Se os primos da Francesca suspeitavam que éramos gay, assim que o tio do Pedro botou o olho na gente, ele teve certeza. Depois que sua esposa nos mostrou o quarto com cama de casal de cara fechada, a hostilidade ficou clara quando nosso anfitrião jogou a comida no meu prato ao invés de me servir. Que eu lembre, nunca desmunhequei nem usei roupas de hippie fresco mas aos seus olhos eu era uma bicha comunista e maconheira levando o filho jovem e saudável do seu finado irmão para um caminho de subversão, drogas e perversão homossexual. Já imaginou o que ele faria se soubesse que além daquilo tudo ainda era judeu?
Naquele tempo, naquela parte do mundo, os mesmos caras que gastavam seu dinheiro com amantes, prostitutas e álcool e que batiam em suas esposas, consideravam a juventude do sul degenerada. Não podia deixar de pensar na sua reação se visse o Luiz de Vitória, saindo do quarto com a “Maysa” pendurada em seu pescoço e dizendo que havia perdido a virgindade. De qualquer forma, de um ponto de vista antropológico, a situação trouxe o entendimento de como as coisas eram para gerações anteriores em outras partes do mundo.
Aquele mundo claustrofobico, corrupto e canalha havia sido construído em torno da sua classe dominante ancestral. Além de controlar tudo e todos à sua volta desde o seu início, ela odiava qualquer novidade que ameaçasse seu domínio. Para qualquer pessoa com um cérebro funcional que proporcionasse visão crítica, a vida ali era opressiva. Se não pertencessem aos círculos tradicionais, pior ainda.
Apesar do clima pesado em casa, gostamos Fortaleza. Era uma das capitais mais ricas do Nordeste e tinha uma vibração cosmopolita. O clima quente e seco, as praias imensas, o vento e as largas avenidas faziam com que a cidade parecesse a capital de um país moderno no Oriente Médio, tal como Tel Aviv ou Beirute. Talvez a postura do tio de Pedro fosse uma exceção, já que os cearenses tinham a fama de serem espertos e engraçados, dando ao Brasil alguns de seus maiores humoristas, como Chico Anysio, Tom Cavalcanti e Renato Aragão.
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Fortaleza foi o ponto mais ao norte da nossa excursão. Além da inexistente amenidade de ficar hospedado na casa de um parente do meu companheiro de viagem, o motivo para irmos tão longe era uma aldeia de pescadores chamada Canoa Quebrada, parada obrigatória no circuito neo-hippie. Depois de cinco dias, partimos para lá. Fomos de carona até Aracati e de lá pegamos uma Kombi até o pé de uma duna gigantesca. Subir aquela parede de areia fofa foi uma surpresa difícil, mas quando chegamos ao topo ficamos encantados. Já estava escuro mas à distância vimos um grupo de cabanas mal iluminadas que lembrava um lugar perdido entre o deserto e o mar.
Logo que recuperamos o fôlego, armamos a barraca fora do vilarejo e fomos conhecer Canoa Quebrada. Ela tinha um charme primitivo e a autenticidade que só lugares remotos conseguem ter. Os espaços entre os casebres rústicos castigados pelo vento e pelo sol criavam trilhas de areia que, em sua maioria, terminavam abruptamente numa falésia gigantesca. A praia lá em baixo era a mais larga de todas que visitamos.
Na areia dura havia jangadas por todo lado; estes barcos artesanais planos feitos de troncos de árvores secos, atados com cordas e um mastro seguramdo uma enorme vela triangular eram icônicos. Ao raiar do dia, os pescadores rolavam essas embarcações sobre troncos secos de coqueiro até a água. No mar, flutuavam leve e eram fáceis de manobrar. Sua elegância simples com suas velas desfraldadas pareciam parte integrante da paisagem.
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Os locais sabiam como lidar com o calor e com o sol escaldante. O povo só se expunha de manhã bem cedo ou no final da tarde. Quando o sol estava a pino, os homens ficavam na sombra remendando suas redes, vendendo o que tinham pescado, comprando provisões ou simplesmente descansando. Enquanto isso, as mulheres ficavam em casa fazendo rendas. Sua técnica artesanal e seus produtos eram famosos em todo o Brasil.
Por outro lado, o mini exército de mochileiros que se aglomerava naquela aldeia no verão, ía para a praia na hora mais quente do dia, por volta das onze da manhã. Quando o calor ficava insuportável, nos abigavamos na sombra nos quiosques à beira da falésia para beber cerveja e ficar ouvindo os relatos das viagens uns dos outros. Nas conversas trocavamos dicas sobre lugares na rota costeira em meio a discussões político-existenciais. As garotas não participavam dessas conversas, mas ficavam sentadas em seu canto batendo seus papos e retribuindo nossos olhares.
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No dia seguinte, alugamos por quase nada um quarto na cabana de um pescador. A família dormia em redes penduradas pela casa enquanto ficamos no único quarto separado ali dentro. As camas eram tapetes de praia de vime estendidos sobre o chão de areia. Uma lamparina de querosene iluminava a casa, a água vinha de um poço no quintal e a família cozinhava num fogão à lenha feito de tijolos. As paredes de pau a pique eram cheias de buracos que permitiam que o ar de fora refrescasse o ambiente. Esses e os buracos no telhado não eram problema algum, uma vez que raramente chovia. Apesar da acomodação ser para lá de modesta, caiu bem depois de ter que aturar a homofobia sem base do tio do Pedro.
Do lado de fora, os cachorros vadios, galinhas e patos que circulavam por todo canto, faziam com que toda hora pegássemos bicho de pé. No final da estadia já estava craque em tirá-los com uma agulha.
