até a Sarah e a dona Isabel passaram a me olhar de cara fechada. O plano original era ir para São Paulo para fazer o vestibular e farto daquele clima, resolvi ir meses antes do tempo planejado. Quando anunciei a decisão, não houve drama, talvez porque eles achassem que se ficasse fora, numa outra cidade, quem sabe fosse levar a vida mais a sério.
De qualquer forma, sair de casa de vez era um momento importante, um grande salto no escuro. Todos, inclusive eu, sabíamos que dali para frente tudo seria diferente e nossas apreensões traziam os nervos à flor da pele.
Parti tarde da noite. Escolhi aquele horário porque chegaria de manhã cedo e teria o dia seguinte inteiro para procurar a casa do estudante universitário e me instalar lá. Apesar de ter dito em casa que seria mole arranjar um lugar, não tinha conseguido confirmar. Era um risco que estava tomando. Apesar de ter o número telefônico, o contato era impossível; ou a linha ficava ocupada direto, ou ninguém atendia, ou alguém atendia e me deixava esperando para sempre, ou simplesmente atendia, dizia que não podia dar a informação e desligava na minha cara.
Embora a rodoviária estivesse vazia, ainda havia uma fila no balcão para São Paulo. Enquanto esperava, do nada, um cara de trinta e pouco anos, bem arrumado, veio me perguntar se queria uma carona. Disse que não.
“Tô legal aqui, minha vez já tá chegando, mas obrigado por oferecer.”
Ele insistiu: “Não precisa agradecer, seria um favor que você me faria.”
Apesar da negativa, ele insistiu. “Tive que ir visitar minha mãe que está doente no Espírito Santo . Estou na estrada há doze horas e com sono. Preciso de alguém para ficar conversando para não dormir.”
“Olha, entendo, mas não estou a fim.”
“Mas, por quê?”
Sem conseguir achar uma resposta convincente, mas querendo me livrar da aporrinhação respondi “Estou pegando um ônibus leito, tenho que dormir na viagem. Amanhã tenho um encontro importante.”
“Ônibus leito?! É muito caro! Meu carro é de graça e é confortável.” Ele tirou a carteira. “Está vendo isso aqui, é a minha carteira de médico. Sou cardiologista registrado, está vendo? No Hospital Albert Einstein, conhece?”
Até eu conhecia o Hospital Albert Einstein. A carteira me pareceu verdadeira e minha vez na fila estava chegando. Sentindo a vacilação, o cara continuou: “Você deve estar com medo, achando que eu sou um maluco, né? Eu pensaria a mesma coisa, mas não se preocupe, sou do bem! Olha, te levo até o carro e você pode revistar à vontade.”
“Meu irmão, não tenho medo de nada!” Estava começando a mudar de ideia. O cara parecia mesmo um médico estressado e eu era maior do que ele, o que me garantiria se rolasse algum problema. Além do que, uma passagem de ônibus leito equivalia a umas cinco ou seis refeições. “Vamos ver teu carro para ver qual é.”
Na ida ele não parava de me agradecer e de repetir que era médico, que tinha que trabalhar cedo no dia seguinte, que a mãe estava doente no Espírito Santo e que precisava de alguém para conversar para ficar acordado. O único problema é que parecia acordado demais para alguém que se dizia cansadíssimo. Talvez fosse a ansiedade, café, sei lá.
Chegamos no estacionamento e paramos um Monza azul escuro em ótimo estado. Ele abriu a porta e colocou os bancos para frente. “Pode examinar se tem alguma coisa aí dentro. Aqui, dá uma olhada no porta luvas, não tem nada. Olha debaixo dos bancos, vai lá, faço questão.”
Depois ele abriu o porta-malas. “Dá uma olhada aqui. Viu? Nem mala tem, fui de última hora para ver minha mãe e não levei nada. Olha aqui no estepe; só tem estas ferramentas, mas isto não é arma, é obrigatório. Quer que eu abra a frente para checar o motor?”
“Não, tá na boa.” Cocei a cabeça, achando que o cara estava nervoso demais para o meu gosto. “Mas não sei. ”
“Olha, tudo bem, se você não quiser ir, entendo, mas diz logo porque senão vou ter que voltar na fila, em meia hora os ônibus param de circular.”
Realmente, não havia nada estranho no carro, a história era plausível, pensei de novo no preço da passagem e pensei: “Foda-se…”
Virei para o cara e disse: “Então tudo bem, vamo nessa.”
