Samba Perdido – Capítulo 14 – parte 01

Capítulo 14

 

“... quero sentir
A embriaguez do frevo
Que entra na cabeça
Toma o corpo
E acaba no pé."

Capiba – Voltei Recife

 

Fui parar no Colégio Andrews, uma escola para a classe média carioca situada de frente às inúmeras pistas de trânsito que cercam a belíssima praia de Botafogo. Estava contente, finalmente meus colegas seriam como quaisquer outros adolescentes da minha idade e as férias que ofereciam eram maravilhosas. Além de serem no verão – nas das escolas britânica e americana eram em julho e agosto – eram enormes. Se as notas fossem boas começavam no início de dezembro e só terminavam no meio de março. Contudo, o início foi puxado. As aulas eram em português e disciplinas como química, matemática e física eram muito mais avançadas. Por isso não fui bem no meu primeiro ano e terminei ficando de recuperação em dezembro e janeiro. De qualquer forma, passar a manhã inteira “pegando jacaré” para depois ir à escola por uma hora ou duas não era nenhuma tortura.

Depois de passar nas provas finais, ainda sobravam dois meses sem aulas pela frente. Do nada, Davi, um amigo novo da turma do Maurício, me convidou para passar um mês em Recife na casa de uns parentes, carnaval incluso. Por ser dois anos mais velho, ter acabado de passar no vestibular e pertencer a uma respeitável família judaica, e talvez por sentirem culpa pela bagunça que fizeram com minha educação, meus pais deram sua permissão sem maiores problemas.

No nosso preconceito viamos o Nordeste como um país exótico dentro do próprio Brasil que vivia cinco ou dez anos atrás do Rio e de São Paulo. Por outro lado, a região havia se tornado um destino turístico da moda graças a uma onda de artistas vindos de lá – Alceu Valença, Fagner, Belchior, Elba e Zé Ramalho, Geraldo Azevedo e Robertinho do Recife, todos no auge do sucesso. Independentemente disso, a reputação do Carnaval do Recife era a melhor possível.

A única coisa diminuindo a empolgação era a viagem em si. A distância entre o Rio de Janeiro e o Recife é de 2.300 km. Aviões na época eram coisa de milionário e o único jeito seria encarar uma viagem de ônibus de 43 horas.

*

Pronto para a aventura, com a mesma mochila dos tempos das machanés nas costas, cheguei com meus pais na rodoviária numa noite quente de Janeiro. O terminal estava apinhado de gente de todo jeito, cores e classes sociais; passageiros e acompanhantes fazendo fila nos balcões das viações e passeando pelas bancas de revistas, pelas barraquinhas de comida e pelas lojas de lembranças. Para mim, o buchicho era uma vibração fascinante mas para o seu Rafael e a dona Renée o excesso de gente humilde era incomodo.

Fomos sentar num pé sujo, o melhor da rodoviária, onde tinha marcado de encontrar o Davi. Pedimos um café e ficamos esperando.

“Tem certeza que é isso que você quer nessas férias, Richard? Você ainda pode mudar de ideia.” Rafael não podia acreditar que seu filho quisesse se misturar àquela gente e partir numa viagem estúpida e de mau gosto. “Viajar nessas condições tendo uma casa confortável para passar o verão em Teresópolis? Não entendo.”

“Sim pai, férias foram inventadas para curtir, não para ficar escondido.”

“Mas o Sérgio Birman e o Mario Halpern têm casa lá. Por que você não faz como eles e passa o verão com a família?”

“De novo!? Eles gostam de ir para lá porque ficam em condomínios jogando bola, saindo e curtindo com um monte de amigos. Entende? Curtir?”

O tom da conversa piorou. “Depois das notas que tirou, você deveria estar pensando em estudar para alcançar os colegas.”

Odiando o lugar, já sabendo o que eu ia responder e com uma ponta de inveja por estar fazendo algo que ela gostaria de fazer, Renée se meteu. “Você é egoísta demais, não quer saber de estudar, nem de ficar com seus pais nas férias. Cadê a apreciação pelo esforço que fizemos para construir uma casa de campo para vocês?!”

“Pra gente? Ah! Dá um tempo!” Já não estava vendo a hora de entrar naquele ônibus. “Vocês construíram a casa para tirar onda com os teus amigos! A gente nunca pediu aquela casa e você sabe disso!”

Meu pai me reprovou com um olhar, mas o sangue já tinha subido à cabeça e continuei. “Egoísta? Eu, né? Quem é que me internava todos os anos numa colônia de férias para ir curtir na Europa? Agora é a minha vez, tá legal?”

O Davi chegou com os pais na hora certa. Paramos de falar em inglês e nos levantamos para cumprimentá-los. A apresentação foi formal e um tanto constrangedora. Seus pais não eram tão velhos, falavam português sem sotaque mas era visível que estavam igualmente desconfortáveis com a “diversidade” na rodoviária. De qualquer maneira, tinhamos pouco tempo para ficar ali; faltava meia hora para o ônibus partir.

Depois de pagar a conta, fomos todos para a área de embarque. O sistema de informação era confuso e demorou para acharmos a plataforma. Quando descemos a escadaria de metal, lá embaixo havia filas de famílias nordestinas falando alto e colocando malas velhas e bolsas gigantescas nos compartimentos de bagagem. Nossos pais não conseguiam disfarçar o choque. Constrangidos pela sua presença e sem ver a hora de embarcar, Davi e eu já estávamos de olho em umas “gatinhas” que também pareciam da zona sul, igualmente perdidas naquela confusão. Estavam de vestidos floridos, cheias de pulseiras artesanais e colares de contas. Nos decepcionamos quando subiram no ônibus para Maceió com suas mochilas.

Depois das recomendações finais de nossos pais, demos as passagens ao motorista, entramos, encontramos nossos assentos e nos despedimos na janela enquanto o ônibus saía da baía de ré.

*

Davi era um cara introvertido, porém superinteligente e craque no futebol. Ele tinha acabado de passar para as faculdades de psicologia e de economia e ia cursar as duas. Não o conhecia a muito tempo mas a gente se dava bem. Assim que o ônibus começou a acelerar para fora da cidade, ele soltou um desconfortável “Agora que os pais ficaram para trás, é com a gente.” Mudei de assunto e ficamos batendo papo e fazendo planos até conseguirmos dormir.

Quando o dia raiou, já estávamos em território desconhecido. Os primeiros vilarejos começaram a passar pela janela com homens de chapéu de palha montados em jegues descendo estradas de terra ao lado de carros velhos, gente escovando os dentes nos tanques fora das casas, coqueiros e casebres de barro com cobertura de palha.

Conforme fomos avançando pela BR-101 o que mais chamou a nossa atenção foi a extensão do desmatamento. Na escola, tínhamos aprendido que a Mata Atlântica cobria toda aquela área. Estávamos esperando o ônibus passar por baixo de árvores com macacos pulando de um lado da estrada para o outro. Em vez disso, em ambos os lados, via-se uma paisagem desoladora formada por campos devastados que pareciam não ter fim. As únicas árvores ainda de pé eram aquelas feitas de madeira dura demais para as motosserras e resistentes ao fogo.

Enquanto isso, no ônibus, as coisas começaram a mudar. Quanto mais ao norte chegávamos, mais parecia que um peso havia sido retirado das costas dos nossos companheiros de viagem. Todos tinham começado a ser mais amigos, a falarem mais alto e a perder a vergonha de seu sotaque.

“Oxente, esse ônibus num vai chegar nunca, não? Tamo aqui faz mais de um dia!”

“É verdade, já tô aperreado! Mas pelo menos esse ônibus da Cometa é mió que os de lá!”

“Você é di ondi?”

“Sou de Teresina, mas tô indo mais os filho visitar a família no Recife e você?”

“Sou do interior, de Itapetim. Tou trabalhano no Rio faz dez anos e tô voltano só agora pra visitar a família.”

“Cunheço Itapetim, uma das minhas irmãs se casou e foi pra lá pra morar.”

Os restaurantes de beira de estrada foram mudando também: a comida ficou mais barata, porém bem menos saudável e a quantidade de moscas sobrevoando os pratos, os talheres e os copos baratos começou a incomodar. Os DJs das rádios passaram a soar nordestino e entre anúncios de pamonha, rapadura e do comércio local, tocavam os ritmos da terra que nossos artistas favoritos tinham estilizado.

Nossos companheiros de viagem começaram a se abrir com a gente.

“Já experimentaste rapadura? Não? Pega um pouquinho aqui. Isso com queijo coalho é mió do que caviar importado.”

“Ocês tão indo para o Recife? Para o Carnaval, né? O sinhô sabia que lá a gente não fala aipim, a gente fala macaxeira.”

Um outro acreditou na nossa curiosidade forçada e emendou: “É, e abóbora a gente chama de jerimum. É tudo diferenti!”

