Capítulo 31

 

“A gente somos inútil.”
Inútil - Ultraje a Rigor

 

Voltei para casa exausto. Dois dias depois, quando me recuperei, ao invés de estar contente por ter vivido uma viagem épica e de poder me deleitar novamente nos confortos que sempre tinha considerado como dados, a sensação foi de estranhamento. Ter uma empregada para arrumar minhas coisas, um quarto só para mim e comida sempre à disposição sem que precisasse trabalhar para nada daquilo parecia errado. Apesar da mordomia, me sentia como um animal enjaulado numa existência protegida que agora parecia limitada e limitante. 

O clima estava péssimo. Renée e Rafael, ansiosos e um tanto decepcionados comigo, achavam que minhas aventuras tinham ido longe demais. estava perdendo um tempo precioso; precisava tomar um rumo na vida, fazer sentido, mudar de visual e de atitude. Para um casal já idoso e com o passado complicado deles, ver o filho largado daquela maneira era difícil . O método paterno de mostrar descontentamento foi o de sempre; passar semanas sem me dirigir uma palavra, uma postura passivo-agressiva à qual já tinha me acostumado. Do lado da materno, muita gritaria e ofensas. 

A liberdade que vivi no Nordeste era incompatível com aquela realidade. Não era só em casa; na faculdade e nos outros círculos era como se todos tivessem voltado para a sala de aula menos eu. Nada me interessava e passei a achar tudo e todos insuportáveis. Me sentia como Ícaro, caído dos céus por ter voado alto demais, ou Gulliver, imobilizado por liliputianos por não caber em seu mundinho. 

Lá fora a situação também estava pesada. Por conta da crise econômica, o instinto de gado era rei e todos estavam mais caretas do que nunca. Para manter minha identidade e meus princípios vivos, tinha que nadar contra uma corrente de medo e de conformismo. Visto de fora, parecia que havia perdido o contato com o que se considerava a realidade do dia a dia; um cidadão de segunda classe a ser evitado.

Foi difícil voltar às aulas. O curso estava se aprofundando em teorias micro e macroeconômicas, cálculo e outras matérias exigentes. Completamente fora de sintonia, não tinha nem a concentração nem a vontade para continuar. A necessidade de digerir o que estava acontecendo, meu sonho antigo de ser diretor de cinema, a descoberta da música, a falta de pessoas com quem me identificasse, a distância da minha família e dos amigos, a falta de um relacionamento amoroso para ajudar a amenizar o caos; tudo era difícil. 

Precisava de tempo e espaço para refocar. Pedi a meus pais para que me deixassem passar um ano trabalhando em um kibutz, um tipo de comunidade agrícola anarquista em Israel, mas a resposta foi um sonoro não. Para eles, o tempo de diversão e divagações tinha se esgotado. Agora era hora de virar homem e trabalhar duro para construir um futuro. É claro que os argumentos faziam sentido mas não encontrava nem forças, nem razão para pairar acima daquele mar de confusão e capitular.

Para complicar as coisas, um dia Rafael, já nos seus 80 anos, passou mal ao sair para almoçar no escritório, desmaiou no elevador e seus funcionários, assustados, o levaram depressa a um hospital. Quando fomos vê-lo no CTI, os médicos disseram que seu coração estava fraco. Ainda que em retrospecto isso fosse previsível dado ao stress que estava passando, o episódia e a notícia pegaram a família de surpresa. 

Meu velho estava enfrentando o caos econômico aos trancos e barrancos. Continuava com suas andadas solitárias de madrugada na praia de Ipanema durante a semana e nos fins de semana repousava na tranquilidade de Teresópolis. Isso, e uma dieta saudável o tinham levado a uma idade avançada com saúde e lucidez, mas estava difícil. O paraíso tropical onde havia desembarcado trinta anos atrás estava irreconhecível. Após tantas conquistas, o Brasil parecia agora estar reclamando tudo que lhe havia dado. Com uma inflação mensal beirando os trinta por cento ao mês e uma estagnação econômica devorando o país, tudo parecia de cabeça para baixo. 

Como tantos outros, o negócio dele estava em dificuldades. Do seu ponto de vista, a família estava em frangalhos; eu tinha enlouquecido e, apesar da Sarah – ainda a sua grande esperança – estar indo bem em sua carreira de dentista, tinha entrado em um relacionamento tóxico e não estava falando com nenhum de nós. O sítio em Teresópolis, que deveria ser o lugar onde aproveitaria sua aposentadoria, tinha se tornado um problema de manutenção sem fim, um ralo financeiro e mais uma pedra no seu sapato.