O doutor agradeceu todo sério. “Muitíssimo obrigado, como te disse, é um favor que você me faz. Mas chega de conversa, né? Vamos embora.”
Coloquei a mochila no banco de trás, entramos no carro, fechamos as portas, ele virou a chave na ignição, o motor ligou e saímos do estacionamento rumo à via Dutra.
“Por sinal meu nome é Ivan e o teu?”
“Richard.”
“Prazer Richard, se importa se eu ligar o ar-condicionado?” Eu não ia dizer que não, estranhando estar viajando num carro confortável que não fazia parte do plano. Depois de um tempo ele quebrou o silêncio desconfortável. “Você gosta de que tipo de música? Pode pegar a caixa de cassetes debaixo no banco de traz, fica a vontade de colocar o que você quiser.”
“Valeu, mas eu estou legal.”
“Se importa então se eu ligar o rádio, então?” Ele colocou numa estação de música ligeiramente brega. Não gostei, mas por estar de carona fiquei quieto. Na subida da serra já estávamos conversando. Quando chegamos em cima, o ar já estava mais frio, demos uma parada num posto semi vazio, tomamos café, comi um sanduíche e voltamos para o carro. Na altura de Resende, a metade do caminho, o doutor disse que estava cansado.
“Não estou conseguindo dirigir, deveria ter tomado mais café. Os olhos já estão quase fechando. ”
“Sem problemas, estou acordadão, tenho carteira de motorista, quer ver? Para o carro e a gente troca. ” Falei, animado com a ideia de pegar a Dutra à noite.
Ele retrucou com um olhar estranho e sorriu. “Sabe o que é? Estou doido para passar a noite num motel contigo. ”
A ficha caiu. Me senti um idiota completo por ter caído no papo, mas o que ele queria não ia rolar de jeito nenhum.
“Não senhor”, respondi resoluto. “Estou aqui pela carona, não tem nada de noite gay no plano!”
Dali em diante rolou uma batalha de insistência versus recusa.
“Mas como é que você pode dizer que não gosta de uma coisa que nunca provou?’
“Amigo, nunca provei nem vou provar. E você? Nasceu veado ou foi porque apanhava muito na escola?”
“Isto não vem ao caso, mas não ia ser legal a gente ficar tirando a cueca um do outro num quarto gostoso?”
“Meu irmão, dá para parar o carro na próxima parada?”
“Mas daqui a pouco estamos chegando!”
“Então que porra é essa de parar em motel?”
“É que eu estou exausto!”
“Se você está exausto deixa eu dirigir, olha a minha carteira aqui!”
O doutor não se dava por vencido e comecei a me preocupar com sua recusa de parar. Quando amanheceu, já estávamos nos aproximando da periferia de São Paulo. Finalmente convencido de que não ia acontecer nada, ele parou o carro num ponto de ônibus. Dando graças por ser mais forte que aquele maníaco pentelho, peguei minhas coisas e saí daquele inferno.
Assim que minha atenção se desviou do carro desaparecendo na rodovia e se voltou para os arredores, percebi que estava num lugar que parecia uma favela. A próxima hora e meia seria um curso intensivo de realidade urbana brasileira. Já tinha subido favela para comprar bagulho, mas era completamente ignorante sobre o dia a dia de pessoas humildes e trabalhadoras. Teoricamente, sempre soube que tinham uma vida difícil, mesmo assim, foi um choque ver, em primeira mão, o que se passava.
Ainda estava escuro e frio, mas o ponto de ônibus descoberto já estava amontoado. Havia lanchonetes próximas, todas muito simples, onde tinha gente tomando café da manhã. O aroma da bebida sendo o único conforto na área.
As feições da maioria, senão todas as pessoas ali, eram Nordestinas. Com certeza ou eles ou os pais tinham saído de lá em busca de uma vida melhor. Seus rostos pareciam com os que tinha visto em minhas viagens, mas a falta de sol, o frio, os efeitos da vida na metrópole tinham tido seus efeitos. Suas peles já estavam cinza, suas caras com uma expressão automata. Moloch estava se alimentado da sua vivacidade.
Cansado, chateado com a minha burrice em ter aceito aquela carona, com frio e com um pouco de fome fiquei esperando o ônibus. Ao olhar para aquele povo, não podia deixar de acreditar que uma força maior havia me colocado ali para me mostrar o outro lado da moeda das minhas aventuras de verão.
