Samba Perdido – Capitulo 06, parte 01

 

 Capítulo 06 

 

“…HaShem disse a Moisés: Dize aos filhos de Israel: 

És um povo de dura cerviz (pescoço duro).”

Torá.

 

Estava orgulhoso por ter sido escolhido para patrulha que ia capturar a bandeira inimiga. Depois de separar os outros grupos e de explicar o que cada um deles iria fazer, nosso madrich, ou instrutor, Mauro Lieberman – que todos chamavam de – dispensou os outros mas­ chamou a gente para o quarto dele. Cheios de moral e sob os olhares interessados de algumas das meninas, saímos do refeitório e atrás dele. Chegando lá, fomos entrando e sentando no chão. Com todo mundo dentro, nosso chefe fechou a porta, se sentou conosco e abriu um caderno numa página com um esboço do sítio.

“Pessoal, a bandeira deles vai estar aqui, no meio do campo de futebol. Vai ter um círculo grande de cal em torno dela, não vai ter como perder. O grupo que vai lá são o Richard, o Davi, o Marcos e o Hélio.”

Ele olhou em volta para ver se todos estavam acompanhando. “Vocês vão usar essa trilha aqui no meio do mato. O grupo do Murilo, Samuel, Sérgio e Marcelo vai descer para o campo também, mas vai pela estrada principal, essa daqui. A ideia é usar o grupo do Murilo para atrair atenção dos caras enquanto o outro grupo pega eles de surpresa.”

Estavamos estranhando a seriedade do Maurão, um cara meio largado com ar de hippie. “Por isso você, Murilo, e você, Samuel, vão ter que dar uma canseira neles.”

A gente teve que rir. Murilo Berkovitz e Samuel Goldfarb eram dois trogloditas da Tijuca. Todos sabiam que eram inteirados – de verdade – na malandragem do bairro. Era impossível não ter medo deles. Já dava para ver a cara do pessoal do time azul tremendo na base.

Maurão olhou para o meu grupo continuou. “Quando chegarem na metade da trilha, vocês vão ter que entrar pelo mato para sair aqui na beira do campo.”

Ele apontou para o lugar no mapa. “Aqui vocês ficam na espera. Na primeira bobeira que eles derem, vocês saem correndo. Daí vocês já sabem; é pegar a bandeira e partir para o abraço.”

Já gostando da possibilidade de sairmos como heróis daquela mini guerra, respondemos que ía ser mole vencer aquele bando de otários.

Maurão encerrou a reunião levantando e dizendo “Vamos lá pessoal, vamos vencer essa parada!”

Saímos do quarto nos sentindo a própria tropa de elite saindo de uma reunião secreta no quartel general.

*

Dois dias depois, o jogo começou num clima agitado com a participação de todas as cinquenta e poucas pessoas que estavam ali. Seguindo o plano, as meninas e os caras mais quietos foram para o alto do morro defender a nossa bandeira. Enquanto isso, o Murilo e a sua turma pegaram a estrada principal e a gente se embrenhou pelo meio das árvores. Passado um tempo, começamos a ouvir os gritos do inimigo correndo atrás do grupo deles e chegando perto das nossas defesas.

Avançamos mais lentamente que o esperado porque o inimigo tinha colocado sentinelas ao longo da trilha. Para nos livrar deles nos espalhamos pelo mato antes do ponto que o Maurão tinha falado. Lá, quer por falta de empenho quer por falta de cuidado, um a um, meus camaradas foram sendo eliminados juntos com o pessoal do Murilo. As “mortes” aconteciam quando um adversário lia em voz alta o número nas nossas braçadeiras. Terminei como o único sobrevivente no ataque. Agora sozinho, fui seguindo em frente até conseguir me esconder no meio de uns arbustos a poucos metros do campo onde fiquei deitado, esperando pela hora certa.

A defesa do inimigo estava preocupada. “Ainda tem um escondido no mato”, gritou um deles. “Ele está ali! Ouviram este barulho?! ”

Ledo engano, para despistá-los, estava atirando pedras do mesmo jeito que os comandos americanos faziam na minha série de guerra favorita, Combate!  Teve uma hora em que os pés de um deles passaram a poucos centímetros do meu nariz, mas continuei ali, incomodado pelos insetos, a apenas uma breve corrida da bandeira inimiga.

De repente teve um reboliço, um do time deles, Bruno Feldstein, um cara sardento, gorducho e metido a inteligente, voltou apressado da nossa base dizendo a todos que o ataque deles estava indo bem. A comemoração antecipada foi minha oportunidade e fui à luta. Saí correndo e quando perceberam o que estava acontecendo houve uma gritaria e um bando deles veio para me pegar. Me alcançaram a poucos centímetros do círculo de cal. Uma tempestade de braços me agarrou e tentou tirar minha mão direita da identificação no braço para me “matar”. Só faltava um passo e, usando toda minha força, consegui levar todo mundo comigo. Dentro do círculo ninguém podia mais me tocar. Como um último sobrevivente cercado por zumbis, levantei a bandeira do time azul e dei fim àquele jogo de guerra.

Aquele exercício marcou o encerramento de duas semanas de meio colônia de férias, meio seminário, ou machané, num hotel-fazenda com o nome ídiche Kinderland. Ela tinha sido organizada pelo Ichud Habonim, a organização sionista à qual eu pertencia. Para falar a verdade, o objetivo desse e de vários outros “movimentos” – que era como a comunidade se referia a eles – era o de nos convencer de que quando chegássemos à idade adulta nos mudássemos para Israel e servissemos seu exército. Para tanto, tentavam incutir uma forte dose de nacionalismo judaico por meio de preleções sobre como nossa povo – como qualquer outro – tinha o direito de viver na sua própria terra sem temer pogroms, inquisições, expulsões ou holocaustos.

Contudo, apesar da sua popularidade e dos pacotes que organizavam para irmos passar o verão em kibbutzim em Israel, o índice de sucesso no recrutamento de soldados da classe média carioca era baixíssimo. A maioria dos pais encarava essas organizações apenas como uma maneira de perpetuar a identidade ancestral da família e de tirar uma folga das crianças nas tardes de sábado e durante as férias. Quanto a questão do serviço militar, morriam de medo que os abandonássemos para acabar envolvidos numa guerra. Com notórias exceções, para nós esses encontros eram apenas uma maneira de nos divertir. A parte didática era um saco. De qualquer forma, vale ressaltar que apesar de nenhum madrich abordar questões fundamentais acerca da legitimidade de um estado exclusivamente judaico naquele lugar em específico ou sobre o destino dos palestinos, o ódio e o racismo não faziam parte da pauta.

*

Ainda não é claro se ser judeu significa pertencer a uma nação, fazer parte de uma religião ou seguir uma tradição. Qualquer que seja a resposta, a introdução foi dolorosa. Quando tinha apenas dez dias de vida, um cara de barba longa vestido de preto se aproximou com uma lâmina afiada, entoou uma canção estranha e daí cortou meu prepúcio sem dó nem anestesia. Depois de colocar um algodão para estancar o sangue e de limpar sua lâmina, o rabino abençoou aquele corte que seria o meu passaporte para uma família estendida que, de acordo com a crença, teria começado há quatro mil anos com um sujeito chamado Abraão.

Além da dor inenarrável que não me lembro, esse rito me jogaria num mundo de contradições, mitos e preconceitos ligados ao que talvez seja o povo mais esquisito do planeta. Ele também faria que meu pênis tivesse uma aparência diferente da dos de meus amigos de futebol e, numa perspectiva mais ampla, determinaria com quem deveria me casar, quem deveria ser meu amigo e qual estilo de vida deveria seguir. Por um terceiro ângulo, ele também ditaria quem iria querer se casar comigo e quem iria querer ser meu amigo.

