Este Direito Civil – Relações Obrigacionais: o sistema das obrigações, contratos e responsabilidade civil em chave civilizatória constitucional e de direitos humanos, de Pietro Nardella-Dellova, o segundo de 5 volumes de Direito Civil do autor, é um estudo introdutório e fundamental para a compreensão das Ciências Jurídicas e Sociais.
Dizer “direito civil em chave constitucional” não indica uma simples hermenêutica hierárquica, mas um Direito Civil que nasce com fundamentos na Constituição, irradiando-se em relações civilizatórias. Não é aceitável pensar em um Direito Civil isolado ou fechado no rudimentar núcleo civilístico. Hoje, fala-se de um Direito Civil, sobretudo nas relações obrigacionais (objeto deste volume), que vive e respira constitucionalidade, direitos pétreos e direitos humanos.
A pessoa deixa de ser simples sujeito de direito para elevar-se à altura de pessoa humana com dignidade e de centralidade nas mais variadas áreas jurídicas.
Os microssistemas, legislações civis e decisões judiciais relacionados às obrigações, contratos, atos ilícitos, função social dos contratos e da propriedade, responsabilidade civil, impenhorabilidade, pessoa consumidora, igualdade e emancipação da mulher, criança, adolescente, pessoa idosa, homoafetividade, pessoa com deficiência, assim como, às relações familiares socioafetivas, adoção, reconfiguração do poder dos pais, ao biodireito, e muito mais, demonstram que o Sistema de Direito Civil tradicional, sobretudo, o Código Civil, é insuficiente. São experiências sociojurídicas que, para além do sistema civilístico, objetivam um novo e vigoroso sistema de Direito Civil civilizatório.
Trata-se, assim, de um Direito Civil que em nada perde sua característica sistêmica de disciplina das relações horizontais. Ao contrário, ganha força, robustez, sentido, profundidade, eticidade e dignidade no âmbito e fontes constitucionais e humanistas. É o caminho irresistível do devir e da perfectibilidade das relações civilísticas, isto é, civilizatórias.
Este livro, organizado em 4 Partes: I – Constituição, Direitos Humanos e Direito Civil para um Sistema de Direito Civilizatório; II – Obrigações Jurídicas; III – Teoria Geral dos Contratos; IV – Responsabilidade Civil, é a proposta de um Direito Civil que rompe a dicotomia público-privado e propicia a humanização das relações jurídicas.
Enfim, atualmente, não deve (ou não deveria) ser difícil apreender parâmetros constitucionais e civilizatórios para o Direito Civil, mantendo, contudo, sua estrutura sistêmica. Esperamos, com a publicação desta obra, alcançar nosso objetivo.
Paralelamente à contradição de estar vivendo o sonho de pertencer a uma boa banda enquanto o clima em casa era de fim de festa, o Brasil passava por um momento importante.
A inabilidade dos militares em lidar com as complexidades de uma recessão e de uma inflação pesadas junto com as medidas de austeridade impostas pelo Fundo Monetário Internacional – o FMI – ao país em 1983 causou uma queda brutal na qualidade de vida dos brasileiros e das brasileiras. O descontentamento era geral. Porém, o mais frustrante era que não se podia votar para presidente. De acordo com os militares, os brasileiros não eram capazes de tomar tal decisão. A ditadura impunha que podiam escolher seus representantes no Congresso mas só dos únicos dois partidos permitidos, a ARENA e o MDB. Embora o lema do golpe miltar de 64 tenha sido reestabelecer a democracia e salvar o pais do comunismo os presidentes eram generais apontados pelas forças no poder. Havia a promessa – que ninguém acreditava – de que num futuro não especificado, permitiriam eleições para presidente. Confrontando essa mistura inaceitavel, as forças democráticas do país se uniram e, marchando juntas, lancaram um movimento que tomou as ruas sob o slogan “Diretas já! ”.
Gigantescas manifestações aconteceram em cidades por todo o Brasil. Após um comício em São Paulo que atraiu 1,7 milhões de manifestantes houve um outro no Rio que levou mais de um milhão de pessoas às ruas, a maior concentração política que a cidade já tinha visto.
Uma revolução em tempo real era algo imperdível. O evento foi no auge no verão, em Janeiro, e devido a uma greve dos professores a faculdade ainda estava funcionando. Matei aula para chegar cedo na Candelária. Já havia uma pequena multidao e passando apertado por entre o povo consegui subir numa banca de jornais para ver melhor. Fiquei ali vendo a rua lotar. Quando ja não dava para ver onde o mar de gente terminava na avenida Presidente Vargas, o primeiro discurso começou. Enquanto tentava me concentrar nas palavras do orador, senti alguns pingos no meu ombro. Quando olhei para trás, havia alguém mijando em uma coluna bem atrás de mim.
“Que porra é essa, meu irmão!? Tu acha que tu tá sozinho aqui!?”
“Ih! Foi mal! ” E o idiota mirou para outro lado.
Dali para frente as coisas só melhoraram. Artistas famosos, líderes do congresso, governadores, juristas e outras figuras eminentes da política foram se revezando no palanque fazendo discursos históricos e sendo aplaudidos em peso pela massa reunida. O comício demorou horas e terminou com a multidão cantando o Hino Nacional com todos marcando aquele momento na memória coletiva brasileira com lágrimas nos olhos.
Brasília, a capital federal, ficava longe dos grandes centros, de maneira que os governantes só viam o que estava acontecendo pela televisão. Isso os conferia um distanciamento e um senso de imunidade. Sua concessão foi permitir que o congresso elegesse um presidente civil, Tancredo Neves, uma figura amplamente respeitada e que tinha sido tolerado pelo regime no Congresso fantoche como oposição simbólica ao golpe desde o seu início. O candidato oficial que eles deixaram perder as eleições indiretas foi Paulo Maluf. Esse era um político impopular, notoriamente corrupto, que no auge da ditadura foi apontado pelos militares para ser o governador de São Paulo.
