O Livro JUDAÍSMO, CRISTIANISMO E ISLAM, escrito por Pietro Nardella-Dellova (Judaísmo), João Décio Passos (Cristianismo) e Atilla Kush (Islam, com a colaboração de Francirosa Campos Barboza), traz uma visão atualizada das três grandes culturas e religiões.
No capítulo dedicado ao JUDAÍSMO, Pietro Nardella-Dellova faz uma trajetória desde as experiências mesopotâmicas de Abraham, passando pela vivência em Canaã, Egito e, finalmente, no Judáismo da Torá. Recupera os fatos históricos, a situação medieval e chega aos dias contemporâneos, principalmente no que respeita ao diálogo do Judaísmo com outras culturas.
O livro foi publicado pela Editora Vozes e encontra-se disponível.
Este Direito Civil — Relações Familiares, um estudo do direito das famílias em chave civilizatória constitucional e de direitos humanos, de caráter introdutório, aborda o Sistema de Direito Civil das Famílias à luz da Constituição, Direitos Humanos, Código Civil e Legislação especial no processo civilizatório.
Preferimos estruturar este livro em duas Partes. Na Parte I, trataremos dos valores constitucionais, dos direitos humanos, dos princípios constitucionais voltados para a compreensão do conceito, evolução e sistema do direito das famílias. Na Parte II, estudaremos as relações familiares e seus efeitos.
Hoje, referimo-nos, com inteligência e discernimento, ao Direito Civil que respira e vive constitucionalidade, direitos pétreos e direitos humanos. Dizer direito civil em chave constitucional não tem a ver apenas com hermenêutica hierárquica, mas com fundamentos do Direito Civil na Constituição, irradiando-se em movimentos civilizatórios (devir), que propicia a humanização das relações jurídicas. O simples sujeito de direito eleva-se à altura de pessoa humana com dignidade.
Os tópicos abordados nas duas partes e respectivos capítulos das Relações Familiares, a começar com os pressupostos do direito civil-constitucional: Constituição, Direitos Humanos e Direito Civil para um sistema de direito civilizatório e, na sequência, tratando da evolução, fundamentos e princípios da família; do direito pessoal e socioafetivo, a partir do casamento, da união estável e das relações de parentesco; dos filhos e do direito assistencial alimentar, bem como da proteção dos filhos e de outras pessoas no Poder Familiar, Tutela, Curatela e Tomada de Decisão Apoiada e, também, das relações patrimoniais no âmbito familiar e sua consequente proteção como patrimônio mínimo, têm análise sistêmica, em chave constitucional e perspectiva da função social do Direito.
Enfim, o que se espera nesta senda é avançar no sistema de Direito Civil e, muito além dos Institutos civilísticos, chegar aos inegociáveis fundamentos civilizatórios.
A disciplina do sistema civilístico, Direito de Família, atualmente conhecida também como Direito das Famílias, é a parte do Direito Civil não relacionada ao direito das obrigações, direito de empresas ou direitos reais. É um direito ético-social que, muito mais que outros setores privados, encontra o seu fundamento nos princípios e valores constitucionais e humanistas.
Nosso trabalho buscará o conceito fundamental, histórico e originário de família a fim de permitir uma compreensão substancial e de caráter progressivo, ou seja, a evolução do conceito que parte do caráter de conjunto de coisas e chega à ideia contemporânea de afeto.
Nesse sentido, como já dissemos acima, serão apresentados os fundamentos constitucionais, sobretudo, do direito civil-constitucional que consagrou a pessoa como centro ou centralidade de todo sistema jurídico.
Trataremos, em seguida, no campo do direito pessoal, da relação jurídica tradicional, o casamento, como negócio jurídico e como manifestação de vontade, seus contornos legais e seus desdobramentos em outros núcleos familiares.
Ainda nesse campo, veremos e estudaremos a relação dos filhos, sua proteção, tanto constitucional quanto infraconstitucional. A partir disso, importante caracterizarmos, à luz da contemporaneidade, as relações de parentesco que se criam no direito.