Outro começou a falar sobre as maravilhas da cachaça pernambucana. “O Geovina! Ainda tem daquela cachaça de alambique para o rapaz experimentar? Traz aqui pra esses minino. Vê, tome um pouquinho, num tem gosto de cana memo?”

Eles sabiam quem éramos: bons garotos da elite educada, para eles o orgulho da nação. Em vez de raiva ou inveja, mostravam por nós um respeito genuíno. Não tinha certeza se podiam enxergar a diferença entre a gente e a maioria das pessoas de nossa idade com o mesmo status social. Nós os respeitávamos e tínhamos algum interesse pelas coisas que tinham a dizer, algo bastante incomum.

Apesar do encantamento com a acolhida calorosa, para nós aquela viagem não era um exercício político-social. Nossas intenções não eram, de forma alguma, nobres. Como todos adolescentes do sexo masculino no planeta, só tínhamos um objetivo em mente: pegar garotas. Estávamos a caminho do Carnaval do Recife atrás de sexo gratuito, consentido e sem o envolvimento das mãos. Nossas expectativas eram grandes. Estávamos prontos para se dar bem usando a vantagem de vir do Rio, terra da TV Globo e de seus atores atrizes famosos, e a reputação sexy dos cariocas.

*

Quando finalmente chegamos, fomos recebidos calorosamente pela família do Davi. Sua tia morava com o marido num sobrado charmoso no bairro da Boa Vista. A casa era antiga, o chão era de azulejos e o frescor do vento fresco entrando pela janela imensa compensava a falta de ar condicionado no quarto a noite.

Quase não parávamos em casa. De dia partiamos para praia de Boa Viagem e a noite, ou ficávamos por lá ou nos aventuravamos nos pré carnavais do bairro. Neles, nossas esperanças de aspirantes a faunos foram confirmadas apenas parcialmente: as únicas garotas que nos davam qualquer tipo de bola eram as certinhas vindas de boas famílias. Só que sexo para elas era só depois do casamento. Apesar dos olhares assassinos e de até conseguirmos dar uns amassos, os avanços sempre acabavam bem antes do motivo pelo qual tínhamos viajado tão longe.

“Se acalme minino, não pode botar a mão aí não.”

“Mas você não está gostando?”

A cara dizia tudo. “Pare! Se meu irmão ali vê, ele conta pra minha mãe e ela me mata. Num era nem para eu estar aqui com você!”

“Então me dá teu telefone que a gente marca para outro dia!”

“Aff, se meu pai atender ele me deserda! Num dá!”

E elas não davam de jeito nenhum. Beijar um estranho vindo do Sul já era muita audácia. Se para conseguir ao menos isso a gente tinha que suar a camisa e ter paciência, o resto era inimaginável.

Houve uma exceção: uma loira falsa, um pouco mais velha e sem sutiã, que a gente deu uma azarada casual enquanto um bloco pré-Carnavalesco passava numa tarde na praia. Agimos como sempre: a elogiamos enquanto passava e ficamos esperando por uma reação. Ao contrário das outras que olhavam para trás ou sorrindo ou fechando a cara, mas que continuavam em seu caminho, ela parou para conversar.

Apesar de estar sozinha, aceitou vir com a gente para os fundos de uma construção e sentou entre nós dois. Sua calça jeans justa revelava um corpo magro e torneado. O seu perfume e suas unhas pintadas de vermelho, meio “aputalhadas”, nos encheram de tesão adolescente. Ela parecia estar gostando da situação. Havia muita excitação no ar, mas nem o Davi nem eu queria deixar o prêmio para o outro. Conforme a bagunça começou a esquentar ela não demonstrou qualquer preferência, só que acabou não conseguindo lidar com o ataque de quatro mãos adolescentes, se levantou e foi embora.

*

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Samba Perdido – Capítulo 10 – Parte 02

Quando garotos chegavam à puberdade, depois de passarem pela introdução visual e manual trancados no quarto ou no banheiro, seguiam a tradição de serem iniciados no sexo ou por uma doméstica ou por uma profissional. De uma hora para outra, parecia que todos já haviam transado menos eu e os amigos mais chegados. Como nenhum de nós tinha empregadas gostosas e disponíveis, o jeito seria recorrer às profissionais. Dada a nossa limitação orçamentária, todos os dedos apontavam para a mesma direção: a famosa Casa Rosa.

Em famílias locais tradicionais, os pais levavam os filhos para o evento ou pelo menos patrocinavam a excursão. Esse certamente não seria o meu caso. Com Rafael já na casa dos 75 anos, sexo não era provavelmente praticado muito menos discutido em casa, nem mesmo em piadas. Para ele, a libertinagem era uma coisa para domésticas e favelados promíscuos. Nunca aceitei isso, mas não pude deixar de assimilar parte da ideia de que o sexo era algo intrinsecamente sujo e que deveria ser ocultado da sociedade educada. Mesmo assim, já enjoado da minha mão, não via a hora de ser iniciado. Com isso em mente, eu e meus amigos ficamos meses juntando dinheiro para uma ida à Casa Rosa.

Finalmente o grande dia chegou. Numa tarde de sábado, marcamos de nos encontrar após o almoço para ir a nossa expedição erótica. Só que na última hora, quando estava preparando para sair recebi um telefonema do Maurício, meu melhor amigo e comparsa mor nessa aventura. “O Roberto me ligou dizendo que vai ao cinema hoje à tarde.”

“Para o cinema?! Como?! Já não tava tudo marcado!?”

“Pois é, ele disse que tinha esquecido. Que babaca né?”

“Esqueceu o caralho!! O veadinho amarelou!”, respondi com raiva. “E agora? Estou com a grana aqui. Como é que a gente faz? Vamo lá de qualquer maneira!”

“Olha, falei com meu pai e ele disse que só me deixa ir se for com o Roberto.” Maurício era medroso.

“Foda-se teu pai, Maurício! A gente pega um táxi e vai lá. Como é que ele vai saber? Se perguntar sobre a grana, fala que a gente foi no cinema e depois você me emprestou também. Sei lá, inventa!”

“Não dá, Rique. Já falei com o Jaime, com o Mário e com o Leo e ninguém vai. Se você está com tanta vontade, vai sozinho.”

A resposta mesquinha matou o papo. Não tinha coragem para ir pela primeira vez a uma zona sozinho. Mais tarde fiquei sabendo que até o pai do Roberto tinha ficado zangado com ele.

Algumas semanas mais tarde, consegui convencer os outros a ir sem um “guia”. Os pais deles liberaram e partimos para a Casa Rosa. Pegamos um táxi da casa do Léo em Copacabana sem saber ao certo como chegar lá, mas quando o motorista escutou “Rua Alice”, sabia exatamente onde era e o propósito daquela corrida.

Na ida, ficamos discutindo se deveríamos mentir sobre a nossa idade. Jaime, um cara mais ajuizado, porém cagão, falou: “Não sei se vão deixar menores de idade entrar lá, é melhor a gente dizer que tem dezoito anos.”

“Está maluco?! Você acha que a gente tem cara de dezoito anos? Olha só para a cara do Léo? Dezoito anos nem fodendo!”

“Tá bom, a gente diz que tem dezessete.”

Maurício, que gostava de ser o conciliador da turma, concordou. “Dezessete é um bom número, é quase dezoito e vai trazer mais respeito com as putas.”

Eu, que já estava me perguntando o que é que estava fazendo no táxi com aqueles panacas, intercedi. “Cara, se a gente falar que tem dezessete anos, a vamos parecer mais retardados do que a gente já parece. Vamos fazer o seguinte, cada um fala a idade que quiser.”

“Mas e se não deixarem a gente entrar?”

“Você já viu puteiro recusar cliente?”

A gente já estava em Laranjeiras. O motorista, que tinha ficado quieto durante a discussão mas que devia estar rindo por dentro, subiu uma ladeira e parou em frente a um casarão.

“É aqui.”

Depois de fazer a “vaquinha” para pagar o taxista, a gente saiu. A Rua Alice era bonita, arborizada e tranquila. O casarão chamava atenção com seu glamour desbotado de épocas gloriosas de um prostibulo de luxo e ficava atrás de um muro. Os dois eram de fato pintados de rosa. Assim que o táxi partiu, percebemos um carro de polícia estacionado logo depois da curva, o que fez com que o Jaime quisesse desistir.

“Quer ficar calmo, Jaime? Puta não morde!”

Quando estávamos para tocar a campainha, a porta se abriu e um grupo de policiais, uns ainda ajeitando o uniforme, saiu e nos cumprimentou com sorrisos cúmplices. Uma velhinha com cara de mafiosa apareceu logo atrás, deu boas vindas, nos levou até a recepção e desapareceu para dentro do casarão. Fomos sentar ao redor de uma mesa de madeira perto de uma pista de dança vazia e ficamos esperando. O silêncio nervoso era quebrado pelo show de samba que estava passando numa TV preto e branco. Ao lado havia luzes piscantes que subiam uma escadaria em cima de um balcão. Nele havia duas tabelas de preços penduradas: uma para bebidas e outra para programas.