Com a vitória de Tancredo, um presidente civil finalmente tomaria posse no Brasil pela primeira vez em mais de 20 anos. Entretanto, o presidente eleito adoeceu sériamente poucas semanas antes da diplomação. Esse drama manteve o Brasil em suspense: ninguém sabia a real gravidade da enfermidade de Tancredo, se ele poderia assumir a presidência ou se havia algum tipo de conspiração em andamento. Com Tancredo hospitalizado e possivelmente em coma, José Sarney, o vice-presidente, escolhido para agradar segmentos militares e governadores da situação no Nordeste, tomou posse em março de 1985. Semanas depois, Tancredo morreu.
Estávamos escalados para fazer um show na noite em que confirmaram a morte de Tancredo. Enquanto um Brasil abalado se unia no luto, ficamos sentamos na escadaria da boate em Copacabana torcendo para que alguém aparecesse. Eduardo ficou andando ansioso de um lado para o outro, parando apenas para perguntar porque não havia ninguém lá. Nós pacientemente explicamos que o Brasil havia acabado de perder o seu presidente de direito, ao que ele retrucou.
“Sério? Morreu de quê?”
Ele não estava brincando e caímos na gargalhada sem conseguir acreditar como alguém poderia estar tão completamente fora da realidade.
*
Naquele momento político conturbado e da tempestade econômica o Rio estava vivendo a febre do rock. De uma hora para outra, parecia que todo mundo fazia parte de uma banda e aqueles que não faziam pareciam desesperados para se envolver de uma maneira ou de outra. Em meio a toda essa agitação, apareceu a primeira estação de rádio do estado a se dedicar exclusivamente ao rock; a Rádio Fluminense. Ela transmitia do outro lado da Baía de Guanabara, de Niterói. O seu jovem dono tinha acabado de herdar a estação e estava disposto a deixar sua marca. Graças à ele, ninguém mais precisava comprar discos para ouvir bandas como Led Zeppelin, Yes, Jethro Tull, Pink Floyd e The Who. A festa acabou quando as grandes gravadoras foram bater na porta da rádio exigindo direitos autorais.
Sem poder pagar, a Rádio Fluminense passou a tocar exclusivamente artistas internacionais recentes, produzidos por selos independentes ansiosos para tornar seus artistas conhecidos no Brasil. Ainda que acabasse perdendo o status de rádio pirata voltada para uma geração mais velha, a Maldita FM, como eles gostavam de se apresentar, fez sucesso com um público interessado em ouvir as bandas de vanguarda sobre as quais viviam lendo em revistas importadas, mas às quais não tinham acesso. Foi assim que o Rio entrou de vez nos anos oitenta.
Daniel, que mais tarde seria um colega de trabalho quando me tornaria professor de inglês, foi fundamental para o sucesso da Rádio Fluminense. Na época, ele era comissário de bordo internacional e durante suas paradas em Londres e Nova York, comprava os últimos lançamentos das bandas mais recentes. Quando voltava ao Rio, os entregava na Rádio Fluminense. Isso dava à emissora uma vantagem que nenhuma outra poderia ter.
Mas não eram só bandas internacionais que a radio tocava e a gente estava doido para aparecer lá.
Charles, o dono do estúdio e agora nosso empresário informal, levava fé na banda e começou a conseguir shows para a gente. Com a pouca grana que ganhamos com eles, investimos em uma fita demo na esperança de viver o sonho de tocar na Maldita FM. Ainda que sua sala de ensaio fosse excelente, para seu espanto, decidimos que o que o Charles oferecia em termos de estúdio de gravação não era bom o suficiente. Isso nos levou a melhores estúdios, onde trabalhamos com engenheiros de som fazendo pose de profissionais de verdade sem tempo para riquinhos pretensiosos da Zona Sul.
Apesar da arrogância e da impaciência dos caras, levavamos a coisa a sério. As preparações e as gravações em si nos fizeram parar para ouvir o que estávamos fazendo e tomarmos uma distância do trabalho. Ficamos mais conscientes do que estávamos tocando, aprendemos bastante e melhoramos. No entanto, o pseudo profissionalismo dos estúdios não permitiu que a banda mostrasse o seu melhor. O método deles, ainda que utilizasse tecnologia de ponta, era contra-intuitivo e contra-produtivo: cada um gravava sozinho em uma sala escutando as faixas dos outros com fones de ouvido. Não havia prazer ou calor humano nas gravações. As sessões eram chatíssmias, normalmente tarde da noite ou de madrugada porque era mais barato, Algumas vezes alguém perdia a concentração errava sua parte no meio da gravação, enquanto noutras quem se confundia era o engenheiro, quando não eram os dois. O resultado era repetições sem fim onde a essência da banda sucumbiu aos detalhes técnicos.
“ Nosso suor sagrado
É bem mais belo que esse sangue amargo. ”
Tempo Perdido - Legião Urbana
Ninguém gosta de derrotados, mesmo quando torcem para você perder. Por isso a receptividade da volta de São Paulo foi morna, mesmo que no fundo seu Rafael e a dona Renée tivessem ficado felizes por ter seu filho de volta em casa, na esperança de que deixaria de lado uma luta que nunca entenderam. Da minha parte, apesar do gosto amargo de retornar com o rabo entre as pernas, estava claro que os dias de meu pai estavam contados e queria tentar diminuir o fosso que nos separava antes que fosse tarde demais.
Por falta de melhores opções, no fim do verão, destranquei minha matrícula e voltei para o curso de Economia. O que aconteceu foi previsível. Não me sentia mais parte do que acontecia ali enquanto o pessoal que tinha entrado comigo me menosprezou por não ter ido até o fim naquilo que buscava e meus novos colegas de turma ou me viam como um rebelde incompreensível ou como um idiota que tinha ficado para trás nos estudos. Minhas notas eram baixas, detestava as aulas e sentia a realidade implacável de perder um ano inteiro para voltar ao ponto de onde tinha saído. Com o país e a família se desintegrando era difícil encontrar um sentido naquela realidade.