No sentido contemporâneo, família expressa afeto e afetividade como valores jurídicos, constitucionais e humanistas, mas em relação a ela, também estudaremos o direito patrimonial e assistencial, ou seja, o regime de bens do casamento e outros núcleos familiares, o dever alimentar e a proteção estabelecida às pessoas a partir do poder familiar, tutela, curatela e tomada de decisão apoiada.
Ao final do nosso trabalho, poderemos desenvolver estudos específicos das várias composições familiares, ou núcleos familiares, entre os quais, a união estável, a homoafetividade, a família pluriafetiva a família singular e sua proteção civil-constitucional, aliás, proteção como fundamento de um direito civil de caráter civilizatório e emancipatório. Reafirmamos: esse estudo permitirá a abordagem humanista, emancipatória e protetiva da família.
Enfim, esperamos que haja compreensão da evolução do conceito de família e, também, compreensão de que a família não está em um lugar fixo ou religioso, mas, como célula social multifacetada, pode ser organizada de muitas formas.
A Torá, que significa Instrução, é “um” Livro de viver a vida na estrada, “Livro” para transitar entre pedras e atravessar mares e desertos, para experienciar processos embrionários de formação do mundo, em Bereshit, e do processo de constituição de um Povo – então, Povo Hebreu, Israelita e Judeu, especialmente em Shemot, Vayikrá, Bemidbar e Devarim.
A Torá não é o único Livro judaico nem pode ser vista sob “maus” olhos fundamentalistas. O chamado Povo do Livro (conceito muito mais acertado do que o de Povo escolhido) possui muitos Livros, uma Biblioteca variada, criativa, inspiradora e muito interessante, que vai de história a pensamentos de matriz filosófica, de direito à poesia, de épica a relatos sobre fatos e de vozes proféticas (não, não tem a ver com vozes proféticas de outros grupos culturais, pois não se trata de falar algo sobre o futuro, mas de dizer (dizer!) algo sobre o presente. Os Profetas pensavam e diziam algo sobre o mundo em que viviam, sobre relações de justiça e bondade, educação e espiritualidade.
Porém, a Torá, que não é o único Livro, é, todavia, o mais importante legado judaico (sim, a Torá é judaica, é patrimônio judaico, e nunca foi “velho testamento” (exceto nas vozes antissemitas, desinformadas e levianas!). A Torá é, sobretudo, principiológica, ou seja, traz princípios (em ensinamentos ou exemplos) em torno dos quais é possível desenvolver um pensamento, um comportamento e um juízo de valores (aliás, como qualquer princípio). Cada povo, semita ou não, tem seus princípios, como no Código de Hammurabi (babilônico), na Lei das Doze Tábuas (romana), nas Constituições e ética (ateniense) etc. O Livro de princípios para o Povo Judeu é a Torá.
A Torá, assim, não é um Livro dogmático (nem revelado), mas histórico, ético e o ponto de partida (não de chegada) do Povo Judeu. Por isso mesmo, ao longo da História Judaica, a Torá ganha brilho e atualização sob os sábios olhos do hermeneuta, daquele que se dobra sobre ela e dela retira a substância, os pontos de apoio, os calços, e os referenciais para a vida. A Torá não é um livro do “além-mar” nem do “céu”, mas da vida, da existência, da subsistência, das relações interpessoais, das fragilidades humanas e dos motivos de fortalecimento, resistência, vigor e caminhada.
Em outras palavras, é o ponto de partida do Judaísmo que, embora não impeça qualquer outro alcance de sabedoria e conhecimento, serve sempre como alicerce, princípio e Constituição. A Torá é a Constituição (na história, a mais antiga!) de um Povo e, tal a sua musculatura principiológica, perdura ao longo do tempo, seja em Israel ou na Diáspora, seja no Gueto ou nas remoções, seja em Jerusalém ou no Deserto. Como Livro de princípios, serve para o processo de crescimento. A Torá é a passagem do topos ao u-topos, de um lugar conhecido a um lugar que se imagina bom.
