Samba Perdido – Capítulo 30 – parte 02

Aquela rotina foi demais para o sistema. No último dia de Carnaval estava totalmente acabado. Numa rajada de sanidade, resolvi dar uma volta pela cidade para desintoxicar. Eram umas onze da manhã, e fui curtir o sossego das vias coloniais mais afastadas, longe do carnaval. De short e sem camisa, saí explorando a cidade até chegar a uma rua que terminava na subida do viaduto que ligava Olinda a Recife. Não dava para continuar dali, não havia passagem para pedestres. Vendo aquilo como um desafio, alguma força maluca me levou a arriscar uma travessia pela amurada desprotegida.

Sem ter nada em que pudesse segurar, segui pelo concreto estreito que chegava a ficar a uns vinte metros de altura sobre uma avenida movimentada. Qualquer tropeço seria fatal. Nunca tive um bom senso de equilíbrio mas na hora isso não pareceu importar. Olhei em frente e, como um equilibrista numa corda bamba, cheguei ao outro lado. Não estava sob o efeito de nada e nunca consegui entender o que me levou a correr aquele risco. Seriam tendências suicidas? Estava tentando provar alguma coisa a mim mesmo? Excesso de autoconfiança? Ou simplesmente não estava nem aí? Devia havet moleques que faziam isso todo dia.

Cruzei o viaduto sem problemas e desci numa rua calma, também colonial. Na primeira janela aberta, deparei com uma mãe ajudando seu filho com o dever de casa, os dois alheios à minha confusão mental e ao barulho ensurdecedor do trânsito. Meio atonito, parei para olhar, os dois me viram, demos uma encarada intensa, eles talvez com medo do maluco parado na janela e eu tentando entender como aquela cena pacata e racional era possível. Segui em frente me perguntando se havia uma mensagem do universo naquela cena.

Voltei para Olinda de ônibus e assim que desci de volta aos braços do Carnaval que já estava pegando fogo. Fiz uma parada na casa VIP onde as pessoas estavam se preparando para sair num bloco famoso. Como era a saidera, a Australiana ruiva caprichou na tatuagem de verão e meu rosto ficou fantasiado do que estava sentindo. Todos prontos e calibrados, saímos para rua parecendo personagens surrealistas. A maioria foi para o bloco mas prefiri me aventurar sozinho. Não demorou muito para agarrar uma gostosa local e a levar para o parque onde os casais iam. Tinha tido varias, nenhuma tinha a magia quase inocente da Gê, mas deu para matar a saudade.

Quando caiu a noite, fui com ela a um bar encontrar seus amigos que acabei achando caretas demais. Depois que se foram, comecei a conversar com uns caras meio barra pesada da mesa do lado. O papo se tornou bizarro e os dois acabaram me convidando para viajar de graça de navio para Europa levando cocaína. Sentindo aquilo pesado demais, saí fora e voltei para a confusão das ruas onde cruzei com um colega de sala da faculdade. Felizes com a coincidência, saímos abraçados atrás de um bloco. Ficamos na farra até às quatro da manhã. Com as ruas esvaziando, fomos para um bar deserto onde ficamos batendo papo até ele ir embora.

Naquela altura, o céu já estava ameaçando clarear. Era a hora de dar por encerrado o carnaval. No caminho, cruzei com o Betinho, o filho do prefeito, acompanhado de amigos, subindo a ladeira que estava descendo.

Fiquei surpreso quando ele me chamou do outro lado da rua: “Fala carioca! Tu não é o amigo da Dinah?”

“Sou, e aí? Beleza?”

“Tu tinha um nome gringo, não é mesmo? Richard?”

Me aproximei. “Isso mesmo. E aí? Resolveu sair?”

“Pois é, meu irmão, ser anfitrião é um saco!” Deu para sentir que os amigos estavam a fim de me dispensar, mas para contrariar, ele me convidou “E aí? Bora fumar a saideira do Carnaval ali em cima no parque?”

Não ia perder a oportunidade. “Opa! Vambora!”

Pata irritar seus amigos, ele continuou conversando comigo. “E então, carioca, curtiste a festa? Gostaste do Carnaval de Olinda?”

O cansaço não tinha roubado o bom humor. “A parte que me lembro foi demais, a parte que não me lembro deve ter sido melhor ainda.”

Ele deu um sorriso. “Pois é rapaz, todo ano fazemos uma dessas. A gente abre a casa para os outros se divertirem e se diverte com eles.”

Um dos amigos emendou: “Essa festa é uma tradição do Carnaval de Olinda. Merecia entrar no calendário oficial!”

O Betinho, visivelmente cansado da bajulação, voltou a falar comigo. “Carioca, te garanto que tu vai fechar o Carnaval com chave de ouro.” Ele tirou do bolso uma muda ressacada. “Isto aqui é o famoso Manga-rosa. Tirado do pé faz nem uma semana. Meu primo ali me trouxe direto de Cabrobró. Já ouviste falar?”

“Caralho! Manga-rosa! Nunca pensei que fosse experimentar isso na vida!”

Ele passou para eu dar uma olhada. Um outro amigo falou: “Chega até a ser bonito. Dá uma cheirada para sentir. Não existe melhor!”

O cheiro era fortíssimo. “Isso cheira a bagulho bom!”

“E é! Made in Pernambuco!”

Chegamos no topo do parque e nos sentamos numa escadaria de pedra para esperar o sol nascer.

O primo quebrou o silêncio. “Passa aqui pra eu apertar.”

O cara era um artista, saiu perfeito. “Isso também é uma tradição. O Betinho sempre guarda um para agora.”

“É verdade, a gente faz isso desde moleque. Sempre fechamos o Carnaval com um desses para depois sair no Galo da Madrugada.” Tinha ouvido falar no bloco, era o último do Carnaval.

O primo do Betinho passou o baseado para ele acender. Quando chegou em mim, deu uma onda quase tão forte quanto os cogumelos alucinógenos de Mauá e – como toda boa maconha – dois pegas bastavam.

Ficamos ali, sozinhos com a cidade só para nós. Em pouco tempo o horizonte foi alaranjando até o sol aparecer como um círculo brilhante. Ele foi subindo iluminando de leve a natureza à nossa volta. As cores magníficas, o silêncio e a temperatura amena fizeram aquele momento ser perfeito. Relaxando depois de sorver tanta vida, não só no Carnaval mas no verão inteiro, fiquei em estado de graça.

Estávamos em transe quando, do nada, dois estranhos chegaram e se juntaram a nós. Eram mais velhos, nos seus trinta e poucos, um era louro, grande, de cabelos compridos e com ar de surfista e o outro era musculoso, de camiseta de malhador apertada e com um corte de cabelo estilo escovinha.

O cabeludo puxou conversa: “Barbaridade, que visual incrível!”

Estava na cara que ele era gaúcho só que ninguém estava a fim de papo. Ignoramos, mas eles insistiram.

O outro falou em um inglês com sotaque americano, meio agressivo “Diz para eles que a gente sabe que eles estão chapados, mas que estamos muito mais chapados que eles.”

O gaúcho traduziu e depois explicou: “Esse maluco é americano, não fala uma palavra de português.”

Depois de uma pausa, um dos amigos do Betinho respondeu.

“Não existe esta de estar mais ou menos chapado, estamos aqui curtindo a paz do visual.” E completou em inglês. “Aqui todo mundo aqui fala inglês, relaxa.”

O gaúcho continuou em português “Este americano é tri-louco, grudou em mim e agora que tomamos um ácido ele está mais louco ainda.”

