Autoanarquia

Autoanarquia

AUTOANARQUIA
(para ser livre de mim mesmo)
I
Hoje
quero contradizer
O que disse ontem,
E amanhã, o que disser hoje:
Quero ser livre de mim mesmo!
Se eu vir que a fronte é feia,
Vou falar isso,
Mesmo que tiver dito ser belíssimo
O perfil de alguém…
II
E irei para o gozo sem freios
Ou para o adeus entre montes de terra.
Quero ir vivendo assim – livre –
Olhar por todos os ângulos
E jamais ser imbecil:
Escravo do orgulho de ter falado!
…assim, estarei realizado em cada vida
que eu viver em toda a vida…
III
Quero ser o mais instável dos homens
E não pensar que isso tem a ver
Com a personalidade
-que não muda, muda-
Mas, ser instável no pensamento
(causam-me horror a ideia fixa e os dogmas)
E no modo de olhar as coisas
Para que aperfeiçoe a mim mesmo
E descubra cores maravilhosas
(ocultas aos imbecis-estátuas)
IV
…não há limites para livros superarem livros e teses superarem teses, nem há limites para céus superarem céus e mares superarem mares, nem para mundos superarem mundos, nem para perspectivas superarem perspectivas e ângulos superarem ângulos, nem descobertas superarem descobertas:
V
há limites apenas para o ontem!
Quero concordar e discordar – livre –
Porque não temos que concordar
A vida inteira com o que concordamos
Um dia qualquer que passou, enfim!
…porque passamos pelo cinzel da existência…
VI
E vamos aprendendo novas “cousas”
Descobrimento novos matizes e faces:
É maravilhoso seguir rumo à perfeição
De não ser, jamais, perfeito em nada…
VII
Não quero soldar grades que me prendam
Mas, quero ir rumo a não-sei-o-quê.
Nunca quero dizer: cheguei!
E não quero chegar nunca em pensar: cheguei!
A vida perderia o sabor e amaria a morte:
Chegar é morrer!
VIII
Viver é superar a vida a cada instante!
Quero não gostar e amar depois,
Se eu sentir isso,
…e isso será vida, sim senhor,
acredite-me!
*
© Pietro Nardella-Dellova
in NO PEITO. Editora L&S, 1990, pp. 58-59
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(ph.: my cabin in Appenzell)
Passione ou, porque minha amiga tem asas

Passione ou, porque minha amiga tem asas

Encontrei a amiga em uma manhã de sol, brisa suave e muita vida para viver, pois, afinal, não tenho tempo para morrer entre vampiros, asnos e vias públicas. E ela, então, perguntou-me sobre a palavra passione e seu sentido no modo italiano de viver.

Va bene! Não tente traduzir esta palavra em português, seja do Brasil, de Portugal ou de Angola, nem em inglês britânico e, menos ainda, em inglês americano! Em alemão não é possível sequer pensar em passione. Para o hebraico também não se pode traduzir e, por falta de uma palavra, o rei Salomão escreveu um livro todo sobre passione: o Cântico dos Cânticos (Shir HaShirim)! Enfim, não há tradução para passione! Seria preciso viver alguns anos na Itália, da Sicilia aos extremos alpinos.

Seria preciso caminhar entre construções de pedra e ouvir pessoas cantando com suas janelas abertas e passar muito tempo em Napoli, em suas vias estreitas, descobrindo como nascem tenores e, quem sabe, beber em Milano com seu encanto feminino e multifacetado. Seria preciso ir a Firenze e descobrir o que é Rinascimento. Ou, simplesmente, ver um filme, talvez, Cinema Paradiso, Il Postino e Il Poeta ou La Vita è Bella!

Passione no modo italiano inclui variados aspectos, do tipo mergulhar de boca na mulher amada, promover o bem integral da mulher amada, fazer com que a mulher amada voe e, diante disto, aplaudi-la com entusiasmo incontido. É voar com a amada sobre os mares e fazer com que ela veja estrelas um montão de vezes até ficar vermelha e lançada sobre os lençóis com os cabelos esguedelhados – colorida e maravilhosa, como pintura feita à mão. Passione é viver um dia com a amada como se fosse a própria eternidade…