Por último, a Torá não pode se tornar um objeto idolátrico (como seria um livro dogmático) ou um Livro sacrossanto (o que levaria a fundamentalismos toscos e destrutivos). A Torá não desceu do céu! O homem, em especial, o Judeu, não foi feito para servir a Torá, não foi feito para a Torá, mas a Torá, sim, foi feita para o homem, em especial, para o Judeu. A Torá está a serviço da pessoa humana em seu processo de instrução, de educação principiológica, de justiça e atos de bondade.
Por isso mesmo, a cada semana estudamos uma Porção, um trecho, isto é, uma Parashá, para ir, pouco a pouco, bebendo nessa fonte, e crescendo com ela, exatamente no que disse Moshe Rabenu (Moisés, nosso Mestre), em um processo de gotejamento, gota a gota.
Sempre, em cada ciclo anual, imediatamente após Rosh Hashaná e Yom Kippur, dois momentos de reflexão de origem e de consciência, recomeçamos, semanalmente, o processo de educação e reflexão na inesgostável fonte da Torá.
Este Direito Civil – Relações Obrigacionais: o sistema das obrigações, contratos e responsabilidade civil em chave civilizatória constitucional e de direitos humanos, de Pietro Nardella-Dellova, o segundo de 5 volumes de Direito Civil do autor, é um estudo introdutório e fundamental para a compreensão das Ciências Jurídicas e Sociais.
Dizer “direito civil em chave constitucional” não indica uma simples hermenêutica hierárquica, mas um Direito Civil que nasce com fundamentos na Constituição, irradiando-se em relações civilizatórias. Não é aceitável pensar em um Direito Civil isolado ou fechado no rudimentar núcleo civilístico. Hoje, fala-se de um Direito Civil, sobretudo nas relações obrigacionais (objeto deste volume), que vive e respira constitucionalidade, direitos pétreos e direitos humanos.
A pessoa deixa de ser simples sujeito de direito para elevar-se à altura de pessoa humana com dignidade e de centralidade nas mais variadas áreas jurídicas.
Os microssistemas, legislações civis e decisões judiciais relacionados às obrigações, contratos, atos ilícitos, função social dos contratos e da propriedade, responsabilidade civil, impenhorabilidade, pessoa consumidora, igualdade e emancipação da mulher, criança, adolescente, pessoa idosa, homoafetividade, pessoa com deficiência, assim como, às relações familiares socioafetivas, adoção, reconfiguração do poder dos pais, ao biodireito, e muito mais, demonstram que o Sistema de Direito Civil tradicional, sobretudo, o Código Civil, é insuficiente. São experiências sociojurídicas que, para além do sistema civilístico, objetivam um novo e vigoroso sistema de Direito Civil civilizatório.
Trata-se, assim, de um Direito Civil que em nada perde sua característica sistêmica de disciplina das relações horizontais. Ao contrário, ganha força, robustez, sentido, profundidade, eticidade e dignidade no âmbito e fontes constitucionais e humanistas. É o caminho irresistível do devir e da perfectibilidade das relações civilísticas, isto é, civilizatórias.
Este livro, organizado em 4 Partes: I – Constituição, Direitos Humanos e Direito Civil para um Sistema de Direito Civilizatório; II – Obrigações Jurídicas; III – Teoria Geral dos Contratos; IV – Responsabilidade Civil, é a proposta de um Direito Civil que rompe a dicotomia público-privado e propicia a humanização das relações jurídicas.
Enfim, atualmente, não deve (ou não deveria) ser difícil apreender parâmetros constitucionais e civilizatórios para o Direito Civil, mantendo, contudo, sua estrutura sistêmica. Esperamos, com a publicação desta obra, alcançar nosso objetivo.
Paralelamente à contradição de estar vivendo o sonho de pertencer a uma boa banda enquanto o clima em casa era de fim de festa, o Brasil passava por um momento importante.