Uma a uma, as garotas vieram descendo para a matinê.  Nem de longe elas lembravam as beldades inacessíveis que enchiam nossa boca de água nas praias e nas revistas, mas pelo menos eram mais jovens e mais bonitas que nossas empregadas. A madame veio logo atrás, apontou para nós e disse:

“Está na hora do leite das crianças.”

Estavamos tão apavorados que elas nos escolheram, não o inverso. Quase sem dizer nada, nos levaram de volta para seus quartos. Quando a ação estava para começar, ouvi alguém bater o joelho contra a cama. A julgar pela reação, dava para sentir que tinha doído. Deu para ouvir a voz do Maurício gemendo através da parede fina de madeira e ele pulando de dor. Deu vontade de rir, mas, como todos, estava tenso demais para saber o que fazer.

Minha garota era mais bonita, branca, magra e nova que as outras e tentou me acalmar. “É a tua primeira vez aqui?”

Pensei em mentir, mas respondi que sim com o coração disparado.

Ela continuou. “Você me lembra um menino que esteve aqui na semana passada.”

Enquanto falava ela foi tirando a blusa e depois o sutiã e exibindo seus seios. Talvez pela minha cara hipnotizada ela deu uma risada. “Fica calmo, pode tirar a roupa também.”

Meio desconfortável, fui me despindo enquanto admirava seu corpo já nu. A situação me fez lembrar as cenas de abertura desengonçadas dos filmes pornôs. Quando estava pronto, me recostei no travesseiro e ela veio se deitar do meu lado. O colchão era duro e áspero.

“Meu nome é Lu e o teu”

“Rique.”

“Que nome bonito. É Rique de Henrique?”

“Não, de Richard.”

“Nossa, nome de lorde!” Ela deu outra risada e, vendo que ainda estava sem jeito, olhou para os seios depois para mim e me convidou: “Pode tocar se quiser.”

Nunca tinha visto peitos nus ao vivo antes, muito menos tocado. Coloquei as mãos e gostei. Depois, tomei coragem e comecei a explorar seu corpo, sem fazer a festa que tinha planejado, mas curtindo mais do que tinha imaginado. Sua pele nua era macia, morna e muito gostosa. Me sentindo ousado, coloquei minha boca nos bicos, ela pareceu gostar e depois de uma sessão mais intensa de bolinagem, já estava pronto. Ela se posicionou, me olhou nos olhos e disse.

“Vem, menino!”

O ato foi rápido e decepcionante, mas pelo menos contou como minha iniciação de “amante latino”. Não fui o primeiro a aparecer no andar de baixo, o que me fez sentir melhor. Depois de todos pagarem, descemos a ladeira tirando sarro do joelho e do orgulho dolorido do Maurício.

“E aí Mauricio? Qual era o tamanho do pau com que ela te bateu? “

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Samba Perdido – Capítulo 10 – Parte 01

 Capítulo 10

 

“... naturalmente minha mãe dizia,
Ele é uma criança não entende nada,
Por dentro eu ria satisfeito e mudo
Eu era um homem que entendia tudo.”

Erasmo Carlos – Não Entendo Nada

 

Segunda geração de Brasil, bem mais novo que Rafael, Daniel, o pai do meu amigo Avi, não teve a mesma sorte com a queda da bolsa de valores. Junto com a manada, perdeu muito dinheiro e talvez por isso morassem em um apartamento abafado em Copacabana.

Gostava dele. Por trás das feições duras, bigode espesso e olhar frio, havia uma personalidade simpática e generosa. Ele estimulava a amizade com seu filho gorducho por me considerar uma influência saudável. Mesmo sendo magro que nem um bicho-pau, em vez de passar o dia todo assistindo televisão e me entupindo de doces, jogava bola direto e ia para a praia fazer bodyboard.

Por isso, nossa amizade girava em torno de esportes. Nos fins de semana ou ele vinha comigo ao clube, ou íamos praticar alguma atividade ao ar livre com Daniel. As opções eram caminhadas na Floresta da Tijuca ou piqueniques em praias distantes. A tarde, como compensação pelos esforços matutinos, acabávamos em um dos muitos parques de diversões que viviam abrindo e logo depois fechando em terrenos baldios nos arredores e pela Zona Sul afora.

Depois que descobrimos o skate, nosso lugar favorito passou a ser o Aterro do Flamengo. Esse era um parque enorme ao longo da Baía de Guanabara, construído durante o governo Juscelino Kubitschek como uma forma de compensar o Rio de Janeiro por ter perdido seu status de capital nacional. A despeito do custo gigantesco de aterrar a baía e da decoração do melhor paisagista do país, Burle Marx, o que a cidade acabou recebendo foi um tremendo monumento à chatice.

Apesar de seus vários campos de futebol viverem cheios, as “atrações” do parque enorme incluíam o Museu de Arte Moderna que raramente tinha trabalhos empolgantes para um adolescente, uma área para se voar aeromodelos de brinquedo, um lago para barcos em miniatura, um memorial para os soldados brasileiros mortos na 2ª Guerra Mundial, playgrounds de concreto para crianças e um avião antigo para pessoas que nunca tinha entrado em um entrarem para ver como é que era. Mesmo assim, o cimento liso do seu passeio público e com várias rampas suaves eram ideais para skatistas iniciantes.

Nós dois tínhamos o mesmo skate: o horroroso Torlay, fabricado no Brasil. Era uma tábua dura de madeira com dois pares de rodas de borracha vagabunda presos embaixo. Eles quebravam toda hora e faziam a gente passar vergonha quando apareciam outros meninos andando em skates importados com rodas de poliuretano semitransparentes e com shapes de fibra de vidro. Além disso, para falar a verdade, a gente era ruim demais, típicos nerds tentando tirar onda. Os caras da gangue da minha rua – que de alguma forma também arrumavam skates importados – davam de mil na gente, isso sem falar dos californianos que apareciam na revista Skateboarder realizando manobras impressionantes em piscinas vazias.

Um dia, talvez para levantar nosso moral, o pai do Avi levou sua câmera Super 8 para filmar nossas performances. Eu nunca tinha visto um aparelho daqueles antes na vida e, percebendo minha curiosidade, Daniel me perguntou se queria dar uma olhada.

“Quer ver como funciona? É fácil. Você olha por este visor aqui, aponta a câmera e foca com esta rodela aqui.” Por estar sempre mexendo com a câmera dos meus pais, entendi na hora. “Para filmar é só apertar este botão aqui. Quer experimentar?”

Ele colocou a caixinha  futurística na minha mão e, depois de explicar tudo de novo e de se certificar que tinha entendido, me liberou o aparelho. “Só filma quando você tiver certeza de que está tudo em foco e de que você sabe o que vai filmar, senão vai gastar filme à toa.”

Falei que estava tudo bem, esperei o Avi começar, mirei a câmera e consegui gravá-lo descendo e passando pela nossa frente. Quando parei, o Daniel pegou o aparelho de volta para examinar um mostrador na lateral do aparelho

“Filmou! Parabens! Ainda faltam mais trinta segundos.Ele me olhou meio confuso. “Vou guardar porque a gente ainda tem que gravar a visita na casa da tia do Avi na semana que vem.”

Depois, guardou o aparelho sem me perguntar se também queria ser filmado. “Quando revelar a gente te convida para dar uma olhada, tá bem?”

Ninguém notou o quanto tinha ficado embasbacado com aquilo. Aquele aparelho de capturar tempo, cheio de botões de controle e com luzinhas futurísticas piscando no visor era a coisa mais incrível que já tinha tocado. Fantástico demais para se traduzir em palavras. Depois daquela manhã o interesse pelo skate evaporou. Quando me convidarem para ver o resultado, o entusiasmo aumentou e não conseguia pensar em outra coisa. Aquilo era magia em estado puro, tecnologia de ponta, quase igual ao aparelho utilizado para fazer o 007 e os faroestes de John Wayne.

Minha obsessão fez com que pedisse uma câmera Super 8 e um projetor como presente de Bar Mitzvá. Esse pedido era quase um mandamento divino para um pais judeu. Tive a sorte dele poder ter me atendido. Com um equipamento meu, a obsessão só aumentou. Minha mesada ia toda para comprar filmes com os quais registrava férias, idas à praia, passeios na Floresta da Tijuca, surfistas pegando onda, gente jogando futebol, festas e qualquer outra coisa que desse na cabeça. Quando os cartuchos de três minutos e meio acabavam, mandava para revelar. Quando voltavam, reunia amigos e a família no escuro do quarto e projetava o filme na parede branca.

As estréias eram grandes eventos. Antes da apresentação, passava dias editando cuidadosamente as cenas com um cortador de película, colando os pedaços com cola especial e revisando os cortes em um precário retroprojetor. Meu quarto cheirava à cola química e havia tiras de filme penduradas por todo lado. Mas como dizem, me sentia feliz como um pinto no lixo.