Quando o gaúcho mencionou ácido olhamos em sincronia para os dois, mas a vontade de ficar em silêncio continuou. Talvez por se sentir na obrigação de fazer turistas se sentirem bem-vindos na sua cidade, Betinho se tornou nosso porta-voz.

O cara era um político nato. “Curtiram o Carnaval? Did you enjoy the Carnival of Olinda?”

Quem respondeu foi o Gaúcho “Eu venho todo ano passar o Carnaval com a minha irmã que mora em Recife. O Mark aqui está estacionado em uma base militar no Caribe e veio passar as férias.”

O americano ainda nao tinha entendido que todo mundo ali – talvez com a excessão do gaúcho – falava inglês. A palavra Caribe tinha pescado sua atenção ainda que continuasse a achar que não entendíamos o que estava dizendo.

“Caribbean yeah, Guantánamo! ” Bateu nos braços fortes “Sou um Marine, entende?! Adoro armas, combate e mulheres brasileiras. Fala para eles que eu estive no Vietnã! ”

A palavra Guantánamo tinha deixado todo mundo de orelha em pé. Mesmo assim, a presença deles e o papo eram tão fora de contexto que ficou difícil distinguir se aquilo era verdade ou alucinação. De qualquer forma ninguém estava a fim de rebater o cara em inglês naquela altura. Eu é que não ia me meter.

O gaúcho, sem perceber as nuances da situação continuou no papel de intérprete lisérgico: “Não estou dizendo que este americano é doido?! Agora ele inventou que lutou no Vietnã. ”

Pela idade era impossível, como também era muito pouco provável que estivesse estacionado em Guantánamo. Por outro lado, o físico, a atitude e o corte de cabelo pareciam confirmar que se tratasse de um Marine. Novamente, ninguém falou nada torcendo que eles descessem da nossa nuvem o mais rápido possível.

O americano continuou a nos desafiar, acenou com a cabeça, colocou dois dedos para cima e falou num português fraquíssimo: “Sim, dois anos, eu in Vietnam. ”

O gaúcho estava hiperativo. “Liga não, ele é maluco assim mesmo, faz cara feia, inventa histórias e volta e meia se mete em confusão. No fundo é gente boa, mas o melhor é ignorar a figura.”

Aquilo de absurdo virou chato. Deu vontade de ter um controle de televisão para trocar de canal ou uma tecla para baixar o volume ou fazer os dois desaparecerem. O americano finalmente se deu conta de que a gente não estava na mesma onda e disse ao gaúcho: “Hey buddy! Let’s go! ”

O gaúcho traduziu: “Moçada, a gente vai nessa.”

Os dois partiram da mesma maneira que chegaram e aliviaram o ambiente. Ficamos uns quinze minutos sem falar nada. Alguem acendeu o baseado de novo e quando chegou na vez do Betinho, ele interrompeu o silêncio. “Galera, daqui a pouco o Galo da Madrugada vai sair, vamos lá?”

Todo mundo foi, mas resolvi ficar, minha quota de Carnaval já estava pra lá de preenchida. Agradeci e a gente se despediu. Fiquei ali sozinho, apreciando a beleza de Olinda até a lombra passar. Aquelas loucas primeiras horas da manhã em uma cidade histórica no Nordeste brasileiro marcou a minha despedida de uma época especial; um período de minha vida do qual sempre sentirei saudades.

O Pedro, com quem cruzei apenas uma vez durante o Carnaval, tinha conseguido carona na caravana dos amigos da Carla e ia voltar com eles para o Rio. Voltei sozinho e tive sorte de pegar caronas longas. Quando cheguei em Campos, no Estado do Rio, me dei conta de que tinha gasto todo a grana. Como precisava chegar em casa a tempo do início das aulas, pela única vez na vida, pedi dinheiro a estranhos para completar o dinheiro da passagem de ônibus e para comer alguma coisa; uma situação bem distinta da que tinha rolado na casa do Betinho e uma lição importante de humildade.

voltar

Início

Samba Perdido – Capítulo 30 – parte 01

Capítulo 30

 

"Na Madalena revi teu nome
Na Boa Vista quis te encontrar
Rua do Sol, da Boa Hora
Rua da Aurora, vou caminhar."

Pelas ruas que andei. - Alceu Valença.

 

Não havia celulares na época, o único contato com nossas famílias era uma ligada semanal que faziamos na telefônica da cidade onde estivéssemos – se houvesse uma -, para assegurar que tudo estava bem. Como de praxe, na quinta feira antes do Carnaval, fomos na de Olinda. Quando sua vez chegou, Pedro fez duas ligações, uma para sua mãe e outra para Carla, sua namorada. Hospedada em um hotel em Fortaleza ela veio com a surpresa de que tinha alugado um apartamento em Boa Viagem, no Recife, e que estava vindo de avião no dia seguinte para passar o Carnaval com ele. O Pedro ficou nas nuvens, mas para mim a notícia de que passaria o Carnaval sozinho me deixou puto. Só que no final o resultado foi muito melhor do que podia imaginar.

Para compensar o furo, Pedro me deu o contato da Dinah, uma jornalista que havia conhecido em Porto Seguro. Sua amiga estava hospedada na casa do – nada mais nada menos – filho do prefeito de Olinda. Depois que  saiu sem graça com suas tralhas do quarto, fiquei olhando para a porcaria do papelzinho com o número, pensando se ligava ou não. Só a conhecia de vista, com certeza ia me mandar pastar assim que atendesse. De qualquer forma arrisquei e fui para o orelhão da esquina, Quando atendeu, para minha surpesa, a Dinah me tratou como se fossemos amigos de longa data.

Ela ja estava sabendo “Richard! Claro que me lembro! Quer dizer que o Pedro, aquele galinha, vai passar o Carnaval no bem-bom e te deixou na mão.”

Simpaticíssima, me convidou para passar o Carnaval com ela. “Olha, o pessoal está se encontrando todo dia aqui na casa do Betinho Magalhães. O Pedro te falou quem ele é? Pois é! Por que você não aparece hoje à noite para eu te apresentar ao pessoal? Você vai adorar!”

Fiquei sem jeito de aceitar, mas na sexta feira a noite, inicio do carnaval, não dava para recusar. Anotei o endereço e mais tarde fui encontrá-la do lado de fora da propriedade VIP.

Quando cheguei, a Dinah já estava me esperando do lado de fora. Depois dos beijinhos na bochecha, foi falar com os seguranças que liberaram minha entrada. Lá dentro, pendurada no meu braço ela disse: “Já te arrumei um crachá, querido, este vai ser um Carnaval que você não vai esquecer nunca, o Pedro se deu mal!”

Dinah era uma mulata baixinha e troncuda. Não era das mais bonitas, mas pegaria tranquilo. Contudo, senti que não havia qualquer tipo de atração da parte dela e que estava fazando aquilo por ser genuinamente gente boa. Minha gratidão era imensa.

Animada, ela me deu um tour da casa antiga, imponente e bem conservada. Nos salões, nos jardins e nos corredores haviam convidados numa sofisticação incompatível com os festejos bombando nas ruas. Garçons andavam de um lado para o outro servindo bebidas e canapés. Para quem quisesse algo mais substancial, havia um buffet generoso de comidas frias e quentes com pratos e talheres de primeira linha para consumi-las. A mesa era enorme de madeira talhada e ficava numa sala colonial que parecia uma sala de museu.

