Angola, Congo, Benguela
Monjolo, Cabinda, Mina
Quiloa, Rebolo
Aqui onde estão os homens
Há um grande leilão
Dizem que nele há uma princesa à venda
Que veio junto com seus súditos
Acorrentados num carro de boi
Eu quero ver
Eu quero ver…
Angola, Congo, Benguela
Monjolo, Cabinda, Mina
Quiloa, Rebolo
Aqui onde estão os homens
De um lado cana-de-açúcar
De outro lado, o cafezal
Ao centro, os senhores sentados
Vendo a colheita do algodão branco
Sendo colhido por mãos negras
Eu quero ver
Eu quero ver
Quando Zumbi chegar
O que vai acontecer
Zumbi é o senhor das guerras
Senhor das demandas
Quando Zumbi chega
É Zumbi é quem manda
Era uma aula de História sobre a Conferência de Berlim e a repartição da África pelos europeus. A professora se deteve na ação infame belga no Congo, em 1885, quando o rei Leopoldo II transformou o extenso território em sua propriedade pessoal. Foi nessa mesma aula que ouvi a primeira vez o nome Patrice Lumumba. Hoje essa professora seria defenestrada, rotulada de doutrinadora e comunista, mas o que soube sobre esse homem, sobre seus ideais anti-imperialistas, do pan-africanismo, de uma África unida como continente, passando por cima das questões de etnias, cultura e gênero, nunca mais me esquecê-lo. Ao final, fui saber que foi traído, humilhado, torturado, antes de ser assassinado, visto que não interessava nem a Bélgica, as empresas estrangeiras que operavam extraindo recursos naturais do Congo (que são muitos) e aos EUA, um líder que queria um país democrático, independente e africanista. E sim, apesar de seus pedidos reincidentes por proteção, a ONU lavou as mãos. Da adolescente que fui, o que sinto mais saudade é da crença do “e se”. E se Lumumba tivesse sobrevivido e levado seus ideais a frente, teríamos uma outra África? Um dos desencantos de quando se chega à idade adulta é a certeza de que o “e se”” não existe. É com a realidade e sua crueldade inerente que temos que lidar.
È complexo falar sobre o Congo. Os portugueses, através de Diogo Cão, escudeiro da Casa de D. João II, de Portugal, fizeram duas grandes expedições na costa sudoeste africana, na busca do Cabo Da Boa Esperança. Tanto que ao chegar ao Rio Zaire, em 1482, acreditou ter alcançado o que almejava. Essa empreitada quem conseguiu foi Bartolomeu Dias, mas coube ao navegador estabelecer relações com o Reino que lá encontrou. O Congo era um reino forte, estruturado, cuja chefia maior cabia ao Mani Congo. Era um território extenso, que hoje corresponderia a Angola (incluindo Cabinda), República do Congo, Gabão e República Democrática do Congo.
A relação dos portugueses com o Reino do Congo é uma história longa e complexa, que envolve cristianização, lutas fratricidas e uma batalha luso-congolesa, em 1665, a de Ambuila, movida pelo interesse dos portugueses em controlar uma passagem para cobiçadas minas de ouro e de prata. O saldo: Milhares de congoleses mortos, entre eles muitos nobres, e o rei congolês Antônio I teve sua cabeça cortada e enterrada em Luanda, enquanto sua coroa e cetro, emblemas reais, foram mandados a Lisboa como troféus.
Invadir a África e se apossar dela naqueles tempos era uma missão totalmente impossível. Por motivos geográficos, o destino da África foi o de viver atrás das barreiras das suas costas. Rios caudalosos de cursos desconcertantes, montanhas fenomenais, selvas misteriosas, extensos desertos, atribuem ao continente africano uma fisiografia hostil e, ouso dizer, fantástica. Sempre que leio os versos de Pessoa: “Eu, Diogo Cão, Navegador, deixei este padrão ao pé do areial moreno. E para diante naveguei”, que foi o marco da chegada dos lusitanos ao Cabo da Cruz (atual Namíbia), esse navegador que introduziu padrões pedra , em lugar de cruz de madeira, em torno de 3 metros e meio de altura, com o brasão português e a cruz marcando a reclamação de posse do território para Portugal, não lembro de poesia, nem da Mensagem, nem dos Lusíadas e sim da imagem que vi há anos captada por um cinegrafista da Nathional Geographic, na Costa do Esqueleto .região ao sul da Angola, na Namíbia, onde o deserto de mais de 50 quilômetros encontra o oceano. Um leão desorientado, pelo tempo da caminhada, se fartando ao chegar no mar devorando uma baleia encalhada. Uma baleia. Essa imagem me valeu mais que o Kilimanjaro, Hemingway que me perdoe.