Quando o ônibus chegou, me apertei com os outros para entrar na condução já lotada. Sem poder mexer um dedo, passamos pelas enormes fábricas da Ford, Volkswagen, Gessy Lever e outras multinacionais. Alguns passageiros saltaram nesses complexos isolados, mas o destino da maioria era o mesmo que o meu: o Centro da Cidade. Amontoados como sardinhas numa lata por uma hora e meia, nos contorcendo quando alguém tinha que passar para descer, tive uma amostra da rotina diária daquelas pessoas. Elas teriam que fazer a mesma viagem de volta à noite e teriam que suportar aquelas mesmas condições quase todo santo dia de suas vidas. Tudo isso para receberem um salário miserável e serem tratados como cidadãos de segunda categoria em seus empregos, sem qualquer perspectiva de melhora.
O Asdrúbal herdou a posição de abelhas rainhas da malucada carioca que tinha pertencido antes aos Novos Baianos e depois ao revolucionário chique Fernando Gabeira. Aproveitando essa onda, o grupo resolveu virar promotor cultural e, com a ajuda da prefeitura do Rio, abriu um espaço próprio na forma de um circo de verdade no Arpoador, um minibairro entre Copacabana e Ipanema. O nome que deram foi “Circo Voador”, copiado dos Rolling Stones que tinham feito algo parecido na psicodélica Londres dos anos sessenta.
Enquanto isso, os cursos do Asdrúbal viraram um tremendo sucesso. Havia umas cinco ou seis turmas de cerca de trinta alunos. Quando terminavam, faziam apresentações de peças que eles mesmos tinham escrito com a ajuda de seus mentores. Todas eram boas e falavam diretamente às plateias abarrotadas de jovens. Todo mundo queria vê-las e os alunos mais dedicados continuavam de uma forma ou outra atrelados ao grupo.
Depois de montado o Circo se tornou o palco principal dessas apresentações. Só que a proposta da turma do Asdrúbal ia além do teatro; a ideia era criar um espaço alternativo para todas as formas de expressão. No tocante a música, o circo mudou tudo; com ele veio uma enxurrada de bandas de rock novas. Para a nova geração, as outras casas de shows, além de caras, só se interessavam em cabeludos esquisitos do Nordeste com os quais não se identificavam, bichos grilo, e as já antiquadas estrelas da música popular brasileira.
A piada que corria na boca do pessoal que ia ao Circo era que sob aquela tenda só tocavam dois gêneros: o “rock” e o “roll”.
As bandas que surgiram lá não tinham na a ver com as dos cabeludos viciados barra-pesada dos anos setenta. Agora elas podiam ser, e às vezes eram, de colegas da escola ou da faculdade, amigos e vizinhos. Para nós, não eram estrelas, eram conhecidos, ou conhecidos de conhecidos, eletrisando a moçada com seus instrumentos amplificados. Se o que motivava os shows nos anos setenta era passar algumas horas sem o peso da ditadura e da pressão da família, agora o que motivava essas guitarradas era dar um tempo da crise e o caos curti9ndo uma noitada com bandas sem nenhum conteúdo intelectual mas com muita energia. Aquele espírito se espalhou pelo país e definiu o rock como a expressão cultural da classe média jovem nos anos oitenta.
Olhando para aquele momento em retrospecto, o Circo Voador marcou o fim de uma época em que a Zona Sul do Rio ditava os gostos musicais e culturais para o resto do Brasil. O centro logo se mudaria para São Paulo, onde o mercado era muito maior e a indústria fonográfica era mais estruturada. Como o rock daquela época era umbilicalmente ligado ao que acontecia no Reino Unido e nos Estados Unidos com sua estética urbana, o estilo de vida paulistano tinha muito mais a ver. Brasília também era e marcou presença fornecendo um monte de bandas boas, entre elas carros chefes como a Legião Urbana e os Paralamas do Sucesso. O contato direto de filhos de funcionários públicos de alto escalão com diplomatas de fora e com estadias no exterior, e o tédio inerente à cidade certamente ajudando na formação daqueles talentos.