Teminamos num saguão cheio de gente graúda, pessoas de fora e de estrangeiros, todos bem mais velhos, vestidos com estilo e conversando com compostura. Ninguém estava de terno por ser o Carnaval, mas estavam todos muito bem vestidos. Preocupado em não fazer a Dinah se arrepender do convite, tinha colocado uma roupa convencional, não era chique mas também não era a de hippie afrescalhado. Circulamos entre os convidados e enturmada, ela saiu me apresentando a todos. “Oi, este é um amigo do Rio, Richard. É filho de ingleses, músico, estudante de Economia e muito legal!”

As socializacões com os recém-apresentados não duravam muito, mas eram educadamente simpáticas. Ela chegou até a me apresentar ao Betinho, o dono da festa que pareceu ter ido com a minha cara.

Depois das apresentações, Dinah foi conversar com um cara por quem achei que estivesse interessada. Sem querer dar uma da mala e ficar na aba dela, pedi licença e fui dar uma volta na festa. Não pude deixar de pensar que aquele lugar e aquela gente seriam o paraíso para o Pedro. Apesar da estranha espécie de justiça divina, estava mais preocupado em curtir a folia nas ruas do que me enturmar naquela festa que prometia ser chata. Na pior das hipóteses, ia comer e beber bem e de graça antes de colocar o pé na jaca. Depois de uns dez minutos, já a ponto de ir embora, fui percebendo que além da fartura de bebidas – whisky, caipirinha, gin com tônica e cerveja – quase indiscretamente, estava rolando de tudo em termos de drogas: tinha gente nos cantos oferecendo lenços com lança-perfume, rodas de cocaína em alguns quartos e o quintal estava fedendo a maconha excelente. Escutei, inclusive, alguem dizer que tinha alguém distribuindo LSD.

Curtindo mais as possibilidades, fui percebendo que motivo da aparencia formal é que depois de se chaparem, a galera mais doida saía para o Carnaval na rua. Quem ficava na casa eram os caretas e os coroas.

Continuei na minha exploração e apos descolar uns pegas numa roda, achei num dos cantos do jardim um grupo de espanhóis que pareciam ter um estilo parecido com o meu. Como eu, estavam um tanto desconfortáveis em meio àquela bizarrice sofisticada. Cheguei junto e puxei papo em um portunhol terrível com um deles que repondeu com simpatia. Conforme os garçons foram enchendo nossos copos com doses generosas de whisky, fomos ficando mais desinibidos.

“Mira, conoces el dueño de esta fiesta?”

“Mais ou menos, soy convidado de uma convidada, compreendes? e ustedes?”

“Hombre, somos nadie, dissimos que trabajamos en el consulado y nos deran permisso. Que tontos!”

Cai na gargalhada.

“Sabes quien es el dueño?” Me perguntou um outro.

“Es el filho do prefeito de Olinda, entiende? Hijo del prefecto!?”

“Ah si, hijo del alcaide! Hoder! Que loco!” O Espanhol virou para os amigos para contar o que tinha acabado de ouvir.

Ficaram espantados e acharam engraçado ao mesmo tempo. Uma garota, bonita, falou: “Puta madre! La casa ni es del alcalde, es de su hijo! Como tienen plata estos cabrones!”

Já amigos, quando nos sentimos calibrados para a folia saimos da festa e fomos nos juntar à massa nas ruas já tomadas pelos blocos. Como a maioria dos outros convidados, a gente só voltava de vez em quando para um “pit stop”.

*

A festa durava o carnaval inteiro. Tinha perdido a Dinah de vista, mas com carta branca para entrar e sair na hora que quisesse, minha rotina não poderia ser mais estranha. Acordava no quarto alugado, que apesar da localização privilegiada mais parecia o de um barraco, e ía para uma das melhores casas da cidade para tomar café e “fazer a cabeça”. Podia chegar na hora que quizesse já que buffet do café de manha ficava à disposição até as duas da tarde. Depois dele, ficava conversando com aquela turma interessante e amiga de verdade. Por volta das quatro da tarde saíamos todos para pular um dos melhores carnavais do mundo. Havia duas meninas Australianas que curtiam pintar as caras dos outros e por isso saíamos para a rua parecendo a turma do Batman.

Lá fora, nos dipersávamos, nos encontrando ocasionalmente na confusão ou quando retornávamos para fazer os reabastecimentos necessários. No carnaval, a qualquer hora do dia, as ruas ficavam abarrotadas de gente de todas as classes sociais, cores e provêniencias consumidas pela loucura coletiva do frevo. O tempo todo me esbarrava com conhecidos; gente das várias paradas no litoral, amigos do Rio, os espanhóis do casarão, enfim com todo mundo menos o Pedro, que sumiu e não estava fazendo falta nenhuma, e a Dinah que devia estar curtindo um romance cm o cara da festa.  Longe dos blues existenciais de Canoa Quebrada, me perdia naquela doideira e ficava até o amanhecer para depois voltar, tal como Cinderela, ao covil miserável onde tirava algumas horas de sono.

Voltar

Inicio

Samba Perdido – Capítulo 29

Capítulo 29

 

“Não tenho medo do escuro
Mas deixe as luzes acesas agora."

Tempo Perdido - Renato Russo


Acordamos e percebemos meio sem jeito que os gaúchos tinham voltado e tinham deixado a gente ficar com o quarto. Era cedo, todos estavam dormindo, digerindo a noitada boa. Tomando cuidado para não fazer barulho, continuamos onde tínhamos parado na noite anterior.

Revitalizados, saímos em silêncio e fomos para praia curtir a manhã. Só que na luz do dia, não rolou a felicidade prometida. Quando começamos a nos comunicar por meio de palavras,  descobrimos que éramos incompatíveis. Para ela, eu era um garoto mimado da Zona Sul do Rio de Janeiro, perdido no meio de um exercício de autoconhecimento. Para mim ela era uma menina desinteressante de uma cidadezinha próxima, preocupada em voltar logo para casa porque sua mãe a queria na loja da família naquela tarde. Quando nos despedimos, sabíamos que o relacionamento tinha durado apenas aquela noite. No fim de semana seguinte, a vi andando de mãos dadas com um dos gaúchos. Não me importei. O momento havia sido meu, embora a garota não fosse mais.

Por sua vez, Pedro tinha deixado de ser de muitas e tinha arrumado uma namorada. Carla era uma lourona de farmácia de trinta e muitos anos e marchand no Rio. Junto com a entusiasmo inicial havia o encantamento com a turma dela, possíveis novos companheiros de viagem, que estavam subindo a costa nordestina em caravana. Era um pessoal mais velho, descolado, que trabalhava em jornalismo, publicidade e televisão.

Sem ter como me aproximar deles, sem muito saco para as gauchices dos gaúchos e cansado dos joguetes do Pedro, passei a andar com os músicos e a malucada do artesanato. Mas logo que percebi, tinha entrado num lugar estranho. Por conta de um elitismo que rolava mesmo entre os mochileiros, aquele grupo era tido como o letárgico “clube dos hippies perdedores”. Se tornar parte dele era como ser transferido para a área dos detentos difíceis num sistema penitenciário invisível.

A verdade é que quanto melhor conhecia a galera do circuito de mochileiros no Nordeste, mais percebia que ali não tinha nada de alternativo. Fora os discípulos teleguiados do Rajneesh, ninguém tinha nada a dizer. O negócio era tirar onda. A única diferença entre eles e os caretas de sempre, era a sua crença de que seus cortes de cabelo diferentes e suas roupas transadas os faziam melhores e mais legais do que o resto. Esses eram os  anos oitenta, o início da era do individualismo exacerbado.