Pelas dificuldades de invasão do interior do continente, o europeu se dispôs a colonizar a América primeiro e fazer da costa africana um ponto lucrativo de marfim, ouro e, em especial, negros. E aqui voltamos ao Brasil. Temos, segundo Pierre Verger, ciclos distintos. O primeiro, século XVI, o de Guiné. De diversas regiões da África, calcula-se que tenham entrado no país cerca de 20000 escravos. Já no século XVII, temos o de Angola e do Congo. Esse registrou a entrada de 205150 negros no país. Agora chegamos à historinha de carochinha do Sergio Camargo. O Reino do Congo tinha escravos? Sim, tinha. Uma outra tipologia. O Congo era um reino em expansão, com registro de guerras frequentes e havia sim uma população cativa. Não vou me ater ao tráfico de escravos, muito menos vou entrar na catimba de que os europeus não inventaram a escravidão porque os próprios africanos a faziam, porque quem lê meus textos tem o mínimo de conhecimento de que o trabalho compulsório existe desde a pré-história, de que no frigir dos ovos ele vai só variando suas formas ao longo do tempo. Ah Céu, está dizendo que servos da gleba e escravos são a mesma coisa. Não. Se não quiser reler Aristóteles eu trago mastigadinho: Servos e escravos passaram por situações terrivelmente opressivas. A diferença é que o escravo é A MERCADORIA. A originalidade no escravismo é que se institucionalizou em larga escala esse trabalho nas cidades e nos campos. Gregos e romanos foram os pioneiros na propulsão da escravidão como força de trabalho devidamente institucionalizada. Um sistema legitimado por leis, normas, justificações morais, E a Idade Moderna vai buscar no Direito Romano códigos aplicáveis a escravidão em larga escala. Os europeus que povoaram o Novo Mundo com escravos importados da África já tinham um sistema legal pronto, que adotaram quase em sua totalidade, alternando-os numa lentidão de lesma para se adaptar a condições novas.
E assim, na base da lei, entre 1502 e 1860, mais de nove milhões de escravos foram transportados para as Américas, figurando o Brasil como seu maior importador. Apesar de etnias diversas, o que se convencionou chamar de Reino do Congo, trazia uma característica: eram chamados de bantos porque é a palavra que designava o tronco linguístico do amplo leque de idiomas falado na África Central. Seus descendentes estão espalhados por todo o Brasil, do nordeste ao sudeste. Deve-se ao povo banto a criação das Irmandades do Rosário (mas aí já é outra história)
Saindo dessa história triste, porém nossa, volto a falar da República Democrática do Congo. E essa foi a segunda vez que ouvi falar em Lumumba. Quando Éramos Reis, meados dos anos 90, Estação Botafogo. Documentário de Leon Gast sobre a maior luta de boxe da história. Em 1974, Ali recém saído da prisão, por ter se recusado a lutar na Guerra do Vietnã, aos 32 anos e George Foreman, jovem, dono do Cinturão, na melhor forma, estavam no mesmo ringue. No Zaire (atual RDC) Ideia do controverso Don King, a luta foi bancada pelo ditador Mobutu Seso-Keko. O traidor que tomou o poder e nele ficou por décadas, acumulando muito dinheiro e assassinando por esporte. Leon Gast foi para registrar os momentos da luta e o dia a dia dos lutadores, mas o funcionário que pagaria pela montagem do filme, de Mobutu, diga-se de passagem, acabou sendo assassinado. Então com as imagens arquivadas e só conseguindo montar mais de vinte anos depois, eis o melhor filme da minha vida. Porque pessoas que estavam presentes ao evento como Norman Mailer, figuras que explicam todo o contexto racial daquele tempo, como Spike Lee, estão ali a comentar a importância dessa luta. Além disso, houve um festival de música enlouquecedor, com artistas negros, dando uma ideia da música voltando para sua verdadeira casa. É impossível não chorar ao som de BB King ou vibrar quando James Brown faz suas coreografias alucinadas e é acompanhado por danças tribais dos participantes. E a torcida dos congoleses por Ali, que representava a verdade, a negritude, o orgulho de sua história. Nada mais vou falar porque senão é spoiler que não acaba mais. Só para terminar, estava folheando um livro antigo cujo prefácio era do Gilberto Freyre. E ele dizia que os portugueses preferiam os bantos pela docilidade, sem se lembrar que O Quilombo dos Palmares foi formado por eles. Ganga Zumba e Zumbi eram congoleses. Moise querido, eu confio no senhor das demandas. Nós não iremos esquecer. Era só isso mesmo. Quanto ao Sergio Camargo, fica a resposta: VAGABUNDO É O CARALHO.