A inabilidade dos militares em lidar com as complexidades de uma recessão e de uma inflação pesadas junto com as medidas de austeridade impostas pelo Fundo Monetário Internacional – o FMI – ao país em 1983 causou uma queda brutal na qualidade de vida dos brasileiros e das brasileiras. O descontentamento era geral. Porém, o mais frustrante era que não se podia votar para presidente. De acordo com os militares, os brasileiros não eram capazes de tomar tal decisão. A ditadura impunha que podiam escolher seus representantes no Congresso mas só dos únicos dois partidos permitidos, a ARENA e o MDB. Embora o lema do golpe miltar de 64 tenha sido reestabelecer a democracia e salvar o pais do comunismo os presidentes eram generais apontados pelas forças no poder. Havia a promessa – que ninguém acreditava – de que num futuro não especificado, permitiriam eleições para presidente. Confrontando essa mistura inaceitavel, as forças democráticas do país se uniram e, marchando juntas, lancaram um movimento que tomou as ruas sob o slogan “Diretas já! ”.
Gigantescas manifestações aconteceram em cidades por todo o Brasil. Após um comício em São Paulo que atraiu 1,7 milhões de manifestantes houve um outro no Rio que levou mais de um milhão de pessoas às ruas, a maior concentração política que a cidade já tinha visto.
Uma revolução em tempo real era algo imperdível. O evento foi no auge no verão, em Janeiro, e devido a uma greve dos professores a faculdade ainda estava funcionando. Matei aula para chegar cedo na Candelária. Já havia uma pequena multidao e passando apertado por entre o povo consegui subir numa banca de jornais para ver melhor. Fiquei ali vendo a rua lotar. Quando ja não dava para ver onde o mar de gente terminava na avenida Presidente Vargas, o primeiro discurso começou. Enquanto tentava me concentrar nas palavras do orador, senti alguns pingos no meu ombro. Quando olhei para trás, havia alguém mijando em uma coluna bem atrás de mim.
“Que porra é essa, meu irmão!? Tu acha que tu tá sozinho aqui!?”
“Ih! Foi mal! ” E o idiota mirou para outro lado.
Dali para frente as coisas só melhoraram. Artistas famosos, líderes do congresso, governadores, juristas e outras figuras eminentes da política foram se revezando no palanque fazendo discursos históricos e sendo aplaudidos em peso pela massa reunida. O comício demorou horas e terminou com a multidão cantando o Hino Nacional com todos marcando aquele momento na memória coletiva brasileira com lágrimas nos olhos.
Brasília, a capital federal, ficava longe dos grandes centros, de maneira que os governantes só viam o que estava acontecendo pela televisão. Isso os conferia um distanciamento e um senso de imunidade. Sua concessão foi permitir que o congresso elegesse um presidente civil, Tancredo Neves, uma figura amplamente respeitada e que tinha sido tolerado pelo regime no Congresso fantoche como oposição simbólica ao golpe desde o seu início. O candidato oficial que eles deixaram perder as eleições indiretas foi Paulo Maluf. Esse era um político impopular, notoriamente corrupto, que no auge da ditadura foi apontado pelos militares para ser o governador de São Paulo.
Com a vitória de Tancredo, um presidente civil finalmente tomaria posse no Brasil pela primeira vez em mais de 20 anos. Entretanto, o presidente eleito adoeceu sériamente poucas semanas antes da diplomação. Esse drama manteve o Brasil em suspense: ninguém sabia a real gravidade da enfermidade de Tancredo, se ele poderia assumir a presidência ou se havia algum tipo de conspiração em andamento. Com Tancredo hospitalizado e possivelmente em coma, José Sarney, o vice-presidente, escolhido para agradar segmentos militares e governadores da situação no Nordeste, tomou posse em março de 1985. Semanas depois, Tancredo morreu.
Estávamos escalados para fazer um show na noite em que confirmaram a morte de Tancredo. Enquanto um Brasil abalado se unia no luto, ficamos sentamos na escadaria da boate em Copacabana torcendo para que alguém aparecesse. Eduardo ficou andando ansioso de um lado para o outro, parando apenas para perguntar porque não havia ninguém lá. Nós pacientemente explicamos que o Brasil havia acabado de perder o seu presidente de direito, ao que ele retrucou.
“Sério? Morreu de quê?”
Ele não estava brincando e caímos na gargalhada sem conseguir acreditar como alguém poderia estar tão completamente fora da realidade.
