por Richard Klein | 20 mar, 2020 | Brasil, Comportamento, Literatura, Trending
Assim como inúmeros imigrantes que através dos séculos partiram da Europa em busca de ares melhores, na hora de partir meus pais estavam mais interessados na promessa de felicidade do que na realidade que iriam encontrar. Foi como se tivessem acreditado num comercial enganoso: se encantaram com as cenas lindíssimas de praias mas não prestaram atenção no contrato mencionando o pântano traiçoeiro logo atrás. A verdade é que o Brasil, mesmo naqueles anos dourados, era muito mais complexo do que a Zona Sul carioca. Atolar a vida num terreno lamacento era uma possibilidade muito real.
Os filhos vieram num momento de trânsito em torno da criação de um personagem especial, de sucesso financeiro e de um processo de adaptação ainda não resolvido. Primeiro veio minha irmã, Sarah, e cinco anos mais tarde foi a minha vez. Nasci em 1962 no há muito demolido Hospital dos Estrangeiros, no morro da Babilônia, entre os bairros de Botafogo e de Copacabana. Como veremos, estes dois nomes não poderiam ter sido mais emblemáticos. Quanto ao futuro, havia um sinal de aviso na passagem mais bonita do Hino Nacional: “Dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada Brasil”.
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Rafael se reconectava com seu universo em caminhadas de madrugada pela praia deserta. Na paz e na simplicidade daquelas horas, ele se sentia bem dividindo o bairro com empregadas em busca do primeiro pão quentinho – seu cheiro maravilhoso saindo das padarias dos imigrantes portugueses e se dissipando na maresia fria das ruas desertas –, com raros porteiros zelosos limpando as entradas dos edifícios e com os bandos de cachorros vira-lata que corriam atrás de caminhões de leite e de jornais.
Adorava quando ele me levava junto. Depois de atravessar a avenida deserta, tiravamos os chinelos e cruzavamos a areia húmida até chegar na beira da água. Lá, com a praia só para a gente, começávamos nossas caminhadas. Na falta de outro assunto, e talvez precocemente, eu puxava conversas existenciais. Enquanto o sol dissipava a bruma e o mar desmanchava nossas pegadas na areia molhada, lhe perguntanava sobre o significado da vida, sobre a existência de Deus, do porquê das coincidências, de como era possível explicar a sorte e outras coisas que não conseguia entender. O que sabia, Rafael respondia da maneira mais fácil que conseguia e quando não tinha resposta, mudava de assunto.
As andadas eram sempre até a colônia de pescadores na ponta da praia de Copacabana, o Posto Seis. Sua sede era uma das primeiras construções do bairro: um velho barracão de madeira onde vendiam sua pesca a donos dos restaurantes, ao comércio e a moradores dos arredores. De dia, ao lado do depósito, dúzias de pequenos e coloridos barcos pesqueiros de madeira descansavam sobre a areia em meio a redes. Gaivotas disputavam os restos da pescaria com cachorros magros, observados por jumentos sonolentos e bodes amarrados. Ao seu redor, enxames de moscas zuniam no cheiro forte de sal e de peixe podre que permeava o ar.
Antes do amanhecer, os pescadores morenos de ar não urbano, partiam em grupos de cinco ou seis. Os mais experientes ficavam na praia coordenando a atividade através de gritos, assobios e sinais. Na hora que chegávamos à colônia, o sol já iluminava os barcos que voltavam. Para tirá-los da água, os homens deitavam troncos de árvores na areia à frente das embarcações e as empurravam com toda força até que chegassem na área seca próxima da avenida.
Os peixes vinham logo depois, presos em redes gigantescas. O momento de puxá-las para a areia era um mini festival. Os pescadores sempre precisavam de reforços e nunca faltavam voluntários. Um grande círculo humano se formava trazendo as centenas de criaturas, pulando em todas as direções ao tentar se libertar. Ja espalhados na areia, enquanto se contorciam em busca de ar, os patrões separavam os melhores pescados e deixavam o resto para quem havia ajudado.
Às vezes, meu pai me deixava participar. Como todo mundo, depois de suar e de maltratar as mãos nas cordas, fazia questão de aceitar os peixes que ofereciam. De volta em casa, invariavelmente meus troféus acabavam no lixo, ou por serem pequenos demais ou por não serem bons o suficiente para nossos jantares pretensiosos.