*

Esse interesse ganhou uma nova dimensão durante uma viagem de férias da família a Bariloche, uma pequena cidade turística nos Andes argentinos com uma atmosfera europeia que dava a visitantes brasileiros – e aos nazistas escondidos ali – a impressão de estar no Velho Continente.

Um dia, saímos de barco numa excursão para uma ilha no enorme lago Nahuel Huapi. O lugar era tão bonito que artistas de Walt Disney tinham viajado até ali em busca de inspiração para criar os cenários do filme Bambi. No entanto, não demorou para a viagem se tornar chata. Não conseguindo aguentar as piadas forçadas e as conversas sobre meu futuro, saí da cabine e fui me juntar a um grupo que estava jogando pão às gaivotas lá fora.

Cerca de meia hora depois, meu pai também saiu, aparentemente para acabar com a festa. O vento estava forte. “Richard, o que você está fazendo sozinho aí? Não está com frio?”

“Não. Pai, olha só que legal essas gaivotas mergulhando para pegar o pão.” Joguei um pedaço e uma das aves planando sobre o barco mergulhou a toda velocidade e conseguiu pegar a comida antes que caísse na água.

Rafael me deu um sorriso. “Vamos entrar para um chocolate quente?” Vendo que não tinha me convencido, emendou. “A gente conheceu um senhor inglês lá dentro que tenho certeza de que você vai gostar.”

“Por quê?”

“Porque ele é diretor de cinema.”

Bill era um cara grande nos seus cinquenta anos, largado, barba mal feita, olhos verdes e vivos e com um papo de bon-vivant. Se deleitando num copo de whisky, me contou que estava na América Latina fazendo um documentário para a BBC sobre um explorador que no século 19 havia viajado a cavalo desde a Argentina até os Estados Unidos. Quando explicou aquilo, achei que era a coisa mais incrível que alguém jamais poderia fazer – não ficar meses a fio andando a cavalo – mas viajar para rodar um filme. Decidi naquele momento que essa era a profissão que queria seguir quando crescesse.

*

De volta ao Rio, fiz um curso de Super 8 onde acabei escrevendo um roteiro e dirigindo um curta-metragem. O filme, “Cheque Mate”, combinava duas histórias paralelas: a de um homem jogando xadrez com uma pessoa que ninguém via, e o romance do mesmo personagem com um manequim feminino que tinha roubado de uma loja. Ao final do filme, ficava-se sabendo que o protagonista estava jogando contra a manequim de plástico. Ele joga o tabuleiro para o ar dizendo numa voz lenta e melancólica “Minha vida foi um jogo de xadrez.”

Como qualquer diretor moderno da época, nunca vou saber o significado de meu filme. Anos depois, fiquei lisonjeado ao ver um filme de Ingmar Bergman, O Sétimo Selo, e perceber estarrecido que tinha um enredo parecido ao meu. A diferença sendo que era um longa-metragem aclamado no mundo inteiro e o herói jogava xadrez com a morte.

Os organizadores do curso gostaram do resultado e acabaram levando o filme para vários festivais latino-americanos de cinema feitos por jovens, o que me encheu de esperança e de orgulho.

*

Quando entrei na fase mais hormonal da adolescência, meus amigos e eu começamos a usar o projetor para um tipo muito menos pretensioso de filme. Qualquer um que conheça do assunto vai concordar que os anos 1970 foram a era de ouro dos filmes pornôs: a depravação era autêntica e deixava garotos como a gente enlouquecidos. Havia centenas de filmes Super 8 suecos saindo clandestinamente das bancas de revista e indo para o fundo de nossos guarda-roupas. Por causa disto, meu projetor se tornou um equipamento raro e cobiçado na turma. Acabei tendo a ideia de emprestar o aparelho em troca de poder ficar com os filmes por alguns dias. Essa atividade secreta acabou sendo o começo do fim do meu sonho nunca concretizado de me tornar cineasta. Sem ninguém para compartilhar minha paixão, a carência de cursos decentes e a falta de encorajamento por parte de meus pais, meu interesse, embora sempre presente, acabaria  se dissipando na psicose tropical.

*

 

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Samba Perdido – Capitulo 06, parte 01

 

 Capítulo 06 

 

“…HaShem disse a Moisés: Dize aos filhos de Israel: 

És um povo de dura cerviz (pescoço duro).”

Torá.

 

Estava orgulhoso por ter sido escolhido para patrulha que ia capturar a bandeira inimiga. Depois de separar os outros grupos e de explicar o que cada um deles iria fazer, nosso madrich, ou instrutor, Mauro Lieberman – que todos chamavam de – dispensou os outros mas­ chamou a gente para o quarto dele. Cheios de moral e sob os olhares interessados de algumas das meninas, saímos do refeitório e atrás dele. Chegando lá, fomos entrando e sentando no chão. Com todo mundo dentro, nosso chefe fechou a porta, se sentou conosco e abriu um caderno numa página com um esboço do sítio.

“Pessoal, a bandeira deles vai estar aqui, no meio do campo de futebol. Vai ter um círculo grande de cal em torno dela, não vai ter como perder. O grupo que vai lá são o Richard, o Davi, o Marcos e o Hélio.”

Ele olhou em volta para ver se todos estavam acompanhando. “Vocês vão usar essa trilha aqui no meio do mato. O grupo do Murilo, Samuel, Sérgio e Marcelo vai descer para o campo também, mas vai pela estrada principal, essa daqui. A ideia é usar o grupo do Murilo para atrair atenção dos caras enquanto o outro grupo pega eles de surpresa.”

Estavamos estranhando a seriedade do Maurão, um cara meio largado com ar de hippie. “Por isso você, Murilo, e você, Samuel, vão ter que dar uma canseira neles.”

A gente teve que rir. Murilo Berkovitz e Samuel Goldfarb eram dois trogloditas da Tijuca. Todos sabiam que eram inteirados – de verdade – na malandragem do bairro. Era impossível não ter medo deles. Já dava para ver a cara do pessoal do time azul tremendo na base.

Maurão olhou para o meu grupo continuou. “Quando chegarem na metade da trilha, vocês vão ter que entrar pelo mato para sair aqui na beira do campo.”

Ele apontou para o lugar no mapa. “Aqui vocês ficam na espera. Na primeira bobeira que eles derem, vocês saem correndo. Daí vocês já sabem; é pegar a bandeira e partir para o abraço.”

Já gostando da possibilidade de sairmos como heróis daquela mini guerra, respondemos que ía ser mole vencer aquele bando de otários.

Maurão encerrou a reunião levantando e dizendo “Vamos lá pessoal, vamos vencer essa parada!”

Saímos do quarto nos sentindo a própria tropa de elite saindo de uma reunião secreta no quartel general.

*

Dois dias depois, o jogo começou num clima agitado com a participação de todas as cinquenta e poucas pessoas que estavam ali. Seguindo o plano, as meninas e os caras mais quietos foram para o alto do morro defender a nossa bandeira. Enquanto isso, o Murilo e a sua turma pegaram a estrada principal e a gente se embrenhou pelo meio das árvores. Passado um tempo, começamos a ouvir os gritos do inimigo correndo atrás do grupo deles e chegando perto das nossas defesas.

Avançamos mais lentamente que o esperado porque o inimigo tinha colocado sentinelas ao longo da trilha. Para nos livrar deles nos espalhamos pelo mato antes do ponto que o Maurão tinha falado. Lá, quer por falta de empenho quer por falta de cuidado, um a um, meus camaradas foram sendo eliminados juntos com o pessoal do Murilo. As “mortes” aconteciam quando um adversário lia em voz alta o número nas nossas braçadeiras. Terminei como o único sobrevivente no ataque. Agora sozinho, fui seguindo em frente até conseguir me esconder no meio de uns arbustos a poucos metros do campo onde fiquei deitado, esperando pela hora certa.

A defesa do inimigo estava preocupada. “Ainda tem um escondido no mato”, gritou um deles. “Ele está ali! Ouviram este barulho?! ”

Ledo engano, para despistá-los, estava atirando pedras do mesmo jeito que os comandos americanos faziam na minha série de guerra favorita, Combate!  Teve uma hora em que os pés de um deles passaram a poucos centímetros do meu nariz, mas continuei ali, incomodado pelos insetos, a apenas uma breve corrida da bandeira inimiga.

De repente teve um reboliço, um do time deles, Bruno Feldstein, um cara sardento, gorducho e metido a inteligente, voltou apressado da nossa base dizendo a todos que o ataque deles estava indo bem. A comemoração antecipada foi minha oportunidade e fui à luta. Saí correndo e quando perceberam o que estava acontecendo houve uma gritaria e um bando deles veio para me pegar. Me alcançaram a poucos centímetros do círculo de cal. Uma tempestade de braços me agarrou e tentou tirar minha mão direita da identificação no braço para me “matar”. Só faltava um passo e, usando toda minha força, consegui levar todo mundo comigo. Dentro do círculo ninguém podia mais me tocar. Como um último sobrevivente cercado por zumbis, levantei a bandeira do time azul e dei fim àquele jogo de guerra.