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Se pertencer a grupos de teatro não tinha me apetecido, o mesmo não valeu ao sonho de formar uma banda. Depois de ir a alguns shows no Circo, tive certeza que tinha condições de tocar para aquele público e decidi ir em frente. Para o desespero dos meus pais, comprei um amplificador barato e uma guitarra elétrica com o pouco dinheiro que tinha sobrado da venda do Blues Boy. Com ela, estava pronto para uma carreira na ribalta do rock.
A mudança do violão para a guitarra elétrica foi como trocar uma bicicleta por uma moto. Agora podia balançar as paredes do meu quarto com uma simples palhetada numa corda. Devido a ninguém em casa estar feliz comigo tinha que segurar o volume, mas nos finais de semana quando meus pais iam para Teresópolis, minha irmã ia para a casa do namorado e Dona Isabel ia para a casa dela, as coisas eram diferentes. Com o apartamento só para mim, me sentindo como um rei louco num castelo miserável, a fera surgia. Ligava a guitarra no apmlificador, colocava o volume no máximo e saía atazanando os ouvidos dos pobres vizinhos.
Comecei a escrever músicas. Usava momentos que aconteceram nos sons que levei durante minhas viagens e novas ideias que foram surgindo. Por um breve momento tive certeza de que esse era meu destino. Tentava misturar rock com ritmos brasileiros. Esse tipo de mistura tinha causado controvérsia nos dias dos festivais quando Caetano Veloso tocou Tropicália com uma banda de rock argentina e foi vaiado. A receita continuou a ser utilizada por artistas nordestinos como os Novos Baianos e Alceu Valença que faziam a versão roqueira das suas culturas regionais e deu certo. Agora, aqui estava eu, um garoto de Ipanema de origem judaica e britânica, trabalhando com a ritmos regionais brasileiros e tentando fazê-los soar como rock pesado. O problema foi que nos anos 1980, o rock e a música brasileira tomaram caminhos divergentes, ambos se tornando mais “puristas” e antagônicos. Bandas fazendo esse tipo de música somente conseguiriam se estabelecer uma geração mais tarde, com artistas como Chico Science e a Nação Zumbi, mas na época minhas fitas cassete com gravações caseiras foram rejeitadas por todas as gravadoras e produtores que as receberam.
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Talvez devido à sua experiência no Nordeste, Pedro também havia abandonado a Economia e resolveu seguir o seu chamado para ser artista plástico. Para tal, se inscreveu no curso de artes do Parque Laje. Foi uma boa decisão. O curso era excelente. As turmas eram pequenas o que permitia uma atenção especial dos professores. Além disso, depois do Circo, esse era o lugar mais badalado da Zona Sul do Rio de Janeiro. A sede do parque, onde davam o curso, era uma mansão enorme em estilo italiano clássico que parecia surreal nos seus arredores tropicais. O palacete tinha sido construído por um milionário no século 19 e era tão bem conservado que atrás dele ainda havia as ruínas de uma senzala, agora transformada numa gruta com camas de pedra cobertas de musgos que causavam calafrios em quem entrasse.
As aulas eram no pátio interno da mansão. Famoso, ele tinha aparecido em alguns dos mais importantes filmes do Cinema Novo, como a obra-prima de Glauber Rocha, Terra em Transe e em Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade. Nos anos 1970, também havia sido palco de shows e de peças de teatro memoráveis mas por causa da reclamação de vizinhos, tinha fechado. Só que agora, depois de alguns anos de silêncio, o local foi reaberto mais uma vez como um lugar para shows. Nos finais de semana, ele passou a competir com o Circo Voador para atrair os maiores talentos e os melhores corações e mentes daquela geração de cariocas. Na minha adolescência tinha visto shows excelentes ali: Alceu Valença, Zé Ramalho, a Barca do Sol, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, o Terço, entre vários outros. Nos anos 1980 iria ver Ultraje a Rigor, Ira, Legião Urbana, Camisa de Vênus, Cazuza, Lobão e muitos outros. Por ser da casa, a Blitz só se apresentava no Circo.
Uma das apresentações mais marcantes que aconteceu no Parque Lage, unindo as duas gerações do rock, foi uma do Raul Seixas. Junto com a Rita Lee, Raul era o padrinho musical da nova geração. Os seus temas libertários conferiam aos seus shows uma aura anárquica, quase satânica. Naquela noite, a casa estava lotada. Seu público era especial; havia muitas figuras estranhas que pareciam ter saído do passado, mais a ver com os hippies de Mauá do que com a galera bronzeada do Posto Nove.