Em casa, meus pais achavam tudo isso positivo; sua família e seus amigos também – afinal, fazia parte do que éramos. No mundo mais amplo, nem todos pareciam concordar. Quando tinha uns cinco anos abri, por acaso, um livro grosso sobre o Holocausto. Não sabia ler, mas dava para compreender as fotos de judeus religiosos chorando momentos antes de serem executados, de soldados ameaçando crianças com metralhadoras, de pessoas esqueléticas em pijamas listrados atrás de cercas de arame farpado com rostos sem expressão e de pilhas de corpos em valas comuns. Seu único crime tinha sido o de terem nascidos tão judeus quanto eu.

Nos anos 1960, essa experiência ainda era uma cicatriz fresca, profunda e mal disfarçada na comunidade. Todos os adultos tinham as suas histórias mas raramente falavam delas, só sabíamos o que ouvíamos por terceiros. A mãe de uma amiga que passou a guerra adotada por freiras, o conhecido de meu pai que tinha ido a pé da Romênia até a Palestina depois de ter visto sua família ser fuzilada, a mulher do Peter que tinha sido colocada num trem de crianças refugiadas na Bélgica e que nunca mais viu seus pais depois daquilo. Esse peso se manifestava em medos, neuroses e na desconfiança para com os não judeus. Para os que vieram depois, restou a questão complicada de como lidar com esse legado.

Por outro lado, em um país latino americano governado por uma ditadura tradicionalista, o catolicismo apostólico romano era uma presença forte no dia a dia – os evangelicos só apareceriam uma ou duas décadas mais tarde. Mesmo no futebol, agora tão importante para a mim, os heróis de meu time e da seleção faziam sinais da cruz sempre que marcavam gols e os comentaristas de futebol viviam usando bordões religiosos. Na vida cotidiana era igual – Ave Maria, cruz credo, minha Nossa Senhora, ai Jesus e por aí a fora – surgiam na maioria das conversas.

Na Escola Britânica as coisas eram um pouco diferentes. Meus colegas de sala eram em sua maioria protestantes. Isto fazia deles, pelo menos teoricamente, mais tolerantes. Como o único garoto judeu da turma – tanto na escola quanto no clube – era poupado dos estereótipos ligados à minha gente. Por me considerar um deles, se sentiam à vontade para me contar coisas estranhas que tinham aprendido em casa sobre nós com as quais não podia concordar. De acordo com minha experiência pessoal, sabia que éramos nem mais nem menos pão-duros do que pessoas de outros povos, sabia também que não éramos conspiradores perversos empenhados em dominar o mundo. Além disso, nunca tinha ouvido falar de ninguém beber o sangue de crianças cristãs durante a páscoa judaica, muito menos em qualquer outra época do ano. Ao contrário, para mim, a comunidade mais parecia um monte de gente desengonçada e neurótica.

Como fazem os garotos, queria fazer parte da turma. Por isso, embora negasse esses absurdos, fazia pouco caso do seu teor ofensivo. No fundo, porém, sabia que existia algo de fundamentalmente errado em ser forçado a ser um judeu enrustido. Vivendo entre os goyim – o nome dado aos não-judeus –  simpatizava com a história de Moisés crescendo na corte do Faraó e às vezes me perguntava onde isso ia parar.

A única coisa certa, era que pertencer ao “povo escolhido” por Deus era estranho. A própria palavra “judeu” fazia com que pessoas virassem as costas ou produzissem sorrisos sem qualquer motivo lógico, dependendo de quem a escutava ou de quem dizia.

Esses absurdos se juntavam a um monte de outras perguntas. Por que gente que nem nos conhecia pessoalmente nos odiava a ponto de contemplar um extermínio em massa? Era culpa deles ou, de alguma forma, nossa? Quanto ao aspecto religioso havia questionamentos igualmente fundamentais: onde estava Deus quando pessoas inocentes imploravam nas câmaras de gás? se havia um único Deus e todos – cristãos, judeus e muçulmanos – acreditavam nele, por que não chegar a um acordo? Não seria isso que o criador iria querer das suas criaturas? Será que iríamos todos para paraísos diferentes quando morrêssemos? Ninguém jamais conseguiu me responder qualquer dessas perguntas de maneira convincente.

 

*

Início

Voltar

Seguir

Samba Perdido – Capítulo 05

Capítulo 05

“Tabelou, driblou dois zagueiros,
Deu um toque driblou o goleiro,
Só não entrou com bola e tudo
Porque teve humildade e gol!!!”

Fio Maravilha – Jorge Ben

 

No auge do reinado brasileiro sobre o planeta futebol, mesmo que por um instante, o esporte produziu o que todo governo totalitário deseja: unir a nação como pessoas iguais. Quando o assunto era futebol não havia classe social, cor ou opinião política; todos eram iguais, salvo, é claro, as mulheres, os gays, os maconheiros e outras minorias.

Naquela realidade suspensa, os jogadores da seleção viraram os super-heróis da garotada. A forma para um menino fazer parte da saga era jogar bola e torcer para um time. Para mim essa fórmula fácil caiu como uma luva; a febre do futebol me ajudou a encaixar num país onde de outra forma seria considerado um completo estranho. Seguindo a cartilha, jogava futebol quase todo dia e virei Botafoguense fanático, talvez por Botafogo ser o bairro onde nasci ou por gostar do emblema.

Torcer era um negócio sério; além da escalação completa do meu time, tinha que saber a dos outros “quatro grandes” – Flamengo, Fluminense e Vasco – de cor. Por vício e obrigaçāo ouvia todas as partidas do “Fogão” no rádio e no dia seguinte, lia a pagina de esportes inteira no jornal para ficar a par de como os jornalistas tinham avaliado o desempenho de cada um dos jogadores. O mesmo valia para os jogadores relevantes dos outros times.

A Rádio Globo era de longe a melhor no futebol. Seu espetáculo auditivo era sem igual, e era a coisa mais emocionante que podia acessar dentro das paredes de nosso apartamento. O estilo circense dos seus apresentadores era irresistível. Quando um jogador fazia um drible de efeito e os narradores, Jorge Curi e Waldir Amaral, iam à loucura. Quando um outro marcava um gol, era um orgasmo. Quando um juiz falhava o comentarista de arbitragem, Mário Vianna interrompia a narração gritando zangado “Errou!!!”. Quando a bola batia na mão de um jogador ele mandava o seu “La mano!!!, cadê o eco?? La mano ôo-ôo-ôo!!!”. Nos casos de impedimento, ele gritava o seu famoso “Banheiiiiira!!!” Para os pênaltis, sempre fazia um comentário solene antes do veredito pesaroso: “Penalidade máxima”. Quando o gol valia ele era sacramentado pelo seu “Gol legal!”.

Depois da partida, era a hora do João Saldanha com suas análises pós-jogo imperdíveis. Elas duravam bem mais de uma hora mas nunca eram chatas. Com sua genialidade, recoloria o que tinha acabado de acontecer no estádio abusando do uso de alegorias inusitadas e metáforas como girafas namorando macacos e elefantes se casando com formigas.

Esses personagens, onipresentes no futebol carioca, faziam dos radinhos de pilha uma ferramenta essencial. Mesmo no Maracanã, todo torcedor tinha um colado ao ouvido. Nas partidas principais, haviam tantos que, dado haver um momento de silêncio, a chamada da rádio ecoava alto no estádio.