No entanto, a vida continuou. A eterna cura carioca para pressões e frustrações – a praia – era infalível. No Posto Nove de Ipanema o tempo, as crises e os problemas pareciam não existir. Depois de um dia regado a mar, sol e beleza natural tanto paisagística quanto humana o mundo parecia voltar ao lugar de onde nunca deveria ter saído. Num daqueles domingos ensolarados, encontrei o Eduardo, um antigo colega de sala do Colégio Andrews. Estranhei vê-lo ali já que nunca tinha sido frequentador da área, muito menos tinha sido parte da galera. Agora estava mudado, não era mais o cara introvertido e magricela que todos conheciam, estava cabeludo e parecendo descolado. Era óbvio que também tinha dado uma passada pela academia pois estava todo bombado.
Uma das primeiras coisas que me contou, com orgulho, foi que tinha aprendido a tocar guitarra. Sem ter certeza de qual era a dele, mas sempre interessado em levar um som, concordei em marcar uma guitarrada na casa dele depois da praia. Na despedida, Eduardo me perguntou se poderia chamar seu amigo Pedro, um baixista. Concordei e me lembrei do Mauro, um amigo da universidade que tocava bateria, e fiquei de ver se ele poderia ir também. Foi assim que a banda nasceu.
Adoramos a primeira sessão e depois dela aquilo virou uma rotina obrigatória nos fins de semana. Descobrimos naquela barulheira uma diversão recompensante, barata e terapêutica. Quando a música entrava alta, havia a sensação quase delirante de flutuar acima de todo o baixo astral que nos cercava. As frustrações se canalizavam na agressividade das guitarras e do baixo, nas pancadas da bateria e nos gritos no microfone. Quanto a qualidade, bem… estávamos aprendendo.
De qualquer forma, a partir daquele primeiro ensaio, como qualquer outra banda da época, havia a esperança e a meta de um dia tocar no Circo Voador e quem sabe alçar voos mais altos. As músicas que levávamos eram de outras bandas; classicos dos Rolling Stones, Deep Purple e Jimi Hendrix além de algumas nossas que fomos introduzindo, todas fáceis de tocar e catárticas
Como num início de namoro, depois que a coisa se tornou mais séria vieram as formalidades. A principal foi achar um nome. No começo fomos de “Papa Clitóris e os Oligofrênicos”, mas depois de algumas rejeições pensamos melhor e decidimos por um nome mais palatável, “Arrepio”, uma gíria surfista para se dizer impressionado – “O cara arrepiou na guitarra.”
*
A casa do Eduardo era meio apertada para ensaios e passaram a ser na minha, sempre liberada nos fins de semana devido às idas dos meus pais para Teresópolis. Porém não demorou para que os vizinhos fizessem um abaixo assinado por causa do barulho. Voltamos à casa do Eduardo. Seus pais também sempre estavam fora nos finais de semana e lá os vizinhos pareciam não se importar com o ruído. O local escolhido foi o escritório do apartamento, um cômodo que ficava de frente para a favela do Morro do Leme, no final de Copacabana. Nos mesmos dias que ensaiavamos, tinha uma banda punk que também ensaiava num dos barracos. Havia uma rivalidade muda mas tambem um acordo de cavalheiros, quando fazíamos uma pausa, eles começavam e vice-versa. Igual ao punk inglês, suas letras cruas refletiam uma realidade mais dura e simples do que a nossa. Mas não tinha jeito, sua revolta inocente nos fazia rolar no chão de tanta risada.
“Mulher foi assaltada,
a moça estuprada
e a polícia nada, nada, nada!”
Prefiro não pensar a respeito do que pensavam sobre a gente.
A liberação dos vizinhos de prédio do Melo era boa demais para ser verdade. Não demorou muito para que também fizessem um abaixo assinado exigindo o fim da barulheira. Isso nos forçou a procurar uma sala de ensaio de verdade, o que, por sua vez, nos fez entrar ainda mais fundo na toca do coelho do rock carioca. Com todo mundo formando bandas, as guitarradas viraram centrais na juventude carioca e os estúdios de ensaio eram uma extensão do Posto Nove. Entrando e saindo das salas apertadas repletas de equipamento a gente cruzava com as mesmas pessoas que víamos na praia. Lá ficávamos sabendo das melhores festas, das melhores transações de bagulho além das fofocas a respeito das outras bandas, tanto as já estabelecidas quando as em ascensão.
Com os ensaios e os novos contatos veio o primeiro show. A nossa estréia foi num palco armado em frente ao Museu de Arte Moderna no aterro do Flamengo. O evento fazia parte do aquecimento para o primeiro Rock in Rio que estava deixando a cidade desvairada. Excitados com a oportunidade de ouro, fomos vestidos a caráter, todos com roupas bizarras. Como vocalista e guitarrista coloquei uma cartola do meu avô, um blazer superdimensionado sem camisa por baixo, uma bermuda listrada verde e branca e um tênis de basquete laranja. Quando chegou a hora, vencemos o medo e encaramos a pequena multidão com garra. O público adorou e respondeu dançando frenéticamente durante as músicas e gritando o nome da banda nos intervalos. Um dos números que mais causou sensação foi nossa versão de “Wild Thing” do the Throggs e eternizada pelo Jimi Hendrix, Vadia.
Vadia!
Você é uma vadia!
Você cutuca a minha ferida!
Atazana a minha vida!
Depois daquele sucesso prematuro nos animamos e caímos na armadilha de nos levarmos a sério. Em nossa busca pela perfeição, experimentarmos várias salas de ensaio e acabamos por escolher uma na favela do Morro de São Carlos. O dono era o professor de bateria do Mauro, Charles – um cara alto com cabelos louros cacheados e barba encaracolada que faziam com que ele se parecesse com uma figura grega. Charles tinha sido o baterista do lendário Tim Maia, e da musa da Tropicália, Gal Costa, entre outros.
A favela, porém, era famosa por pertencer a uma das mais perigosas facções criminosas do Rio, o Terceiro Comando. Esse era um lugar onde polícia só se aventurava em subir lá com veículos blindados e protegida por helicópteros. Os muros altos do estúdio, o arame farpado e os cinco rottweilers faziam com que aquela propriedade parecesse uma fortaleza de um chefão do narcotráfico.