Seu Chico, o dono da casa, era o patriarca das três gerações que viviam sob aquele teto de palha. Apesar do cabelo grisalho, seu corpo ainda era forte graças aos anos passados no mar. Tranquilo e de poucas palavras, impunha respeito. Sua sabedoria não vinha de livros, mas dos seus sentidos aguçados por uma vida passada interagindo diariamente com a natureza. Gostei dele de cara e nas conversas que consegui puxar passei a apreciar sua visão de mundo que era, de várias formas, mais profunda do que a de muitos de meus professores na faculdade. Conforme os papos com o velho homem do mar foram acontecendo, fui aprendendo os hábitos de todos os peixes e dos bichos daquela região. Também aprendi como apanhá-los.
A curiosidade era mútua e suas perguntas sobre nosso estilo de vida eram interessantes.
“Mas se ocês faiz faculdade, porque ocês anda vestido que nem mendigo?”
“Não sei, seu Chico. Deve ser porque no fundo a gente não quer aquilo”, falei entre garfadas no meu feijão com arroz amalgamado por farinha que sua sua mulher tinha preparado. “Lá tem muito mais dinheiro que aqui, mas parece que falta alguma coisa.”
Ele apontou para o mar por trás do quintal olhou para o céu azul de fim de tarde. “Para eles falta isto daqui.”
Um grupo de aves estava cruzando o céu em formação. Quando desapareceram ele emendou: “Tudo é uma coisa só, quem entende isso num precisa de mais nada.”
Caso algum urbanóide desdenhasse dele por não saber ler ou escrever, seu Chico poderia retrucar fácil – e corretamente – que o sujeito não tinha nenhum conhecimento sobre o meio ambiente onde vivia, isso se ainda tivesse restado algum. Para os seguidores de Moloch, o elo homem-natureza estava perdido. Fora o dinheiro, nada era sagrado. Nós, gente da cidade, tínhamos a cabeça entupida de coisas inúteis mas éramos ignorantes sobre o mais importante; a natureza tanto fora quanto dentro da gente. Não era ele que precisava pagar psicólogos ou gurus de meia-tigela nos Estados Unidos para resolver os seus problemas existenciais, nem era ele que precisava viajar tão longe porque não gostava do mundo em que vivia.
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No pôr do sol, a moçada se agrupava à margem da duna. No Rio – bem como em todos os estados em que havíamos passado– o sol se punha no lado direito da praia. Contudo, como o Ceará fica depois da curva que a costa do Nordeste faz, lá o sol se punha em terra. De cima daquela montanha de areia fina, que lembrava uma paisagem extra terrestre, ficávamos assistindo o espetáculo do sol se pondo por trás da mata de uma planície sem fim. Sons de pássaros se preparando para a noite ecoavam da natureza. Quando o sol estava quase desaparecendo, sua imensa bola brilhava na areia e nos rostos, criando um tom alaranjado inacreditável que contrastava com o céu azul escuro acima e atrás de nós. O vento era forte e por a região ser tão seca, mesmo no auge do verão ficava frio. Com tudo escurecendo e sem nenhuma luz elétrica nas redondezas, parecia que a terra tinha absorvido a claridade e o calor do dia, e estava oferecendo em troca um visual lunar junto com uma paz indescritível.
A harmonia daqueles crepúsculos era como a de Trancoso de dois anos atrás. Numa noite especial, o pessoal em volta me pediu para tocar violão. O clima estava tão bom que todos se levantaram e fomos juntos para um campo logo atrás da duna. Lá, o pessoal abriu um círculo ao meu redor e saí tocando. Aquela roda de umas trinta pessoas cantando e dançando em torno de mim sob o luar e as estrelas foi mágica, um momento de redenção e de promessa para as ansiedades que assolavam a todos.
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Conforme fui relaxando e deixando aquela energia positiva tomar conta, minha sorte com o sexo oposto começou a mudar. Houve um momento maravilhoso, daqueles com que um cara comum como eu podia apenas sonhar. Estava em um bar com um amigo de São Paulo, quando percebi uma loura linda de olhos verdes e pele bronzeada olhando para mim.
Tomei coragem e me aproximei. “Oi gata, que olhos lindos.”
Ela deu uma risada linda e provocante. “Obrigada, me deixaste sem graça agora, nem sei o que dizer.”
“Se você não tem nada a dizer, vamos comigo até a praia dar uma olhada no visual?”
Ela aceitou o convite a queima roupa e fomos de mãos dadas pela trilha que descia a falésia. Nos deitamos com as ondas tocando nossos pés. Não precisei falar muito. Quando a encarei, ela me deu o olhar mais lindo e a partir dali ficamos nos beijando por um tempão, nos aconchegando um ao outro sob a luz da lua.
Tinha gente passeando por ali e sussurrei: “Quer vir comigo para um lugar mais tranquilo?” Ela não falou nada, mas me deu a mão e levantamos.
Fomos para a casa em construção onde adivinhem quem estava acampando? Os gaúchos da Praia do Francês. Quando chegamos, fui me certificar se havia alguém lá. Estava com sorte, os caras deviam ter saído para a farra e a construção estava vazia. Achamos um quarto desocupado, coberto, mas com a janela ainda por fazer e sem porta. Assim que nós nos acomodamos, fiquei sem falar nada, viajando em sua absoluta beleza e em seu cheiro delicioso. Depois da pausa, começamos a sentir a pele um do outro e se pegar apaixonadamente. Um furacão de prazer tomou conta e amor veio furioso. Quando acabamos, ficamos deitados abraçados absorvendo o que tinha acontecido e apreciando aquela noite sem nuvens. O vento sobre a vegetação seca do lado de fora, o barulho dos grãos de areia levantando voo e batendo nas paredes da casa e a luz da lua entrando pela janela eram como um sonho. De repente, senti algo que quase não lembrava que existia: a sensação de estar em paz com o mundo.
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