*
Naquele momento político conturbado e da tempestade econômica o Rio estava vivendo a febre do rock. De uma hora para outra, parecia que todo mundo fazia parte de uma banda e aqueles que não faziam pareciam desesperados para se envolver de uma maneira ou de outra. Em meio a toda essa agitação, apareceu a primeira estação de rádio do estado a se dedicar exclusivamente ao rock; a Rádio Fluminense. Ela transmitia do outro lado da Baía de Guanabara, de Niterói. O seu jovem dono tinha acabado de herdar a estação e estava disposto a deixar sua marca. Graças à ele, ninguém mais precisava comprar discos para ouvir bandas como Led Zeppelin, Yes, Jethro Tull, Pink Floyd e The Who. A festa acabou quando as grandes gravadoras foram bater na porta da rádio exigindo direitos autorais.
Sem poder pagar, a Rádio Fluminense passou a tocar exclusivamente artistas internacionais recentes, produzidos por selos independentes ansiosos para tornar seus artistas conhecidos no Brasil. Ainda que acabasse perdendo o status de rádio pirata voltada para uma geração mais velha, a Maldita FM, como eles gostavam de se apresentar, fez sucesso com um público interessado em ouvir as bandas de vanguarda sobre as quais viviam lendo em revistas importadas, mas às quais não tinham acesso. Foi assim que o Rio entrou de vez nos anos oitenta.
Daniel, que mais tarde seria um colega de trabalho quando me tornaria professor de inglês, foi fundamental para o sucesso da Rádio Fluminense. Na época, ele era comissário de bordo internacional e durante suas paradas em Londres e Nova York, comprava os últimos lançamentos das bandas mais recentes. Quando voltava ao Rio, os entregava na Rádio Fluminense. Isso dava à emissora uma vantagem que nenhuma outra poderia ter.
Mas não eram só bandas internacionais que a radio tocava e a gente estava doido para aparecer lá.
Charles, o dono do estúdio e agora nosso empresário informal, levava fé na banda e começou a conseguir shows para a gente. Com a pouca grana que ganhamos com eles, investimos em uma fita demo na esperança de viver o sonho de tocar na Maldita FM. Ainda que sua sala de ensaio fosse excelente, para seu espanto, decidimos que o que o Charles oferecia em termos de estúdio de gravação não era bom o suficiente. Isso nos levou a melhores estúdios, onde trabalhamos com engenheiros de som fazendo pose de profissionais de verdade sem tempo para riquinhos pretensiosos da Zona Sul.
Apesar da arrogância e da impaciência dos caras, levavamos a coisa a sério. As preparações e as gravações em si nos fizeram parar para ouvir o que estávamos fazendo e tomarmos uma distância do trabalho. Ficamos mais conscientes do que estávamos tocando, aprendemos bastante e melhoramos. No entanto, o pseudo profissionalismo dos estúdios não permitiu que a banda mostrasse o seu melhor. O método deles, ainda que utilizasse tecnologia de ponta, era contra-intuitivo e contra-produtivo: cada um gravava sozinho em uma sala escutando as faixas dos outros com fones de ouvido. Não havia prazer ou calor humano nas gravações. As sessões eram chatíssmias, normalmente tarde da noite ou de madrugada porque era mais barato, Algumas vezes alguém perdia a concentração errava sua parte no meio da gravação, enquanto noutras quem se confundia era o engenheiro, quando não eram os dois. O resultado era repetições sem fim onde a essência da banda sucumbiu aos detalhes técnicos.
“ Nosso suor sagrado
É bem mais belo que esse sangue amargo. ”
Tempo Perdido - Legião Urbana
Ninguém gosta de derrotados, mesmo quando torcem para você perder. Por isso a receptividade da volta de São Paulo foi morna, mesmo que no fundo seu Rafael e a dona Renée tivessem ficado felizes por ter seu filho de volta em casa, na esperança de que deixaria de lado uma luta que nunca entenderam. Da minha parte, apesar do gosto amargo de retornar com o rabo entre as pernas, estava claro que os dias de meu pai estavam contados e queria tentar diminuir o fosso que nos separava antes que fosse tarde demais.