*

Com o tricampeonato no México ainda fresco, os dois torneios nos quais os times cariocas participavam – o estadual no primeiro semestre e o Brasileiro no segundo – adquiriram um sabor especial. Como a equipe da rádio Globo gostava de dizer, no Maracanã se jogava o melhor futebol do mundo no maior palco do planeta, uma verdade na época.

O “Maraca” era o templo maior desse culto. Todos os garotos que conhecia já tinham – ou pelo menos diziam que já tinham – ido lâ e eu precisava desse crédito. Meu problema era meus pais. Se imaginando aristocratas ingleses, nas cabeças da Renée e do Rafael o futebol era coisa de operário e da gentalha que vivia em botequins. Ir a um estádio e se misturar com aqueles tipos mancharia de alguma forma a sua posição social, especialmente no Brasil.

Minha sorte mudou no dia em que Peter, um amigo da roda deles, se ofereceu para me levar a uma partida junto com seus dois filhos. Apesar da Renée ser contra, Rafael acabou liberando. Peter era o aventureiro da turma: tinha cruzado a América Latina num jipe, era mais jovem que o resto, tinha menos dinheiro, fumava – um tabu em casa –, possuía um corpo definido e bronzeado, falava inglês com sotaque americano e além de tudo, para a minha alegria, era frequentador assíduo do Maracanã.

Ele os filhos torciam pelo Fluminense e o jogo era contra o Flamengo, um Fla x Flu. Isso não era o ideal para um botafoguense, mas como o time deles iria enfrentar o arqui-inimigo de todos, me senti mais confortável. No estádio, talvez gritaria “Nense!!! Nense!!! Nense!!!”, ao invés de “Fogo!!! Fogo!!! Fogo!!!”, o que, dadas as circunstâncias, era aceitável.

Os três vieram me pegar no início de uma tarde de domingo. Entrei no jipe feliz da vida, preparado para a aventura. Só que assim que cumprimentei seus filhos, Rob e Tony, me lembrei que não gostava deles. Entre outras coisas, toda vez que nos visitavam davam em cima da Sarah de uma forma estúpida o que a deixava chateada. De quebra, ficavam tirando onda com a minha cara por ser mais novo. Apesar dos esforços do Peter em ser simpático, os dois me deram o gelo de sempre, ocupados com seu habitual papo chato, competindo entre si acerca de conhecimentos de eletrônica e de mecânica, coisas que achava um porre. Fiquei sentado no banco da frente com o Peter olhando pela janela e ouvindo a Rádio Globo quando dava para escutar. O entusiasmo voltou quando começei a perceber que quanto mais perto do Maracanã a gente chegava, mais claro ficava que todos os outros carros estavam indo na mesma direção. Neles, torcedores do Flamengo e do Fluminense ou tiravam sarro ou aplaudiam uns aos outros aos gritos pela janela. No banco de trás, em vez de participar da festa, o Rob e o Tony faziam comentários antipáticos a cerca deles. Relevei a esquisitice e fiquei curtindo o momento em silêncio, já ensaiando o que ia dizer para os meus amigos.

*

Por fim chegamos. Assim que parou o carro, Peter foi negociar com o “flanelinha” quanto ia pagar pela vaga – “flanelinha” esse que, evidentemente, não estaria ali quando voltássemos. Enquanto isso, saí para dar uma olhada no Maracanã. Estávamos a uns três quarteirões, mas mesmo dali parecia colossal. O clima era frenético. Em torno de nós, milhares de torcedores, pouquíssimos da Zona Sul, iam apressados para o estádio. Dava para ouvir as batucadas e a barulheira saindo lá de dentro. Aquela eletricidade parecia estar atraindo a multidão como a luminária de um açougueiro atrai moscas.

Depois de se entender com o guardador de carros, Peter, preocupado por eu estar sozinho sem os seus filhos, acendeu um cigarro e veio falar comigo com um sorriso nervoso, “O que você está achando disso, Richard?”

Sem palavras, só consegui responder: “Muito legal.”

Ele teve um tique nervoso, deu uma baforada no cigarro e perguntou: “Você está nervoso?”

“Que nada, estou doido para ver o futebol!”

Depois de nova chacoalhada estranha da cabeça, ele me olhou sério “Richard, é fácil se perder num jogo de futebol, principalmente na entrada do estádio. Fique sempre perto da gente, entendeu?”

Engoli seco com a sua firmeza e respondi: “Claro!”

Ainda me ignorando, os filhos já estavam prontos do outro lado do carro. Peter os chamou e fomos, os quatro, nos juntar à multidão rumo às bilheterias. Os guichês já estavam lotados. Pedintes e bêbados vinham importunar os torcedores esperando sua vez nas filas entre separadas por barras enferujadas. Na calçada atrás da fila, camelôs gritavam a plenos pulmões tentando vender seu estoque de bandeiras, almofadas de espuma e camisas dos dois times.

Depois de uns vinte minutos chegou a nossa vez. Com os ingressos na mão, o próximo passo era entrar no estádio, uma tarefa complicada. Havia somente dois portões para as arquibancadas, um de cada lado do estádio. A massa se aglomerava em frente deles e ia se afunilando como areia numa ampulheta até alcançar as poucas roletas de acesso. As duas torcidas estavam misturadas, o clima estava tenso e cheio de testosterona. Esse não era um lugar para mulheres, crianças ou idosos.

Peter estava mais preocupado que nunca. Sem tique dessa vez, virou-se para mim e disse: “Segura na camisa do Toni e não larga!”. Depois se voltou para o Toni e mandou ele ficar de olho.

É claro que obedeci. Em meio à massa que empurrava para todos os lados, sob o olhar atento do Peter logo atrás, grudei na camisa e fui atrás tomando todo cuidado para não me distanciar nem cair e correr o risco de ser pisoteado por centenas de pés ansiosos.

O empurra-empurra demorou uns dez minutos. Foi um alívio quando chegamos nas catracas. Elas pareciam um oásis surreal de paz separando a loucura do lado de fora do estádio da insanidade que nos esperava do lado de dentro. Protegidos por guarda-costas gigantes e mal-encarados, frágeis empregados de meia-idade inspecionavam tranquilos os bilhetes um a um. Quando pegavam aqueles com igressos falsos ou aqueles tentando entrar sorrateiramente sem bilhete algum, os metidos a malandro eram obrigados a escolher entre dar meia-volta e encarar a multidão ou serem escoltados até a delegacia do estádio.

Quando isso acontecia, os funcionários perdiam a paciência. Pegaram um em uma catraca ao lado e o homem explodiu. “Não me interessa que você não tem dinheiro! Pelo amor de Deus, meu filho! Decide logo! Não está vendo a fila?”

Quando chegou a nossa vez, o moreno de cabelos grisalhos examinou nossos ingressos através de seus óculos. Com calma rasgou ao meio os finos papéis azuis, depositou sua metade em uma caixa e liberou a roleta. Já dentro, reagrupamos e saímos correndo com a multidão pela rampa comprida que dava acesso ao anel superior. Guardas com pastores alemães paravam bêbados e torcedores carregando objetos perigosos. Ao final da rampa, a massa se dividiu de acordo com seu time de coração. Nós pegamos o corredor à esquerda e seguimos os torcedores do Fluminense. Passamos rápido na frente de portas dos banheiros e bares sentindo o cheiro forte de urina misturado com cerveja derramada.