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Poucas horas mais tarde, as famílias iam para a praia. Elas saiam dos prédios tal como cardumes surgindo das barras dos rios e nadando em direção ao mar. A manhã começava com babás ou mães girando o pé do guarda-sol para dentro da areia até que o cabo se firmasse. Quando não conseguiam, sempre havia por perto vendedores ambulantes ou salva-vidas para dar uma mão. Findo o processo, abriam os guarda-sóis que passavam a fazer parte do tapete de pontos coloridos que cobria os kilômetros areia dourada. Depois era hora de estender as toalhas, desdobrar as cadeiras e, por fim, liberar as pranchas, bolas e baldinhos para a gente brincar com os amigos.
Aquilo era um parque de diversões sob o sol escaldante. Corriamos atrás de cardumes de peixinhos na água transparente, nos enterrávamos na areia, levantávamos barragens para conter as ondas, caçávamos tatuís – bichinhos que viviam debaixo da areia molhada – cavávamos túneis, construíamos castelos e fazíamos guerras de areia.
Para descansar, a gente se sentava na beira da água e ficava espiando o fluxo constante de pessoas que iam e vinham. De tempos em tempos, os adultos acenavam para a gente voltar ao guarda-sol. De volta às bases, mandavam a gente se limpar e paravam um dos vendedores ambulantes que cruzavam a praia carregando caixas de isopor com picolés da Kibon ou mini tanques de lata com Matte Leão. O gelado doce dos seus refrescos era perfeito para amenizar o sol forte.
Apesar de imprescindível, o sol não era o rei da praia, quem comandava o espetáculo era o mar amplo e aberto na nossa frente. Ele era a liberdade completa que só a natureza pode oferecer. Depois da arrebentação, gaivotas mergulhavam para pescar criaturas que saiam do mar se debatendo nos seus bicos. Às vezes, golfinhos pulavam para fora d´água e, mais raramente, cações inofensivos mas com barbatanas parecidas com as de tubarões, passavam causando comoção na praia.
A água salgada do oceano era muito mais gostosa e refrescante do que qualquer chuveiro ou do que qualquer piscina. Conforme íamos adquirindo mais intimidade com a agua, íamos descobrindo as ondas e aprendendo a mergulhar por baixo ou pelo meio da sua espuma.
Em tardes com vento, meninos desciam das favelas. Não se aventuravam na água; a diversão deles era travar batalhas aéreas com suas pipas artesanais. Alguns passavam cola com vidro moído nas suas linhas para que ficassem mais eficazes na hora de cortar as dos outros. Uma pipa girando descontrolada no ar era o sinal de que um grupo havia tomado o escudo voador de outro. Quando finalmente caía na areia, a meninada saia correndo às dezenas para apanhar o troféu.
No fim do dia, quando o sol ia descendo, a praia parecia relaxar. O calor ficava menos intenso, uma brisa aparecia e a sombra dos prédios começava a cobrir a areia. As áreas ainda recebendo sol ficavam com um dourado que pintava a tudo e a todos na praia com um colorido especial. De vez em quando, grupos de amigos vindos do morro aproveitavam o frescor da hora para fazer uma roda de samba, oferecendo uma trilha sonora especial àquela hora do dia.
Enquanto me esbaldava na areia, dona Renée, já desinteressada da praia, preferia ir ao clube jogar tênis, Sarah já frequentava a escola e seu Rafael garantia o conforto da família no escritório no centro.
Minha companheira de praia era Pilar, uma babá portuguesa bonita de vinte e tantos anos. A única coisa de que me lembro bem dela é de ficar espiando o seu corpo nu com marcas de maiô enquanto tomávamos banho juntos depois da praia. Na banheira, podia examinar todas aquelas coisas sobre as quais tinha conversado com meus amigos e que não sabia como funcionavam. Pilar acabou se casando com meu barbeiro, o gentil Sr. Ribeiro, também português porém baixo, barrigudo, de bigode e com os cabelos louros e encaracolados. Certamente para atrair sua simpatia, sempre me guardava balas Soft, chicletes Ping-Pong e as mais recentes revistas Manchete, Cruzeiro e Placar, proibidas em casa mas que eu adorava.
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por Richard Klein | 8 mar, 2020 | Brasil, Comportamento, Literatura, Mundo, Política, Trending
Eram 5:30 da manhã em meados de Novembro de 1955, trinta e cinco horas depois de decolar de Londres, parar por três horas em Lisboa, fazer o mesmo por quatro horas em Dakar, Senegal, atravessar o oceano Atlântico e ficar mais três horas no Recife, o voo da BOAC, BA0249, estava finalmente se aproximando do Rio de Janeiro.