De repente isolado num território estranho, mesmo que maravilhoso, me vi inundado por um senso de estranhamento. Havia a contradição de que era para estar contente, aproveitando os melhores dias de minha vida talvez no melhor país do mundo para isso. Do lado de fora havia sol e curtição, mas do lado de dentro a coisa era muito diferente. A tempestade econômica, a carência afetiva, o isolamento, o beco existencial sem saída e o egoísmo como a matéria prima do tecido social faziam chover e às vezes trovejar.

Numa tarde, Pedro e eu nos sentamos na praia para conversar. Ele contou que a coisa estava indo bem entre ele e a Carla mas que não tinha lugar para ele na caravana. Sabiamos que cada um estava procurando coisas diferentes naquela viagem, mas chegamos à conclusão de que apesar daquilo estávamos juntos e seguiríamos com o plano original. Eu iria ter que aturar um hippie de araque se esforçando para parecer descolado para conseguir o que queria, enquanto ele iria ter que engolir com um cara que se julgava um hippie de verdade, mas que havia perdido a noção da realidade.

Dando sequência à aventura, depois de Canoa Quebrada iríamos começar a descer de volta para casa. O Carnaval estava chegando e íamos passá-lo em Olinda. A conversa fez a amizade voltar e depois das brincadeiras de sempre ficamos sem poder esperar pela hora de pular o frevo nas ruas coloniais.

*

Antes de voltar para a terra do melhor carnaval da minha vida, resolvemos parar por alguns dias em Natal. Três dias depois, lá estávamos nós na estrada de novo, mais bronzeados que nunca e de alma lavada depois de um mês e meio sob o sol do Nordeste. Foi muito bom sentir mais uma vez o vento e a liberdade dos caminhões na rodovia.

Natal se mostrou tranquila e maravilhosa. Sendo o ponto mais próximo entre a África e a América do Sul, sua localização era estratégica. A cidade tinha servido como base para navios e aviões americanos durante a segunda Guerra Mundial e ainda havia uma forte presença militar. Talvez por isso foi a cidade mais ordeira que visitamos. O albergue para estudantes foi também o melhor em que ficamos, com quartos modernos, limpos e amplos. Com suas ruas calmas, Natal mostrava o que o Brasil poderia ter sido caso “Ordem e Progresso”, o lema positivista da bandeira brasileira, tivesse sido seguido.

Após duas noites na Casa dos Estudantes fomos acampar na praia da Redinha, na época um lugar quase selvagem do outro lado do rio Potenji, que bordeia a cidade. A areia branca e fina de suas dunas enormes mais tarde faria de lá um dos melhores lugares do mundo para a prática do kitesurf e um cenário ideal para a gravação de vários comerciais de praia, nacionais e internacionais. Por ficar no ponto onde o continente Sul Americano se curva para o oeste, o vento na região era forte e as ondas eram de longe as melhores que vimos na costa nordestina. O problema era que a água era infestada de caravelas, um tipo de água-viva cujos tentáculos causavam uma ardência de dar febre; daí apesar de estarmos doidos para pegar jacaré preferimos ficar na praia bebendo cerveja.

Por causa de sua aura militar, Natal não era bem cotada no circuito mochileiro. Este porém ficou evidente na praia da Redinha onde fora os pescadores nativos e algumas famílias da capital que tinham casas de veraneio ali, não tinha mais ninguém. Apesar de lindíssimo, o agito do lugar era inexistente. De qualquer forma, a experiência deu uma ideia de como deve ter sido explorar a costa Nordestina em gerações anteriores.

*

Não aguentamos a calmaria e voltamos no dia seguinte. O bom daquela pausa foi que caiu como uma férias das férias. Quase não tínhamos se visto em Canoa Quebrada e aproveitamos para colocar as coisas em dia. Entre outros assuntos falamos sobre dinheiro e, para nossa surpresa, descobrimos que havíamos gastado bem menos do que o previsto. Como prêmio pela frugalidade, resolvemos nos dar de presente uma passagem de ônibus até o Recife.

Na manhã seguinte, num raro dia nublado acordei cedo e me ofereci para ir à rodoviária comprar as passagens. Como viajaríamos naquela mesma noite, levei a mochila para já deixá-la no guarda-volumes.

Saí pelas ruas semi desertas achando graça da sensação que causava pelo visual. Na rodoviária, na hora de pagar as passagens a atendente disse que não dava para comprar o bilhete do Pedro porque não estava com sua identidade. Irritado, insisti e ela acabou me aconselhando a tentar pegar uma autorização na delegacia de polícia da estação. Fui lá mas a porta estava trancada. Sem ter nada programado para aquele dia, fiquei esperando alguém chegar. Eram umas onze da manhã e por volta das onze e meia um homem magricelo, de barba por fazer e cabelos grisalhos de uns cinquenta e poucos anos apareceu.

Enquanto tirava as chaves do bolso, perguntei: “O senhor é o delegado da estação?”

O cara me olhou de cima a baixo e respondeu meio seco e estranho. “Sou sim, mas se o senhor quiser falar comigo vai ter que ser lá dentro.”

Pelo bafo dava para sentir que estava bêbado, a ponto de se esforçar para colocar a chave na fechadura. Depois de alguns segundos embaraçosos, finalmente conseguimos entrar. Antes que começasse a explicar o motivo de estar ali, ele me mandou colocar minha mochila na mesa e abrir.

“Abre esta merda agora.”

Sem acreditar no que ouvi e querendo sair logo com a autorização do Pedro concordei.

Enquanto o cara foi jogando as coisas no chão falei serenamente: “Depois que o senhor acabar a revista, posso pedir uma autorização de viagem para o meu amigo? Estou sem a carteira de identidade dele. Por isso vim aqui.”

“Autorização é o caralho, maconheiro!” O cara me empurrou de lado e começou a tirar as coisas, claro sem encontrar nada. Infelizmente – mas felizmente para a ocasião – o veneno de Maceió tinha acabado em Canoa Quebrada. Frustado e com um monte de roupa suja espalhada na mesa e no chão, o cara não desistiu.

“Cadê a porra da maconha?!”

“Eu não fumo isso. Pode procurar à vontade, o senhor não vai achar nada.”

“Ah, e isso daqui?” Ele tirou duas conchas enormes que tinha achado na praia e que ia dar de presente  para minha mãe e para a Dona Isabel.

“Isso aí são conchas.” Já me segurando para não ridicularizar o cara.

Ele deu uma sacudida para ver se caia alguma coisa de dentro delas, mas nem um barulhinho.

“Agora a gente pode falar sobre a autorização de viagem?”

“Aqui não tem autorização de viagem nenhuma.” Ele me deu um olhar torto e desafiador. “Essas conchas estão apreendidas. Vão ficar aqui comigo!”

“Como assim? Aprendidas porquê? O senhor tirou elas da minha mochila, elas são minhas!”

O cara não gostou e começou a tremer de raiva. Aflito, abriu a gaveta para pegar uma coisa. Pensei que fosse minha a autorização, mas não, ele tirou um martelo e colocou a parte de metal próxima à minha orelha.

“Tu é um veado frouxo, ouviu? Eu falei que essas duas conchas são minhas. São ou não são !? ”

Com a adrenalina já jorrando, levantei o tom: “Meu irmão, se acontecer alguma coisa comigo nessa merda, tu tá fodido, meu pai é jornalista da Globo, já ouviu falar? Ele fode você e a polícia inteira dessa rodoviária. E tu vai preso ou no olho da rua! Abaixa essa porra agora e me devolve as conchas, entendeu?”

O cara comprou meu blefe e engolindo a raiva, colocou o martelo de volta na gaveta.

Levantei, coloquei minhas tralhas e as conchas de volta e saí sem nem perguntar como que aquilo ia ficar. Voltei para o guiche para perguntar e a moça era outra. Acabou que a polícia não podia dar a autorização que eu precisava, a primeira menina tinha mentido.

