Capítulo 32
“Porque és o avesso do avesso do avesso” Caetano Veloso - Sampa
A inabilidade dos meus pais em me enquadrar e minha fixação na guitarra elétrica foi gerando uma uma pressão ansiosa que ninguém aguentava mais. Me tornei agressivo, Rafael não me dirigia a palavra e Renée surtava direto por tudo e por nada que eu fazia. Até a Sarah e a dona Isabel passaram a me olhar de cara fechada. O plano original era ir para São Paulo para fazer o vestibular e farto daquele clima, resolvi ir meses antes do tempo planejado. Quando anunciei a decisão, não houve drama, talvez porque eles achassem que se ficasse fora, numa outra cidade, quem sabe fosse levar a vida mais a sério.
De qualquer forma, sair de casa de vez era um momento importante, um grande salto no escuro. Todos, inclusive eu, sabíamos que dali para frente tudo seria diferente e nossas apreensões traziam os nervos à flor da pele.
Parti tarde da noite. Escolhi aquele horário porque chegaria de manhã cedo e teria o dia seguinte inteiro para procurar a casa do estudante universitário e me instalar lá. Apesar de ter dito em casa que seria mole arranjar um lugar, não tinha conseguido confirmar. Era um risco que estava tomando. Apesar de ter o número telefônico, o contato era impossível; ou a linha ficava ocupada direto, ou ninguém atendia, ou alguém atendia e me deixava esperando para sempre, ou simplesmente atendia, dizia que não podia dar a informação e desligava na minha cara.
Embora a rodoviária estivesse vazia, ainda havia uma fila no balcão para São Paulo. Enquanto esperava, do nada, um cara de trinta e pouco anos, bem arrumado, veio me perguntar se queria uma carona. Disse que não.
“Tô legal aqui, minha vez já tá chegando, mas obrigado por oferecer.”
Ele insistiu: “Não precisa agradecer, seria um favor que você me faria.”
Apesar da negativa, ele insistiu. “Tive que ir visitar minha mãe que está doente no Espírito Santo . Estou na estrada há doze horas e com sono. Preciso de alguém para ficar conversando para não dormir.”
“Olha, entendo, mas não estou a fim.”
“Mas, por quê?”
Sem conseguir achar uma resposta convincente, mas querendo me livrar da aporrinhação respondi “Estou pegando um ônibus leito, tenho que dormir na viagem. Amanhã tenho um encontro importante.”
“Ônibus leito?! É muito caro! Meu carro é de graça e é confortável.” Ele tirou a carteira. “Está vendo isso aqui, é a minha carteira de médico. Sou cardiologista registrado, está vendo? No Hospital Albert Einstein, conhece?”
Até eu conhecia o Hospital Albert Einstein. A carteira me pareceu verdadeira e minha vez na fila estava chegando. Sentindo a vacilação, o cara continuou: “Você deve estar com medo, achando que eu sou um maluco, né? Eu pensaria a mesma coisa, mas não se preocupe, sou do bem! Olha, te levo até o carro e você pode revistar à vontade.”
“Meu irmão, não tenho medo de nada!” Estava começando a mudar de ideia. O cara parecia mesmo um médico estressado e eu era maior do que ele, o que me garantiria se rolasse algum problema. Além do que, uma passagem de ônibus leito equivalia a umas cinco ou seis refeições. “Vamos ver teu carro para ver qual é.”
Na ida ele não parava de me agradecer e de repetir que era médico, que tinha que trabalhar cedo no dia seguinte, que a mãe estava doente no Espírito Santo e que precisava de alguém para conversar para ficar acordado. O único problema é que parecia acordado demais para alguém que se dizia cansadíssimo. Talvez fosse a ansiedade, café, sei lá.
Chegamos no estacionamento e paramos um Monza azul escuro em ótimo estado. Ele abriu a porta e colocou os bancos para frente. “Pode examinar se tem alguma coisa aí dentro. Aqui, dá uma olhada no porta luvas, não tem nada. Olha debaixo dos bancos, vai lá, faço questão.”
Depois ele abriu o porta-malas. “Dá uma olhada aqui. Viu? Nem mala tem, fui de última hora para ver minha mãe e não levei nada. Olha aqui no estepe; só tem estas ferramentas, mas isto não é arma, é obrigatório. Quer que eu abra a frente para checar o motor?”
“Não, tá na boa.” Cocei a cabeça, achando que o cara estava nervoso demais para o meu gosto. “Mas não sei. ”
“Olha, tudo bem, se você não quiser ir, entendo, mas diz logo porque senão vou ter que voltar na fila, em meia hora os ônibus param de circular.”
Realmente, não havia nada estranho no carro, a história era plausível, pensei de novo no preço da passagem e pensei: “Foda-se…”
Virei para o cara e disse: “Então tudo bem, vamo nessa.”
O doutor agradeceu todo sério. “Muitíssimo obrigado, como te disse, é um favor que você me faz. Mas chega de conversa, né? Vamos embora.”