O sol ameaçava se insinuar no céu estrelado quando um sinal aveludado nos alto-falantes acordou os passageiros. Em seguida, uma voz feminina, primeiro em inglês e depois em português, desejou a todos um bom dia e anunciou que estavam a uma hora da destinação.
As aeromoças acenderam as luzes e passaram a servir um generoso café da manhã. Para os ingleses, ovos estrelados com bacon, torrada, marmelada e chá, para os brasileiros, ovos mexidos, pão francês, queijo fresco, goiabada e café forte. Junto com a comida distribuiram formulários de imigração e da alfândega para quem precisasse.
Terminada a última refeição a bordo, loucos para descansar numa cama de verdade, os passageiros passaram a organizar a sua chegada. Do lado de fora, a claridade já revelava o mar no horizonte. Embaixo, as primeiras luzes estavam se acendendo na descida da serra para a Baixada Fluminense. Enquanto os primeiros carros e caminhões se aventuranvam na madrugada vazia a tripulação percorria o corredor recolhendo as bandejas.
Rafael e Renée estavam preenchendo os formulários. O casal chamava atenção por sua discreta bizarrice. Ele era baixo, olhos azuis espertos e frios, cinquenta e poucos anos, um tanto antipático e com um pesado sotaque do leste europeu. Em contraste, ela era uma londrina com sotaque chique, alta e exuberante, de cabelos curtos e castanhos e muito mais jovem que o marido.
Não demorou muito para a voz feminina retornar aos alto-falantes pedindo a todos que apagassem seus cigarros e apertassem os cintos de segurança. Do lado de fora a vista se tornou magnífica. O dia estava raiando sobre o Rio de Janeiro. O sol dourava o Cristo Redentor junto com a vegetação e as pedras gigantescas da Floresta da Tijuca em torno dele. As águas da Baia de Guanabara e as ilhas no mar aberto ja se misturavam da maresia. Aquele espetáculo foi bem-vindo após praticamente dois dias chacoalhando numa aeronave apertada ouvindo o ronco incessante das hélices. Rafael deu uma olhada no relógio, 6:15 da manhã, 45 minutos mais cedo do que o esperado.
O avião deu sua sacudida final quando tocou o solo em alta velocidade. Assim que se tornou controlável, os passageiros aplaudiram o piloto que passou a guiar a aeronave lentamente rumo ao terminal. Quando parou, a tripulação apagou os sinais de apertar os cintos e de parar de fumar e abriu a porta deixando ar fresco da madrugada entrar para ventilar a cabine claustrofóbica.
Com seus pertences prontos, Renée e Rafael se puseram na fila de saída. Na porta, depois de trocarem sorrisos cansados com a aeromoças, uma brisa tropical acariciou suas peles lhes dando boas-vindas. Com sua nova cidade à frente, desceram a precária escada e se dirigiram ao terminal com os outros passageiros.
A bruma espessa e seu calor húmido tiveram o efeito de evaporar o torpor da viagem na Renée. Eufórica com o início de sua aventura carioca, estava parecendo uma criança numa loja de doces tentando puxar conversas com o marido exausto e monosilabico.
“Deveríamos achar um apartamento perto da praia, não acha? A revista disse que perto da floresta há risco de malária.”
Entraram na fila fila da imigração e ela não parava. “Eu quero ir para praia ainda hoje. Copacabana deve estar explendida!”
Quando chegou sua vez, o policial acenou. Depois de mostrarem seus passaportes e de entregarem os formulários, receberam os carimbos requeridos. Dali em diante, estavam liberados para viver no Brasil.
Ao sair para o saguão de desembarque, talvez por estarem vindo para ficar desta vez, sentiram o desconforto de serem completos estrangeiros. Com exceção dos outros passageiros europeus, ninguém ali falava inglês ou qualquer outra língua que lhes fosse familiar. Além de have mais “não-brancos” do que estavam acostumados, a emoção e os abraços com que os locais recebiam seus familiares e amigos, realçava sensação de alienação. No fundo de suas mentes uma pergunta gritava em silênico: “Será que tomamos a decisão certa?”
*
No saguão do aeroporto carregadores uniformizados e educados apareceram se oferecendo para levar suas malas até a fila de táxis do lado de fora. Depois de se certificar que as bagagens estavam devidamente organizadas no porta-malas e de dispensar o seu primeiro dinheiro local na gorjeta, entraram no carro.
“Por favor”, disse Rafael antes de ler o papel com o endereço do hotel e ponunciá-lo em um português quebrado que duvidou que o motorista fosse entender. Ele finalizou o desconforto com um desajeitado “Obrigado”.