Comprei a minha passagem, voltei para o albergue e deixei que Pedro resolvesse o problema de sua passagem sozinho. Viajamos na mesma noite e chegamos em Recife dois dias antes do Carnaval. Quando descemos do ônibus, do nada encontramos o Mineiro, um amigo de Salvador. Foi uma feliz coincidência porque não tínhamos lugar para ficar e ele estava doido atrás de alguém para rachar o quarto que tinha conseguido em Olinda, algo que todo mundo dizia que era impossível durante aquela época do ano. Quando chegamos, percebemos o tamanho da sorte que demos; nosso quartel general seria a duas quadras da Praça do Carmo, o centro nevrálgico da folia.

Voltar

Inicio

Samba Perdido – Capítulo 28 – parte 02

Se os primos da Francesca suspeitavam que éramos gay, assim que o tio do Pedro botou o olho na gente, ele teve certeza. Depois que sua esposa nos mostrou o quarto com cama de casal de cara fechada, a hostilidade ficou clara quando nosso anfitrião jogou a comida no meu prato ao invés de me servir. Que eu lembre, nunca desmunhequei nem usei roupas de hippie fresco mas aos seus olhos eu era uma bicha comunista e maconheira levando o filho jovem e saudável do seu finado irmão para um caminho de subversão, drogas e perversão homossexual. Já imaginou o que ele faria se soubesse que além daquilo tudo ainda era judeu?

Naquele tempo, naquela parte do mundo, os mesmos caras que gastavam seu dinheiro com amantes, prostitutas e álcool e que batiam em suas esposas, consideravam a juventude do sul degenerada. Não podia deixar de pensar na sua reação se visse o Luiz de Vitória, saindo do quarto com a “Maysa” pendurada em seu pescoço e dizendo que havia perdido a virgindade. De qualquer forma, de um ponto de vista antropológico, a situação trouxe o entendimento de como as coisas eram para gerações anteriores em outras partes do mundo.

Aquele mundo claustrofobico, corrupto e canalha havia sido construído em torno da sua classe dominante ancestral. Além de controlar tudo e todos à sua volta desde o seu início, ela odiava qualquer novidade que ameaçasse seu domínio. Para qualquer pessoa com um cérebro funcional que proporcionasse visão crítica, a vida ali era opressiva. Se não pertencessem aos círculos tradicionais, pior ainda.

Apesar do clima pesado em casa, gostamos Fortaleza. Era uma das capitais mais ricas do Nordeste e tinha uma vibração cosmopolita. O clima quente e seco, as praias imensas, o vento e as largas avenidas faziam com que a cidade parecesse a capital de um país moderno no Oriente Médio, tal como Tel Aviv ou Beirute. Talvez a postura do tio de Pedro fosse uma exceção, já que os cearenses tinham a fama de serem espertos e engraçados, dando ao Brasil alguns de seus maiores humoristas, como Chico Anysio, Tom Cavalcanti e Renato Aragão.

*

Fortaleza foi o ponto mais ao norte da nossa excursão. Além da inexistente amenidade de ficar hospedado na casa de um parente do meu companheiro de viagem, o motivo para irmos tão longe era uma aldeia de pescadores chamada Canoa Quebrada, parada obrigatória no circuito neo-hippie. Depois de cinco dias, partimos para lá. Fomos de carona até Aracati e de lá pegamos uma Kombi até o pé de uma duna gigantesca. Subir aquela parede de areia fofa foi uma surpresa difícil, mas quando chegamos ao topo ficamos encantados. Já estava escuro mas à distância vimos um grupo de cabanas mal iluminadas que lembrava um lugar perdido entre o deserto e o mar.

Logo que recuperamos o fôlego, armamos a barraca fora do vilarejo e fomos conhecer Canoa Quebrada. Ela tinha um charme primitivo e a autenticidade que só lugares remotos conseguem ter. Os espaços entre os casebres rústicos castigados pelo vento e pelo sol criavam trilhas de areia que, em sua maioria, terminavam abruptamente numa falésia gigantesca. A praia lá em baixo era a mais larga de todas que visitamos.

Na areia dura havia jangadas por todo lado; estes barcos artesanais planos feitos de troncos de árvores secos, atados com cordas e um mastro seguramdo uma enorme vela triangular eram icônicos. Ao raiar do dia, os pescadores rolavam essas embarcações sobre troncos secos de coqueiro até a água. No mar, flutuavam leve e eram fáceis de manobrar. Sua elegância simples com suas velas desfraldadas pareciam parte integrante da paisagem.

*

Os locais sabiam como lidar com o calor e com o sol escaldante. O povo só se expunha de manhã bem cedo ou no final da tarde. Quando o sol estava a pino, os homens ficavam na sombra remendando suas redes, vendendo o que tinham pescado, comprando provisões ou simplesmente descansando. Enquanto isso, as mulheres ficavam em casa fazendo rendas. Sua técnica artesanal e seus produtos eram famosos em todo o Brasil.

Por outro lado, o mini exército de mochileiros que se aglomerava naquela aldeia no verão, ía para a praia na hora mais quente do dia, por volta das onze da manhã. Quando o calor ficava insuportável, nos abigavamos na sombra nos quiosques à beira da falésia para beber cerveja e ficar ouvindo os relatos das viagens uns dos outros. Nas conversas trocavamos dicas sobre lugares na rota costeira em meio a discussões político-existenciais. As garotas não participavam dessas conversas, mas ficavam sentadas em seu canto batendo seus papos e retribuindo nossos olhares.

*

No dia seguinte, alugamos por quase nada um quarto na cabana de um pescador. A família dormia em redes penduradas pela casa enquanto ficamos no único quarto separado ali dentro. As camas eram tapetes de praia de vime estendidos sobre o chão de areia. Uma lamparina de querosene iluminava a casa, a água vinha de um poço no quintal e a família cozinhava num fogão à lenha feito de tijolos. As paredes de pau a pique eram cheias de buracos que permitiam que o ar de fora refrescasse o ambiente. Esses e os buracos no telhado não eram problema algum, uma vez que raramente chovia. Apesar da acomodação ser para lá de modesta, caiu bem depois de ter que aturar a homofobia sem base do tio do Pedro.

Do lado de fora, os cachorros vadios, galinhas e patos que circulavam por todo canto, faziam com que toda hora pegássemos bicho de pé. No final da estadia já estava craque em tirá-los com uma agulha.

Seu Chico, o dono da casa, era o patriarca das três gerações que viviam sob aquele teto de palha. Apesar do cabelo grisalho, seu corpo ainda era forte graças aos anos passados no mar. Tranquilo e de poucas palavras, impunha respeito. Sua sabedoria não vinha de livros, mas dos seus sentidos aguçados por uma vida passada interagindo diariamente com a natureza. Gostei dele de cara e nas conversas que consegui puxar passei a apreciar sua visão de mundo que era, de várias formas, mais profunda do que a de muitos de meus professores na faculdade. Conforme os papos com o velho homem do mar foram acontecendo, fui aprendendo os hábitos de todos os peixes e dos bichos daquela região. Também aprendi como apanhá-los.

A curiosidade era mútua e suas perguntas sobre nosso estilo de vida eram interessantes.

“Mas se ocês faiz faculdade, porque ocês anda vestido que nem mendigo?”

“Não sei, seu Chico. Deve ser porque no fundo a gente não quer aquilo”, falei entre garfadas no meu feijão com arroz amalgamado por farinha que sua sua mulher tinha preparado. “Lá tem muito mais dinheiro que aqui, mas parece que falta alguma coisa.”