Havia entradas a cada trinta metros e Peter tinha que decidir rápido qual iríamos tomar. De repente ele nos empurrou por um corredor estreito onde silhuetas ocultavam a luz no fim do túnel. Subimos sentindo a imensa energia que emanava lá de dentro. Quando finalmente entramos na arena, percebi em extase o quanto o estádio era gigantesco – dava para entender claramente como cabiam 160 mil espectadores ali. As torcidas que já enchiam algumas partes, principalmente atras dos gols. Na parte central das arquibancadas havia a famosa tribuna de honra – a seção cercada onde ricos e convidados especiais ficavam. No resto do estádio, as grades nos parapeitos em frente às torcidas já estavam cobertas por faixas e bandeiras das torcidas organizadas. Embaixo, cercado por aquela construção colosal estava o gramado, o palco que captava os sonhos de toda uma nação.

Enquanto Peter decidia onde iríamos sentar, fiquei olhando para aquilo embasbacado. Dava para ver que o lugar mais animado era no meio das torcidas organizadas, todas começando a engossar dos dois lados. Esse era o lugar de onde vinham as batucadas e de onde emanava toda a vibração. Quando alguém da torcida começava a gritar um refrão, logo depois – como numa reação química – dezenas de milhares de pessoas passavam a gritar a mesma coisa. O problema era que também era ali que a maioria das brigas aconteciam. Não era o lugar certo para um adulto responsável levar três crianças. Por isso, acabamos indo mais para perto da zona neutra, entre as duas torcidas, do lado oposto à tribuna de honra. A pedidos do Rob e do Toni, acabamos num lugar ainda na torcida do Fluminense.

Pedindo licença, se equilibrando entre os torcedores e os degraus das arquibancadas, chegamos numa abertura para quatro pessoas. Sentamos, relaxamos e ficamos assistindo ao jogo preliminar entre as equipes juvenis dos dois clubes. Apesar das torcidas só estarem preocupadas a atração principal, comemoravam os gols dos novatos e ficavam em silêncio quando havia uma cobraça de pênalti.

Assim que a partida secundária terminou, o Maracanã acordou. Já não havia partes vazias no estádio. Os torcedores começaram a agitar suas bandeiras enormes e a soltar foguetes. Os refrãos esquentaram dos dois lados. Em campo, fotógrafos com câmeras e lentes penduradas no pescoço disputavam posições atrás dos gols com repórteres portando microfones e fones de ouvido. Os gandulas uniformizados entraram e foram se sentando ao redor do campo enquanto policiais de óculos escuros segurando pastores alemães patrulhavam as bordas do gramado. Agora, só faltavam os jogadores.

Nas arquibancadas, era como estar no meio de uma festa de meninos levados. Os torcedores entoavam as mesmas musiquinhas provocadoras que nós ensinávamos uns aos outros na escola e jogavam copos descartáveis amassados nas cabeças de quem estava abaixo. Os carecas sofriam. A pior coisa que me lembro de ter visto foram uns caras mijando nos torcedores que ficavam na área inferior ao lado do gramado, a “geral”. Essa parte do estádio tinha os ingressos mais baratos. Lá embaixo, não havia lugar para sentar e o campo de visão era na altura dos pés dos jogadores. Os espectadores eram obrigados a assistir os jogos em pé em meio às brigas frequentes.

Um amigo me contou a história de um repórter que estava em uma das cabines de imprensa que ficava bem em cima da “geral”. Para fazer graça com os colegas, o repórter começou a xingar e a gozar o pessoal em baixo. Junto com os palavrões veio a dentadura. Mesmo com suas súplicas, os caras não pensaram duas vezes e pisotearam sem pena seus dentes falsos assim que aterrissaram.

*

Uma voz surpreendentemente formal e monótona saiu pelos alto-falantes anunciando a partida e o nome dos jogadores. Os torcedores fizeram silêncio, mas cada vez que mencionava um dos seus craques iam a loucura. Quando a apresentação terminou, o painel eletrônico acendeu e começou a mostrar o placar do jogo: “Flamengo 0 Fluminense 0”.

Sendo tradicionalmente o time da elite social branca, o símbolo do Fluminense era o pó de arroz. Em preparação para a chegada do seu time, membros da torcida tricolor circulavam com baldes cheio de saquinhos da coisa, os distribuindo como se fossem fazendeiros dando ração aos animais. Assim que o Fluminense entrasse em campo, todos rasgariam os sacos e atiraram o pó no ar criando uma espessa nuvem branca. Quando o ar clareasse, pareceria que tinham acabado de sair de uma tempestade no deserto.

Com o estádio completamente lotado, dava para ver que a torcida do Flamengo era bem maior, tomando quase dois terços do estádio. Por causa de suas cores: vermelho e preto, o símbolo do clube era um urubu. Em cada jogo, torcedores levavam um urubu de verdade. A tradição era amarrar uma bandeira do clube no pé do bicho e soltá-lo quando os jogadores entravam em campo. Se a mascote conseguisse voar para fora do estádio, aquilo era considerado como um bom presságio. Naquela situação, a ave desnorteada correria o risco de mudar de cor por causa da nuvem de pó de arroz e de ser confundida com uma águia branca quando retornasse ao ninho.

Os dois times entraram em campo juntos. Quem abriu o caminho foi o árbitro e seus auxiliares seguidos pelos jogadores em fila indiana, uns se aquecendo e outros subindo o túnel dando a mão aos mascotes dos times. Esses meninos ficariam livres para correr pelo campo depois que posassem junto com os atletas nas as fotos para a imprensa. Na manhã seguinte, aquelas imagens seriam estampadas nas últimas páginas de todos os jornais da cidade. Quem quer que tivesse ido ao jogo sentiria como se houvesse participado de um grande evento. Depois da foto, os jogadores se espalharam pelo campo e ficaram tocando a bola entre si, dando piques no gramado e chutando a gol para aquecer o goleiro. Enquanto isso, repórteres corriam atrás dos craques tentando fazer com que tecessem comentários sobre o jogo. Pegando carona nos rádios dos vizinhos, quando os astros do futebol falavam com um radialista, podíamos dar um rosto, mesmo que distante, às vozes que vínhamos acompanhando desde que saímos de casa.

O juiz mandou a polícia liberar o campo. Quando só ficaram ele e os jogadores, o árbitro chamou os dois capitães para o centro do gramado para decidir quem sairia com a bola e em que lado cada um dos times ia começar jogando. Com um barulho ensurdecedor nas arquibancadas, os jogadores tomaram suas posições, o homem de uniforme preto olhou para o seu relógio e deu o apito inicial. Uma estrela da seleção campeã, Gérson, se não me engano, passou a bola para trás dando início à partida. O estádio inteiro conseguia reconhecê-lo pela careca como também os demais jogadores por causa dos cortes de cabelo, dos números nas camisas e pelo seu estilo de jogar. Quando faziam algo de errado, as pessoas os criticavam em altos brados como se os conhecessem pessoalmente. Na hora que os atacantes estavam prestes a marcar um gol, todo mundo se levantava e quando o adversário oferecia algum risco, ficavam em silêncio enquanto a torcida rival festejava. No segundo tempo, o Fluminense marcou abrindo o placar. Ainda que não torcesse pelo time, não pude me conter e fui à loucura como se fosse tricolor de nascença.