Por sermos a primeira banda a ter a corajem de ensaiar lá, tivemos uma acolhida VIP na espaçosa sala ainda cheirando a cimento. Depois de alguns meses, o lugar se tornaria um dos estúdios de ensaio mais procurados do Rio, utilizado por pelos artistas e bandas mais consagrados da cidade, como Cazuza, Hanói Hanói, Barão Vermelho e Azul Limão. Charles nunca se esqueceria da gente e continuaria fazendo um preço camarada. Ele também era generoso ao nos deixar tocar nos amplificadores profissionais que os famosos deixavam por lá.
Ainda que adorassemos o estúdio e, melhor ainda, tocar a todo volume no equipamento dos astros, chegar lá era sempre uma experiência tensa, principalmente com equipamento e instrumentos caros na traseira do carro. Sempre que dirigíamos pelas ruas estreitas, o pessoal da favela nos observava, sem saber direito se éramos da polícia, membros de uma facção rival ou clientes. Charles devia ter algum acordo tanto com os traficantes quanto com a polícia pois nunca fomos abordados, embora de vez em quando ele ligasse para o Marcos avisando para a gente não ir naquele dia porque o bicho estava pegando.
“Porque és o avesso do avesso do avesso”
Caetano Veloso - Sampa
A inabilidade dos meus pais em me enquadrar e minha fixação na guitarra elétrica foi gerando uma uma pressão ansiosa que ninguém aguentava mais. Me tornei agressivo, Rafael não me dirigia a palavra e Renée surtava direto por tudo e por nada que eu fazia. Até a Sarah e a dona Isabel passaram a me olhar de cara fechada. O plano original era ir para São Paulo para fazer o vestibular e farto daquele clima, resolvi ir meses antes do tempo planejado. Quando anunciei a decisão, não houve drama, talvez porque eles achassem que se ficasse fora, numa outra cidade, quem sabe fosse levar a vida mais a sério.
De qualquer forma, sair de casa de vez era um momento importante, um grande salto no escuro. Todos, inclusive eu, sabíamos que dali para frente tudo seria diferente e nossas apreensões traziam os nervos à flor da pele.
Parti tarde da noite. Escolhi aquele horário porque chegaria de manhã cedo e teria o dia seguinte inteiro para procurar a casa do estudante universitário e me instalar lá. Apesar de ter dito em casa que seria mole arranjar um lugar, não tinha conseguido confirmar. Era um risco que estava tomando. Apesar de ter o número telefônico, o contato era impossível; ou a linha ficava ocupada direto, ou ninguém atendia, ou alguém atendia e me deixava esperando para sempre, ou simplesmente atendia, dizia que não podia dar a informação e desligava na minha cara.
Embora a rodoviária estivesse vazia, ainda havia uma fila no balcão para São Paulo. Enquanto esperava, do nada, um cara de trinta e pouco anos, bem arrumado, veio me perguntar se queria uma carona. Disse que não.
“Tô legal aqui, minha vez já tá chegando, mas obrigado por oferecer.”
Ele insistiu: “Não precisa agradecer, seria um favor que você me faria.”
Apesar da negativa, ele insistiu. “Tive que ir visitar minha mãe que está doente no Espírito Santo . Estou na estrada há doze horas e com sono. Preciso de alguém para ficar conversando para não dormir.”
“Olha, entendo, mas não estou a fim.”
“Mas, por quê?”
Sem conseguir achar uma resposta convincente, mas querendo me livrar da aporrinhação respondi “Estou pegando um ônibus leito, tenho que dormir na viagem. Amanhã tenho um encontro importante.”
“Ônibus leito?! É muito caro! Meu carro é de graça e é confortável.” Ele tirou a carteira. “Está vendo isso aqui, é a minha carteira de médico. Sou cardiologista registrado, está vendo? No Hospital Albert Einstein, conhece?”
Até eu conhecia o Hospital Albert Einstein. A carteira me pareceu verdadeira e minha vez na fila estava chegando. Sentindo a vacilação, o cara continuou: “Você deve estar com medo, achando que eu sou um maluco, né? Eu pensaria a mesma coisa, mas não se preocupe, sou do bem! Olha, te levo até o carro e você pode revistar à vontade.”
“Meu irmão, não tenho medo de nada!” Estava começando a mudar de ideia. O cara parecia mesmo um médico estressado e eu era maior do que ele, o que me garantiria se rolasse algum problema. Além do que, uma passagem de ônibus leito equivalia a umas cinco ou seis refeições. “Vamos ver teu carro para ver qual é.”
Na ida ele não parava de me agradecer e de repetir que era médico, que tinha que trabalhar cedo no dia seguinte, que a mãe estava doente no Espírito Santo e que precisava de alguém para conversar para ficar acordado. O único problema é que parecia acordado demais para alguém que se dizia cansadíssimo. Talvez fosse a ansiedade, café, sei lá.
Chegamos no estacionamento e paramos um Monza azul escuro em ótimo estado. Ele abriu a porta e colocou os bancos para frente. “Pode examinar se tem alguma coisa aí dentro. Aqui, dá uma olhada no porta luvas, não tem nada. Olha debaixo dos bancos, vai lá, faço questão.”
Depois ele abriu o porta-malas. “Dá uma olhada aqui. Viu? Nem mala tem, fui de última hora para ver minha mãe e não levei nada. Olha aqui no estepe; só tem estas ferramentas, mas isto não é arma, é obrigatório. Quer que eu abra a frente para checar o motor?”
“Não, tá na boa.” Cocei a cabeça, achando que o cara estava nervoso demais para o meu gosto. “Mas não sei. ”
“Olha, tudo bem, se você não quiser ir, entendo, mas diz logo porque senão vou ter que voltar na fila, em meia hora os ônibus param de circular.”
Realmente, não havia nada estranho no carro, a história era plausível, pensei de novo no preço da passagem e pensei: “Foda-se…”
Virei para o cara e disse: “Então tudo bem, vamo nessa.”
O doutor agradeceu todo sério. “Muitíssimo obrigado, como te disse, é um favor que você me faz. Mas chega de conversa, né? Vamos embora.”
Coloquei a mochila no banco de trás, entramos no carro, fechamos as portas, ele virou a chave na ignição, o motor ligou e saímos do estacionamento rumo à via Dutra.
“Por sinal meu nome é Ivan e o teu?”
“Richard.”