Para isso fomos feitos
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra
Assim será a nossa vida
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve
Ver a noite dormir em silêncio
Não há muito o que dizer
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações se deixem
Graves e simples
Pois para isso fomos feitos
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte
De repente nunca mais esperaremos
Hoje a noite é jovem
Da morte, apenas nascemos
Imensamente
(Vinícius de Moraes)
Ela tinha o poder de convencer, como poucos. Não insistia, não enchia o saco, sabia que sagitariano só faz o que realmente quer fazer, Então usava a tática de falar que estava tudo pronto me esperando, a cerveja gelada, a picanha sangrenta, de forma que a ideia do encontro parecesse ser minha. Sua voz doce disfarçava seu gênio forte, E era , por natureza, delicada. Pôs-se a falar que teríamos distanciamento, que o que não faltava era álcool gel e álcool pra lavar a alma. Na sua forma líquida, numa cerveja gelada e na sua invenção que eu chamava ideia do capeta: geladinhos de caipirinha. A data era importante, não apenas por ser seu aniversário, mas pela formatura do filho e seu aniversário também, faziam anos com uma semana de diferença. Ainda não tínhamos vacina, sabia que esses ajuntamentos de fim de ano não seriam uma boa ideia, como se provou mais tarde, O que eu sei é que ela era extremamente cuidadosa, me convidar para esse pequeno grande evento, onde eu seria a quinta pessoa, era valorizar muito minha companhia. Eu disse que não podia, mas ainda assim ela me mandou a foto da carne sangrando sendo cortada e escreveu: ”Pega um Uber, ainda dá tempo”. Minha resposta foi :PQP mulher, não me tenta. Assim você me esgana de vontade .Aniversário tem todo ano, no próximo, quando essa merda passar, vou aí e beberemos até cair, Só não me enche a geladeira de Itaipava, tomemos um porre decente, cerveja com cheiro de xixi de gato só se for no ultimo engradado.” Errei feio. Não vai ter nem cerveja ruim, muito mesmo aniversário. Amanhã seria seu dia . E ela não estará aqui, rindo dos meus embaraços pela vida, rindo dos seus próprios, com aquele humor ácido judaico que era nossa salvação nesses tempos nefastos.