*

Naquele tempo, a televisão ainda estava dando seus primeiros passos e raríssimos jogos eram transmitidos ao vivo. Nossos heróis da bola ainda não tinham empresários planejando suas carreiras milionárias nos campeonatos europeus. Ao contrário, seus horizontes começavam e terminavam dentro dos campeonatos estaduais e nacionais. Para a nata, havia a convocação para a seleção nacional e a fama internacional mas raríssimos iam jogar no estrangeiro. Por isso, jogavam para a torcida e faziam o que podiam todas as tardes de domingo para reafirmar sua condição de craques. O ali e o agora eram cruciais, o que tornava a qualidade daquelas partidas, sem dúvidas, a melhor do mundo. O Maracanã daqueles tempos traz memórias aos torcedores do Rio parecidas às que Woodstock traz para os amantes do rock. Houve momentos de pura magia, gols inesquecíveis, dribles, jogadas e delírios coletivos de outro planeta. Como deve ter sido no Coliseu em Roma, o clima daquelas partidas foi um fenômeno único e irrepetivel.

Voltar

 Seguir

Início

Samba Perdido – Capítulo 04, parte 1

Capítulo 04

 "Todos juntos vamos, 
Pra frente Brasil, 
Brasil! Salve a seleção” 

Hino da seleção - 1970

Em 1962, enquanto o mundo despertava para a década mais colorida do século vinte, Renée voltou do hospital com um filho, os Rolling Stones e os Beatles gravaram seus primeiros singles, o mundo quase começou uma Terceira Guerra Mundial, desta vez nuclear, por causa de mísseis soviéticos em Cuba, Adolf Eichman, o engenheiro do Holocausto, foi executado em Israel, João Gilberto e Tom Jobim fizeram a sua estreia americana no Carnegie Hall em Nova York e Marilyn Monroe morreu de overdose em Los Angeles.

No entanto, para a grande maioria dos Brasileiros, o que mais marcou aquele ano foi o segundo campeonato mundial da sua seleção de futebol. Se alcançar a glória no esporte mais popular do planeta eletrizava países “desenvolvidos” como a Itália, a Alemanha e a França, é difícil imaginar a explosão de orgulho nacional e de pura alegria que tomou conta do país. Aquele time mulato, vindo das ruas, se impondo no cenário internacional pela segunda vez foi uma injeção insubstituível de autoestima e de otimismo.

Depois do apito final que selou a vitória brasileira de três a um na final contra a Checoslováquia, no Chile, as comemorações tomaram conta das ruas e só pararam nas primeiras horas da manhã do dia seguinte. Como seria de se esperar, as batucadas de rua foram a alma do Carnaval fora de estação. Sambistas desceram dos morros lembrando ao “asfalto” que suas proezas instrumentais eram irmãs das proezas futebolísticas dos craques que estavam trazendo o título para casa. As comitivas de batuqueiros contavam com mulatas espetaculares se requebrando ao ritmo irresistível dos tambores. Bem antes dos biquínis fio-dental aparecerem nas praias cariocas, seus trajes já deixavam quase tudo à mostra, realçando seus movimentos ousados e deixando a moçada com água na boca. Acompanhando o samba, torcedores de todas as raças, idades e classes sociais extravasavam sua alegria. Inebriados pela vitória e regados pela cerveja, recordavam os gols dos heróis daquela campanha – Garrincha, Didi, Vavá entre muitos outros. Pelé havia se contundido e tinha ficado de fora.

*

Oito anos depois, em 1970, depois de uma decepcionante campanha em 1966 na Inglaterra, onde o país de Renée tinha se sagrado campeão, o Brasil estava a caminho do México para tentar o seu terceiro título mundial. Dessa vez, além de um time repleto de craques, entre eles um Pelé superpreparado e consciente de que esta seria sua última Copa, havia uma novidade: as transmissões televisivas. Graças a elas, a nação inteira poderia ver seus craques jogando ao vivo no estrangeiro.

Aproveitando o casamento de um evento tão popular com a nova tecnologia, o regime militar, instaurado já há seis anos, resolveu investir pesado na seleção. Com problemas de popularidade devido à crescente polarização econômica e ao endurecimento da repressão política, os militares queriam assegurar uma aposta vital de que o país se sagraria campeão.

A ideia era unir a nação em torno do futebol e, por via de maquinações midiáticas, associar as conquistas dos atletas a uma imagem positiva do regime. Foi assim que o país se viu mergulhado  numa febre de patriotismo, a chamada “corrente pra frente”.

Nos recantos mais remotos do país, milhares de vilarejos receberam seus primeiros televisores para que o povo pudesse fazer parte dos “noventa milhões em ação”, como dizia a canção oficial da seleção. Durante a Copa, seus moradores se amontoariam em torno desses únicos aparelhos, muitas vezes em praças de terra no meio do mato, para assistir o “escrete canarinho” em ação.

Pelo país inteiro, praticamente todo carro tinha uma fita verde e amarela amarrada à antena e todo estabelecimento ostentava pelo menos uma bandeira ou um cartaz da seleção, fosse de um jogador ou do time completo. Nossa rua, a Siqueira Campos, se juntou à comoção. Quase todo apartamento tinha uma bandeira pendurada da janela. Os moradores mais entusiasmados se deram ao trabalho de colocar milhares de bandeirolas coladas em fios que cruzavam de um lado a outro da rua, começando na praia e indo até seu final no morro da Saudade. O bairro todo fez igual e Copacabana se fantasiou para a Copa.

Ao mesmo tempo, em qualquer oportunidade, as estações de rádio e de televisão estimulavam o fervor futebolístico e o misturavam com mensagens pró-regime. Haviam adesivos colados por todos os lados com slogans como “Brasil: ame-o ou deixe-o” e “Deus é brasileiro”.

O que poucas pessoas sabiam é que o técnico do time, João Saldanha, apesar de um apaixonado pelo seu país e pelo talento dos seus jogadores, era um comunista dedicado que organizava reuniões do partido ilegal em sua casa. Porém, depois de Saldanha ter se negado a convocar Dario – o Dadá Maravilha –, um dos favoritos do presidente Médici, e de dar declarações políticas inconvenientes enquanto fazia a inspeção de um dos estádios onde o time ia jogar no México, os generais interviram. Eles ordenaram que Zagallo, um ex-jogador branco e de classe média que havia participado das campanhas vitoriosas de 1958 e 1962, o substituísse.

*

Graças às teorias conservadoras da minha mãe, eramos uma das poucas famílias no bairro sem um televisor. Para mim, com oito anos de idade e imerso até o pescoço na febre assolando todos os meninos brasileiros, aquela aversão à tecnologia era deseperadora. Já tinha perdido a oportunidade de ver o primeiro homem pisar na lua na casa de uns vizinhos porque era tarde demais. Porém me barrar de ver a Copa do Mundo seria cruel demais.

Rafael aliviou minha barra anunciando que iríamos assistir os jogos no apartamento do Paulo. Ainda que fosse um esquerdista convicto, seu amigo pertencia ao século vinte e possuía uma televisão, apesar da propaganda fascista, que na sua opinião, ela vomitava sem parar.

O primeiro jogo da Copa foi entre União Soviética e México. Todos consideravam esses dois times potentados menores do futebol mas, por alguma razão, assistir a cerimônia de abertura era uma obrigação para qualquer um que quisesse merecer o título de torcedor brasileiro.

No dia do jogo, para minha alegria e alívio, fomos lá. Depois da abertura espetacular, presenciamos o Paulo torcer para o time que levava estampada na frente da camisa a inscrição “CCCP” – a URSS, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Recusando-se a pronunciar a palavra “soviético” muito menos “socialista”, o locutor se atinha a chamar o time de “Rússia” e mesmo assim mencionava o nome o menos possível provocando alguns resmungos da parte de nosso amigável anfitrião. Depois que o jogo terminou, voltei para casa empolgado.  A aguardada copa tinha começado e como o resto da nação não podia esperar pelas batalhas que estavam por vir.