“Prazer Richard, se importa se eu ligar o ar-condicionado?” Eu não ia dizer que não, estranhando estar viajando num carro confortável que não fazia parte do plano. Depois de um tempo ele quebrou o silêncio desconfortável. “Você gosta de que tipo de música? Pode pegar a caixa de cassetes debaixo no banco de traz, fica a vontade de colocar o que você quiser.”
“Valeu, mas eu estou legal.”
“Se importa então se eu ligar o rádio, então?” Ele colocou numa estação de música ligeiramente brega. Não gostei, mas por estar de carona fiquei quieto. Na subida da serra já estávamos conversando. Quando chegamos em cima, o ar já estava mais frio, demos uma parada num posto semi vazio, tomamos café, comi um sanduíche e voltamos para o carro. Na altura de Resende, a metade do caminho, o doutor disse que estava cansado.
“Não estou conseguindo dirigir, deveria ter tomado mais café. Os olhos já estão quase fechando. ”
“Sem problemas, estou acordadão, tenho carteira de motorista, quer ver? Para o carro e a gente troca. ” Falei, animado com a ideia de pegar a Dutra à noite.
Ele retrucou com um olhar estranho e sorriu. “Sabe o que é? Estou doido para passar a noite num motel contigo. ”
A ficha caiu. Me senti um idiota completo por ter caído no papo, mas o que ele queria não ia rolar de jeito nenhum.
“Não senhor”, respondi resoluto. “Estou aqui pela carona, não tem nada de noite gay no plano!”
Dali em diante rolou uma batalha de insistência versus recusa.
“Mas como é que você pode dizer que não gosta de uma coisa que nunca provou?’
“Amigo, nunca provei nem vou provar. E você? Nasceu veado ou foi porque apanhava muito na escola?”
“Isto não vem ao caso, mas não ia ser legal a gente ficar tirando a cueca um do outro num quarto gostoso?”
“Meu irmão, dá para parar o carro na próxima parada?”
“Mas daqui a pouco estamos chegando!”
“Então que porra é essa de parar em motel?”
“É que eu estou exausto!”
“Se você está exausto deixa eu dirigir, olha a minha carteira aqui!”
O doutor não se dava por vencido e comecei a me preocupar com sua recusa de parar. Quando amanheceu, já estávamos nos aproximando da periferia de São Paulo. Finalmente convencido de que não ia acontecer nada, ele parou o carro num ponto de ônibus. Dando graças por ser mais forte que aquele maníaco pentelho, peguei minhas coisas e saí daquele inferno.
Assim que minha atenção se desviou do carro desaparecendo na rodovia e se voltou para os arredores, percebi que estava num lugar que parecia uma favela. A próxima hora e meia seria um curso intensivo de realidade urbana brasileira. Já tinha subido favela para comprar bagulho, mas era completamente ignorante sobre o dia a dia de pessoas humildes e trabalhadoras. Teoricamente, sempre soube que tinham uma vida difícil, mesmo assim, foi um choque ver, em primeira mão, o que se passava.
Ainda estava escuro e frio, mas o ponto de ônibus descoberto já estava amontoado. Havia lanchonetes próximas, todas muito simples, onde tinha gente tomando café da manhã. O aroma da bebida sendo o único conforto na área.
As feições da maioria, senão todas as pessoas ali, eram Nordestinas. Com certeza ou eles ou os pais tinham saído de lá em busca de uma vida melhor. Seus rostos pareciam com os que tinha visto em minhas viagens, mas a falta de sol, o frio, os efeitos da vida na metrópole tinham tido seus efeitos. Suas peles já estavam cinza, suas caras com uma expressão automata. Moloch estava se alimentado da sua vivacidade.
Cansado, chateado com a minha burrice em ter aceito aquela carona, com frio e com um pouco de fome fiquei esperando o ônibus. Ao olhar para aquele povo, não podia deixar de acreditar que uma força maior havia me colocado ali para me mostrar o outro lado da moeda das minhas aventuras de verão.
Quando o ônibus chegou, me apertei com os outros para entrar na condução já lotada. Sem poder mexer um dedo, passamos pelas enormes fábricas da Ford, Volkswagen, Gessy Lever e outras multinacionais. Alguns passageiros saltaram nesses complexos isolados, mas o destino da maioria era o mesmo que o meu: o Centro da Cidade. Amontoados como sardinhas numa lata por uma hora e meia, nos contorcendo quando alguém tinha que passar para descer, tive uma amostra da rotina diária daquelas pessoas. Elas teriam que fazer a mesma viagem de volta à noite e teriam que suportar aquelas mesmas condições quase todo santo dia de suas vidas. Tudo isso para receberem um salário miserável e serem tratados como cidadãos de segunda categoria em seus empregos, sem qualquer perspectiva de melhora.
Aquela rotina foi demais para o sistema. No último dia de Carnaval estava totalmente acabado. Numa rajada de sanidade, resolvi dar uma volta pela cidade para desintoxicar. Eram umas onze da manhã, e fui curtir o sossego das vias coloniais mais afastadas, longe do carnaval. De short e sem camisa, saí explorando a cidade até chegar a uma rua que terminava na subida do viaduto que ligava Olinda a Recife. Não dava para continuar dali, não havia passagem para pedestres. Vendo aquilo como um desafio, alguma força maluca me levou a arriscar uma travessia pela amurada desprotegida.
Sem ter nada em que pudesse segurar, segui pelo concreto estreito que chegava a ficar a uns vinte metros de altura sobre uma avenida movimentada. Qualquer tropeço seria fatal. Nunca tive um bom senso de equilíbrio mas na hora isso não pareceu importar. Olhei em frente e, como um equilibrista numa corda bamba, cheguei ao outro lado. Não estava sob o efeito de nada e nunca consegui entender o que me levou a correr aquele risco. Seriam tendências suicidas? Estava tentando provar alguma coisa a mim mesmo? Excesso de autoconfiança? Ou simplesmente não estava nem aí? Devia havet moleques que faziam isso todo dia.