Nesse catálogo de desgraças que foi 2021, ou está sendo porque o miserável ainda não acabou, me sinto no quadro do Bruegel, O Triunfo da Morte . Tenho sobrevivido a mortes de pessoas, que mesmo não conhecendo várias delas, devo-as minha formação. Das próximas, três delas norteavam minhas caminhadas, porque minha miopia progressiva não se resume a parte física .E me davam, generosamente as mãos e emprestavam seus olhos pra eu não escorregar feio no caminho. Acho que o que tenho sentido pode ser explicado por uma história que meu tio Mingo, irmão mais novo do meu pai, que já se foi, me narrou anos atrás. Numa das festas animadas que fazia em casa, quando os convidados já tinham partido, o dia amanhecendo e tomávamos a saideira que nunca era a saideira, ele me contou como se deu sua consciência da morte. Dentista de formação e ofício, sua paixão era a natureza. Conhecia cada planta, cada pássaro, e eu soube então que esse interesse veio de seu bisavô, um homem que só conheci pelos retratos .Nessa conversa soube que seu avô foi quem lhe ensinou a fazer enxertos e criar flores de cores diferentes. Numa ocasião, estavam na missão de cruzar pássaros para ver novas plumagens, no meio de uma experiência para saber se vingariam ou não. Até que ao chegar da escola, encontrou um clima horrível dentro de casa e teve ciência que o avô, de quem se despediu ao sair, havia morrido de um ataque cardíaco fulminante. Uns dez dias depois da morte do avô ele foi olhar os pássaros e num lance de sorte, viu os ovinhos eclodindo. Ele disse que correu esbaforido, subiu uma escadaria, ansioso para chamar o avô para ver junto. Abriu a porta num rompante, E quando viu a cama vazia, a mesa sem livros, foi que compreendeu que nunca mais o veria. Foi assim que ele entendeu que morte é ausência. Foi a primeira e última vez que o vi chorar.
Philippe Aries, em seu livro O Homem Diante da Morte, demonstra as significativas mudanças ocorridas na sociedade ocidental da Idade Média ao Século XX e suas relações com a morte. Não a toa, aponta o século XIV, repleto de fomes, guerras e pestes, essa morte em massa, como um dos momentos mais abaladores da relação do homem com a finitude. Ela se mostra como uma ameaça para qualquer um, visto que é inflexível e democrática, chegando de surpresa e sem tempo de preparação. Comparar fenômenos históricos de diferentes épocas , sem levar em conta todas as mudanças sociais, tecnológicas e científicas, pode ser uma armadilha para incorrer em um erro grave. Mas temos que concordar que vivenciamos esses temores. Talvez o lado mais duro desse tempo da covid seja o isolamento do doente, necessário, obviamente. Mas essa morte solitária, longe dos seus, na solidão de uma UTI, foi uma das nuances que mais me marcou.
Aqui encerro o assunto pandemia. Hoje não quero falar do genocida e de suas crias. Mas gostaria de desenvolver um tema, um tanto quanto polêmico, da ligação do brasileiro com a morte alheia. O precoce falecimento da jovem cantora Marília Mendonça, me fez pensar na forma com que o brasileiro , onde até a morte foi alçada a categoria de espetáculo, lida com seus mortos. Até então, tinha evitado ler qualquer coisa sobre o acidente, porque morte de jovem para mim é algo inaceitável.. Mas dois fatos não me passaram despercebidos: O primeiro é que supostas fotos da moça morta tentaram ser vendidas no IML, a 20000 reais. Li também que policiais tiveram que ficar em volta do avião, porque saqueadores queriam entrar para roubar objetos das vítimas.
Esses saques não são novidade, Basta lembrar do Voo da Gol, 1907 , em 2006, que voava de Manaus para Brasília até bater num jatinho Legacy. O avião caiu e morreram 157 pessoas. A queda foi numa fazenda do Mato Grosso, em local de difícil acesso. Apenas tropas das Forças Armadas trabalharam no local. Dias depois até documentos das vítimas foram usados no contrato de um empréstimo, para comprar um carro .Os parentes começaram a receber faturas de cartões de crédito dos mortos, joias e celulares, tudo isso desapareceu. A Aeronáutica nunca deu uma explicação plausível para as famílias, ficou por isso mesmo.