Coloquei a mochila no banco de trás, entramos no carro, fechamos as portas, ele virou a chave na ignição, o motor ligou e saímos do estacionamento rumo à via Dutra.
“Por sinal meu nome é Ivan e o teu?”
“Richard.”
“Prazer Richard, se importa se eu ligar o ar-condicionado?” Eu não ia dizer que não, estranhando estar viajando num carro confortável que não fazia parte do plano. Depois de um tempo ele quebrou o silêncio desconfortável. “Você gosta de que tipo de música? Pode pegar a caixa de cassetes debaixo no banco de traz, fica a vontade de colocar o que você quiser.”
“Valeu, mas eu estou legal.”
“Se importa então se eu ligar o rádio, então?” Ele colocou numa estação de música ligeiramente brega. Não gostei, mas por estar de carona fiquei quieto. Na subida da serra já estávamos conversando. Quando chegamos em cima, o ar já estava mais frio, demos uma parada num posto semi vazio, tomamos café, comi um sanduíche e voltamos para o carro. Na altura de Resende, a metade do caminho, o doutor disse que estava cansado.
“Não estou conseguindo dirigir, deveria ter tomado mais café. Os olhos já estão quase fechando. ”
“Sem problemas, estou acordadão, tenho carteira de motorista, quer ver? Para o carro e a gente troca. ” Falei, animado com a ideia de pegar a Dutra à noite.
Ele retrucou com um olhar estranho e sorriu. “Sabe o que é? Estou doido para passar a noite num motel contigo. ”
A ficha caiu. Me senti um idiota completo por ter caído no papo, mas o que ele queria não ia rolar de jeito nenhum.
“Não senhor”, respondi resoluto. “Estou aqui pela carona, não tem nada de noite gay no plano!”
Dali em diante rolou uma batalha de insistência versus recusa.
“Mas como é que você pode dizer que não gosta de uma coisa que nunca provou?’
“Amigo, nunca provei nem vou provar. E você? Nasceu veado ou foi porque apanhava muito na escola?”
“Isto não vem ao caso, mas não ia ser legal a gente ficar tirando a cueca um do outro num quarto gostoso?”
“Meu irmão, dá para parar o carro na próxima parada?”
“Mas daqui a pouco estamos chegando!”
“Então que porra é essa de parar em motel?”
“É que eu estou exausto!”
“Se você está exausto deixa eu dirigir, olha a minha carteira aqui!”
O doutor não se dava por vencido e comecei a me preocupar com sua recusa de parar. Quando amanheceu, já estávamos nos aproximando da periferia de São Paulo. Finalmente convencido de que não ia acontecer nada, ele parou o carro num ponto de ônibus. Dando graças por ser mais forte que aquele maníaco pentelho, peguei minhas coisas e saí daquele inferno.
Assim que minha atenção se desviou do carro desaparecendo na rodovia e se voltou para os arredores, percebi que estava num lugar que parecia uma favela. A próxima hora e meia seria um curso intensivo de realidade urbana brasileira. Já tinha subido favela para comprar bagulho, mas era completamente ignorante sobre o dia a dia de pessoas humildes e trabalhadoras. Teoricamente, sempre soube que tinham uma vida difícil, mesmo assim, foi um choque ver, em primeira mão, o que se passava.
Ainda estava escuro e frio, mas o ponto de ônibus descoberto já estava amontoado. Havia lanchonetes próximas, todas muito simples, onde tinha gente tomando café da manhã. O aroma da bebida sendo o único conforto na área.
As feições da maioria, senão todas as pessoas ali, eram Nordestinas. Com certeza ou eles ou os pais tinham saído de lá em busca de uma vida melhor. Seus rostos pareciam com os que tinha visto em minhas viagens, mas a falta de sol, o frio, os efeitos da vida na metrópole tinham tido seus efeitos. Suas peles já estavam cinza, suas caras com uma expressão automata. Moloch estava se alimentado da sua vivacidade.
Cansado, chateado com a minha burrice em ter aceito aquela carona, com frio e com um pouco de fome fiquei esperando o ônibus. Ao olhar para aquele povo, não podia deixar de acreditar que uma força maior havia me colocado ali para me mostrar o outro lado da moeda das minhas aventuras de verão.
Quando o ônibus chegou, me apertei com os outros para entrar na condução já lotada. Sem poder mexer um dedo, passamos pelas enormes fábricas da Ford, Volkswagen, Gessy Lever e outras multinacionais. Alguns passageiros saltaram nesses complexos isolados, mas o destino da maioria era o mesmo que o meu: o Centro da Cidade. Amontoados como sardinhas numa lata por uma hora e meia, nos contorcendo quando alguém tinha que passar para descer, tive uma amostra da rotina diária daquelas pessoas. Elas teriam que fazer a mesma viagem de volta à noite e teriam que suportar aquelas mesmas condições quase todo santo dia de suas vidas. Tudo isso para receberem um salário miserável e serem tratados como cidadãos de segunda categoria em seus empregos, sem qualquer perspectiva de melhora.