SAPATOS DE MULHER
(originalmente “scarpe da donna”)
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O Poeta estava ali um pouco ao norte, forasteiro, olhando o pó de florestas moídas e, então, Ela veio, entrou pelos corredores apressadamente e foi deixando os sapatos, altos e pretos, jogados pelo portão.
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Aqueles sapatos lançados ao chão resmungaram uma voz concentrada, como se fosse possível ouvir por intermédio deles a voz musical distante, intensa. Sim, porque há mulheres que usam os pés para dançarem, mas, outras, usam-nos para primeiro gemerem, e depois, se libertarem, para o salto que as tire da cola asfáltica, e para o impulso que arrebente paredes, cartórios, anéis – e muros.
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Quem tira os sapatos, e Ela tirou os sapatos, busca a leveza e o conforto de um ato libertário de desnudamento – busca o mar, e busca a brisa, e busca o estado de comunhão, e busca a poesia, e busca aqueles olhos que enxerguem, e busca o espaço, e busca o vento, e busca a tempestade, e busca o toque das mãos feito escultura renascentista.
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Em algum ponto dos pés femininos começa o caminho ao paraíso!
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Ela, então, agora descoberta mulher e gente, tirou os sapatos e os manteve ali, jogados no corredor, feito símbolo de resistência e escárnio, marco de libertação, desenho melódico, expressão de inteligência, convite ao encontro dialógico pleno. Aquela mulher tirou os sapatos em busca da pele, dos poros e do corpo – em busca da alma que transita pelas veias, da vida que organiza os músculos e arrebata os seios – em busca da luz que cintila nos lábios e faz dilatar as pupilas.
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Aquela mulher tirou os sapatos porque as asas não estavam em suas costas, mas, nos pés – e ela buscou asas em seus pés, asas que a levassem para as cabanas alpinas – de onde chegara o Poeta – e para beber na mão da Poesia ou, quem sabe, mais próximo, ao alcance de um dedo, nas vias e pousadas andinas ou, simplesmente, para o risco de um verso possível no encontro de gente e seres apenas.
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E, agora, Aquela mulher (Esta mulher!) tão próxima assim, com os pés soltos – sapatos jogados – pisaria uvas com intensidade, cantando e dançando por toda a noite. Ela ergueria os vestidos para pisar uvas mais profundamente ainda e, ao amanhecer, lançaria mais uvas ao lagar e continuaria cantando alegremente com os vestidos levantados, pés descalços, mergulhada em vinho e poesia achada na rua, no corredor, no portão, sob a entrega do olhar de um Poeta anarquista que apenas passava por ali.
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© Pietro Nardella-Dellova. “trechos” do capítulo “Porque é Preciso Dançar”, do livro INFLEXÕES ANÁRQUICAS E ALGUMA POESIA NO UMBIGO DA MULHER AMADA (prelo). Escrito na região amazônica (Vale do Juruena), em 6 de Iyar, 5770 (2010)
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* imagem: pintura de Marc Chagall