Aquele exercício marcou o encerramento de duas semanas de meio colônia de férias, meio seminário, ou machané, num hotel-fazenda com o nome ídiche Kinderland. Ela tinha sido organizada pelo Ichud Habonim, a organização sionista à qual eu pertencia. Para falar a verdade, o objetivo desse e de vários outros “movimentos” – que era como a comunidade se referia a eles – era o de nos convencer de que quando chegássemos à idade adulta nos mudássemos para Israel e servissemos seu exército. Para tanto, tentavam incutir uma forte dose de nacionalismo judaico por meio de preleções sobre como nossa povo – como qualquer outro – tinha o direito de viver na sua própria terra sem temer pogroms, inquisições, expulsões ou holocaustos.

Contudo, apesar da sua popularidade e dos pacotes que organizavam para irmos passar o verão em kibbutzim em Israel, o índice de sucesso no recrutamento de soldados da classe média carioca era baixíssimo. A maioria dos pais encarava essas organizações apenas como uma maneira de perpetuar a identidade ancestral da família e de tirar uma folga das crianças nas tardes de sábado e durante as férias. Quanto a questão do serviço militar, morriam de medo que os abandonássemos para acabar envolvidos numa guerra. Com notórias exceções, para nós esses encontros eram apenas uma maneira de nos divertir. A parte didática era um saco. De qualquer forma, vale ressaltar que apesar de nenhum madrich abordar questões fundamentais acerca da legitimidade de um estado exclusivamente judaico naquele lugar em específico ou sobre o destino dos palestinos, o ódio e o racismo não faziam parte da pauta.

*

Ainda não é claro se ser judeu significa pertencer a uma nação, fazer parte de uma religião ou seguir uma tradição. Qualquer que seja a resposta, a introdução foi dolorosa. Quando tinha apenas dez dias de vida, um cara de barba longa vestido de preto se aproximou com uma lâmina afiada, entoou uma canção estranha e daí cortou meu prepúcio sem dó nem anestesia. Depois de colocar um algodão para estancar o sangue e de limpar sua lâmina, o rabino abençoou aquele corte que seria o meu passaporte para uma família estendida que, de acordo com a crença, teria começado há quatro mil anos com um sujeito chamado Abraão.

Além da dor inenarrável que não me lembro, esse rito me jogaria num mundo de contradições, mitos e preconceitos ligados ao que talvez seja o povo mais esquisito do planeta. Ele também faria que meu pênis tivesse uma aparência diferente da dos de meus amigos de futebol e, numa perspectiva mais ampla, determinaria com quem deveria me casar, quem deveria ser meu amigo e qual estilo de vida deveria seguir. Por um terceiro ângulo, ele também ditaria quem iria querer se casar comigo e quem iria querer ser meu amigo.

Em casa, meus pais achavam tudo isso positivo; sua família e seus amigos também – afinal, fazia parte do que éramos. No mundo mais amplo, nem todos pareciam concordar. Quando tinha uns cinco anos abri, por acaso, um livro grosso sobre o Holocausto. Não sabia ler, mas dava para compreender as fotos de judeus religiosos chorando momentos antes de serem executados, de soldados ameaçando crianças com metralhadoras, de pessoas esqueléticas em pijamas listrados atrás de cercas de arame farpado com rostos sem expressão e de pilhas de corpos em valas comuns. Seu único crime tinha sido o de terem nascidos tão judeus quanto eu.

Nos anos 1960, essa experiência ainda era uma cicatriz fresca, profunda e mal disfarçada na comunidade. Todos os adultos tinham as suas histórias mas raramente falavam delas, só sabíamos o que ouvíamos por terceiros. A mãe de uma amiga que passou a guerra adotada por freiras, o conhecido de meu pai que tinha ido a pé da Romênia até a Palestina depois de ter visto sua família ser fuzilada, a mulher do Peter que tinha sido colocada num trem de crianças refugiadas na Bélgica e que nunca mais viu seus pais depois daquilo. Esse peso se manifestava em medos, neuroses e na desconfiança para com os não judeus. Para os que vieram depois, restou a questão complicada de como lidar com esse legado.

Por outro lado, em um país latino americano governado por uma ditadura tradicionalista, o catolicismo apostólico romano era uma presença forte no dia a dia – os evangelicos só apareceriam uma ou duas décadas mais tarde. Mesmo no futebol, agora tão importante para a mim, os heróis de meu time e da seleção faziam sinais da cruz sempre que marcavam gols e os comentaristas de futebol viviam usando bordões religiosos. Na vida cotidiana era igual – Ave Maria, cruz credo, minha Nossa Senhora, ai Jesus e por aí a fora – surgiam na maioria das conversas.

Na Escola Britânica as coisas eram um pouco diferentes. Meus colegas de sala eram em sua maioria protestantes. Isto fazia deles, pelo menos teoricamente, mais tolerantes. Como o único garoto judeu da turma – tanto na escola quanto no clube – era poupado dos estereótipos ligados à minha gente. Por me considerar um deles, se sentiam à vontade para me contar coisas estranhas que tinham aprendido em casa sobre nós com as quais não podia concordar. De acordo com minha experiência pessoal, sabia que éramos nem mais nem menos pão-duros do que pessoas de outros povos, sabia também que não éramos conspiradores perversos empenhados em dominar o mundo. Além disso, nunca tinha ouvido falar de ninguém beber o sangue de crianças cristãs durante a páscoa judaica, muito menos em qualquer outra época do ano. Ao contrário, para mim, a comunidade mais parecia um monte de gente desengonçada e neurótica.

Como fazem os garotos, queria fazer parte da turma. Por isso, embora negasse esses absurdos, fazia pouco caso do seu teor ofensivo. No fundo, porém, sabia que existia algo de fundamentalmente errado em ser forçado a ser um judeu enrustido. Vivendo entre os goyim – o nome dado aos não-judeus –  simpatizava com a história de Moisés crescendo na corte do Faraó e às vezes me perguntava onde isso ia parar.

A única coisa certa, era que pertencer ao “povo escolhido” por Deus era estranho. A própria palavra “judeu” fazia com que pessoas virassem as costas ou produzissem sorrisos sem qualquer motivo lógico, dependendo de quem a escutava ou de quem dizia.

Esses absurdos se juntavam a um monte de outras perguntas. Por que gente que nem nos conhecia pessoalmente nos odiava a ponto de contemplar um extermínio em massa? Era culpa deles ou, de alguma forma, nossa? Quanto ao aspecto religioso havia questionamentos igualmente fundamentais: onde estava Deus quando pessoas inocentes imploravam nas câmaras de gás? se havia um único Deus e todos – cristãos, judeus e muçulmanos – acreditavam nele, por que não chegar a um acordo? Não seria isso que o criador iria querer das suas criaturas? Será que iríamos todos para paraísos diferentes quando morrêssemos? Ninguém jamais conseguiu me responder qualquer dessas perguntas de maneira convincente.

 

*

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Samba Perdido – Capítulo 05

Capítulo 05

“Tabelou, driblou dois zagueiros,
Deu um toque driblou o goleiro,
Só não entrou com bola e tudo
Porque teve humildade e gol!!!”

Fio Maravilha – Jorge Ben

 

No auge do reinado brasileiro sobre o planeta futebol, mesmo que por um instante, o esporte produziu o que todo governo totalitário deseja: unir a nação como pessoas iguais. Quando o assunto era futebol não havia classe social, cor ou opinião política; todos eram iguais, salvo, é claro, as mulheres, os gays, os maconheiros e outras minorias.

Naquela realidade suspensa, os jogadores da seleção viraram os super-heróis da garotada. A forma para um menino fazer parte da saga era jogar bola e torcer para um time. Para mim essa fórmula fácil caiu como uma luva; a febre do futebol me ajudou a encaixar num país onde de outra forma seria considerado um completo estranho. Seguindo a cartilha, jogava futebol quase todo dia e virei Botafoguense fanático, talvez por Botafogo ser o bairro onde nasci ou por gostar do emblema.

Torcer era um negócio sério; além da escalação completa do meu time, tinha que saber a dos outros “quatro grandes” – Flamengo, Fluminense e Vasco – de cor. Por vício e obrigaçāo ouvia todas as partidas do “Fogão” no rádio e no dia seguinte, lia a pagina de esportes inteira no jornal para ficar a par de como os jornalistas tinham avaliado o desempenho de cada um dos jogadores. O mesmo valia para os jogadores relevantes dos outros times.