É uma experiência única, singular e linda! Não há esta coisa de chorar pelos cantos, beber até morrer, de magoar-se ou de prantear, transformando tudo em música sertaneja, cachaça e churrasco, isto é, em monólogos, rezas sem fim, pedidos a Santo Antonio e programas de auditório, com gritinhos e tudo. Não, de fato não! A experiência da passione é algo superior, capaz de transformar animais em gente, transeuntes em pessoas – é alguma coisa entre o Jardim do Éden e os desertos dos enfrentamentos humanos. É roubar o fogo de Zeus e entregar, doar, experienciar as musas noite adentro – ainda que isto custe o fígado durante o dia. Não é ficar com uma viola órfica na porta dos infernos chorando nostalgias sem fim e cortando-se os pulsos, mas descer aos infernos, fundo e consciente, dar umas boas porradas em Plutão e trazer Eurídice em beijos tresloucados, sonoros e escandalosamente públicos!

Passione não inclui egoísmo, mas, cumplicidade. Não inclui choro, mas risos. Não inclui oitavada desarmônica, mas a música plena e o canto pleno em afinação absoluta de corpos que se completam na delícia humana! É a experiência do diálogo – não da conversa! É um estado de envolvimento intenso que exige o mergulho na última gota de vinho: o mistério das pérolas escondidas no mais profundo deste mar tinto e bravio! Por isso mesmo, no estado de passione não se perde a última gota do vinho, aliás, nem se bebe vinho em duas taças e, poucas vezes, em uma. É experiência do vinho na boca, da boca na boca, da procura da gota do vinho no umbigo, no abdômen, nas faces, no pescoço, nos lábios, do perfume do vinho no seio desnudo – o movimento de vida! Passione é vida!

Passione é a intensidade com solidariedade. Fazer amor, intenso e sem limites, com amizade. O estado de envolvimento, com prazeres sem fim, mas, sempre, de mãos dadas, juntos, voando juntos. Não há previsão de futuro no modo passione – apenas de carpe diem, daquela intensidade presente que não se perde em prognósticos, futurismos, profetismos, rezas. No modo passione não lemos as linhas das mãos da pessoa amada, tentando ver seu dia porvir, apenas, beijamos as mãos, acariciamos as mãos, apertamos as mãos na intensidade plena do encontro dos corpos presentificados. Nas mãos não ficam linhas nem marcas, mas, impressões indeléveis de ternura, encontro e sabores do corpo inteiro!

Em passione ninguém pensa em morrer de dor ou de sofrimento, ou em arrastar correntes por corredores sem fim! Ao contrário, passione é luz, é salvação, é bênção. O momento máximo que dá sentido a uma pessoa, que a resgata da caverna e da mesmice cotidiana, pois é neste momento que é possível ver-se, encontrar-se e plenificar-se na pessoa amada! Na passione tiramos as asas da mala empoeirada e as colocamos de volta nas costas (e nos pés).

Minha amiga ficou em silêncio, trêmula e com os olhos brilhantes. E eu lhe disse: Hai Capito adesso? Então, ela olhou para suas costas e viu suas asas. Minha amiga tem asas!

Ah, minha amiga, passione nos faz voar, por isso não tem esta coisa de sofrimento, dor e choradeira. Depois que aprendemos a voar não tem mais jeito – é preciso voar sempre! Depois que você reencontra suas asas escondidas naquelas malas estranhas dos comportamentos socialmente compatíveis, sai de perto… Pois, elas grudam em suas costas e se tiver alguém por perto que não voa ou com tesouras nas mãos, ui… As asas grudadas às costas empurram idiotas ao chão, pois elas têm um poder próprio, vida própria, por isso mesmo, quando se abrem as asas o melhor é voar junto ou “vixe, fodeu!”, ou seja, cai a casa, cai o muro, cai a máscara, cai o beco, cai tudo e a vaca vai para o brejo! Asas é o que melhor retrata o movimento da passione! Gostou disso, amiga? Então, olhe para suas costas agora…wow!!! você tem asas! Quem se atreve a colocar você na gaiola? Como esconder esta maravilha que aparece no seu andar e no seu dia? Como prender você? Mulher! Encanto! Fogo! Vida! Inteligência! Voe! Abra suas asas, grandes, abertas e vença os olhares idiotizantes de asnos que passam!

