Em termos de família, não estávamos sós no Rio de Janeiro. Embora isso nunca tivesse pesado na sua decisão de emigrar, Rafael, tinha uma prima distante morando em Copacabana. Duscha e o marido tinham se mudado da Alemanha para o Rio antes da guerra. Ao contrário dos meus pais que tiveram filhos numa idade avançada – Rafael tinha sessenta e dois e Renée quarenta e dois quando nasci– ela teve seus filhos jovem, logo que chegou. Portanto, nossos primos eram uns quinze ou vinte anos mais velhos.

Minha prima acabaria se tornando uma atriz e cantora famosa; Bibi Vogel. Com seu jeito frágil, seus olhos verdes penetrantes, seus lábios escuros e seu corte de cabelo hippie ela foi uma das musas de sua geração. No entanto, não foi só a beleza que a trouxe fama. Era uma excelente cantora, e com seu estilo parecido com o de Joan Baez, chegou a gravar álbuns de algum sucesso. Contudo, Bibi se tornou mais conhecida como atriz, mostrando seu talento cedo num dos papéis principais na versão brasileira de Hair, o ícone musical da contracultura dos anos 1960.

Quando eu era bebê, antes de virar famosa, Bibi se mudou para Nova York. Lá, tentou a sorte com a banda de bossa nova de uns amigos. Eles eram bons e aproveitando a popularidade da música brasileira, conseguiam lotar barzinhos, casas noturnas e até teatros. Depois de um ano ou dois, Bibi voltou para visitar os pais. No Brasil, ouviu “Mas Que Nada”, o sucesso de Jorge Ben (“ôôôô… Mariá aiôô, obá, obá, obá…”).

Encantada com seu balanço, quando voltou a Nova York, apresentou a canção à banda. Todos adoraram na hora. Depois de adotada, ela passou a ser uma das favoritas dos músicos e do público. Pouco depois, minha prima decidiu abandonar seus companheiros para ir atrás do namorado que estava de mudança para a Califórnia. Sem muita cerimônia Sérgio Mendes a substituiu por uma vocalista americana. Alguns meses mais tarde, conseguiram assinar um contrato com uma gravadora que trouxe o mega produtor Quincy Jones para ajudar. Quando o disco saiu, Sergio Mendes e o Brasil 66 transformaram o sucesso de Jorge Ben numa referência internacional.

Depois da aventura americana, Bibi voltou ao Brasil e fez carreira como atriz na TV Globo. Contudo, a vida de artista pode ser dura e quando o bolso aperta, cada um se vira como pode. Ao me tornar adolescente, fiquei boquiaberto ao deparar com uma foto da minha prima seminua na capa da Status – a primeira revista “masculina” do Brasil. Mais chocante ainda, acabaria também vendo imagens da Bibi estampadas em cartazes de pornochanchadas. Esse era um estilo de filmes com elementos das chanchadas, comédias musicais dos anos 1950 com Oscarito e Grande Otelo, mas com um tempero soft-pornô. Embora péssimos, lotavam salas de cinemas com homens solitários da classe baixa e adolescentes da classe média com documentos falsificados dizendo que eram de idade. Os dois grupos gastavam suas economias para ver atrizes mostrando seus seios em situações sexuais.

Se só o fato de ter uma prima envolvida nisso era estranho, para tornar a coisa ainda mais bizarra, sua mãe, Duscha, era a cantora principal no coral da nossa sinagoga. Nos feriados importantes do calendário religioso judaico, ela agraciava a comunidade com a sua voz treinada e angelical.

O que mais me confundia era que, apesar das conquistas artísticas da Bibi e da sua imagem serem contrárias a tudo o que meus pais pregavam em casa, eles não conseguiam deixar de sentir orgulho dela. Como em qualquer família de classe média, sucesso era mais importante do que caracterizavam como virtude. Não concordava com esses conceitos e nunca deixei de ser fascinado pela minha prima mais velha que nos encantava contando e encenando histórias e nos lendo trechos das suas peças de teatro favoritas quando éramos pequenos. Além de ser muito culta, tinha uma personalidade que impunha respeito, foi uma das primeiras feministas do país e era enturmada com a nata artística da sua geração.

Não podia deixar de sair em sua defesa quando meus amigos faziam gracinhas a seu respeito.

“E aí, Rique! Está cobrando quanto pela meia hora com a tua prima?”

Para mim, Bibi foi uma inspiração importante: se alguém da minha família tinha conseguido se dar bem no meio artístico, por que não eu?

*

Em casa, na escola e nos círculos de amizade de meus pais, todos me consideravam “artístico”; algo que nunca soube dizer ao certo se era um elogio ou uma forma educada de dizer que era um caso perdido. Certos ou errados, gostava de desenhar e era vidrado em cinema e em livros; se a história me tocasse passava semanas fantasiando. Porém, acima de tudo, a música mexia comigo. Musicalidade era um gene que corria na família, não só do lado da Bibi mas, principalmente, do lado da minha mãe. Por décadas, meu tio, o maestro Sydney Torch – o primeiro da família do meu avô Alec a se mudar da Estonia para Londres – conduziu a orquestra de concertos da BBC. Duas gerações mais tarde, Ben Mandelson, meu primo de Liverpool, seria guitarrista do consagrado bardo da esquerda britânica, Billy Bragg, nos anos 1980.

Como minha mãe proibia qualquer tipo de gênero popular em casa, cresci ouvindo música clássica e era um apaixonado. Nos fins de semana, acordava cedo e aproveitava a sala vazia para ligar a vitrola e ficar conduzindo orquestras invisíveis com a minha caneta telescópica japonesa.