Ele apontou para o mar por trás do quintal olhou para o céu azul de fim de tarde. “Para eles falta isto daqui.”

Um grupo de aves estava cruzando o céu em formação. Quando desapareceram ele emendou: “Tudo é uma coisa só, quem entende isso num precisa de mais nada.”

Caso algum urbanóide desdenhasse dele por não saber ler ou escrever, seu Chico poderia retrucar fácil – e corretamente – que o sujeito não tinha nenhum conhecimento sobre o meio ambiente onde vivia, isso se ainda tivesse restado algum. Para os seguidores de Moloch, o elo homem-natureza estava perdido. Fora o dinheiro, nada era sagrado. Nós, gente da cidade, tínhamos a cabeça entupida de coisas inúteis mas éramos ignorantes sobre o mais importante; a natureza tanto fora quanto dentro da gente. Não era ele que precisava pagar psicólogos ou gurus de meia-tigela nos Estados Unidos para resolver os seus problemas existenciais, nem era ele que precisava viajar tão longe porque não gostava do mundo em que vivia.

*

No pôr do sol, a moçada se agrupava à margem da duna. No Rio – bem como em todos os estados em que havíamos passado– o sol se punha no lado direito da praia. Contudo, como o Ceará fica depois da curva que a costa do Nordeste faz, lá o sol se punha em terra. De cima daquela montanha de areia fina, que lembrava uma paisagem extra terrestre, ficávamos assistindo o espetáculo do sol se pondo por trás da mata de uma planície sem fim. Sons de pássaros se preparando para a noite ecoavam da natureza. Quando o sol estava quase desaparecendo, sua imensa bola brilhava na areia e nos rostos, criando um tom alaranjado inacreditável que contrastava com o céu azul escuro acima e atrás de nós. O vento era forte e por a região ser tão seca, mesmo no auge do verão ficava frio. Com tudo escurecendo e sem nenhuma luz elétrica nas redondezas, parecia que a terra tinha absorvido a claridade e o calor do dia, e estava oferecendo em troca um visual lunar junto com uma paz indescritível.

A harmonia daqueles crepúsculos era como a de Trancoso de dois anos atrás. Numa noite especial, o pessoal em volta me pediu para tocar violão. O clima estava tão bom que todos se levantaram e fomos juntos para um campo logo atrás da duna. Lá, o pessoal abriu um círculo ao meu redor e saí tocando. Aquela roda de umas trinta pessoas cantando e dançando em torno de mim sob o luar e as estrelas foi mágica, um momento de redenção e de promessa para as ansiedades que assolavam a todos.

*

Conforme fui relaxando e deixando aquela energia positiva tomar conta, minha sorte com o sexo oposto começou a mudar. Houve um momento maravilhoso, daqueles com que um cara comum como eu podia apenas sonhar. Estava em um bar com um amigo de São Paulo, quando percebi uma loura linda de olhos verdes e pele bronzeada olhando para mim.

Tomei coragem e me aproximei. “Oi gata, que olhos lindos.”

Ela deu uma risada linda e provocante. “Obrigada, me deixaste sem graça agora, nem sei o que dizer.”

“Se você não tem nada a dizer, vamos comigo até a praia dar uma olhada no visual?”

Ela aceitou o convite a queima roupa e fomos de mãos dadas pela trilha que descia a falésia. Nos deitamos com as ondas tocando nossos pés. Não precisei falar muito. Quando a encarei, ela me deu o olhar mais lindo e a partir dali ficamos nos beijando por um tempão, nos aconchegando um ao outro sob a luz da lua.

Tinha gente passeando por ali e sussurrei: “Quer vir comigo para um lugar mais tranquilo?” Ela não falou nada, mas me deu a mão e levantamos.

Fomos para a casa em construção onde adivinhem quem estava acampando? Os gaúchos da Praia do Francês. Quando chegamos, fui me certificar se havia alguém lá. Estava com sorte, os caras deviam ter saído para a farra e a construção estava vazia. Achamos um quarto desocupado, coberto, mas com a janela ainda por fazer e sem porta. Assim que nós nos acomodamos, fiquei sem falar nada, viajando em sua absoluta beleza e em seu cheiro delicioso. Depois da pausa, começamos a sentir a pele um do outro e se pegar apaixonadamente. Um furacão de prazer tomou conta e amor veio furioso. Quando acabamos, ficamos deitados abraçados absorvendo o que tinha acontecido e apreciando aquela noite sem nuvens. O vento sobre a vegetação seca do lado de fora, o barulho dos grãos de areia levantando voo e batendo nas paredes da casa e a luz da lua entrando pela janela eram como um sonho. De repente, senti algo que quase não lembrava que existia: a sensação de estar em paz com o mundo.

Voltar

Início

Samba Perdido – Capítulo 28 – parte 01

Capitulo 28

Todo dia o sol levanta
E a gente canta
Ao sol de todo dia.
Caetano Veloso - Canto Para o Povo de um Lugar

 

A próxima parada era João Pessoa, a capital da Paraíba. Dessa vez deixamos as caronas de lado e resolvemos ir de trem. Era quase de graça e a linha se afastava da costa e entrava pelo sertão à dentro. Dada a escassez de ferrovias no Brasil isso prometia uma viagem única e imperdível. Ela nos permitiria conhecer, mesmo que de relance, essa região tornada famosa em verso, prosa e música. Depois de saciar a fome, beber umas cervejas e dar uma volta pela belíssma Maceió, fomos para a estação. Na entrada, encontramos com os gaúchos da Praia do Francês que tinham gostado da ideia e tinham resolvido se juntar.

Assim que pusemos os pés dentro do terminal,  ​causamos uma comoção. Para os passageiros locais, ver aquela galera estranha era como presenciar a entrada da versão moderna da gangue de Pat Garrett e Billy the Kid ou de uma banda de rock recém-saída do inferno. Só faltava a camera lenta e a musica de filmes de faroeste. Sob olhares constantes e mal disfarçados, compramos passagens para o próximo trem que partiria dentro de uma hora. Sem mais nada para fazer, ficamos vagando pela estação achando graça do pessoal boquiaberto.

Depois que o trem partiu, tomamos posse de um vagão vazio. Pela janela, ficamos curtindo ver o verde litorâneo ficando para trás e paisagem se tornando muito diferente da que tínhamos visto pelo nordeste afora até então. Primeiro, veio o cerrado com sua vegetação densa porém seca e espinhosa e uns vinte minutos depos entramos na aridez do sertão.

Essa região semi desértica era a mais pobre e atrasada do Brasil, a ponto de ser considerada por estudiosos como a região mais semelhante à Europa medieval no mundo. Nela, o povo profundamente católico e supersticioso tinha um relacionamento semifeudal com os donos da terra. A cultura era machista ao extremo e havia um altíssimo grau de analfabetismo. Mesmo sabendo que não interagiriamos com essa população, só o fato de estar ali mudou o clima no trem. Continuamos em silêncio cruzando a vegetação rala no ar quente e depois de um tempo começamos a atravessar e a parar em cidades.

As estações dilapidadas pareciam remanescentes de uma era quando havia uma promessa nunca cumprida de prosperidade. Quando o trem parava, uma pequena multidão chegava às nossas janelas para nos vender todo tipo de coisa, desde garrafas d’água de plástico até animais silvestres. Em todo vilarejo, o trem era o maior evento do dia e nós – os cabeludos estranhos – os destaques. O povo se amontoava em nossas janelas apontando para nós e rindo como se fossemos uma banda de rock de gays drogados.