A Rádio Globo era de longe a melhor no futebol. Seu espetáculo auditivo era sem igual, e era a coisa mais emocionante que podia acessar dentro das paredes de nosso apartamento. O estilo circense dos seus apresentadores era irresistível. Quando um jogador fazia um drible de efeito e os narradores, Jorge Curi e Waldir Amaral, iam à loucura. Quando um outro marcava um gol, era um orgasmo. Quando um juiz falhava o comentarista de arbitragem, Mário Vianna interrompia a narração gritando zangado “Errou!!!”. Quando a bola batia na mão de um jogador ele mandava o seu “La mano!!!, cadê o eco?? La mano ôo-ôo-ôo!!!”. Nos casos de impedimento, ele gritava o seu famoso “Banheiiiiira!!!” Para os pênaltis, sempre fazia um comentário solene antes do veredito pesaroso: “Penalidade máxima”. Quando o gol valia ele era sacramentado pelo seu “Gol legal!”.

Depois da partida, era a hora do João Saldanha com suas análises pós-jogo imperdíveis. Elas duravam bem mais de uma hora mas nunca eram chatas. Com sua genialidade, recoloria o que tinha acabado de acontecer no estádio abusando do uso de alegorias inusitadas e metáforas como girafas namorando macacos e elefantes se casando com formigas.

Esses personagens, onipresentes no futebol carioca, faziam dos radinhos de pilha uma ferramenta essencial. Mesmo no Maracanã, todo torcedor tinha um colado ao ouvido. Nas partidas principais, haviam tantos que, dado haver um momento de silêncio, a chamada da rádio ecoava alto no estádio.

*

Com o tricampeonato no México ainda fresco, os dois torneios nos quais os times cariocas participavam – o estadual no primeiro semestre e o Brasileiro no segundo – adquiriram um sabor especial. Como a equipe da rádio Globo gostava de dizer, no Maracanã se jogava o melhor futebol do mundo no maior palco do planeta, uma verdade na época.

O “Maraca” era o templo maior desse culto. Todos os garotos que conhecia já tinham – ou pelo menos diziam que já tinham – ido lâ e eu precisava desse crédito. Meu problema era meus pais. Se imaginando aristocratas ingleses, nas cabeças da Renée e do Rafael o futebol era coisa de operário e da gentalha que vivia em botequins. Ir a um estádio e se misturar com aqueles tipos mancharia de alguma forma a sua posição social, especialmente no Brasil.

Minha sorte mudou no dia em que Peter, um amigo da roda deles, se ofereceu para me levar a uma partida junto com seus dois filhos. Apesar da Renée ser contra, Rafael acabou liberando. Peter era o aventureiro da turma: tinha cruzado a América Latina num jipe, era mais jovem que o resto, tinha menos dinheiro, fumava – um tabu em casa –, possuía um corpo definido e bronzeado, falava inglês com sotaque americano e além de tudo, para a minha alegria, era frequentador assíduo do Maracanã.

Ele os filhos torciam pelo Fluminense e o jogo era contra o Flamengo, um Fla x Flu. Isso não era o ideal para um botafoguense, mas como o time deles iria enfrentar o arqui-inimigo de todos, me senti mais confortável. No estádio, talvez gritaria “Nense!!! Nense!!! Nense!!!”, ao invés de “Fogo!!! Fogo!!! Fogo!!!”, o que, dadas as circunstâncias, era aceitável.

Os três vieram me pegar no início de uma tarde de domingo. Entrei no jipe feliz da vida, preparado para a aventura. Só que assim que cumprimentei seus filhos, Rob e Tony, me lembrei que não gostava deles. Entre outras coisas, toda vez que nos visitavam davam em cima da Sarah de uma forma estúpida o que a deixava chateada. De quebra, ficavam tirando onda com a minha cara por ser mais novo. Apesar dos esforços do Peter em ser simpático, os dois me deram o gelo de sempre, ocupados com seu habitual papo chato, competindo entre si acerca de conhecimentos de eletrônica e de mecânica, coisas que achava um porre. Fiquei sentado no banco da frente com o Peter olhando pela janela e ouvindo a Rádio Globo quando dava para escutar. O entusiasmo voltou quando começei a perceber que quanto mais perto do Maracanã a gente chegava, mais claro ficava que todos os outros carros estavam indo na mesma direção. Neles, torcedores do Flamengo e do Fluminense ou tiravam sarro ou aplaudiam uns aos outros aos gritos pela janela. No banco de trás, em vez de participar da festa, o Rob e o Tony faziam comentários antipáticos a cerca deles. Relevei a esquisitice e fiquei curtindo o momento em silêncio, já ensaiando o que ia dizer para os meus amigos.

*

Por fim chegamos. Assim que parou o carro, Peter foi negociar com o “flanelinha” quanto ia pagar pela vaga – “flanelinha” esse que, evidentemente, não estaria ali quando voltássemos. Enquanto isso, saí para dar uma olhada no Maracanã. Estávamos a uns três quarteirões, mas mesmo dali parecia colossal. O clima era frenético. Em torno de nós, milhares de torcedores, pouquíssimos da Zona Sul, iam apressados para o estádio. Dava para ouvir as batucadas e a barulheira saindo lá de dentro. Aquela eletricidade parecia estar atraindo a multidão como a luminária de um açougueiro atrai moscas.

Depois de se entender com o guardador de carros, Peter, preocupado por eu estar sozinho sem os seus filhos, acendeu um cigarro e veio falar comigo com um sorriso nervoso, “O que você está achando disso, Richard?”

Sem palavras, só consegui responder: “Muito legal.”

Ele teve um tique nervoso, deu uma baforada no cigarro e perguntou: “Você está nervoso?”

“Que nada, estou doido para ver o futebol!”

Depois de nova chacoalhada estranha da cabeça, ele me olhou sério “Richard, é fácil se perder num jogo de futebol, principalmente na entrada do estádio. Fique sempre perto da gente, entendeu?”

Engoli seco com a sua firmeza e respondi: “Claro!”

Ainda me ignorando, os filhos já estavam prontos do outro lado do carro. Peter os chamou e fomos, os quatro, nos juntar à multidão rumo às bilheterias. Os guichês já estavam lotados. Pedintes e bêbados vinham importunar os torcedores esperando sua vez nas filas entre separadas por barras enferujadas. Na calçada atrás da fila, camelôs gritavam a plenos pulmões tentando vender seu estoque de bandeiras, almofadas de espuma e camisas dos dois times.

Depois de uns vinte minutos chegou a nossa vez. Com os ingressos na mão, o próximo passo era entrar no estádio, uma tarefa complicada. Havia somente dois portões para as arquibancadas, um de cada lado do estádio. A massa se aglomerava em frente deles e ia se afunilando como areia numa ampulheta até alcançar as poucas roletas de acesso. As duas torcidas estavam misturadas, o clima estava tenso e cheio de testosterona. Esse não era um lugar para mulheres, crianças ou idosos.

Peter estava mais preocupado que nunca. Sem tique dessa vez, virou-se para mim e disse: “Segura na camisa do Toni e não larga!”. Depois se voltou para o Toni e mandou ele ficar de olho.

É claro que obedeci. Em meio à massa que empurrava para todos os lados, sob o olhar atento do Peter logo atrás, grudei na camisa e fui atrás tomando todo cuidado para não me distanciar nem cair e correr o risco de ser pisoteado por centenas de pés ansiosos.

O empurra-empurra demorou uns dez minutos. Foi um alívio quando chegamos nas catracas. Elas pareciam um oásis surreal de paz separando a loucura do lado de fora do estádio da insanidade que nos esperava do lado de dentro. Protegidos por guarda-costas gigantes e mal-encarados, frágeis empregados de meia-idade inspecionavam tranquilos os bilhetes um a um. Quando pegavam aqueles com igressos falsos ou aqueles tentando entrar sorrateiramente sem bilhete algum, os metidos a malandro eram obrigados a escolher entre dar meia-volta e encarar a multidão ou serem escoltados até a delegacia do estádio.

Quando isso acontecia, os funcionários perdiam a paciência. Pegaram um em uma catraca ao lado e o homem explodiu. “Não me interessa que você não tem dinheiro! Pelo amor de Deus, meu filho! Decide logo! Não está vendo a fila?”

Quando chegou a nossa vez, o moreno de cabelos grisalhos examinou nossos ingressos através de seus óculos. Com calma rasgou ao meio os finos papéis azuis, depositou sua metade em uma caixa e liberou a roleta. Já dentro, reagrupamos e saímos correndo com a multidão pela rampa comprida que dava acesso ao anel superior. Guardas com pastores alemães paravam bêbados e torcedores carregando objetos perigosos. Ao final da rampa, a massa se dividiu de acordo com seu time de coração. Nós pegamos o corredor à esquerda e seguimos os torcedores do Fluminense. Passamos rápido na frente de portas dos banheiros e bares sentindo o cheiro forte de urina misturado com cerveja derramada.

Havia entradas a cada trinta metros e Peter tinha que decidir rápido qual iríamos tomar. De repente ele nos empurrou por um corredor estreito onde silhuetas ocultavam a luz no fim do túnel. Subimos sentindo a imensa energia que emanava lá de dentro. Quando finalmente entramos na arena, percebi em extase o quanto o estádio era gigantesco – dava para entender claramente como cabiam 160 mil espectadores ali. As torcidas que já enchiam algumas partes, principalmente atras dos gols. Na parte central das arquibancadas havia a famosa tribuna de honra – a seção cercada onde ricos e convidados especiais ficavam. No resto do estádio, as grades nos parapeitos em frente às torcidas já estavam cobertas por faixas e bandeiras das torcidas organizadas. Embaixo, cercado por aquela construção colosal estava o gramado, o palco que captava os sonhos de toda uma nação.

