Ainda que tivessem, nas palavras de Winston Churchill, anos de sangue, suor e lágrimas pela frente, o exílio na Inglaterra não poderia ter sido melhor. Longe da SS e das suas câmaras de gaz, em meio a ônibus de dois andares, névoa espessa, homens de cartola, taxis quadrados, políciais de chapéu estranho e sem armas e dos vários sotaques da língua inglêsa, Rafael foi se adaptando à condição de refugiado. Por mais diferente que Londres fosse, a vida lá era reconhecivel; havia tolerância, estado de direito, respeito às liberdades individuais e um governo disposto a resistir o fascismo e tudo o que ele representava.
Com o perigo afastado – pelo menos temporariamente – a possibilidade de seguir adiante voltou. Sem dominar o idioma nem conhecer ninguém, seu ponto de partida óbvio foi a comunidade judaica. Além do iidiche – a língua comum aos Judeus da Europa do Leste – para ajudá-lo naquele meio havia o seu nome nas manchetes de jornal. O resgate dramático de uns dos primeiros refujiados a fugirem das garras nazistas na Holanda e sua sobrevivência improvável em alto-mar ganhou manchetes em jornais.
Essa exposição midiatica junto com a vontade expressada pela primeira dama dos Estados Unidos, Eleanor Roosevelt, de adotar seus sobrinhos, fez dos irmãos semi celebridades na comunidade. Membros eminentes brigavam entre si para oferecer jantares em sua homenagem. Enquanto Ziesch se deleitou com a bajulação, Rafael, astuto, usou as oportunidades para fazer contatos.
Em uma dessas ocasiões, Renée apareceu em sua vida. Vinda do bairro abastado de Golders Green, uma espécie de “quartel general” de membros emergentes da comunidade onde muitos refugiados famosos estavam vivendo, era uma princesa com metade de sua idade e quase o dobro de sua altura, Fascinada pelas histórias e pela aura de herói do seu pretendente – e ciente de que os melhores elegíveis estavam envolvidos na guerra de uma maneira ou de outra – Renée, que só não foi modelo porque seu pai não permitiu, aceitou um romance com um homem vinte anos mais velho.
Seu pai, Alec, era um comerciante de tecidos bem-sucedido; um viúvo, alto, bonito, com fama de mulherengo. Embora as más línguas comentassem que tinha se dado bem na vida dando golpes do baú, ele era boa praça. Ciente de ser o mais próspero de toda a família, ajudou muitos parentes em apuros sérios durante a guerra.
Ele simpatizou de cara com o seu futuro genro e viu na sua situação mais uma oportunidade de fazer alguma coisa pela sua gente. Rafael era um sujeito maduro, confiável, dinâmico e esperto que parecia uma boa escolha para proteger sua filha adorada. Levando em conta as limitações financeiras do casal – e as causas dessas limitações – resolveu dar de presente de casamento uma casa em Hendon, um bairro aconchegante no norte de Londres.
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O casamento foi tão grande quanto podia numa situação de conflito militar. Contudo, apesar dos racionamentos, dos bombardeios constantes e da insegurança durante guerra e da penúria da reconstrução depois dela, os primeiros anos foram felizes. Após passar por alguns empregos pouco desafiadores quando solteira, Renée pode mergulhar de cabeça na carreira de rainha do lar na sua confortável casa com jardim. Rafael por sua vez, pôs em marcha a sua experiência empresarial agora contando com uma penca de ótimos contatos.
Enquanto os filhos não chegavam, um dos maiores prazeres do casal era receber convidados para jantares formais nas noites de sexta-feira. As visitas eram variadas: intelectuais, artistas, pessoas eminentes da comunidade, diplomatas de segundo escalão, vizinhos além de, é claro, amigos e familiares.
Um desses convidados foi Paulo, um alemão amigo de um amigo em comum. Ele estava de visita em Londres e vivia num lugar exótico e famoso que suscitava a imaginação dos ingleses, mas onde pouquíssimos tinham se aventurado: o Rio de Janeiro. Ele tinha emigrado para lá muito antes da guerra por motivos políticos. Contudo seu passado não estava no cardápio da conversa. Por nunca terem conhecido alguém que tivesse ido naquela cidade, muito menos alguém que morasse lá, queriam saber tudo.
Ele os fascinadou assim que começou a falar. Com quinze anos de Brasil, bronzeado, Paulo tinha um ar muito mais descontraído do que os frequentadores habituais daqueles jantares. Encorajado pelo interesse, o convidado se sentiu bem satisfazendo a curiosidade dos anfitriões e ficou horas descrevendo e contando histórias pitorescas da cidade pela qual tinha se apaixonado.
Enquanto bebiam vinho francês em taças de cristal e trocavam de talheres e de pratos conforme as diferentes partes da refeição iam aparecendo, o casal foi digerindo o que ele dizia. A beleza do lugar, as praias, os morros no meio da cidade cobertos por florestas tropicais densas e o clima ensolarado. Aquela era uma terra onde meninos jogavam futebol descalços nas ruas, onde a população morena fazia e dançava a música mais alegre e tomava conta da cidade no Carnaval. Pelo olhar estrangeiro, havia uma espontaneidade, uma cordialidade e uma leveza únicas que permeavam o ar. Nos bairros residenciais havia uma mistura ímpar de uma saudável cultura de praia com todas as amenidades que se podia esperar de uma cidade moderna, tudo a preços ridiculamente baixos para Europeus.
Quando Paulo pegou o táxi para voltar para o hotel já de madrugada não imaginava o efeito da sua visita. Ele havia mexido com a imaginação do casal. Depois de arrumarem a casa e irem para cama, ficaram horas sonhando acordados e resolveram aceitar o convite do seu novo amigo para que fossem visitar o Rio de Janeiro.
Isso aconteceu em 1953 e foi amor à primeira vista. A estadia confirmou tudo o que paulo tinha falado. Conheceram as praias maravilhosas, andaram pela floresta e viajaram pelos arredores do Rio onde descobriram vilarejos perdidos no passado. Os dois se encantaram com a morenice tropical que exalava em todos os lugares; a atitude relaxada e amistosa, as frutas, o calor, as cores e a paisagem. De volta à chuva fria e à vida regrada de Londres, a viajem ficou como o um tesouro precioso e com o tempo, a saudade passou a bater forte.
Sem nada que os prendesse ao Reino Unido, decidiram embarcar numa aventura e se mudar – temporariamente – mas quem sabe definitivamente – para a cidade maravilhosa. A decisão chocou amigos e familiares. Embora muitos ingleses estivessem emigrando devido às dificuldades econômicas do pós guerra, o Brasil era um destino inusitado para um jovem casal judeu. Naqueles tempos de reconstrução, supunha-se que se mudassem ou para Israel por ideologia, ou para a América do Norte, a África do Sul, ou a Austrália. Nesses países se falava inglês, havia familiaridade cultural e as mesmas oportunidades que no Brasil. Ninguém entendeu a escolha, mas o destino falou mais alto.