E lembre-se, minha amiga, se alguém quiser ter você, na cama ou no sofá, o melhor a fazer é destruir gaiolinhas e aprender a voar…

Sem asas, ou seja, sem passione, as pessoas definham e perdem o canto. Especialmente a maioria dos homens, que têm medo psicanalítico de Freud e não resistem a cinco páginas de suas obras! Passam longe dele e sequer o mencionam, pois para ler Freud é preciso ter asas e senso de humanidade e, sobretudo, é preciso ter senso de si próprio! Voar é viver, mas, não para todos os homens! Todos não viverão nem voarão – apenas alguns. Porque para voar é preciso duas capacidades com habilidades expressivas. A primeira é ter asas! A segunda, é ver as asas de uma mulher e aprender a voar com ela, pois, somente a mulher pode ensinar o vôo a quem tiver asas. Se um homem souber ver asas em uma mulher, e se tiver as suas próprias asas, aprenderá com ela e voará alto e liberto. Mas, se tiver asas e for cego, suas asas serão sua mortalha e passará seus dias escondido entre arbustos edênicos, nomeando bichos, e terminará fazendo culto ao falo. Sim, o culto fálico é a condenação para quem não vôa, nem enxerga o vôo e, ao contrário, prefere se esconder nas cavernas de sua estupidez!

É no desenho feminino, nas asas femininas, na alma feminina e na intensidade feminina, que um homem pode ser homem completamente, com vôo, liberdade e alma! É ali, e apenas ali, que ele descobre o movimento da passione, o tempo, a experiência de voar e a vida na plenitude de uma gota de vinho. Ecco, amica mia, la passione è così!

(Pietro Nardella-Dellova, 28 de maio, 2010)
Scarpe da donna (sapatos de mulher)

Scarpe da donna (sapatos de mulher)

SAPATOS DE MULHER
(originalmente “scarpe da donna”)
(…)
O Poeta estava ali um pouco ao norte, forasteiro, olhando o pó de florestas moídas e, então, Ela veio, entrou pelos corredores apressadamente e foi deixando os sapatos, altos e pretos, jogados pelo portão.
(…)
Aqueles sapatos lançados ao chão resmungaram uma voz concentrada, como se fosse possível ouvir por intermédio deles a voz musical distante, intensa. Sim, porque há mulheres que usam os pés para dançarem, mas, outras, usam-nos para primeiro gemerem, e depois, se libertarem, para o salto que as tire da cola asfáltica, e para o impulso que arrebente paredes, cartórios, anéis – e muros.
(…)
Quem tira os sapatos, e Ela tirou os sapatos, busca a leveza e o conforto de um ato libertário de desnudamento – busca o mar, e busca a brisa, e busca o estado de comunhão, e busca a poesia, e busca aqueles olhos que enxerguem, e busca o espaço, e busca o vento, e busca a tempestade, e busca o toque das mãos feito escultura renascentista.
(…)
Em algum ponto dos pés femininos começa o caminho ao paraíso!
(…)
Ela, então, agora descoberta mulher e gente, tirou os sapatos e os manteve ali, jogados no corredor, feito símbolo de resistência e escárnio, marco de libertação, desenho melódico, expressão de inteligência, convite ao encontro dialógico pleno. Aquela mulher tirou os sapatos em busca da pele, dos poros e do corpo – em busca da alma que transita pelas veias, da vida que organiza os músculos e arrebata os seios – em busca da luz que cintila nos lábios e faz dilatar as pupilas.
(…)
Aquela mulher tirou os sapatos porque as asas não estavam em suas costas, mas, nos pés – e ela buscou asas em seus pés, asas que a levassem para as cabanas alpinas – de onde chegara o Poeta – e para beber na mão da Poesia ou, quem sabe, mais próximo, ao alcance de um dedo, nas vias e pousadas andinas ou, simplesmente, para o risco de um verso possível no encontro de gente e seres apenas.
(…)
E, agora, Aquela mulher (Esta mulher!) tão próxima assim, com os pés soltos – sapatos jogados – pisaria uvas com intensidade, cantando e dançando por toda a noite. Ela ergueria os vestidos para pisar uvas mais profundamente ainda e, ao amanhecer, lançaria mais uvas ao lagar e continuaria cantando alegremente com os vestidos levantados, pés descalços, mergulhada em vinho e poesia achada na rua, no corredor, no portão, sob a entrega do olhar de um Poeta anarquista que apenas passava por ali.
(…)
© Pietro Nardella-Dellova. “trechos” do capítulo “Porque é Preciso Dançar”, do livro INFLEXÕES ANÁRQUICAS E ALGUMA POESIA NO UMBIGO DA MULHER AMADA (prelo). Escrito na região amazônica (Vale do Juruena), em 6 de Iyar, 5770 (2010)
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* imagem: pintura de Marc Chagall
BaciMilleBaci ou porque há Mulheres que portam a Lua