Enquanto Peter decidia onde iríamos sentar, fiquei olhando para aquilo embasbacado. Dava para ver que o lugar mais animado era no meio das torcidas organizadas, todas começando a engossar dos dois lados. Esse era o lugar de onde vinham as batucadas e de onde emanava toda a vibração. Quando alguém da torcida começava a gritar um refrão, logo depois – como numa reação química – dezenas de milhares de pessoas passavam a gritar a mesma coisa. O problema era que também era ali que a maioria das brigas aconteciam. Não era o lugar certo para um adulto responsável levar três crianças. Por isso, acabamos indo mais para perto da zona neutra, entre as duas torcidas, do lado oposto à tribuna de honra. A pedidos do Rob e do Toni, acabamos num lugar ainda na torcida do Fluminense.

Pedindo licença, se equilibrando entre os torcedores e os degraus das arquibancadas, chegamos numa abertura para quatro pessoas. Sentamos, relaxamos e ficamos assistindo ao jogo preliminar entre as equipes juvenis dos dois clubes. Apesar das torcidas só estarem preocupadas a atração principal, comemoravam os gols dos novatos e ficavam em silêncio quando havia uma cobraça de pênalti.

Assim que a partida secundária terminou, o Maracanã acordou. Já não havia partes vazias no estádio. Os torcedores começaram a agitar suas bandeiras enormes e a soltar foguetes. Os refrãos esquentaram dos dois lados. Em campo, fotógrafos com câmeras e lentes penduradas no pescoço disputavam posições atrás dos gols com repórteres portando microfones e fones de ouvido. Os gandulas uniformizados entraram e foram se sentando ao redor do campo enquanto policiais de óculos escuros segurando pastores alemães patrulhavam as bordas do gramado. Agora, só faltavam os jogadores.

Nas arquibancadas, era como estar no meio de uma festa de meninos levados. Os torcedores entoavam as mesmas musiquinhas provocadoras que nós ensinávamos uns aos outros na escola e jogavam copos descartáveis amassados nas cabeças de quem estava abaixo. Os carecas sofriam. A pior coisa que me lembro de ter visto foram uns caras mijando nos torcedores que ficavam na área inferior ao lado do gramado, a “geral”. Essa parte do estádio tinha os ingressos mais baratos. Lá embaixo, não havia lugar para sentar e o campo de visão era na altura dos pés dos jogadores. Os espectadores eram obrigados a assistir os jogos em pé em meio às brigas frequentes.

Um amigo me contou a história de um repórter que estava em uma das cabines de imprensa que ficava bem em cima da “geral”. Para fazer graça com os colegas, o repórter começou a xingar e a gozar o pessoal em baixo. Junto com os palavrões veio a dentadura. Mesmo com suas súplicas, os caras não pensaram duas vezes e pisotearam sem pena seus dentes falsos assim que aterrissaram.

*

Uma voz surpreendentemente formal e monótona saiu pelos alto-falantes anunciando a partida e o nome dos jogadores. Os torcedores fizeram silêncio, mas cada vez que mencionava um dos seus craques iam a loucura. Quando a apresentação terminou, o painel eletrônico acendeu e começou a mostrar o placar do jogo: “Flamengo 0 Fluminense 0”.

Sendo tradicionalmente o time da elite social branca, o símbolo do Fluminense era o pó de arroz. Em preparação para a chegada do seu time, membros da torcida tricolor circulavam com baldes cheio de saquinhos da coisa, os distribuindo como se fossem fazendeiros dando ração aos animais. Assim que o Fluminense entrasse em campo, todos rasgariam os sacos e atiraram o pó no ar criando uma espessa nuvem branca. Quando o ar clareasse, pareceria que tinham acabado de sair de uma tempestade no deserto.

Com o estádio completamente lotado, dava para ver que a torcida do Flamengo era bem maior, tomando quase dois terços do estádio. Por causa de suas cores: vermelho e preto, o símbolo do clube era um urubu. Em cada jogo, torcedores levavam um urubu de verdade. A tradição era amarrar uma bandeira do clube no pé do bicho e soltá-lo quando os jogadores entravam em campo. Se a mascote conseguisse voar para fora do estádio, aquilo era considerado como um bom presságio. Naquela situação, a ave desnorteada correria o risco de mudar de cor por causa da nuvem de pó de arroz e de ser confundida com uma águia branca quando retornasse ao ninho.

Os dois times entraram em campo juntos. Quem abriu o caminho foi o árbitro e seus auxiliares seguidos pelos jogadores em fila indiana, uns se aquecendo e outros subindo o túnel dando a mão aos mascotes dos times. Esses meninos ficariam livres para correr pelo campo depois que posassem junto com os atletas nas as fotos para a imprensa. Na manhã seguinte, aquelas imagens seriam estampadas nas últimas páginas de todos os jornais da cidade. Quem quer que tivesse ido ao jogo sentiria como se houvesse participado de um grande evento. Depois da foto, os jogadores se espalharam pelo campo e ficaram tocando a bola entre si, dando piques no gramado e chutando a gol para aquecer o goleiro. Enquanto isso, repórteres corriam atrás dos craques tentando fazer com que tecessem comentários sobre o jogo. Pegando carona nos rádios dos vizinhos, quando os astros do futebol falavam com um radialista, podíamos dar um rosto, mesmo que distante, às vozes que vínhamos acompanhando desde que saímos de casa.

O juiz mandou a polícia liberar o campo. Quando só ficaram ele e os jogadores, o árbitro chamou os dois capitães para o centro do gramado para decidir quem sairia com a bola e em que lado cada um dos times ia começar jogando. Com um barulho ensurdecedor nas arquibancadas, os jogadores tomaram suas posições, o homem de uniforme preto olhou para o seu relógio e deu o apito inicial. Uma estrela da seleção campeã, Gérson, se não me engano, passou a bola para trás dando início à partida. O estádio inteiro conseguia reconhecê-lo pela careca como também os demais jogadores por causa dos cortes de cabelo, dos números nas camisas e pelo seu estilo de jogar. Quando faziam algo de errado, as pessoas os criticavam em altos brados como se os conhecessem pessoalmente. Na hora que os atacantes estavam prestes a marcar um gol, todo mundo se levantava e quando o adversário oferecia algum risco, ficavam em silêncio enquanto a torcida rival festejava. No segundo tempo, o Fluminense marcou abrindo o placar. Ainda que não torcesse pelo time, não pude me conter e fui à loucura como se fosse tricolor de nascença.

*

Naquele tempo, a televisão ainda estava dando seus primeiros passos e raríssimos jogos eram transmitidos ao vivo. Nossos heróis da bola ainda não tinham empresários planejando suas carreiras milionárias nos campeonatos europeus. Ao contrário, seus horizontes começavam e terminavam dentro dos campeonatos estaduais e nacionais. Para a nata, havia a convocação para a seleção nacional e a fama internacional mas raríssimos iam jogar no estrangeiro. Por isso, jogavam para a torcida e faziam o que podiam todas as tardes de domingo para reafirmar sua condição de craques. O ali e o agora eram cruciais, o que tornava a qualidade daquelas partidas, sem dúvidas, a melhor do mundo. O Maracanã daqueles tempos traz memórias aos torcedores do Rio parecidas às que Woodstock traz para os amantes do rock. Houve momentos de pura magia, gols inesquecíveis, dribles, jogadas e delírios coletivos de outro planeta. Como deve ter sido no Coliseu em Roma, o clima daquelas partidas foi um fenômeno único e irrepetivel.

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Samba Perdido – Capítulo 03, parte 01

Capítulo 03

Todo menino é um Rei.”

Roberto Ribeiro

 

Sexta-feira, 23 de novembro de 1968 foi um dia único. A poucos quarteirões do nosso apartamento, a Rainha Elisabeth II estava dormindo hospedada no Hotel Copacabana Palace.

Se estivesse acordada de madrugada, teria se maravilhado com o espetáculo diário do sol clareando o horizonte. A beleza do mar refletindo o céu aberto e evaporando sua agua no ar fresco desencadeava o cantar dos pássaros nas milhares de árvores das ruas entre os prédios do bairro. Essa sinfonia soava no bairro inteiro, quer na sacada do hotel, quer no nosso quarto no décimo segundo andar. Ao fundo, dava para ouvir ondas quebrando ritmicamente na praia, sua espuma salpicado a areia, indo e vindo na vastidão.

Meu pai saiu para sua caminhada diária enquanto a Rainha, sua comitiva, Renée,

Sarah e eu continuávamos no sétimo sono protegidos por ar condicionados barulhentos.