Por falta de melhores opções, no fim do verão, destranquei minha matrícula e voltei para o curso de Economia. O que aconteceu foi previsível. Não me sentia mais parte do que acontecia ali enquanto o pessoal que tinha entrado comigo me menosprezou por não ter ido até o fim naquilo que buscava e meus novos colegas de turma ou me viam como um rebelde incompreensível ou como um idiota que tinha ficado para trás nos estudos. Minhas notas eram baixas, detestava as aulas e sentia a realidade implacável de perder um ano inteiro para voltar ao ponto de onde tinha saído. Com o país e a família se desintegrando era difícil encontrar um sentido naquela realidade.
No entanto, a vida continuou. A eterna cura carioca para pressões e frustrações – a praia – era infalível. No Posto Nove de Ipanema o tempo, as crises e os problemas pareciam não existir. Depois de um dia regado a mar, sol e beleza natural tanto paisagística quanto humana o mundo parecia voltar ao lugar de onde nunca deveria ter saído. Num daqueles domingos ensolarados, encontrei o Eduardo, um antigo colega de sala do Colégio Andrews. Estranhei vê-lo ali já que nunca tinha sido frequentador da área, muito menos tinha sido parte da galera. Agora estava mudado, não era mais o cara introvertido e magricela que todos conheciam, estava cabeludo e parecendo descolado. Era óbvio que também tinha dado uma passada pela academia pois estava todo bombado.
Uma das primeiras coisas que me contou, com orgulho, foi que tinha aprendido a tocar guitarra. Sem ter certeza de qual era a dele, mas sempre interessado em levar um som, concordei em marcar uma guitarrada na casa dele depois da praia. Na despedida, Eduardo me perguntou se poderia chamar seu amigo Pedro, um baixista. Concordei e me lembrei do Mauro, um amigo da universidade que tocava bateria, e fiquei de ver se ele poderia ir também. Foi assim que a banda nasceu.
Adoramos a primeira sessão e depois dela aquilo virou uma rotina obrigatória nos fins de semana. Descobrimos naquela barulheira uma diversão recompensante, barata e terapêutica. Quando a música entrava alta, havia a sensação quase delirante de flutuar acima de todo o baixo astral que nos cercava. As frustrações se canalizavam na agressividade das guitarras e do baixo, nas pancadas da bateria e nos gritos no microfone. Quanto a qualidade, bem… estávamos aprendendo.
De qualquer forma, a partir daquele primeiro ensaio, como qualquer outra banda da época, havia a esperança e a meta de um dia tocar no Circo Voador e quem sabe alçar voos mais altos. As músicas que levávamos eram de outras bandas; classicos dos Rolling Stones, Deep Purple e Jimi Hendrix além de algumas nossas que fomos introduzindo, todas fáceis de tocar e catárticas
Como num início de namoro, depois que a coisa se tornou mais séria vieram as formalidades. A principal foi achar um nome. No começo fomos de “Papa Clitóris e os Oligofrênicos”, mas depois de algumas rejeições pensamos melhor e decidimos por um nome mais palatável, “Arrepio”, uma gíria surfista para se dizer impressionado – “O cara arrepiou na guitarra.”
*
A casa do Eduardo era meio apertada para ensaios e passaram a ser na minha, sempre liberada nos fins de semana devido às idas dos meus pais para Teresópolis. Porém não demorou para que os vizinhos fizessem um abaixo assinado por causa do barulho. Voltamos à casa do Eduardo. Seus pais também sempre estavam fora nos finais de semana e lá os vizinhos pareciam não se importar com o ruído. O local escolhido foi o escritório do apartamento, um cômodo que ficava de frente para a favela do Morro do Leme, no final de Copacabana. Nos mesmos dias que ensaiavamos, tinha uma banda punk que também ensaiava num dos barracos. Havia uma rivalidade muda mas tambem um acordo de cavalheiros, quando fazíamos uma pausa, eles começavam e vice-versa. Igual ao punk inglês, suas letras cruas refletiam uma realidade mais dura e simples do que a nossa. Mas não tinha jeito, sua revolta inocente nos fazia rolar no chão de tanta risada.