O Brasil jogou sua primeira partida, contra a Checoslováquia, alguns dias depois. O jogo era à noite e em um dia de semana, muito tarde e um tanto incômodo para assistir na casa do Paulo. O jeito foi ouvir no rádio. Ignorando os protestos de minha irmã, meus pais permitiram que trouxesse meu radinho de pilhas para a mesa de jantar. Quando o jogo começou, liguei o aparelho coloquei o volume alto o suficiente para que pudesse ouvir e baixo o suficiente para que a Sarah aceitasse. Depois de uns dez minutos, para o desespero da nação verde e amarela, o adversário marcou o primeiro gol. As palavras secas do narrador cortaram o peito do Brasil como uma navalha. Lá fora o silêncio era tanto que parecia que o fim do mundo tinha chegado. A Sarah olhou para minha cara entristecida e debochou.

“Ha, ha, ha! Tomaram um gol, bem feito!”

Aquela provocação foi um erro. Xinguei ela de vaca e joguei minha coxa de frango na cara dela. Na hora meu pai me mandou para o quarto. Fui com o rádio feliz da vida, pelo menos lá, poderia ouvir o resto do jogo sem a interferência de uma menina. Logo depois, para alívio geral, o Brasil marcou seu primeiro gol, virou a partida e terminou ganhando por um convincente quatro a um.

*

Voltar

Próximo

Início

Samba Perdido – Capítulo 03, parte 03

Em termos de família, não estávamos sós no Rio de Janeiro. Embora isso nunca tivesse pesado na sua decisão de emigrar, Rafael, tinha uma prima distante morando em Copacabana. Duscha e o marido tinham se mudado da Alemanha para o Rio antes da guerra. Ao contrário dos meus pais que tiveram filhos numa idade avançada – Rafael tinha sessenta e dois e Renée quarenta e dois quando nasci– ela teve seus filhos jovem, logo que chegou. Portanto, nossos primos eram uns quinze ou vinte anos mais velhos.

Minha prima acabaria se tornando uma atriz e cantora famosa; Bibi Vogel. Com seu jeito frágil, seus olhos verdes penetrantes, seus lábios escuros e seu corte de cabelo hippie ela foi uma das musas de sua geração. No entanto, não foi só a beleza que a trouxe fama. Era uma excelente cantora, e com seu estilo parecido com o de Joan Baez, chegou a gravar álbuns de algum sucesso. Contudo, Bibi se tornou mais conhecida como atriz, mostrando seu talento cedo num dos papéis principais na versão brasileira de Hair, o ícone musical da contracultura dos anos 1960.

Quando eu era bebê, antes de virar famosa, Bibi se mudou para Nova York. Lá, tentou a sorte com a banda de bossa nova de uns amigos. Eles eram bons e aproveitando a popularidade da música brasileira, conseguiam lotar barzinhos, casas noturnas e até teatros. Depois de um ano ou dois, Bibi voltou para visitar os pais. No Brasil, ouviu “Mas Que Nada”, o sucesso de Jorge Ben (“ôôôô… Mariá aiôô, obá, obá, obá…”).

Encantada com seu balanço, quando voltou a Nova York, apresentou a canção à banda. Todos adoraram na hora. Depois de adotada, ela passou a ser uma das favoritas dos músicos e do público. Pouco depois, minha prima decidiu abandonar seus companheiros para ir atrás do namorado que estava de mudança para a Califórnia. Sem muita cerimônia Sérgio Mendes a substituiu por uma vocalista americana. Alguns meses mais tarde, conseguiram assinar um contrato com uma gravadora que trouxe o mega produtor Quincy Jones para ajudar. Quando o disco saiu, Sergio Mendes e o Brasil 66 transformaram o sucesso de Jorge Ben numa referência internacional.

Depois da aventura americana, Bibi voltou ao Brasil e fez carreira como atriz na TV Globo. Contudo, a vida de artista pode ser dura e quando o bolso aperta, cada um se vira como pode. Ao me tornar adolescente, fiquei boquiaberto ao deparar com uma foto da minha prima seminua na capa da Status – a primeira revista “masculina” do Brasil. Mais chocante ainda, acabaria também vendo imagens da Bibi estampadas em cartazes de pornochanchadas. Esse era um estilo de filmes com elementos das chanchadas, comédias musicais dos anos 1950 com Oscarito e Grande Otelo, mas com um tempero soft-pornô. Embora péssimos, lotavam salas de cinemas com homens solitários da classe baixa e adolescentes da classe média com documentos falsificados dizendo que eram de idade. Os dois grupos gastavam suas economias para ver atrizes mostrando seus seios em situações sexuais.

Se só o fato de ter uma prima envolvida nisso era estranho, para tornar a coisa ainda mais bizarra, sua mãe, Duscha, era a cantora principal no coral da nossa sinagoga. Nos feriados importantes do calendário religioso judaico, ela agraciava a comunidade com a sua voz treinada e angelical.

O que mais me confundia era que, apesar das conquistas artísticas da Bibi e da sua imagem serem contrárias a tudo o que meus pais pregavam em casa, eles não conseguiam deixar de sentir orgulho dela. Como em qualquer família de classe média, sucesso era mais importante do que caracterizavam como virtude. Não concordava com esses conceitos e nunca deixei de ser fascinado pela minha prima mais velha que nos encantava contando e encenando histórias e nos lendo trechos das suas peças de teatro favoritas quando éramos pequenos. Além de ser muito culta, tinha uma personalidade que impunha respeito, foi uma das primeiras feministas do país e era enturmada com a nata artística da sua geração.

Não podia deixar de sair em sua defesa quando meus amigos faziam gracinhas a seu respeito.

“E aí, Rique! Está cobrando quanto pela meia hora com a tua prima?”

Para mim, Bibi foi uma inspiração importante: se alguém da minha família tinha conseguido se dar bem no meio artístico, por que não eu?

*

Em casa, na escola e nos círculos de amizade de meus pais, todos me consideravam “artístico”; algo que nunca soube dizer ao certo se era um elogio ou uma forma educada de dizer que era um caso perdido. Certos ou errados, gostava de desenhar e era vidrado em cinema e em livros; se a história me tocasse passava semanas fantasiando. Porém, acima de tudo, a música mexia comigo. Musicalidade era um gene que corria na família, não só do lado da Bibi mas, principalmente, do lado da minha mãe. Por décadas, meu tio, o maestro Sydney Torch – o primeiro da família do meu avô Alec a se mudar da Estonia para Londres – conduziu a orquestra de concertos da BBC. Duas gerações mais tarde, Ben Mandelson, meu primo de Liverpool, seria guitarrista do consagrado bardo da esquerda britânica, Billy Bragg, nos anos 1980.

Como minha mãe proibia qualquer tipo de gênero popular em casa, cresci ouvindo música clássica e era um apaixonado. Nos fins de semana, acordava cedo e aproveitava a sala vazia para ligar a vitrola e ficar conduzindo orquestras invisíveis com a minha caneta telescópica japonesa.