Quando Raul subiu no palco uma hora atrasado todos foram ao delírio com a lenda viva. Só que depois das primeiras músicas ficou patente que a idade e as coisas que tinha tomado haviam tido um efeito negativo. Ele estava esquecendo as letras no meio das músicas e parecia meio letárgico. Mesmo assim, o teatro quase veio abaixo quando tocou clássicos como Mosca na Sopa e Gita. O show terminou com a canção Sociedade Alternativa. Como de costume, no final da música Raul recitou as leis que regeriam a tal sociedade alternativa, todas muito legais e cabeça aberta. A última lei, no entanto, foi para causar efeito.
“Na sociedade alternativa o homem terá o direito de matar aquele que o incomode.”
Após mandar a bomba, saiu do palco. A banda parou de tocar logo depois e também foi para os camarins. Aquela frase continuou no ar de uma forma meio incômoda. Um cara com ar de ativista político universitário subiu ao palco e, inconformado com o que o Raul tinha dito, pegou no microfone ainda ligado e protestou.
“Companheiros, descordo do que o Raul disse. Não estamos aqui para cultuar o assassinato, deveríamos estar celebrando a vida numa noite maravilhosa dessas!”
Aquele minidiscurso caiu mal com o público do Raul e veio vaia de tudo quanto é lado.
“Sai daí, seu veado!”
“Vai falar merda pra tua mãe!!!”
“Desce daí, seu filho da puta!”
O cara, um sujeito franzino de óculos e com cabelo black power, continuou: “Podem vaiar, vocês ouviram bem o que o Raul disse? Isso é coisa de animal!”
As vaias aumentaram e alguém jogou uma lata de cerveja nele.
“Isso mesmo, podem jogar lata, mostrem que vocês são um monte de ignorantes.”
Depois do convite, latas, garrafas e tudo mais em que o público conseguiu pôr às mãos literalmente choveram no palco. O teatro era a céu aberto e quando olhava para cima parecia que tinha uma mangueira jorrando projéteis. O cara desceu correndo, o Raul não voltou para dar o bis, mas, mesmo assim, a galera ficou gritando o seu nome como num ritual primitivo.
“Raul! Raul! Raul!”
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Apesar da cena dantesca, a Escola de Artes Visuais do Parque Laje (EAV) era uma das melhores da cidade. O reconhecimento aconteceu quando o curso que Pedro estava fazendo decidiu juntar forças com a faculdade de Belas Artes da Universidade Federal e com alguns pintores já consolidados, para pintar os muros de concreto do parque. Todos contribuíram com criações incríveis. Aquele exercício ganhou uma cobertura ampla na imprensa e acabaria definindo quem seria quem na “Geração 80”, o movimento mais importante da década nas artes plásticas. O muro do Parque Lage foi a porta de entrada para muitos artistas se estabelecerem como profissionais. Para os convidados já estabelecidos em gerações anteriores, o evento os colocaria sob a égide daquele movimento.
O Pedro pintou um dos pedaços do muro e com isso se tornou um membro oficial da “Geração 80”. Aquilo abriu as portas para que circulasse de cabeça erguida entre as “pessoas interessantes” com as quais sempre desejou se relacionar. Com o seu novo status, agora era o Pedro quem passou a me introduzir a círculos sociais que eram de fato interessantes. Nunca consegui curtir, nem respeitar, muito menos usar cortes de cabelos chamativos e artificiais e roupas vanguardistas. A despeito disso, com o preconceito fora da equação, descobri muita criatividade e contestação por trás das máscaras, apesar da superficialidade das comitivas. Dessa forma, me tornei um participante periférico da nata da estética dos anos oitenta que me haviam estragado o Nordeste.
Voltei para casa exausto. Dois dias depois, quando me recuperei, ao invés de estar contente por ter vivido uma viagem épica e de poder me deleitar novamente nos confortos que sempre tinha considerado como dados, a sensação foi de estranhamento. Ter uma empregada para arrumar minhas coisas, um quarto só para mim e comida sempre à disposição sem que precisasse trabalhar para nada daquilo parecia errado. Apesar da mordomia, me sentia como um animal enjaulado numa existência protegida que agora parecia limitada e limitante.