“Mulher foi assaltada,
a moça estuprada
e a polícia nada, nada, nada!”
Prefiro não pensar a respeito do que pensavam sobre a gente.
A liberação dos vizinhos de prédio do Melo era boa demais para ser verdade. Não demorou muito para que também fizessem um abaixo assinado exigindo o fim da barulheira. Isso nos forçou a procurar uma sala de ensaio de verdade, o que, por sua vez, nos fez entrar ainda mais fundo na toca do coelho do rock carioca. Com todo mundo formando bandas, as guitarradas viraram centrais na juventude carioca e os estúdios de ensaio eram uma extensão do Posto Nove. Entrando e saindo das salas apertadas repletas de equipamento a gente cruzava com as mesmas pessoas que víamos na praia. Lá ficávamos sabendo das melhores festas, das melhores transações de bagulho além das fofocas a respeito das outras bandas, tanto as já estabelecidas quando as em ascensão.
Com os ensaios e os novos contatos veio o primeiro show. A nossa estréia foi num palco armado em frente ao Museu de Arte Moderna no aterro do Flamengo. O evento fazia parte do aquecimento para o primeiro Rock in Rio que estava deixando a cidade desvairada. Excitados com a oportunidade de ouro, fomos vestidos a caráter, todos com roupas bizarras. Como vocalista e guitarrista coloquei uma cartola do meu avô, um blazer superdimensionado sem camisa por baixo, uma bermuda listrada verde e branca e um tênis de basquete laranja. Quando chegou a hora, vencemos o medo e encaramos a pequena multidão com garra. O público adorou e respondeu dançando frenéticamente durante as músicas e gritando o nome da banda nos intervalos. Um dos números que mais causou sensação foi nossa versão de “Wild Thing” do the Throggs e eternizada pelo Jimi Hendrix, Vadia.
Vadia!
Você é uma vadia!
Você cutuca a minha ferida!
Atazana a minha vida!
Depois daquele sucesso prematuro nos animamos e caímos na armadilha de nos levarmos a sério. Em nossa busca pela perfeição, experimentarmos várias salas de ensaio e acabamos por escolher uma na favela do Morro de São Carlos. O dono era o professor de bateria do Mauro, Charles – um cara alto com cabelos louros cacheados e barba encaracolada que faziam com que ele se parecesse com uma figura grega. Charles tinha sido o baterista do lendário Tim Maia, e da musa da Tropicália, Gal Costa, entre outros.
A favela, porém, era famosa por pertencer a uma das mais perigosas facções criminosas do Rio, o Terceiro Comando. Esse era um lugar onde polícia só se aventurava em subir lá com veículos blindados e protegida por helicópteros. Os muros altos do estúdio, o arame farpado e os cinco rottweilers faziam com que aquela propriedade parecesse uma fortaleza de um chefão do narcotráfico.
Por sermos a primeira banda a ter a corajem de ensaiar lá, tivemos uma acolhida VIP na espaçosa sala ainda cheirando a cimento. Depois de alguns meses, o lugar se tornaria um dos estúdios de ensaio mais procurados do Rio, utilizado por pelos artistas e bandas mais consagrados da cidade, como Cazuza, Hanói Hanói, Barão Vermelho e Azul Limão. Charles nunca se esqueceria da gente e continuaria fazendo um preço camarada. Ele também era generoso ao nos deixar tocar nos amplificadores profissionais que os famosos deixavam por lá.
Ainda que adorassemos o estúdio e, melhor ainda, tocar a todo volume no equipamento dos astros, chegar lá era sempre uma experiência tensa, principalmente com equipamento e instrumentos caros na traseira do carro. Sempre que dirigíamos pelas ruas estreitas, o pessoal da favela nos observava, sem saber direito se éramos da polícia, membros de uma facção rival ou clientes. Charles devia ter algum acordo tanto com os traficantes quanto com a polícia pois nunca fomos abordados, embora de vez em quando ele ligasse para o Marcos avisando para a gente não ir naquele dia porque o bicho estava pegando.