BaciMilleBaci ou porque há Mulheres que portam a Lua

BACIMILLEBACI ou, PORQUE HÁ MULHERES QUE PORTAM A LUA 

Há mulheres que são amadas. Mas, há aquela mulher muito amada – amada assim, de fotografar, de voar, de transpirar noite adentro. Amada de cantar e dançar, amada de não compreender, amada de gemer à distância, amada de resmungar. Amada de sorrir – e rir, gargalhar. Amada de não descansar. Amada na varanda, amada na cobertura, amada no sofá, amada no banquinho, amada à direita da cama, amada à esquerda da cama, amada aos pés da cama, amada ao lado da cama, amada sob a mesa, ao lado da mesa, na cadeira.

Há mulheres que são amadas intensamente. Mas, há aquela em que a intensidade é apenas um detalhe, porque ela tem o fio da feminilidade com o qual poetas não se perdem em seus labirintos!

Há mulheres que são amadas, tão amadas, que não importa qual o vinho que se leve à boca, elas serão sempre melhores. Porém, há aquela que por ser assim, tão mais amada, o vinho e a água se misturam em alquimia, porque é mulher que faz água na boca e vinho sob seus pés!

Há mulheres, muitas mulheres, mulheres amadas que cabem no bolso ou entre as páginas de um livro. Mas, há aquela que cria a sensação de que não cabe na eternidade, porque seus beijos acontecem apenas em cada um dos universos de cada pupila, de cada poro e de cada toque – é mulher-sol!

Então, são mulheres que se despem como se fizessem música, mas, há aquela que se despe na entrada (ou na saída) do aeroporto e nunca mais usa quaisquer tecidos, porque a ela foi dado o poder de ser música e poesia – a um só tempo. O poder de ir e vir, e de segurar na mão de deuses! Ela abre suas asas, seus lábios, seus olhos e vai escrevendo nas nuvens com o sopro de sua boca que existe um amor sem fim e um modo de amar sem fim, de um “tiamosenzafine” que mistura alguma nota de Piaf com a graça de Giorgia e a energia de Pausini…

Há mulheres com as quais amar significa, antes de tudo, dar sentido às letras, às notas, aos sons, aos parágrafos, aos paraísos. Mas, há aquela, assim, tão amada, que as letras, as notas, os sons, os parágrafos, vão se perdendo no paraíso da sua pele. Porque as mulheres amadas, as muito amadas, têm sua pele como tecido a ser beijado, mas, esta, além da pele a ser beijada, tem pintinhas, milhões de pintinhas, pintinhas que formam desenhos, e formam letras, e palavras, e caminhos. Pintinhas que levam aos seios, ao fogo, ao abdômen, às costas e, por isso mesmo, os beijos se multiplicam e se tornam uma bênção única e indecifrável!

Por isso mesmo aquelas mulheres amam, mas, esta, ama e abençoa, porque o seu amor é uma unção, um nascer, um curar, um colorir, um florir. Com aquelas se buscam flores e com esta planta-se um jardim!

Há, enfim, mulheres cujos beijos marcam como fogo em um instante. Mas, há aquela, cujo beijo não termina, beijo multiplicativo, beijo que une todos os cantos do mundo e os cantos da boca, beijos mil beijos em um, “beijosmilbeijos” que partem a terra ao meio!

Pietro Nardella-Dellova
Amazzonia, 22 novembre, 2010

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immagine del dipinto di Louis Icart – l’ora della musica

Ballerina – na Língua luso-brasiliana

Ballerina – na Língua luso-brasiliana

BALLERINA
(na língua luso-brasiliana)

I

O tempo do poeta
É o tempo das almas libertas,
De amor sem pontos nem vírgulas,
Das brisas sopradas
Antes dos tempos serem formados;

De quem busca, e encontra,
A mulher única, preferida, amada,
Cujos passos se confundem com a dança
E a voz com a música que vai entre rochas,
Despertando deuses esquecidos:
Ela é uma canção e seus olhos se abrem para o acima:
– palavra e pessoa, partitura e notas, ar e dança!