Algumas vezes faziam piadas sobre nós.“O sulista! Isso aí é cabelo de homem?” A meninada ria.

“Por que, bonitão? Quer que o teu macho fique gato como eu?” A meninada ria mais ainda, mas alguns não gostavam e ameaçavam jogar coisas.

Atrás das estações, mercados mambembes alojavam lojas de roupas baratas, botequins, açougues mal cheirosos e lojas de discos que tocavam alto músicas que davam arrepios de tão brega que eram. Homens andavam a cavalo nas ruas de terra batida entre carros enferrujados, jumentos sonolentos e cães magrelos. Por todo lado crianças descalças corriam sob o sol escaldante.

Quando o trem saía das cidadezinhas, voltava àquela paisagem árida e desolada que lembrava as de faroestes italianos. A população, porém, não era de camponeses mexicanos, mas uma mistura de descendentes de índios, brancos e africanos vivendo em casebres de barro com cobertura de palha. Os pequenos lotes de terra nela, lutavam para parecer fazendas naquele calor insuportável. As plantações eram mínimas e o gado era tão magro que dava para contar as costelas.

Os vagões e sua locomotiva azuis e antigos estavam nas últimas e pareciam em harmonia com o que nos cercava. Por conta do horror dos outros passageiros em compartilhar seus assentos com gente “do demo”, acabamos ficando sozinhos em nosso vagão durante a viagem inteira. Vez por outra, funcionários do trem entravam para conferir o que estávamos fazendo e geravam um silêncio hostil. Apesar da extrema pobreza passando do lado de fora e do clima tenso do lado de dentro, todos concordamos que o passeio estava sendo uma “viagem”. Claro, apesar da vigilância apertada, conseguimos fumar nosso veneno com as cabeças para fora das janelas.

*

No Rio, “paraíba” era o termo pejorativo dado aos membros do seu enorme contingente de nordestinos, sem distinção de onde vinham. Eles preenchiam o papel que mexicanos exercem nos Estados Unidos, árabes na França e paquistaneses no Reino Unido. Igual aos preconceituosos dos países ricos, muitos cariocas tinham sentimentos contraditórios com relação ao Nordestinos. Junto com o fascínio pela sua cultura e da admiração pela suas belezas naturais vinha a rejeição de imigrantes pobres vindos de lá com legados diferentes.

Quando o trem chegou em João Pessoa, a capital da Paraíba,  assim que comecamos a circular pela cidade, descobrimos que, pelo contrário, a cidade tinha – pelo menos a nível arquitetônico – uma sofisticação clássica que comparava bem com a do Rio. Suas construções bem conservadas do século 19 e suas avenidas elegantes delimitadas por árvores exuberantes com postes de luz de estilo antigo faziam a cidade muito charmosa.

Porém, o principal motivo de estar contente por estar ali era que uma amiga da faculdade, Francesca, estava passando as férias com sua família Paraibana. Como muitos outros membros da elite local, eram descendentes de italianos. Loura de olhos azuis, era deslumbrante a ponto de uma revista carioca a ter eleito como a musa daquele verão. Apesar disto, o seu atributo mais atraente era seu espírito de moleque e a gente se dava muito bem.

Dessa vez íamos ficar na casa do estudante universitário e assim que chegamos, ligamos para ela. “Richard! Pedro! Seus malucos!!! Como que vocês chegaram até aqui!!?? De que?! De carona de caminhão?? Pegaram o trem pelo sertão?! Hahahaha! Vocês são muito loucos!”

Depois das piadas e de contar alguns “causos”, fui à pergunta inevitável: “E aí, Francesca? Vamos se encontrar?”

“Claro!!” Daí ela cochichou baixinho: “Mas nada de pãpãpã porque o pessoal daqui é caretasso!!”

“Beleza, claro que não, só que você vai perder o veneno que trouxemos de Maceió.”

Ela deu uma risada. “Vocês tão aonde?”

“Na casa do estudante universitário, conhece?”

“Claro! Daqui a pouco tô passando aí!”

Receando que fossemos conhecer alguém da sua família endinheirada, nos vestimos da melhor maneira possível. Na falta de outra opção, colocamos umas roupas hipongas metidas a chique compradas em Salvador. Não demorou muito e ela chegou com dois primos, ambos educadíssimos e com um visual super conservador, com certeza membros eminentes da elite local. Após as apresentações, levaram Pedro e eu num carro elegantíssimo com ar-condicionado para conhecer João Pessoa. Depois, nos convidaram para jantar num restaurante elegante. Foi um convite desconfortável, mas aceitamos por causa da insistência da Francesca.

Eles acabaram fazendo questão de pagar a conta da peixada maravilhosa. Mas diferente do jantar bizarro com dupla de mergulhadores em Vitória e suas “amigas”, não havia nenhum interesse escuso. Porém, descobririamos mais tarde entre risadas que nos confundiram com um casal gay. Não era para menos: nossas roupas neo-hippies, batas e calças floridas e soltas jamais poderiam ser classificadas como roupas para macho em qualquer cidade do mundo em qualquer tempo da história.

Na realidade, mesmo com a má impressão que causamos, tinha esperanças de, quem sabe, engatar uma aventura de verão com a Francesca. Apesar de ter um namorado no Rio, nas matadas de aula nos jardins da faculdade rolava um clima forte. Entretanto, com a família dela por perto – e eu parecendo um extraterrestre para eles – as chances de que algo acontecesse eram zero.

Além da inacessibilidade da Francesca e da elegante arquitetura de João Pessoa, não havia muito o que nos atraísse ou nos prendesse lá. Decepcionados, depois de tres dias ali seguimos rumo ao norte, para Fortaleza, a capital do estado do Ceará, onde ficaríamos com um tio de Pedro.

*

voltar

Início

Samba Perdido – Capítulo 27 – parte 02

Na manhã seguinte saimos rumo às praias de cartão-postal de Maceió, nas Alagoas. Águas cristalinas e uma vegetação abundante de coqueiros se estendendo ao longo da costa inteira eram uma promessa bem-vinda com depois da simplicidade cênica de Aracajú.

Seguindo uma recomendação recebida ainda no Rio, passamos direto por Maceió e fomos para a Praia do Francês, a uma meia hora e pouco da cidade. Chegamos num fim de tarde ensolarado e ficamos maravilhados de cara. O lugar era lindo e o pessoal era diferente de tudo o que tinhamos visto até entao; garotas e garotos bronzeados do “sul” saudáveis, abastados, com ares de surfistas, relaxados, todos num astral ótimo e muito diferente daquele que havia feito de Arraial d’Ajuda uma decepção.

A experiência já havia nos ensinado que a primeira coisa a se resolver era procurar um lugar para ficar. Perguntamos por ali e o dono da venda da aldeia nos falou de uma construção. “Tão construindo uma casa lá no final da praia. Os obreiros só vão voltar em março. Já tem uns cabeludos acampando lá. Acho que deve ter lugar para vocês.”

Fomos lá e gostamos. A base da obra já estava pronta, mas estava coberta só por um teto de palha mal-acabado. Conforme o dono da venda tinha dito, havia um grupo de sete ou oito caras já acampados lá e fomos falar com eles.

“Fala aê, beleza?”

“Beleza!” respondeu o mais velho deles, um cara de cabelo crespo, brinco na orelha e cavanhaque.

“Tamo chegando aqui e a gente queria saber se dava para acampar num canto.”

“Sem problemas, tchê, aqui tem lugar para muita gente. Se vocês não tiverem problemas com gaúchos podem ficar à vontade.” O sotaque e a maneira cantada de falar não podiam ser mais típicos.