O motorista disse OK, mas pediu através de sinais para ver o pedaço de papel. Depois de dar uma lida, abriu um sorriso amigo e disse, “Hotel Miramar, Copacabana, yes mishterr!”
Assim que partiram, a estranheza que sentiram no aeroporto sumiu. O sol já estava a pino e fazia calor. Animados, colocaram seus óculos escuros e passaram a apreciar o cenário. Logo pegaram a Avenida Brasil, que estava apinhada de carros de fabricação americana, caminhões e ônibus de qualidade duvidosa, todos indo rumo ao centro da cidade. De repente, sentiram o mau cheiro vindo da favela beirando a estrada. O fedor forte passou quando chegaram na zona portuária. Apesar de mais primitiva que a de Londres, era charmosa com sua série interminável de armazéns coloridos com chaminés e mastros de navios aparecendo logo atrás.
Do porto, o motorista, agora concentrado num programa no rádio, seguiu para o Centro. Lá atravessaram sua mistura contrastante de igrejas coloniais, prédios públicos de estilo modernista e construções vistosas da Belle Époque. Ao fim da avenida elegante e arborizada, chegaram na Baía de Guanabara onde deram de cara com o Pão de Açúcar. Dali o motorista, ousado demais para seus gostos, continuou a viagem apressada beirando a baía. Lá passaram pelos bairros do Flamengo e de Botafogo antes de finalmente atravessar dois túneis e chegar em Copacabana. Fizeram aquela curta viajem com as janelas abertas, sentindo o vento no rosto, absortos pela beleza da cidade e relevando o programa de rádio incompreensivel e as barbeiragens do motorista.
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A primeira coisa que fizeram depois que a bagagem chegou no quarto e que fecharam a porta, foi ligar para o Paulo. Ele havia dado a desculpa de que naquele dia tinha assuntos importantes a resolver e por isso não tinha dao para ir de madrugada recebê-los no aeroporto. Após uma conversa animada e piadas sobre o voo interminável marcaram de se encontrar no dia seguinte.
Paulo era um sujeito curioso. Além da sua personalidade fácil e de seu endereço exótico, possuía outra peculiaridade: era comunista. Esse tinha motivo original do seu exílio da Alemanha já nos meados dos trinta. Havia perigo de morte. Nunca soube dos detalhes dessa ameaça nem se continuou sua militância no Brasil, mas se tivesse, isso não teria sido pouca coisa no auge da ditadura de Vargas quando chegou.
Nos trópicos, a amizade entre os dois veteranos da loucura europeia floresceu. Apesar de antifascista, Rafael estava longe de ser de esquerda. De qualquer forma, os longos papos em iídiche trouxeram de volta as discussões políticas, tema central na vida judaica no leste europeu.
Durante uma dessas conversas, Paulo gabou-se de seu relógio produzido na comunista Alemanha Oriental ou RDA. “Está vendo este relógio aqui? Ele foi produzido livre da exploração capitalista. Pode ver! Ele funciona tão bem quanto qualquer relógio feito na América!”
Embora o relógio não fosse lá essas coisas, ao analisá-lo meu pai teve um “momento eureca”. Ele percebeu que tinha em mãos uma excelente oportunidade de negócios. Na cabeça dos brasileiros, alemão era sinônimo de confiável e, fabricados em um país comunista, seus preços seriam muito competitivos. A recém-criada classe média baixa brasileira iria, certamente, consumi-los como água.
Anos antes do golpe de 1964, com a ajuda dos contatos partidários do Paulo, Rafael atravessou o muro de Berlim, e foi se encontrar com o comissariado encarregado da fábrica de relógios. Com eles conseguiu um contrato para ser o representante exclusivo para o Brasil.
À primeira vista poderia parecer estranho que alguém com o seu passado fosse ganhar a vida vendendo produtos alemães e, pior ainda, comunistas. Seja como for, o rigor e a praticidade teutônica lhes eram reconfortantes. Adotando essa mesma objetividade fria, foi em frente sem deixar que sentimentalismos e ideologias interferissem nas suas decisões. Nisso, ele era igual à maioria de seus amigos judeus. Apesar de tudo o que eles e seus entes próximos haviam enfrentado durante a guerra, ainda guardavam respeito pelo pragmatismo e pela eficiência germânica. A subserviência ainda estava viva e, como a maioria dos sobreviventes europeus orientais, continuavam a ver a Alemanha como a liderança nata e incorruptível do seu mundo.
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