A Torá, que significa Instrução, é “um” Livro de viver a vida na estrada, “Livro” para transitar entre pedras e atravessar mares e desertos, para experienciar processos embrionários de formação do mundo, em Bereshit, e do processo de constituição de um Povo – então, Povo Hebreu, Israelita e Judeu, especialmente em Shemot, Vayikrá, Bemidbar e Devarim.
A Torá não é o único Livro judaico nem pode ser vista sob “maus” olhos fundamentalistas. O chamado Povo do Livro (conceito muito mais acertado do que o de Povo escolhido) possui muitos Livros, uma Biblioteca variada, criativa, inspiradora e muito interessante, que vai de história a pensamentos de matriz filosófica, de direito à poesia, de épica a relatos sobre fatos e de vozes proféticas (não, não tem a ver com vozes proféticas de outros grupos culturais, pois não se trata de falar algo sobre o futuro, mas de dizer (dizer!) algo sobre o presente. Os Profetas pensavam e diziam algo sobre o mundo em que viviam, sobre relações de justiça e bondade, educação e espiritualidade.
Porém, a Torá, que não é o único Livro, é, todavia, o mais importante legado judaico (sim, a Torá é judaica, é patrimônio judaico, e nunca foi “velho testamento” (exceto nas vozes antissemitas, desinformadas e levianas!). A Torá é, sobretudo, principiológica, ou seja, traz princípios (em ensinamentos ou exemplos) em torno dos quais é possível desenvolver um pensamento, um comportamento e um juízo de valores (aliás, como qualquer princípio). Cada povo, semita ou não, tem seus princípios, como no Código de Hammurabi (babilônico), na Lei das Doze Tábuas (romana), nas Constituições e ética (ateniense) etc. O Livro de princípios para o Povo Judeu é a Torá.
A Torá, assim, não é um Livro dogmático (nem revelado), mas histórico, ético e o ponto de partida (não de chegada) do Povo Judeu. Por isso mesmo, ao longo da História Judaica, a Torá ganha brilho e atualização sob os sábios olhos do hermeneuta, daquele que se dobra sobre ela e dela retira a substância, os pontos de apoio, os calços, e os referenciais para a vida. A Torá não é um livro do “além-mar” nem do “céu”, mas da vida, da existência, da subsistência, das relações interpessoais, das fragilidades humanas e dos motivos de fortalecimento, resistência, vigor e caminhada.
Em outras palavras, é o ponto de partida do Judaísmo que, embora não impeça qualquer outro alcance de sabedoria e conhecimento, serve sempre como alicerce, princípio e Constituição. A Torá é a Constituição (na história, a mais antiga!) de um Povo e, tal a sua musculatura principiológica, perdura ao longo do tempo, seja em Israel ou na Diáspora, seja no Gueto ou nas remoções, seja em Jerusalém ou no Deserto. Como Livro de princípios, serve para o processo de crescimento. A Torá é a passagem do topos ao u-topos, de um lugar conhecido a um lugar que se imagina bom.
Por último, a Torá não pode se tornar um objeto idolátrico (como seria um livro dogmático) ou um Livro sacrossanto (o que levaria a fundamentalismos toscos e destrutivos). A Torá não desceu do céu! O homem, em especial, o Judeu, não foi feito para servir a Torá, não foi feito para a Torá, mas a Torá, sim, foi feita para o homem, em especial, para o Judeu. A Torá está a serviço da pessoa humana em seu processo de instrução, de educação principiológica, de justiça e atos de bondade.
Por isso mesmo, a cada semana estudamos uma Porção, um trecho, isto é, uma Parashá, para ir, pouco a pouco, bebendo nessa fonte, e crescendo com ela, exatamente no que disse Moshe Rabenu (Moisés, nosso Mestre), em um processo de gotejamento, gota a gota.
Sempre, em cada ciclo anual, imediatamente após Rosh Hashaná e Yom Kippur, dois momentos de reflexão de origem e de consciência, recomeçamos, semanalmente, o processo de educação e reflexão na inesgostável fonte da Torá.
Tishrei, 5785
(c) Pietro Nardella-Dellova