Cruzei o viaduto sem problemas e desci numa rua calma, também colonial. Na primeira janela aberta, deparei com uma mãe ajudando seu filho com o dever de casa, os dois alheios à minha confusão mental e ao barulho ensurdecedor do trânsito. Meio atonito, parei para olhar, os dois me viram, demos uma encarada intensa, eles talvez com medo do maluco parado na janela e eu tentando entender como aquela cena pacata e racional era possível. Segui em frente me perguntando se havia uma mensagem do universo naquela cena.
Voltei para Olinda de ônibus e assim que desci de volta aos braços do Carnaval que já estava pegando fogo. Fiz uma parada na casa VIP onde as pessoas estavam se preparando para sair num bloco famoso. Como era a saidera, a Australiana ruiva caprichou na tatuagem de verão e meu rosto ficou fantasiado do que estava sentindo. Todos prontos e calibrados, saímos para rua parecendo personagens surrealistas. A maioria foi para o bloco mas prefiri me aventurar sozinho. Não demorou muito para agarrar uma gostosa local e a levar para o parque onde os casais iam. Tinha tido varias, nenhuma tinha a magia quase inocente da Gê, mas deu para matar a saudade.
Quando caiu a noite, fui com ela a um bar encontrar seus amigos que acabei achando caretas demais. Depois que se foram, comecei a conversar com uns caras meio barra pesada da mesa do lado. O papo se tornou bizarro e os dois acabaram me convidando para viajar de graça de navio para Europa levando cocaína. Sentindo aquilo pesado demais, saí fora e voltei para a confusão das ruas onde cruzei com um colega de sala da faculdade. Felizes com a coincidência, saímos abraçados atrás de um bloco. Ficamos na farra até às quatro da manhã. Com as ruas esvaziando, fomos para um bar deserto onde ficamos batendo papo até ele ir embora.
Naquela altura, o céu já estava ameaçando clarear. Era a hora de dar por encerrado o carnaval. No caminho, cruzei com o Betinho, o filho do prefeito, acompanhado de amigos, subindo a ladeira que estava descendo.
Fiquei surpreso quando ele me chamou do outro lado da rua: “Fala carioca! Tu não é o amigo da Dinah?”
“Sou, e aí? Beleza?”
“Tu tinha um nome gringo, não é mesmo? Richard?”
Me aproximei. “Isso mesmo. E aí? Resolveu sair?”
“Pois é, meu irmão, ser anfitrião é um saco!” Deu para sentir que os amigos estavam a fim de me dispensar, mas para contrariar, ele me convidou “E aí? Bora fumar a saideira do Carnaval ali em cima no parque?”
Não ia perder a oportunidade. “Opa! Vambora!”
Pata irritar seus amigos, ele continuou conversando comigo. “E então, carioca, curtiste a festa? Gostaste do Carnaval de Olinda?”
O cansaço não tinha roubado o bom humor. “A parte que me lembro foi demais, a parte que não me lembro deve ter sido melhor ainda.”
Ele deu um sorriso. “Pois é rapaz, todo ano fazemos uma dessas. A gente abre a casa para os outros se divertirem e se diverte com eles.”
Um dos amigos emendou: “Essa festa é uma tradição do Carnaval de Olinda. Merecia entrar no calendário oficial!”
O Betinho, visivelmente cansado da bajulação, voltou a falar comigo. “Carioca, te garanto que tu vai fechar o Carnaval com chave de ouro.” Ele tirou do bolso uma muda ressacada. “Isto aqui é o famoso Manga-rosa. Tirado do pé faz nem uma semana. Meu primo ali me trouxe direto de Cabrobró. Já ouviste falar?”
“Caralho! Manga-rosa! Nunca pensei que fosse experimentar isso na vida!”
Ele passou para eu dar uma olhada. Um outro amigo falou: “Chega até a ser bonito. Dá uma cheirada para sentir. Não existe melhor!”
O cheiro era fortíssimo. “Isso cheira a bagulho bom!”
“E é! Made in Pernambuco!”
Chegamos no topo do parque e nos sentamos numa escadaria de pedra para esperar o sol nascer.
O primo quebrou o silêncio. “Passa aqui pra eu apertar.”
O cara era um artista, saiu perfeito. “Isso também é uma tradição. O Betinho sempre guarda um para agora.”
“É verdade, a gente faz isso desde moleque. Sempre fechamos o Carnaval com um desses para depois sair no Galo da Madrugada.” Tinha ouvido falar no bloco, era o último do Carnaval.
O primo do Betinho passou o baseado para ele acender. Quando chegou em mim, deu uma onda quase tão forte quanto os cogumelos alucinógenos de Mauá e – como toda boa maconha – dois pegas bastavam.
Ficamos ali, sozinhos com a cidade só para nós. Em pouco tempo o horizonte foi alaranjando até o sol aparecer como um círculo brilhante. Ele foi subindo iluminando de leve a natureza à nossa volta. As cores magníficas, o silêncio e a temperatura amena fizeram aquele momento ser perfeito. Relaxando depois de sorver tanta vida, não só no Carnaval mas no verão inteiro, fiquei em estado de graça.
Estávamos em transe quando, do nada, dois estranhos chegaram e se juntaram a nós. Eram mais velhos, nos seus trinta e poucos, um era louro, grande, de cabelos compridos e com ar de surfista e o outro era musculoso, de camiseta de malhador apertada e com um corte de cabelo estilo escovinha.
O cabeludo puxou conversa: “Barbaridade, que visual incrível!”
Estava na cara que ele era gaúcho só que ninguém estava a fim de papo. Ignoramos, mas eles insistiram.
O outro falou em um inglês com sotaque americano, meio agressivo “Diz para eles que a gente sabe que eles estão chapados, mas que estamos muito mais chapados que eles.”
O gaúcho traduziu e depois explicou: “Esse maluco é americano, não fala uma palavra de português.”
Depois de uma pausa, um dos amigos do Betinho respondeu.
“Não existe esta de estar mais ou menos chapado, estamos aqui curtindo a paz do visual.” E completou em inglês. “Aqui todo mundo aqui fala inglês, relaxa.”
O gaúcho continuou em português “Este americano é tri-louco, grudou em mim e agora que tomamos um ácido ele está mais louco ainda.”
Quando o gaúcho mencionou ácido olhamos em sincronia para os dois, mas a vontade de ficar em silêncio continuou. Talvez por se sentir na obrigação de fazer turistas se sentirem bem-vindos na sua cidade, Betinho se tornou nosso porta-voz.