Nosso despertador tocou às seis e quinze da manhã em ponto. Por mais que a preguiça tentasse me convencer de que nada tinha acontecido, não dava para ignorar o barulho metálico alto e irritante. No estupor, vi o vulto da Sarah se levantar e aliviar a situação desligando o aparelho. Já com onze anos, estava com sua sua cabeleira negra, comprida e despenteada envolvendo seu pijama favorito até o ombro.

Me ignorando, não só ligou a luz como também fez um barulhão abrindo o armário para tirar suas roupas. Depois, saiu para tomar banho. Quando abriu a porta, o ar quente invadiu o quarto. Lutando contra a claridade e o calor de baixo da coberta, num esforço sobre humano, me estiquei para ligar o rádio de pilha deitado no chão.

Assim que deu para ouvir seu ruído, girei o sintonizador até achar a Rádio Globo. Quando consegui, entrei em sintonia com o Rio de Janeiro. Essa era rádio preferida das domésticas, dos porteiros e de outras pessoas comuns. Para mim era o Brasil em estado puro, eu adorava mas ninguém em casa conseguia entender como nem porque.

O apresentador bem-humorado com uma voz de cantor de ópera, Haroldo de Andrade, conduzia o show matinal de maior audiência da cidade. Nele, além de fazer orações, transmitia notícias, divertia os ouvintes com curiosidades e fazia entrevistas com astros do futebol, do samba e das novelas. Era um programa interativo em que gente da cidade inteira ligava para deixar opiniões sobre os assuntos do dia. Durante os intervalos, tocava os últimos sucessos do samba e hits da Jovem Guarda: Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Wanderléa entre outros. Roberto Carlos, o rei, devia ser muito caro para tocar naquele horário. Também havia a participação do astrólogo da programa, Alziro Zarur, que lia suas previsões com uma música mística, meio oriental ao fundo.

“Aquela porcaria” – que era como minha irmã se referia a meu programa de rádio favorito – estava no ar quando voltou do banheiro enrolada na toalha. Sem falar uma palavra, irritada com minha preguiça, mudou de estação, desligou o ar condicionado já fraco, abriu as venezianas de madeira e me mandou sair do quarto para que pudesse se vestir.

Ficou difícil dizer o que era mais irritante: não ser o mais velho, ser acordado daquela maneira ou simplesmente ter que levantar tão cedo. De qualquer forma, se me acordar era o que queria, funcionou. A luz forte e a música americana chata mataram o que restava da minha morbidez.

Antes de qualquer coisa, saí para a varanda. Assim os pés tocaram a cerâmica ainda fria, o sol bateu no meu rosto que, junto com a brisa vinda do Oceano Atlântico ali em frente, me desejou um bom dia. Aquele era o meu lugar favorito da casa; foi lá onde tinha aprendido a falar, a andar e a brincar. Adorava ficar ali contemplando a vista espetacular, sonhando acordado na rede de balanço em meio às plantas. Passava horas ali me debruçando no parapeito para ficar espiando as pessoas e os carros passando na rua lá embaixo.

Como um cão fiel, minha bola de futebol tinha passado a noite do lado de fora me esperando. Minha “dente de leite” não era uma bola profissional de couro, mas pelo menos não era daquelas infantis que mais pareciam um balão. Dava para jogar futebol de verdade com ela. Seu plástico esticado podia se tornar vil: se chutada com força contra a parede soava como um sino e caso a bolada acertasse na pele, vinha acompanhada de uma ardida enjoada. Por causa de acidentes com vasos e com outros objetos mais caros fiquei proibido de dar bicudas, fossem elas dentro de casa ou na varanda. Havia o perigo de quebrar uma janela, ou pior; segundo meu pai, se qualquer brinquedo caísse lá embaixo e acertasse a cabeça de alguém, poderia quebrar seu pescoço, rachar sua cabeça e talvez até matar.

“Já imaginou uma bola pesada?!”

“Mas como é que vão saber que ela veio daqui?”

“A polícia sabe de tudo!” respondeu Rafael se segurando para não rir.

Apesar das explicações, minha cabeça de jerico vivia tentada a jogar a bola lá embaixo para ver o que aconteceria. Estouraria? Até que altura quicaria de volta? Qual o estrago que causaria? Mas nunca me atrevi. Mais tarde acabei jogando uma daquelas bolas de borracha transparentes japonesas, mas o resultado foi decepcionante: não a vi quicando de volta nem ouvi barulho nenhum, simplesmente desapareceu.

*

Já frequentava a escola, a British School of Rio de Janeiro. Naquele dia a família inteira estava indo para o evento importante. Minha irmã, já vestida, veio até a varanda para ver o que estava fazendo. “Richard! Você ainda está aí!? Você vai atrasar todo mundo!”

Depois da mini bronca, fui me preparar. O bom de se estar no banheiro é que dava para ouvir o rádio da Maria, nossa empregada, na área de serviço. Ela também gostava da Rádio Globo mas de manhã cedo, para garantir que tudo fosse feito dentro do horário, ouvia a Rádio Relógio, uma estação que dizia as horas a cada dois minutos entre anúncios monótonos e informações bizarras.

“Você sabia que o rinoceronte africano tem dois chifres; o maior fica na frente e o menor atrás? Você sabia?… Biiip, biiip, biiiiip… são seis horas, quarenta e dois minutos e zero segundos… Biiip.”

Tanto eu quanto a Sarah adorávamos aquela mulata faladeira que vivia rindo de nossos hábitos gringos. Forte mas não gorda, lábios carnudos, um dente de ouro, olhos intensos e puxados como os orientais, ela enchia nossa casa de alegria brasileira, principalmente quando estávamos a sós. Anos mais tarde o porteiro, Zé, me contaria que Maria era fogosa e que a maioria dos empregados de nosso prédio já havia tentado algo com ela, com níveis variados de sucesso.

Depois do banho, de escovar os dentes, pentear os cabelos, vestir o uniforme com perfeição e colocar sapatos engraxados desconfortáveis estava pronto para me unir à família. Odiava com paixão aquelas frescuras, mas não tinha jeito.

Quando cheguei, estavam todos me esperando sentados embaixo do toldo na varanda. Em dias de sol, o café era servido ali numa mesa de plástico dobrável que minha mãe mandava cobrir para disfarçar sua simplicidade. Maria estava de uniforme fazendo cara séria em frente ao homem da casa e tomando cuidado para não derramar nada ao servir nosso café da manhã anglo-tropical; ovos cozidos, leite quente, mingau, geleia, bananas, mamão, suco de laranja espremido na hora, pão preto, mel e manteiga.

*

Café tomado, uniforme conferido e impecável, sapatos brilhando, com dona Renée, seu Rafael e minha irmã nos seus trajes mais finos, a família estava pronta para sair. Descemos juntos no elevador. Na portaria, minha mãe deu as chaves do carro para o garagista e logo que ele saiu com o Aerowillys na rua, eles entraram e partiram.  Não fui com eles, tinha que ir no ônibus escolar, afinal era o único que estudava lá. Fiquei esperando com o Zé falando de futebol.

Para apanhar os alunos, o ônibus vermelho ziguezagueava entre as vias principais do bairro; a Avenida Atlantica, a Avenida Nossa Senhora de Copacabana e a Rua Barata Ribeiro onde, na sombra das árvores antigas, bondes soltavam faíscas brilhosas ao tocarem o emaranhado de fios elétricos sustentados pelos postes enferrujados.

Eram oito da manhã e todos meus colegas do bairro tinham enchido o ônibus. Antes de pegar o túnel, ficamos presos num engarrafamento junto com outros ônibus lotados, bondes, lotações, taxis e carros particulares. Motoristas impacientes buzinavam e gritavam sem qualquer motivo enquanto crianças descalças das favelas passavam no meio do congestionamento conduzindo seus carrinhos de rolimã, tão baixos que quase tocavam o asfalto.

Na nossa condição de gringuinhos grã-finos, olhávamos para aqueles meninos maltrapilhos pela janela com uma mistura de inveja e de medo. Muitos eram da nossa idade e sabíamos que apanharíamos fácil se tivessem a oportunidade de nos enfrentar. Eles eram contratados por feirantes para entregar seus produtos nas casas ou nos escritórios dos clientes. Esses mercados improvisados mudavam de bairro todo dia, mas onde quer que parassem, o odor acre de frutas, de carne e de peixes expostos ao sol era o mesmo. Seu cheiro e seu barulho inconfundíveis anunciavam sua presença a vários quarteirões de distância. De dentro das bancas de frutas, homens em camisetas rasgadas cantavam rimas para atrair as madames

“Ooooolha aí! Mulher bonita paga metade se levar meio quilo! – Olha a banana novinhaaaaa, dez cruzeiros a dúziaaaaa!”

Nos cruzamentos, policiais elegantemente uniformizados controlavam o trânsito por meio de uma coreografia de apitos, olhares e movimentos de mãos que lembravam um ritual de acasalamento de uma ave rara que os motoristas pareciam entender.

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