Eu fui testemunha em 2015 do atropelamento de um jovem, que estava na calçada com dois amigos, na Avenida das Américas, em frente ao BRT. Eu atravessava a rua, voltando do trabalho , só vi um caminhão branco passar rente a calçada e um barulho que parecia uma explosão. O garoto, de sunga, que estava na calçada (não no meio fio) na frente dos outros dois teve a cabeça arrebentada pela carroceria do caminhão, que lógico, partiu sem prestar socorro. Há três minutos atrás ele estava contando uma piada para os colegas e quando cheguei a ele seu maxilar tava arrancado, sua boca esguichava sangue e sua cabeça aberta. Enquanto o rapaz que viu tudo, que atravessava comigo, pedia socorro, eu não sei de onde me vem forças nessas situações trágicas, sentei os dois amigos que estavam em choque e falei firme (soube depois que um era primo do acidentado ) num gramado próximo :”Liguem agora para a família de vocês, avisem que estão bem mas que o rapaz se acidentou feio. Peçam para vir ate aqui, vocês não tem condições de voltar pra casa desse jeito”. Eles me obedeceram, comprei água para os dois e uma médica moradora da área apareceu. Corri para comprar luvas para ela na farmácia, logo depois um oficial do corpo de bombeiro de sunga, que estava voltando da praia, tentava contato para levarem o garoto. Eram seis e tal da tarde, transito intenso, problemas da Samu chegar. Eu, a médica, o bombeiro e o rapaz não saímos do lado do jovem, numa agonia sem fim. Eis que aparecem os curiosos. Quando vi tinham uns 5 filhos da puta filmando a agonia do garoto na calçada. Delicadeza não é uma das minhas virtudes, baixou uma pomba gira de frente, botei as mãos na cadeira e gritei:” Que porra é essa?Vocês não tem respeito não? Esse menino tem família caralho! Vão fazer o que, jogar na internet?”. Uma mulher, de idade próxima a minha, mandou eu calar a boca. Não preciso dizer que tomei o celular da mãe dela aos gritos de “podia ser seu filho, sua vaca”. Sorte a minha chegou Policia, Corpo de Bombeiros e fui apoiada por todos. Um dia depois o jovem morreu, 23 anos e deixou um filho pequeno .E até hoje não vejo sentido em filmar um menino agonizando. A morbidez não tem fim. Basta lembrar que depois do assassinato da Eliza Samudio, pelo goleiro Bruno, se soube que ela havia trabalhado num pornô e o filme esgotou em todos os camelôs do Rio de Janeiro. Assistir um filme pornográfico com uma mulher que teve um fim tão horroroso, me remeteu a necrofilia. Sem tirar nem por.
Em 1991, aos 20 anos de idade, marquei de sair com uma amiga. Íamos dançar. Só que antes ela precisava passar em um aniversário de uma amiga de infância para fazer uma social. Chegando lá., vendo meu nome numa lista de convidados, perguntei quem era. ”È a Cacau, atriz, a Claudia Abreu, sabe quem é?” Lógico que sabia, até porque semanas antes tinha ido assistir Um Certo Hamlet, em que ela era a personagem principal. Fomos as primeiras a chegar, a amiga atriz foi um doce comigo e de repente parecia que o Projac inteiro tinha se mudado para lá. Vera Holtz, Vera Fisher, Susana Faini, Victor Fasano e eu ali, tentando não destoar do ambiente. Eis que um casal lindo, ela de blusa de couro acinturada, ele com toda aquela aura de galã, quando iniciou a música e começaram a dançar, roubaram a cena. Ela sílfide, vaporosa, elegante , rodando pela sala executando uma dança de salão. Era a Daniella Perez e o Raul Gazola. Enquanto eu admirava o par, não podia imaginar o que o futuro reservava. No ano seguinte ela seria assassinada por seu par romântico na novela., Guilherme de Pádua e sua mulher Paula Tomaz. Com 19 estocadas. No mesmo dia que o Collor levou o impeachment. Mas foi um acontecimento tão surreal, tão absurdo, tão tenebroso, que o Collor ter caído passou a ser assunto menor. O que se seguiu daí em diante foi uma sucessão de histórias e de fatos. O pior deles a audácia do assassino de ir ao enterro, quando ainda não se sabia o culpado, abraçar a mãe da moça e o viúvo. No fim das contas, pegaram 7 anos de cadeia, Paula se casou e tem três filhos e Pádua virou pastor e apoiador do Bozo, porque como sabemos, nunca falha. Esse acontecimento, da moça bailando num dia e no ano seguinte nas manchetes de todo país, morta daquela maneira torpe, talvez tenha sido o evento brutal que mais me impressionou.