Apesar da falta de entusiasmo de Rafael, vendo uma promessa de talento, Renée providenciou aulas de música. O professor que a escola ofereceu era uma pessoa especial. Mr. Stansfield tinha vindo para o Rio por meio de uma instituição de caridade ligada à Igreja da Inglaterra. Ele sofria de paralisia cerebral e os sintomas eram severos – tinha uma completa falta de coordenação motora que tornava o simples ato de andar difícil. Contudo, isso não afetou sua habilidade de ensinar um menino de sete anos a tocar flauta doce.

Depois de vencer a dura batalha para conseguir tocar a minha primeira canção – Au Claire de la Lune – o instrumento passou de inimigo a meu melhor amigo. Descobri a magia de fazer e de criar música e passei a tocar quando e onde podia. Os sons e as frases que saíam da flauta me ligavam a uma energia sutil que parecia escapar à maioria das pessoas. Apesar de meus inimigos da escola encararem minha nova descoberta como mais um motivo para me atacar, vizinhos, professores, família e amigos me encorajavam.

“Ele traz vida à escola com a sua flauta”, disse uma professora à minha mãe, se referindo às minhas aventuras musicais explorando o eco dos corredores vazios enquanto esperava pelas aulas do Mr. Stansfield.

“Que graça teu filho tocando música nesta idade”, diziam os vizinhos, opinião talvez suspeita por causa da etiqueta polida do prédio.

De qualquer forma, depois de mais ou menos um ano tendo que aguentar minhas intermináveis viagens musicais, todos os encolvidos ficaram secretamente aliviados quando decidi trocar a flauta por uma nova paixão mais silenciosa e mais ligada ao ar livre: o jacaré ou o bodyboarding.

Depois do estágio infantil de apostar corridas com a espuma d´água, passei a usar uma prancha de isopor e a me jogar na frente das ondas para que me levassem. O próximo passo foi me aventurar até onde elas quebravam e depois gradualmente aprender a cortá-las para os lados quando estavam arrebentando. Depois que aprendi a nadar fui ganhando confiança no mar e o tamanho das ondas foi aumentando. Entusiasta do esporte e morando a poucas quadras da praia, fui aprimorando minha técnica. Com o tempo as pranchas foram ficando menores, até que as deixei de lado e passei a usar somente as mãos com a ajuda de pés de pato. Quando percebi, já fazia parte fo grupo dos “casca grossas”.

Pegar jacaré passou a ser a melhor coisa do mundo. Lá longe, na água funda e despoluída, atrás da forte arrebentação, debaixo do sol quente, com os edifícios distantes, tudo era puro, simples e calmo. Havia apenas o corpo imerso no vasto oceano em harmonia com sua dinâmica incontrolável, seu sal e seus sons. Quando as ondas começavam a se formar no horizonte, era como estivessem nos desafiando. Para pegá-las, tínhamos que nos posicionar no lugar perfeito e começar a nadar para a frente na velocidade exata até que o mar nos permitisse fazer parte de sua parede de água. Depois disso, era só guiar nossos corpos, nos movendo ligeiramente para prolongar o êxtase o mais que possível.

As ondas grandes eram medonhas, mas também eram as mais divertidas. No auge de minha carreira de bodyboarder, dominava ondas de até dois metros e meio, quase do tamanho da parede de um quarto, que vistas por baixo pareciam enormes. Sempre havia um ponto de não retorno, quando ainda se podia olhar para baixo e pensar sobre o que se estava prestes a fazer. Nesse ponto, o cara tinha que ser meio doido para continuar, mas, em noventa por cento dos casos, o desafio mais que valia a pena.

O ponto alto de pegar jacaré era ficar envolto pelo tubo da onda, ou entubar. Esse é, com certeza, um dos melhores lugares para se estar no planeta: uma efêmera caverna d´água formada pela natureza num momento único. Para um menino, havia uma poética erótica, ainda que subliminar, de se estar ali com o corpo rígido deslizando pelo túnel de agua do cosmos.

Esse tipo de comunhão com a natureza era maior e melhor do que qualquer outra coisa que tinha aprendido em casa ou na escola. Ao desafiar o oceano me sentia forte, corajoso e acima de tudo harmonizado.

Talvez por noventa por cento do corpo ser composto de água – a energia do mar servia como um carregador de baterias natural. Depois dessas sessões, exausto mas energizado, andava pensativo de volta para casa na beira do mar. Era como se  os passeios de madrugada na praia com meu pai retornassem num novo patamar. Embora sem a sua presença, as questões metafísicas e existenciais voltavam ainda mais fortes. Aquele bem-estar absoluto me levava a refletir sobre minha existência bizarra e meu destino de ter que conciliar mundos tão distintos. Ficava pensando que, apesar daquela complexidade insuportável, era apenas um cara como qualquer outro. Por que deveria ser o menino “especial”, solitário e estudioso, que meus pais esperavam que eu fosse? Em casa censurava aqueles pensamentos. Mesmo assim, quando contava minhas façanhas, elas eram acolhidas com apreensão; havia o medo que eu fosse seduzido por atividades socialmente questionáveis que acabariam por me desviar do futuro brilhante reservado a meninos como eu. Para Renée e Rafael, o culto ao físico e a coragem praieira eram coisas para os vândalos cabeludos e insolentes que estavam tomando conta das praias e das ruas cariocas. Para eles e seus amigos, surfistas e roqueiros estavam estragando não só o Rio, mas o mundo. As nuvens de um conflito estavam se formando.

voltar

Seguir

Início

Samba Perdido – Capítulo 03, parte 02

 Quando chegamos na escola, haviam bandeiras inglêsas e brasileiras penduradas por todo lado. Ao descer do ônibus, a primeira coisa que reparamos foi a ausência do costumeiro tapete de folhas e de frutas podres que sempre cobria o enorme pátio asfaltado. Parecia um outro lugar, até o cheiro doce do podre tinha ido embora, milagrosamente os faxineiros haviam limpado tudo.

Fomos levados direto para nossas salas onde cada turma ficaria esperando a sua vez para se dirigir ao auditório. Na confusão não consegui ver o resto da família.

Nossa professora, Mrs. Feitosa, estava nos esperando ao lado da porta. Ela era uma loura autoritária de Manchester nos seus quarenta e tantos anos, casada com um brasileiro. Sua maquiagem, seu perfume e seu vestido exagerados, embora levemente ridículos, não diminuíram sua autoridade. Quando viu que a sala estava cheia fechou a porta, bateu no quadro negro e falou alto e firme.

Alô-ô!!! Quero todo mundo sentado e prestando bastante atenção!”

Paramos o que estávamos fazendo, obedecemos e ficamos em silêncio.

“Muito bem. Estão todos me ouvindo? Vocês sabem quem está para  visitar a escola, não é?” Ela fez uma pausa para que a ideia entrasse na nossa cabeça. “Hoje não vai ter desculpas para palhaçadas, todo mundo tem que estar no seu melhor comportamento. Fui clara?”

Mrs. Feitosa deu sua famosa olhada por trás dos óculos e torceu seus lábios finos. Como que por mágica, cada um dos alunos pensou que a ameaça era dirigida a ele. Foi um alívio quando alguém abriu a porta dizendo que era nossa vez de deixar o prédio.

“Agora, quero todos dando as mãos e vindo comigo.”

Fui com meu amigo Henry, um inglês louro alto de cara sonolenta. De volta ao pátio, consegui ver meus pais com os outros adultos, todos vestidos impecávelmente e esperando. Quando passamos à sua frente, acenaram e sorriram com orgulho. Depois, voltaram a olhar ansiosos de um lado para outro para ver se a convidada ilustre já havia chegado.