Apesar da falta de entusiasmo de Rafael, vendo uma promessa de talento, Renée providenciou aulas de música. O professor que a escola ofereceu era uma pessoa especial. Mr. Stansfield tinha vindo para o Rio por meio de uma instituição de caridade ligada à Igreja da Inglaterra. Ele sofria de paralisia cerebral e os sintomas eram severos – tinha uma completa falta de coordenação motora que tornava o simples ato de andar difícil. Contudo, isso não afetou sua habilidade de ensinar um menino de sete anos a tocar flauta doce.

Depois de vencer a dura batalha para conseguir tocar a minha primeira canção – Au Claire de la Lune – o instrumento passou de inimigo a meu melhor amigo. Descobri a magia de fazer e de criar música e passei a tocar quando e onde podia. Os sons e as frases que saíam da flauta me ligavam a uma energia sutil que parecia escapar à maioria das pessoas. Apesar de meus inimigos da escola encararem minha nova descoberta como mais um motivo para me atacar, vizinhos, professores, família e amigos me encorajavam.

“Ele traz vida à escola com a sua flauta”, disse uma professora à minha mãe, se referindo às minhas aventuras musicais explorando o eco dos corredores vazios enquanto esperava pelas aulas do Mr. Stansfield.

“Que graça teu filho tocando música nesta idade”, diziam os vizinhos, opinião talvez suspeita por causa da etiqueta polida do prédio.

De qualquer forma, depois de mais ou menos um ano tendo que aguentar minhas intermináveis viagens musicais, todos os encolvidos ficaram secretamente aliviados quando decidi trocar a flauta por uma nova paixão mais silenciosa e mais ligada ao ar livre: o jacaré ou o bodyboarding.

Depois do estágio infantil de apostar corridas com a espuma d´água, passei a usar uma prancha de isopor e a me jogar na frente das ondas para que me levassem. O próximo passo foi me aventurar até onde elas quebravam e depois gradualmente aprender a cortá-las para os lados quando estavam arrebentando. Depois que aprendi a nadar fui ganhando confiança no mar e o tamanho das ondas foi aumentando. Entusiasta do esporte e morando a poucas quadras da praia, fui aprimorando minha técnica. Com o tempo as pranchas foram ficando menores, até que as deixei de lado e passei a usar somente as mãos com a ajuda de pés de pato. Quando percebi, já fazia parte fo grupo dos “casca grossas”.

Pegar jacaré passou a ser a melhor coisa do mundo. Lá longe, na água funda e despoluída, atrás da forte arrebentação, debaixo do sol quente, com os edifícios distantes, tudo era puro, simples e calmo. Havia apenas o corpo imerso no vasto oceano em harmonia com sua dinâmica incontrolável, seu sal e seus sons. Quando as ondas começavam a se formar no horizonte, era como estivessem nos desafiando. Para pegá-las, tínhamos que nos posicionar no lugar perfeito e começar a nadar para a frente na velocidade exata até que o mar nos permitisse fazer parte de sua parede de água. Depois disso, era só guiar nossos corpos, nos movendo ligeiramente para prolongar o êxtase o mais que possível.

As ondas grandes eram medonhas, mas também eram as mais divertidas. No auge de minha carreira de bodyboarder, dominava ondas de até dois metros e meio, quase do tamanho da parede de um quarto, que vistas por baixo pareciam enormes. Sempre havia um ponto de não retorno, quando ainda se podia olhar para baixo e pensar sobre o que se estava prestes a fazer. Nesse ponto, o cara tinha que ser meio doido para continuar, mas, em noventa por cento dos casos, o desafio mais que valia a pena.

O ponto alto de pegar jacaré era ficar envolto pelo tubo da onda, ou entubar. Esse é, com certeza, um dos melhores lugares para se estar no planeta: uma efêmera caverna d´água formada pela natureza num momento único. Para um menino, havia uma poética erótica, ainda que subliminar, de se estar ali com o corpo rígido deslizando pelo túnel de agua do cosmos.

Esse tipo de comunhão com a natureza era maior e melhor do que qualquer outra coisa que tinha aprendido em casa ou na escola. Ao desafiar o oceano me sentia forte, corajoso e acima de tudo harmonizado.

Talvez por noventa por cento do corpo ser composto de água – a energia do mar servia como um carregador de baterias natural. Depois dessas sessões, exausto mas energizado, andava pensativo de volta para casa na beira do mar. Era como se  os passeios de madrugada na praia com meu pai retornassem num novo patamar. Embora sem a sua presença, as questões metafísicas e existenciais voltavam ainda mais fortes. Aquele bem-estar absoluto me levava a refletir sobre minha existência bizarra e meu destino de ter que conciliar mundos tão distintos. Ficava pensando que, apesar daquela complexidade insuportável, era apenas um cara como qualquer outro. Por que deveria ser o menino “especial”, solitário e estudioso, que meus pais esperavam que eu fosse? Em casa censurava aqueles pensamentos. Mesmo assim, quando contava minhas façanhas, elas eram acolhidas com apreensão; havia o medo que eu fosse seduzido por atividades socialmente questionáveis que acabariam por me desviar do futuro brilhante reservado a meninos como eu. Para Renée e Rafael, o culto ao físico e a coragem praieira eram coisas para os vândalos cabeludos e insolentes que estavam tomando conta das praias e das ruas cariocas. Para eles e seus amigos, surfistas e roqueiros estavam estragando não só o Rio, mas o mundo. As nuvens de um conflito estavam se formando.

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