Agradecemos e depois de montar a barraca fomos conversar com eles. Já era fim de tarde e, como não seria surpresa, estavam bebendo chimarrão sentados na sombra e apreciando o fim de dia vendo o mar.

“Conhecem chimarrão? Prova um pouco!” O Pedro recusou. Eu que já tinha experimentado e até gostav, aceitei.

“Isso não é para beber no frio?”

O cara deu uma risada. “A gente bebe chimarrão até debaixo d’água, tchê.”

Um outro, com uma cabeleira lisa que ia até debaixo do ombro, perguntou: “É a primeira vez de vocês aqui?”

“É, a gente está viajando a costa e tamo indo até o Ceará, pelo menos esse é o plano. E vocês?”

“Saímos de Porto Alegre há um mês e viemos de carona até aqui. Bá! É muito chão e em sete é tri-complicado.”

A maioria era loiro, todos educadíssimos apesar do visual inconformista. Naquele calor, aquele monte de cabeludo me trouxe à memória as bandas de rock do sul dos Estados Unidos. O cara que nos deu as boas-vindas foi direto ao assunto.

“Pois é, carioca, vocês fumam um, né?”

“É, somos do clube.”

“É o seguinte, a gente descobriu um plantador em Barra de São Miguel, uma cidadezinha perto daqui. A coisa é um veneno, tchê.”

Um outro emendou: “Fomos lá para experimentar, e bááá! Voltamos tri-loucos!”

Todos confirmaram que era “tri-bom”.

O primeiro continuou: “Então, tchê, nós estamos fazendo uma vaquinha para comprar um peso. Se a gente juntar trezentas pilas compramos seiscentas gramas, faltam cinquenta, cês podem entrar?”

“Sei lá. tem um pouco aí para a gente experimentar?”

O de cabelo até a cintura respondeu na hora: “Claro, tchê!”

Um deles tirou um baseado do bolso, acendeu e passou para a gente. Como qualquer do bom, depois de duas baforadas deu para sentir a qualidade. Os caras estavam certos. A parada era “tri-boa”.

Pelos calculos, íamos ficar com quase cem gramas daquele veneno por um quarto do preço que custaria no Rio,  uma oportunidade imperdível num lugar perfeito. Não pensamos duas vezes; concordamos, raspamos o dinheiro escondido num compartimento secreto da mochila e entregamos a eles. Na manhã seguinte, dois deles foram buscar o bagulho. Quando voltaram por volta do meio dia, foi uma fumelhança desatinada. 

Depois de um tempo, a larica bateu e caiu a ficha de que apesar do generoso estoque do bom, estávamos completamente sem grana. Os gaúchos ficaram igual. A única possibilidade da gente reabastecer os bolsos implicaria em uma ida de uma hora de ônibus até Maceió de manhã cedo para achar um caixa eletrônico – que ainda só existiam nas grandes cidades e que, por sinal, o Brasil estava inaugurando a nível mundial. Depois, a gente teria que esperar o ônibus de volta que só saía no final do dia. Praia boa e bagulho bom eram um convite à preguiça e ninguém estava disposto a perder um dia inteiro com aquilo. Do lado positivo, isso significaria um alívio para o nosso parco dinheirinho.

A salvação alimentar foi um coqueiral imenso logo atrás do acampamento. Não era preciso nem subir nas árvores, era só sair catando os côcos caídos no chão e com isso passamos uma semana inteira nos alimentando deles. No café e como sobremesa, comíamos a carne macia dos côcos mais verdes. Côcos mais maduros tinham a polpa mais grossa, mais nutritiva e eram nosso prato principal e durante o dia. A água deles saciava nossa sede e, também nutriente, ajudava a nos manter. Usavamos um facão na obra para abri-los e tínhamos que tomar cuidado para não acertarmos nosso dedo ou atingir os outros naquela chapação generalizada.

*

A Praia do Francês é famosa por seu coral e sua vida marinha espetaculares. Isto, e a água limpa e transparente, rara no Nordeste, fazia com que um monte de gente viajasse do país inteiro para mergulhar ali. Consegui uma máscara de mergulho e um tubo emprestados de um paulista que tinha virado entusiasta da nossa compra na Barra de São Miguel. Por conta da sua generosidade, passava os dias explorando o coral e os peixes coloridos sob a influência do veneno verde, uma combinação que se provou perfeita. Embaixo d’agua me sentia como se estivesse passando horas num planeta diferente. No fim do dia, quando chegava o pôr do sol, me sentindo bem e abençoado, pegava a viola e saía em caminhadas ao longo do coqueiral curtindo a brisa do mar fazendo as árvores se balançarem de um jeito mágico. Seguia até encontrar um lugar protegido e ficava ali tentando criar música.

Enquanto o Pedro não sabia por onde começar com o banquete de beldades passando o verão ali, não demorou muito para que eu conhecesse outros músicos. O pessoal se reunia para fazer um som em frente da barraca de uns argentinos gente boa. Se não estivesse mergulhando, estava ali. Fazer experimentos musicais no Nordeste era uma experiência especial. A vibração musical da região era menos africana e mais árabe e indígena. O calor e o ar seco pareciam influenciar a gente. As levadas que inventávamos abriam mais espaço para digressões inusitadas. A qualidade do THC e a desintoxicação forçada pela dieta à base de coco me trouxeram inspiração. Quando tocavamos no calor do dia e no vento frio e seco da noite, eu e meus camaradas de som pareciamos um bando de beduínos de sunga envoltos numa magia Sufi num deserto a beira mar.

Às vezes, íamos levar um som na praia quando ficava escuro. Ali nossas sessões acabavam virando apresentações em torno das fogueiras que o pessoal acendia e davam um toque hippie às férias de todos os presentes. Com tantos músicos antenados envolvidos, a gente se recusava a tocar músicas conhecidas. Fazíamos improvisações que, pelo menos para nós, eram de altíssimo nível. Para os que estavam ouvindo provavelmente também, porque apesar do silêncio, havia respeito e um astral mágico no ar. As musicas começavam com uma levada fácil até alguém se inspirar e levar o que estavamos fazendo para um lugar mais especial. Conforme o som ia evoluindo, voltávamos à frase inicial e ficávamos nela até que outro alçasse vôo para novas alturas. A coisa fluía com ritmos e texturas provindos da redondeza. O sentimento era para lá de fantástico.

Apesar do sucesso das sessões, começamos a sentir um clima estranho naquele lugar que de início tinha parecido um paraíso. Acabamos nos dando conta de que a Praia do Francês era, na verdade, um destino turístico mais de elite do que o sul da Bahia e que nós, os outros músicos e os gaúchos do acampamento, éramos minoria. Por conta disso, nos deparamos com muita cara virada por não estarmos viajando com um carro do ano e dormindo em pousadas boas. Não pensamos muito sobre o assunto, mas talvez de maneira inconsciente isso nos tenha levado a ficar ali menos tempo do que poderíamos.

Levantamos acampamento junto com os gaúchos. Na manhã que chegamos em Maceió, a primeira coisa que fizemos foi ir à cata de um caixa eletrônico. Achamos um alojado numa cabine de vidro futurista contrastante com a arquitetura colonial ao seu redor. Novamente com dinheiro no bolso, foi um alívio ir a um pé sujo à beira da praia para desfrutar de uma refeição decente. O que pedimos foi o prato básico da região – arroz com feijão, farinha de mandioca, peixe frito e uma cerveja gelada para completar. Por mais simples que fosse, a comida caiu como uma maravilha depois de uma semana e pouco vivendo de côco.

voltar

seguir

Início