Quanto a festa, acabei indo para a varanda da casa e me juntando aos bons. Luis Gustavo, Tato Gabus Mendes e Aracy Balabanian. Ouvi histórias fabulosas sobre a TV brasileira e seus primórdios, de chorar de rir. Fecho essa crônica com a história contada pelo Luis Gustavo, dos tempos que não existia video tape e tudo era gravado ao vivo. Ou seja, não podia ter um erro. Era um Teleteatro, Joana D”arc. Um personagem importante ,um dos atores principais, segurou Joana D’arc e gritou para os soldados : ”Enforquem-na!” E eis que do nada aparece um figurante, que tava lá fantasiado no meio dos outros, mas que teve a sagacidade de puxar um isqueiro Bic do bolso e dizer: ”Não seria melhor queimá-la”? E assim salvou-se a peça. Tudo pelo script. Sem mais.
Eu não tenho data pra comemorar
Às vezes os meus dias são de par em par
Procurando agulha num palheiro
Nas noites de frio é melhor nem nascer
Nas de calor, se escolhe, é matar ou morrer
E assim nos tornamos brasileiros
Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
Transformam um país inteiro num puteiro
Pois assim se ganha mais dinheiro
A tua piscina ‘tá cheia de ratos
Tuas ideias não correspondem aos fatos
O tempo não para
Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não para
Não para não, não para
(CAZUZA)
Para Sergio Goldbaum
AO ENFANT TERRIBLE DOS MEUS AFETOS
1983 Foi o ano que descobri que aos 12 anos sua opinião é a última coisa a ser levada em consta. Meus pais se separaram, mudei de cidade, de casa, de escola. Quando dei por mim, estava em outra realidade. Numa sala de aula com pessoas que nunca tinha visto na vida, segurava com força em uma das mãos o livro de Garcia Márquez Cem Anos de Solidão, numa tentativa inútil de me proteger. Era meu primeiro contato com o autor, e estava por ele tão deslumbrada, que usava-o quase como um amuleto. Esta obra se arrasta comigo pela vida. A cada nova situação de mudança e transformação, procuro lê-la de novo. “Muitos anos depois, diante de fuzilamento,O Coronel Antonio Buendia havia de recordar aquela tarde remota em que o seu pai o levou para conhecer gelo”. Basta ler isso para o coração desacelerar.
Não me sentia bem aceita na turma nova e sondava os porques. Fisicamente eu era a estranha no ninho. Enquanto a maioria vivia as dores e delícias da puberdade, eu destoava do resto com minha perna compridas, meu corpo infantil, lisa como uma tábua , magrela , só para fechar o pacote que me incluía na categoria “esquisita”,usava óculos pesados por conta de uma alta miopia. E ainda tinha o sotaque como cereja do bolo. .
Uma loira, com peitos de Scarlett Johansson , passou a me perseguir.Bem maior que eu, aparentando uns três anos a mais para seus treze anos, despertava a atenção dos meninos e era a personificação da beleza padrão que as garotas almejavam. Cansada dos apelidos idiotas que me colocava, do seu ar de permanente deboche, sentia que eu que devia dar o basta. Contar para a minha mãe e ela ir reclamar na escola só pioraria minha situação. A oportunidade veio numa aula de redação , cujo assunto era introdução aos gêneros literários, o barroco. Uma poesia de escárnio do Gregorio de Matos foi lida e a professora lançou uma pergunta para a turma, mas olhando para mim, na tentativa inocente de me incluir. Foi então que levantei a mão e disse:”Com todo respeito, a senhora está perguntando para a pessoa errada.Se tem alguém que se diverte escarnecendo dos outros é ela (apontei a colega.)”Falta-lhe porém o talento para fazer de suas ofensas um verso desse valor”. Primeiro o silêncio. Depois gargalhadas eclodiram, a menina ficou vermelha feito um pimentão ,deixando a a professora irresoluta, se me levava ou não para a coordenação. Decidiu nos colocar frente a frente para conversar pedindo que ela parasse com aquilo com os outros e que eu usasse mais gentileza nas respostas .Esse foi precisamente o dia da minha transformação definitiva de poço de doçura a tanque de ácido. Sobrevivência que chama, né?