Estávamos para entrar no auditório quando ouvimos barulhos de sirenes. Mrs. Feitosa olhou para trás. Seguimos seu olhar e testemunhamos o grande momento: acompanhada por sua comitiva, Sua Majestade, Rainha Elizabeth II da Inglaterra, estava entrando na Escola Britânica do Rio de Janeiro.

Em todo o seu resplendor, a Rainha estava de pé em um Rolls Royce sem capota, acenando e sorrindo para a pequena multidão agora reunida ao longo da fila de palmeiras que se estendia desde a entrada da escola até o pátio. Como garotos, o que mais chamou a nossa atenção foram as motocicletas escoltando os carros oficiais; eram as mais incríveis que qualquer um de nós já tinha visto. Como num filme, eram enormes, com motores grandes e barulhentos, antenas de rádio gigantescas e para-brisas cintilantes. Os guardas pareciam estrelas de Hollywood, com o sol refletindo nos seus óculos escuros e nas suas jaquetas de couro exibindo o emblema da polícia militar.

Antes que pudéssemos falar alguma coisa, Mrs. Feitosa nos tirou do transe mandando a gente entrar rápido para dentro do auditório. Os organizadores estavam nervosos; tínhamos que subir no palco antes que a segurança liberasse a entrada dos adultos. Depois que nos acomodamos, os adultos começaram a entrar e a lotar as beiradas do salão. Com o local cheio, as portas fecharam e todos ficaram esperando a Rainha entrar. Tivemos sorte pois nosso era o melhor lugar para se enxergar o evento.

Finalmente Mr. Gordon, o diretor da escola entrou, andou até o centro do salão e pediu a atenção de todos. Num inglês impecável anunciou a convidada de honra. Quando ela colocou os pés dentro do salão foi como se o poder e a aura do Império Britânico estivessem entrando junto. Parecia que o prédio havia se transformado num lugar diferente que abrigava toda a pompa e circunstância do Reino. O Príncipe Phillip seguiu logo atrás e parou para conversar com, adivinhem quem? minha irmã Sarah, que estava em pé na parte reservada para ex-alunos. Ela foi incrível: confiante e polida.

Os dois alunos escolhidos para dar as boas-vindas à Rainha eram ingleses “puro-sangue”, que era como todos chamavam aquela panelinha. Vestido como aristocratas britânicos do passado, o garoto andou até a Rainha e de maneira cavalheiresca atirou ao chão sua capa de veludo com bordados dourados. A garota, em pé em frente dele, fez uma reverência. Ele se curvou e ao levantar gritou qualquer coisa que não entendi. O que quer que tenha sido, a Rainha mostrou sua aprovação e depois se virou para a nossa turma.

Mrs. Feitosa ergueu a mão e nós começamos a cantar. Estávamos bem ensaiados e para o alívio geral, cantamos bem. Depois dos aplausos, foi a vez das apresentações e dos discursos. A Rainha falou pouco mas todos prestaram a máxima atenção e aplaudiram com entusiasmo no final. A cerimônia acabou com ela se despedindo graciosamente. As festividades continuaram até bem depois da saída da comitiva real. Todos os presentes voltaram para casa com a sensação de que se houve alguma vez um dia dourado para a comunidade britânica do Rio de Janeiro, foi aquele.

*

Meus pais ainda não tinham decidido se ficariam para sempre no Brasil e a escolha da Escola Britânica tinha sido a mais lógica. Apesar do preço astronômico, o estabelecimento tinha uma longa e orgulhosa história de serviços prestados a famílias britânicas e anglo-brasileiras lutando – embora perdendo mais vezes do que vencendo- a dura batalha para blindar suas crianças do flagelo da brasilidade.

Todos, direção, professores e pais, faziam de tudo para preservar o ambiente britânico. Até a comida dos almoços era britanicamente insossa. O inglês era a única língua usada não só nas aulas mas também nas conversas com os amigos e até nas brigas. Seguindo a tradição, Mr Gordon era famoso pelas surras de vara que dava nos meninos mais velhos em frente da escola inteira. O uniforme era típico – camisa de abotoar azul e calças de tergal cinza. A escola também recomendava para que quando voltássemos para casa o português só fosse usado com as empregadas. 

A maioria dos pais dos meus colegas ou eram diplomatas ou trabalhavam para empresas britânicas. Diferentemente dos meus, nenhum deles tinha se mudado para o Brasil numa aventura existencial, também não compartilhavam sua religião nem sua idade. Meus colegas ou sabiam dessa diferença ou pelo menos sentiam que havia algo de estranho ali e me tratavam como se fosse, de alguma forma, distinto. 

Isso nunca chegou a ser uma desvantagem. Sem ter que seguir padrões convencionais, minha diferença conferia carisma. Talvez por isso acabaria me tornando o líder da bagunça tanto dentro quanto fora da sala de aula. Isso aconteceu espontâneamente, sem que precisasse me impor fisicamente. Como consequência, acabei fazendo dois inimigos. Seja por inveja ou por se verem no direito – ou mesmo no dever – de me colocar no meu lugar, a dupla fazia de tudo para cortar a minha onda e me diminuir.

Um deles, o Nicholas, tinha sido calejado por dois irmãos mais velhos. Apesar do sobrenome irlandês, parecia e de alguma forma era, italiano. O outro, Garreth, era um inglês “puro sangue”, um típico garoto bonitinho que se via em comerciais: sardento, de cabelos loiros e de olhos azuis. Apesar disso, nunca sorria e era o mais escroto dos dois. Juntos, eles infernizavam minha vida. Do nada, faziam a chamada cama de gato, onde um deles ficava agachado atrás, enquanto o outro vinha me empurrar com força pela frente. Sem provocação, apareciam toda hora para ridicularizar minhas piadas e brincadeiras. Na sala, faziam questão de competir comigo no que quer que fizesse. Eu saía vencedor nos duelos de inteligência e de criatividade, mas perdia nos embates físicos, os mais importantes para garotos. Ninguém gostava da dupla, mas quando a única opção para se manter a dignidade era brigar, meus amigos amarelavam e eu tinha que enfrentá-los sozinho sem ter o equipamento nem físico nem psicológico para tanto. Contudo, não via razão para aquilo e estava resolvido a não me curvar.

A chance de dar o troco veio em uma de minhas festinhas de aniversário quando convidei a sala inteira exceto Nicholas e Garreth. Revoltada com aquilo, uma das professoras tentou me dar uma lição. No dia da festa, ela me tirou do ônibus escolar e levou nós três de carona para casa. Para me constranger, no caminho ficou me perguntando sobre a festa. O plano não funcionou e não houve arrependimento nem convite. Nada faria com que os dois tivessem a chance de estragar meu dia.

O troco veio quando convidei um colega de sala ao Clube Paissandu. Assim que nos viram na piscina, vieram interromper o que estávamos fazendo e afastaram meu amigo. Depois tentaram me afogar. Dar caldos uns nos outros era uma brincadeira comum, mas daquela vez a coisa foi para valer. Me deixaram em baixo d’água até não conseguir mais respirar. Entre as pernas dos dois, as mãos deles segurando minha cabeça e meus ombros e sem ar, tudo ficou vermelho. Desesperado, saí distribuindo socos, cotoveladas e pontapés até conseguir sair e respirar de novo. De volta na superfície, com os pulmões cheios continuei e, para meu espanto, dei uma surra nos dois. Só que logo depois chorei, não por causa da humilhação, mas por não entender o porquê deles serem assim comigo. Talvez por causa dessa reação, não aceitaram a derrota e a situação continuou.

*

voltar

seguir

início