O clima estava péssimo. Renée e Rafael, ansiosos e um tanto decepcionados comigo, achavam que minhas aventuras tinham ido longe demais. estava perdendo um tempo precioso; precisava tomar um rumo na vida, fazer sentido, mudar de visual e de atitude. Para um casal já idoso e com o passado complicado deles, ver o filho largado daquela maneira era difícil . O método paterno de mostrar descontentamento foi o de sempre; passar semanas sem me dirigir uma palavra, uma postura passivo-agressiva à qual já tinha me acostumado. Do lado da materno, muita gritaria e ofensas.
A liberdade que vivi no Nordeste era incompatível com aquela realidade. Não era só em casa; na faculdade e nos outros círculos era como se todos tivessem voltado para a sala de aula menos eu. Nada me interessava e passei a achar tudo e todos insuportáveis. Me sentia como Ícaro, caído dos céus por ter voado alto demais, ou Gulliver, imobilizado por liliputianos por não caber em seu mundinho.
Lá fora a situação também estava pesada. Por conta da crise econômica, o instinto de gado era rei e todos estavam mais caretas do que nunca. Para manter minha identidade e meus princípios vivos, tinha que nadar contra uma corrente de medo e de conformismo. Visto de fora, parecia que havia perdido o contato com o que se considerava a realidade do dia a dia; um cidadão de segunda classe a ser evitado.
Foi difícil voltar às aulas. O curso estava se aprofundando em teorias micro e macroeconômicas, cálculo e outras matérias exigentes. Completamente fora de sintonia, não tinha nem a concentração nem a vontade para continuar. A necessidade de digerir o que estava acontecendo, meu sonho antigo de ser diretor de cinema, a descoberta da música, a falta de pessoas com quem me identificasse, a distância da minha família e dos amigos, a falta de um relacionamento amoroso para ajudar a amenizar o caos; tudo era difícil.
Precisava de tempo e espaço para refocar. Pedi a meus pais para que me deixassem passar um ano trabalhando em um kibutz, um tipo de comunidade agrícola anarquista em Israel, mas a resposta foi um sonoro não. Para eles, o tempo de diversão e divagações tinha se esgotado. Agora era hora de virar homem e trabalhar duro para construir um futuro. É claro que os argumentos faziam sentido mas não encontrava nem forças, nem razão para pairar acima daquele mar de confusão e capitular.
Para complicar as coisas, um dia Rafael, já nos seus 80 anos, passou mal ao sair para almoçar no escritório, desmaiou no elevador e seus funcionários, assustados, o levaram depressa a um hospital. Quando fomos vê-lo no CTI, os médicos disseram que seu coração estava fraco. Ainda que em retrospecto isso fosse previsível dado ao stress que estava passando, o episódia e a notícia pegaram a família de surpresa.
Meu velho estava enfrentando o caos econômico aos trancos e barrancos. Continuava com suas andadas solitárias de madrugada na praia de Ipanema durante a semana e nos fins de semana repousava na tranquilidade de Teresópolis. Isso, e uma dieta saudável o tinham levado a uma idade avançada com saúde e lucidez, mas estava difícil. O paraíso tropical onde havia desembarcado trinta anos atrás estava irreconhecível. Após tantas conquistas, o Brasil parecia agora estar reclamando tudo que lhe havia dado. Com uma inflação mensal beirando os trinta por cento ao mês e uma estagnação econômica devorando o país, tudo parecia de cabeça para baixo.
Como tantos outros, o negócio dele estava em dificuldades. Do seu ponto de vista, a família estava em frangalhos; eu tinha enlouquecido e, apesar da Sarah – ainda a sua grande esperança – estar indo bem em sua carreira de dentista, tinha entrado em um relacionamento tóxico e não estava falando com nenhum de nós. O sítio em Teresópolis, que deveria ser o lugar onde aproveitaria sua aposentadoria, tinha se tornado um problema de manutenção sem fim, um ralo financeiro e mais uma pedra no seu sapato.
Apesar das recomendações do médico, meu velho não se permitia descansar. Se parasse de trabalhar o estilo de vida da família desapareceria. Viciados que estávamos no seu esforço, a gente achava ele estaria ali para sempre provendo o nosso sustento e nao davamos valor ao seu martírio. Quanto a mim, estava absorvido demais comigo mesmo para oferecer qualquer tipo de ajuda e, de qualquer forma, ele descartava de cara qualquer sugestão que eu desse – como a de vender o negócio e a casa para que pudesse aproveitar seus últimos anos em paz.