O cara era um político nato. “Curtiram o Carnaval? Did you enjoy the Carnival of Olinda?”
Quem respondeu foi o Gaúcho “Eu venho todo ano passar o Carnaval com a minha irmã que mora em Recife. O Mark aqui está estacionado em uma base militar no Caribe e veio passar as férias.”
O americano ainda nao tinha entendido que todo mundo ali – talvez com a excessão do gaúcho – falava inglês. A palavra Caribe tinha pescado sua atenção ainda que continuasse a achar que não entendíamos o que estava dizendo.
“Caribbean yeah, Guantánamo! ” Bateu nos braços fortes “Sou um Marine, entende?! Adoro armas, combate e mulheres brasileiras. Fala para eles que eu estive no Vietnã! ”
A palavra Guantánamo tinha deixado todo mundo de orelha em pé. Mesmo assim, a presença deles e o papo eram tão fora de contexto que ficou difícil distinguir se aquilo era verdade ou alucinação. De qualquer forma ninguém estava a fim de rebater o cara em inglês naquela altura. Eu é que não ia me meter.
O gaúcho, sem perceber as nuances da situação continuou no papel de intérprete lisérgico: “Não estou dizendo que este americano é doido?! Agora ele inventou que lutou no Vietnã. ”
Pela idade era impossível, como também era muito pouco provável que estivesse estacionado em Guantánamo. Por outro lado, o físico, a atitude e o corte de cabelo pareciam confirmar que se tratasse de um Marine. Novamente, ninguém falou nada torcendo que eles descessem da nossa nuvem o mais rápido possível.
O americano continuou a nos desafiar, acenou com a cabeça, colocou dois dedos para cima e falou num português fraquíssimo: “Sim, dois anos, eu in Vietnam. ”
O gaúcho estava hiperativo. “Liga não, ele é maluco assim mesmo, faz cara feia, inventa histórias e volta e meia se mete em confusão. No fundo é gente boa, mas o melhor é ignorar a figura.”
Aquilo de absurdo virou chato. Deu vontade de ter um controle de televisão para trocar de canal ou uma tecla para baixar o volume ou fazer os dois desaparecerem. O americano finalmente se deu conta de que a gente não estava na mesma onda e disse ao gaúcho: “Hey buddy! Let’s go! ”
O gaúcho traduziu: “Moçada, a gente vai nessa.”
Os dois partiram da mesma maneira que chegaram e aliviaram o ambiente. Ficamos uns quinze minutos sem falar nada. Alguem acendeu o baseado de novo e quando chegou na vez do Betinho, ele interrompeu o silêncio. “Galera, daqui a pouco o Galo da Madrugada vai sair, vamos lá?”
Todo mundo foi, mas resolvi ficar, minha quota de Carnaval já estava pra lá de preenchida. Agradeci e a gente se despediu. Fiquei ali sozinho, apreciando a beleza de Olinda até a lombra passar. Aquelas loucas primeiras horas da manhã em uma cidade histórica no Nordeste brasileiro marcou a minha despedida de uma época especial; um período de minha vida do qual sempre sentirei saudades.
O Pedro, com quem cruzei apenas uma vez durante o Carnaval, tinha conseguido carona na caravana dos amigos da Carla e ia voltar com eles para o Rio. Voltei sozinho e tive sorte de pegar caronas longas. Quando cheguei em Campos, no Estado do Rio, me dei conta de que tinha gasto todo a grana. Como precisava chegar em casa a tempo do início das aulas, pela única vez na vida, pedi dinheiro a estranhos para completar o dinheiro da passagem de ônibus e para comer alguma coisa; uma situação bem distinta da que tinha rolado na casa do Betinho e uma lição importante de humildade.
"Na Madalena revi teu nome
Na Boa Vista quis te encontrar
Rua do Sol, da Boa Hora
Rua da Aurora, vou caminhar."
Pelas ruas que andei. - Alceu Valença.
Não havia celulares na época, o único contato com nossas famílias era uma ligada semanal que faziamos na telefônica da cidade onde estivéssemos – se houvesse uma -, para assegurar que tudo estava bem. Como de praxe, na quinta feira antes do Carnaval, fomos na de Olinda. Quando sua vez chegou, Pedro fez duas ligações, uma para sua mãe e outra para Carla, sua namorada. Hospedada em um hotel em Fortaleza ela veio com a surpresa de que tinha alugado um apartamento em Boa Viagem, no Recife, e que estava vindo de avião no dia seguinte para passar o Carnaval com ele. O Pedro ficou nas nuvens, mas para mim a notícia de que passaria o Carnaval sozinho me deixou puto. Só que no final o resultado foi muito melhor do que podia imaginar.
Para compensar o furo, Pedro me deu o contato da Dinah, uma jornalista que havia conhecido em Porto Seguro. Sua amiga estava hospedada na casa do – nada mais nada menos – filho do prefeito de Olinda. Depois que saiu sem graça com suas tralhas do quarto, fiquei olhando para a porcaria do papelzinho com o número, pensando se ligava ou não. Só a conhecia de vista, com certeza ia me mandar pastar assim que atendesse. De qualquer forma arrisquei e fui para o orelhão da esquina, Quando atendeu, para minha surpesa, a Dinah me tratou como se fossemos amigos de longa data.
Ela ja estava sabendo “Richard! Claro que me lembro! Quer dizer que o Pedro, aquele galinha, vai passar o Carnaval no bem-bom e te deixou na mão.”
Simpaticíssima, me convidou para passar o Carnaval com ela. “Olha, o pessoal está se encontrando todo dia aqui na casa do Betinho Magalhães. O Pedro te falou quem ele é? Pois é! Por que você não aparece hoje à noite para eu te apresentar ao pessoal? Você vai adorar!”
Fiquei sem jeito de aceitar, mas na sexta feira a noite, inicio do carnaval, não dava para recusar. Anotei o endereço e mais tarde fui encontrá-la do lado de fora da propriedade VIP.