Apesar das recomendações do médico, meu velho não se permitia descansar. Se parasse de trabalhar o estilo de vida da família desapareceria. Viciados que estávamos no seu esforço, a gente achava ele estaria ali para sempre provendo o nosso sustento e nao davamos valor ao seu martírio. Quanto a mim, estava absorvido demais comigo mesmo para oferecer qualquer tipo de ajuda e, de qualquer forma, ele descartava de cara qualquer sugestão que eu desse – como a de vender o negócio e a casa para que pudesse aproveitar seus últimos anos em paz.

Embora pensasse muito a respeito, sair de casa e mandar tudo para “aquele lugar” não era uma opção. Naquele tempo, jovens de classe média no Brasil só saíam de casa quando achavam um bom trabalho ou quando se casavam. Na Zona Sul carioca, ninguém jamais consideraria dividir um apartamento com amigos ou alugar um quarto na casa de estranhos. Mesmo se tivesse resolvido, pesquisando os classificados nos jornais descobri que os poucos empregos disponíveis para gente sem qualificação e sem experiência pagavam menos que a minha mesada. 

A tensão em casa foi escalando até chegar a um patamar insano. Quando ficou insuportável, conseguimos chegar a um acordo. Eu abandonaria meu curso de Economia para seguir meu plano original de estudar cinema. Para mim, essa escolha me colocaria minimamente de volta nos trilhos, para eles a opção era melhor do que eu largar tudo e ficar em casa de vagabundagem. O plano era tentar uma vaga em uma faculdade de cinema em São Paulo.

*

Alheia aos dramas familiares, meus e os de muitos outros, a intensidade da vida no Rio seguiu em frente. havia novidades e a estrela da hora era o grupo de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone. De várias maneiras, eram o que a nova geração estava precisando: uma voz própria. Sua inovação é que eram “gente como a gente”, meninos e meninas de classe média aprendendo a viver e a lidar com as dificuldades dentro e fora de casa. Diferente do que rolou em gerações passadas e o que ainda rolava nas universidades, eram totalmente apolíticos. 

Esse grupo era icônico para as mudanças que estavam acontecendo na cena cultural carioca e, consequentemente, na de todo o Brasil. Influenciados por Monty Python e pela contracultura em geral, o Asdrúbal era uma versão mais inteligente, inclusiva e bem humorada dos surfistas e dos roqueiros. A trupe, em sua maioria era formada por atores e diretores amadores da Zona Sul carioca, se lançou com a peça “Trate-me Leão”. Por sua postura atrevida e engraçada, tocando em assuntos fáceis de se identificar, a peça foi um tremendo sucesso e viajou pelo Brasil afora.

O Asdrubal entrou – ou melhor, não entrou – na minha vida da seguinte maneira:

Estava em casa já de calção preparando para ir ao Nove num glorioso sábado de praia. Meus pais tinham ido para Teresópolis e estava batendo papo com Dona Isabel na cozinha almoçando o meu habitual bife acebolado com arroz e feijão. A televisão estava ligada e, de relance, vi alguns dos atores do já famoso Asdrúbal dando uma entrevista. No final, anunciaram que estavam oferecendo aulas de teatro grátis e pedindo a todos que  participassem.

Aquilo chamou minha atenção e fiquei tentado. Enquanto fui andando descalço para a praia fiquei pesando os prós e os contras de participar do curso ou não. Aquilo poderia ser uma oportunidade para conhecer gente parecida comigo e, quem sabe, uma chance para me aproximar do objetivo de fazer cinema. Porém, no fim das contas, meu instinto de rato de praia falou mais alto, dizendo que aquilo era coisa de usuário de fio dental e de caretinha tirador de onda do tipo que queria evitar. Além do mais não dava para ator, com e sem trocadilho.

Aquele homofobismo juvenil foi um dos maiores erros da minha vida. Muitos dos maiores atores e roqueiros cariocas da minha geração, como a banda Blitz, o cantor Cazuza, comediantes como Luís Fernando Guimarães, a atriz e apresentadora Regina Casé, entre outros, surgiram daquele curso ou eram os professores lá.

A resposta foi forte e com tantos alunos inscritos separaram a galera em grupos. Bruno, um amigo meu, entrou para um deles. Ainda que não fosse um ator nato, tinha uma câmera de vídeo e talento para filmar e editar. Para o Asdrúbal, os dois atributos foram um presente dos deuses e começaram a lhe pedir que filmasse as peças e outros eventos. O Asdrúbal cresceu e o Bruno cresceu junto. Uma década mais tarde, Bruno tinha ganho vários prêmios como melhor diretor de vídeo musical na MTV Brasil e é hoje um dos maiores produtores do país.

*

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