Embora pensasse muito a respeito, sair de casa e mandar tudo para “aquele lugar” não era uma opção. Naquele tempo, jovens de classe média no Brasil só saíam de casa quando achavam um bom trabalho ou quando se casavam. Na Zona Sul carioca, ninguém jamais consideraria dividir um apartamento com amigos ou alugar um quarto na casa de estranhos. Mesmo se tivesse resolvido, pesquisando os classificados nos jornais descobri que os poucos empregos disponíveis para gente sem qualificação e sem experiência pagavam menos que a minha mesada.
A tensão em casa foi escalando até chegar a um patamar insano. Quando ficou insuportável, conseguimos chegar a um acordo. Eu abandonaria meu curso de Economia para seguir meu plano original de estudar cinema. Para mim, essa escolha me colocaria minimamente de volta nos trilhos, para eles a opção era melhor do que eu largar tudo e ficar em casa de vagabundagem. O plano era tentar uma vaga em uma faculdade de cinema em São Paulo.
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Alheia aos dramas familiares, meus e os de muitos outros, a intensidade da vida no Rio seguiu em frente. havia novidades e a estrela da hora era o grupo de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone. De várias maneiras, eram o que a nova geração estava precisando: uma voz própria. Sua inovação é que eram “gente como a gente”, meninos e meninas de classe média aprendendo a viver e a lidar com as dificuldades dentro e fora de casa. Diferente do que rolou em gerações passadas e o que ainda rolava nas universidades, eram totalmente apolíticos.
Esse grupo era icônico para as mudanças que estavam acontecendo na cena cultural carioca e, consequentemente, na de todo o Brasil. Influenciados por Monty Python e pela contracultura em geral, o Asdrúbal era uma versão mais inteligente, inclusiva e bem humorada dos surfistas e dos roqueiros. A trupe, em sua maioria era formada por atores e diretores amadores da Zona Sul carioca, se lançou com a peça “Trate-me Leão”. Por sua postura atrevida e engraçada, tocando em assuntos fáceis de se identificar, a peça foi um tremendo sucesso e viajou pelo Brasil afora.
O Asdrubal entrou – ou melhor, não entrou – na minha vida da seguinte maneira:
Estava em casa já de calção preparando para ir ao Nove num glorioso sábado de praia. Meus pais tinham ido para Teresópolis e estava batendo papo com Dona Isabel na cozinha almoçando o meu habitual bife acebolado com arroz e feijão. A televisão estava ligada e, de relance, vi alguns dos atores do já famoso Asdrúbal dando uma entrevista. No final, anunciaram que estavam oferecendo aulas de teatro grátis e pedindo a todos que participassem.
Aquilo chamou minha atenção e fiquei tentado. Enquanto fui andando descalço para a praia fiquei pesando os prós e os contras de participar do curso ou não. Aquilo poderia ser uma oportunidade para conhecer gente parecida comigo e, quem sabe, uma chance para me aproximar do objetivo de fazer cinema. Porém, no fim das contas, meu instinto de rato de praia falou mais alto, dizendo que aquilo era coisa de usuário de fio dental e de caretinha tirador de onda do tipo que queria evitar. Além do mais não dava para ator, com e sem trocadilho.
Aquele homofobismo juvenil foi um dos maiores erros da minha vida. Muitos dos maiores atores e roqueiros cariocas da minha geração, como a banda Blitz, o cantor Cazuza, comediantes como Luís Fernando Guimarães, a atriz e apresentadora Regina Casé, entre outros, surgiram daquele curso ou eram os professores lá.
A resposta foi forte e com tantos alunos inscritos separaram a galera em grupos. Bruno, um amigo meu, entrou para um deles. Ainda que não fosse um ator nato, tinha uma câmera de vídeo e talento para filmar e editar. Para o Asdrúbal, os dois atributos foram um presente dos deuses e começaram a lhe pedir que filmasse as peças e outros eventos. O Asdrúbal cresceu e o Bruno cresceu junto. Uma década mais tarde, Bruno tinha ganho vários prêmios como melhor diretor de vídeo musical na MTV Brasil e é hoje um dos maiores produtores do país.
Richard Klein, formado em economia pela UFRJ, autor do livro Samba Perdido, radicado em Londres, artista de Efeitos Especiais para cinema, eco-anarquista.