Tudo vem e desperta:
O corpo nu, parado, dança;
E num esboço de sorriso tudo se mistura
E se faz como qualquer coisa
De universo, mar, céu e tudo…
Pois tudo carrega em si uma história:
História dos despertamentos,
De vigor
E vida…

Porque há mulheres que despertam Poetas,
E fazem os mares se abrirem
E criam, em um vôo, universos incontáveis:
Há mulheres que se fazem enxergar e ver,
Que se fazem escutar e ouvir,
Que afinam cordas e abrem asas para sempre…

E se tornam singulares, únicas, preferidas,
Uma canção cujas notas vão além e aquém
Superam a partitura e seus pentagramas:
São mulheres que voam!

Porque criam asas com as próprias mãos
Asas da Poesia,
Poesia como criação,
Barro,
Água,
Fogo,
Ar
– Poesia-alma além da alma!
Poesia para fazer asas e voar,
Poesia de mandar acima,
Tirar do chão, fazer festa;
Poesia de ensinar o vôo além,
Poesia libertária,
Anárquica
E humana!
Poesia que abre os passos,
Passos singulares,
Passos de dança,
Poesia de espaços para águias voarem!

Porque é preciso ter algo além, de encanto,
De música, de fogo, de vida, de dança,
Para mergulhar nos olhos do Poeta
Para chegar e fazer morada ali,
Porque os olhos do Poeta
São feitos de encanto, música, fogo, vida
São olhos afeitos à dança, ao mergulho:
São olhos libertários,
De amor libertário:
Olhos de vida!

Que vão ao alto das montanhas,
Às rochas inacessíveis,
Talhadas pelos ventos, cortadas de quando em quando
Pelos sopros de mulheres que voam às alturas:
Mulheres-águias, feito música,
Mulheres-dança, feito encanto,
Porque estas são as mulheres que chegam às alturas,

A preferida chega,
Então, sem esforço e leve:
Chega com uma nota apenas,
Dois passos
E um sorriso
E nem sabe que em dois passos e um sorriso
Estremece os altos do Poeta,
E neste encanto o conduz
Em uma volta e um salto, um olhar acima e alegria sem fim:
Sem grito nem ruído, sem dizer palavra alguma,
Ela voa com sua dança,
Leve como a brisa ao final de tarde…

Por isso ela tem um nome, um novo nome,
Porque o Poeta vive para dar nomes aos seres,
E ela tem um nome,
Que leva e conduz, que canta e dança,
Que encanta e faz ainda mais amada,
Um nome que vem de outro mar,
E rasga os oceanos e repousa em seus olhos…

II

Queres saber?
Queres saber por curiosidade
Ou por música?
Queres saber como quaisquer que lêem um jornal
Ou
Como alguém que descobre uma fonte?
Queres saber mesmo?
Pela música e pela força?
Pela fonte de água?
Pela alegria?
Queres que eu diga este nome?
O nome que dei como jamais daria a alguém?
O nome que revela a porta aberta do Poeta?
Não,
Não é o nome de uma pessoa,
De apenas uma pessoa,
Mas, de uma Mulher
Diante de quem o Poeta
Pára,
Fica,
Emudece!
De quem mergulha
Nos olhos do Poeta e se torna brilho:
Mulher que arranca o Poeta de seus labirintos
Lançando um fio de delicadeza rubra…
Vem,
Queres, ainda, saber o nome que dei a esta Mulher
Que voa quando parece estar parada?
Que canta quanto parece estar calada?
Que sorri quando parece imóvel?
Que levita na suavidade
Quando todos parecem estar colados ao chão?
Eu dei um nome a esta mulher única
E quando chamo, parece ouvir,
Parece entender,
Parece compreender
A diferença entre dançar e voar,
Entre música e ruído,
Entre poesia e poema,
Entre brisa e vento,
Entre afeto e piedade,
Entre Poeta e Mestre…
Será que compreende mesmo?
Queres saber?
Agora mesmo
Este nome me vem aos lábios,
E eu mordo os lábios,
E misturo o nome a um som
Que faço retornar aos meus mais profundos
Espaços interiores…
Eu mordo os lábios porque o nome que dei
Tem asas e harmonia,
Tem vida e fogo.
Tem humanidades libertárias…
E avança com passos além do palco!
Queres saber por curiosidade?
Vem,
Encoste o dedo nos lábios do Poeta,
Leve e delicadamente,
E puxe este nome,
Tome-o,
Pois está entre os lábios – e é teu!
Está preso aos dentes:
Mas, é teu – plena de delicadeza,
O toque,
A alegria,
Tens a força delicadeza…