Quando cheguei, a Dinah já estava me esperando do lado de fora. Depois dos beijinhos na bochecha, foi falar com os seguranças que liberaram minha entrada. Lá dentro, pendurada no meu braço ela disse: “Já te arrumei um crachá, querido, este vai ser um Carnaval que você não vai esquecer nunca, o Pedro se deu mal!”
Dinah era uma mulata baixinha e troncuda. Não era das mais bonitas, mas pegaria tranquilo. Contudo, senti que não havia qualquer tipo de atração da parte dela e que estava fazando aquilo por ser genuinamente gente boa. Minha gratidão era imensa.
Animada, ela me deu um tour da casa antiga, imponente e bem conservada. Nos salões, nos jardins e nos corredores haviam convidados numa sofisticação incompatível com os festejos bombando nas ruas. Garçons andavam de um lado para o outro servindo bebidas e canapés. Para quem quisesse algo mais substancial, havia um buffet generoso de comidas frias e quentes com pratos e talheres de primeira linha para consumi-las. A mesa era enorme de madeira talhada e ficava numa sala colonial que parecia uma sala de museu.
Teminamos num saguão cheio de gente graúda, pessoas de fora e de estrangeiros, todos bem mais velhos, vestidos com estilo e conversando com compostura. Ninguém estava de terno por ser o Carnaval, mas estavam todos muito bem vestidos. Preocupado em não fazer a Dinah se arrepender do convite, tinha colocado uma roupa convencional, não era chique mas também não era a de hippie afrescalhado. Circulamos entre os convidados e enturmada, ela saiu me apresentando a todos. “Oi, este é um amigo do Rio, Richard. É filho de ingleses, músico, estudante de Economia e muito legal!”
As socializacões com os recém-apresentados não duravam muito, mas eram educadamente simpáticas. Ela chegou até a me apresentar ao Betinho, o dono da festa que pareceu ter ido com a minha cara.
Depois das apresentações, Dinah foi conversar com um cara por quem achei que estivesse interessada. Sem querer dar uma da mala e ficar na aba dela, pedi licença e fui dar uma volta na festa. Não pude deixar de pensar que aquele lugar e aquela gente seriam o paraíso para o Pedro. Apesar da estranha espécie de justiça divina, estava mais preocupado em curtir a folia nas ruas do que me enturmar naquela festa que prometia ser chata. Na pior das hipóteses, ia comer e beber bem e de graça antes de colocar o pé na jaca. Depois de uns dez minutos, já a ponto de ir embora, fui percebendo que além da fartura de bebidas – whisky, caipirinha, gin com tônica e cerveja – quase indiscretamente, estava rolando de tudo em termos de drogas: tinha gente nos cantos oferecendo lenços com lança-perfume, rodas de cocaína em alguns quartos e o quintal estava fedendo a maconha excelente. Escutei, inclusive, alguem dizer que tinha alguém distribuindo LSD.
Curtindo mais as possibilidades, fui percebendo que motivo da aparencia formal é que depois de se chaparem, a galera mais doida saía para o Carnaval na rua. Quem ficava na casa eram os caretas e os coroas.
Continuei na minha exploração e apos descolar uns pegas numa roda, achei num dos cantos do jardim um grupo de espanhóis que pareciam ter um estilo parecido com o meu. Como eu, estavam um tanto desconfortáveis em meio àquela bizarrice sofisticada. Cheguei junto e puxei papo em um portunhol terrível com um deles que repondeu com simpatia. Conforme os garçons foram enchendo nossos copos com doses generosas de whisky, fomos ficando mais desinibidos.
“Mira, conoces el dueño de esta fiesta?”
“Mais ou menos, soy convidado de uma convidada, compreendes? e ustedes?”
“Hombre, somos nadie, dissimos que trabajamos en el consulado y nos deran permisso. Que tontos!”
Cai na gargalhada.
“Sabes quien es el dueño?” Me perguntou um outro.
“Es el filho do prefeito de Olinda, entiende? Hijo del prefecto!?”
“Ah si, hijo del alcaide! Hoder! Que loco!” O Espanhol virou para os amigos para contar o que tinha acabado de ouvir.
Ficaram espantados e acharam engraçado ao mesmo tempo. Uma garota, bonita, falou: “Puta madre! La casa ni es del alcalde, es de su hijo! Como tienen plata estos cabrones!”
Já amigos, quando nos sentimos calibrados para a folia saimos da festa e fomos nos juntar à massa nas ruas já tomadas pelos blocos. Como a maioria dos outros convidados, a gente só voltava de vez em quando para um “pit stop”.
*
A festa durava o carnaval inteiro. Tinha perdido a Dinah de vista, mas com carta branca para entrar e sair na hora que quisesse, minha rotina não poderia ser mais estranha. Acordava no quarto alugado, que apesar da localização privilegiada mais parecia o de um barraco, e ía para uma das melhores casas da cidade para tomar café e “fazer a cabeça”. Podia chegar na hora que quizesse já que buffet do café de manha ficava à disposição até as duas da tarde. Depois dele, ficava conversando com aquela turma interessante e amiga de verdade. Por volta das quatro da tarde saíamos todos para pular um dos melhores carnavais do mundo. Havia duas meninas Australianas que curtiam pintar as caras dos outros e por isso saíamos para a rua parecendo a turma do Batman.
Lá fora, nos dipersávamos, nos encontrando ocasionalmente na confusão ou quando retornávamos para fazer os reabastecimentos necessários. No carnaval, a qualquer hora do dia, as ruas ficavam abarrotadas de gente de todas as classes sociais, cores e provêniencias consumidas pela loucura coletiva do frevo. O tempo todo me esbarrava com conhecidos; gente das várias paradas no litoral, amigos do Rio, os espanhóis do casarão, enfim com todo mundo menos o Pedro, que sumiu e não estava fazendo falta nenhuma, e a Dinah que devia estar curtindo um romance cm o cara da festa. Longe dos blues existenciais de Canoa Quebrada, me perdia naquela doideira e ficava até o amanhecer para depois voltar, tal como Cinderela, ao covil miserável onde tirava algumas horas de sono.
Richard Klein, formado em economia pela UFRJ, autor do livro Samba Perdido, radicado em Londres, artista de Efeitos Especiais para cinema, eco-anarquista.