Pietro Nardella-Dellova, in SCARPE DA DONNA, 2001
*

imagem da escultura de Tuan Ngyen

A uma Mulher Bela (e singular, sem medo, que sabe onde começa o mundo do Poeta…)

A uma Mulher Bela (e singular, sem medo, que sabe onde começa o mundo do Poeta…)

Prelúdio
Mulher bela, e singular, sem medo, que sabe onde começa o mundo do Poeta, mulher lua, feito lua nova, em frase intensa, que não tem uma corda na mão para amarrar o Poeta nem uma mordaça para silenciá-lo, mulher dialógica, plena, tipo verbo conjugado nos seis tempos da criação…

א
Conheces o fluxo da Poesia e do Vinho, e de como, assim, juntos, abrem fendas no mundo e portas para a intensidade? Conheces? Tens coragem de beber desta Poesia e ouvir deste Vinho?

ב
Porque o caminho da coragem, a muita coragem, de provocar um Poeta, leva a uma dimensão, singular e única, onde (vencido o caminho do poema e da forma) descobrem-se a Poesia e Mergulho, Música e Voo, Vida e Intensidade, em plena Anarquia dos Jardins e Altos dos lábios, dos poros e pupilas dilatadas!

ג
O medo, próprio dos aprisionados em cadeias cotidianas, torna almas e corpos impermeáveis e perdidos no comum. A coragem, ao contrário, faz germinar a semente e os olhos, desabrochar flores e lábios e faz, também, as raízes, irresistíveis, arrebentarem o concreto da lufa-lufa. Coragem e provocação fazem avançar o passo, superar a partitura, descobrir mundos além dos mundos, e Poesia pura e viva além do verso. A coragem – e a provocação – abrem os caminhos em que a Vida não se confunde com existência!
Os olhos da mulher bela enxergam estes mundos e sabem onde começam os primeiros sons criadores da Poesia e do Poeta, para além do giz, do lápis e dos corredores!

ד
A Poesia é mesmo atrevida!

Junta terra, fogo, água e ar. Rasga um rio no deserto que leva ao mar. Alarga o jardim, sobe a serra, orvalha a flor, abre caminhos da vida que conduzem ao encanto, ao estado de rasgar o manto! Toca uma nota que se desdobra em cântico de contentamento, cores e tempos diversos. Risca versos e transborda das linhas, das entrelinhas.
Abre portões, portas, janelas, botões, telas, sorrisos, risos, gargalhadas, sons indecifráveis, bocas amáveis, revoadas, asas, pulmões, casas, salas, salões, alas, corredores, humores, e vai abrindo rios e explodindo mundos!

A Poesia, esta força atrevida: vida carne, ossos, alma, mente, olhos e boca! Anárquica! Libertária! Grandiosa! Incontida! Pavorosa! Atrevida!
…que faz tremer e temer qualquer transeunte!

ה
Porque há uma mulher que não é apenas mulher: é mulher-gente! E, assim, de repente, toca a lua, abre o jardim, fica nua entre letras, pontos e notas musicais, transforma ais em canto, entrega o manto, abre a porta e vai, sem medo nem pavor, com a boca aberta, transformando uma pessoa, em pessoa-gente: poeta!

ו
Então, conheces mesmo o fluxo da Poesia e do Vinho?
Conheces?
Porque o Poeta não escreve versos, mas fende universos de gozo inteiro…
Conheces o fluxo da Poesia e do Vinho, juntos, feitos sob os pés dançantes? É explosão de sentidos: o olhar, o toque, o gosto, o som, o cheiro!
É transbordamento tinto! É criação de trilhas, fontes, ilhas, terremotos incontidos!
É sopro que nasce nos olhos, na boca, no peito, na língua de qualquer língua no mergulho ao fundo e segue, sem fim, para o umbigo pleno…
…e dali para desnudar a origem do mundo!
*
[© Pietro Nardella-Dellova, in “A UMA MULHER BELA”, 2013]

*imagem do post: foto by © Alessio Delfino, Italy