No âmbito político o Brasil mudava. Nascida sob o domínio daqueles generais amedrontadores, poucos anos antes assinou-se a lei da Anistia, os exilados voltaram, Diretas Já, finalmente um presidente civil , não o Tancredo, mas um civil. Vivia tudo isso, essa alegria fomentada pela esperança de dias melhores, sendo adolescente. A realidade do país se transformava e eu também. Consegui convencer a minha mãe a me dar um par de lentes de contato, meus seios surgiram, usava orgulhosamente um sutiã,.Nas férias era biquini asa delta amarelo, óculos espelhados coloridos e fora dela relógio techno com pulseira combinando com o cardaço do tênis, uma inaceitável pantalona verde cana como xodó , ornada por um blazer lilás com ombreiras que me engoliam, batom rosa choque e, nos cabelos, um indefectívelcorte mullet. Se todo adolescente é vítima da moda de seu tempo, só posso dizer que por termos crescido na década esteticamente mais cafona da humanidadenós merecíamos indenização por isso. Lembro que Chitãozinho e Xororó fizeram um show num estádio, naqueles tempos e, ao olharem para a plateia, milhões de pessoas, um disse ao outro: “Caramba, todo mundo com o cabelo igual da gente”.Sim, era impossível disfarçar as evidências. .
Na TVs e nas rádios o rock nacional surgia com toda a força, como todos os colegas e amigos, eu amava. Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, Lobão, Gang 90, Barão Vermelho, Legião Urbana e muito mais.As idas ao Rio nas férias me proporcionavam momentos ímpares debaixo daquela luz estreboscópica das famosas danceterias, em que pulávamos sem parar, num estilo chamado New Wave, celebrando, mesmo que inconscientemente, esses novos tempos que se abriam.
Uma geração atrás da nossa, anos atrás, desafiando o Estado Autoritário, experimentava as novas tendências comportamentais vindas do exterior, viviam a contracultura, o amor livre, lutando contra tudo que ate então era estabelecido. Valores, instituições e tabus. Esse parecia ser o nosso caminho natural para o futuro. Minha meta era ser como a Sheila, uma moça de longos cabelos lisos, que aparecia vez por outra na vila da minha avó.Mais velha que eu, pilotava uma moto, namorara sem compromisso, fazia da praia a sua casa e estudava engenharia florestal na faculdade. Isso para mim era o significado de liberdade.
Mas não foi isso que aconteceu. Em 1983, uma epidemia misteriosa, que a princípio recebeu o infame nome de peste gay, visto que a maior parte das sua vítimas era homossexual, chegou ao Brasil . Altamente letal, sem nenhuma perspectiva naquele momento de um remédio que a curasse, era uma sentença de morte. A imprensa em nada ajudava .Lembro de uma matéria feita na rua, onde um cidadão comum , ao ser perguntado se sabia sobre a nova enfermidade, disse:”Pega os invertidos promíscuos né?E eles morrem. Só posso dizer que é um presente de D’us.” Um infectologista de renome, já falecido, vomitava na imprensa e em palestras seus preconceitos. Ele tinha espaço para isso. Numa palestra nos Hospitais da Clínica, ele falou com todas as letras, Homossexuais são pessoas sem condições psíquicas para viver, ou, como escreveu em um relatório: O homossexual, a bicha, o travesti, o invertido,fatalmente contrairão a doença.Jornais estampavam manchetes com “A Praga Gay”,
Tudo parecia longe de mim, até o meu professor amado de geografia ser o primeiro a se contaminar. Depois dele muitos outros. Amigos de meus pais a quem tinha como tios, profissionais da medicina, das artes, mortes em sequê ncia.É aqui que quero chegar. As primeiras vítimas da AIDS foram homossexuais, usuários de drogas injetáveis. Mais a frente, presidíários. Esses eram a escória. Nos hemofílicos, pegaram mais leve.Henfil, Betinho e Chico, creditavam ao azar.O estigma, principalmente da homossexualidade, era perpetuado.A palavra promiscuidade estava sempre associada a doença. E a nossa classe média, que nunca nos decepciona, era uma espécie de ponta de lança na disseminação do preconceito e ignorância. Enquanto eu estudava num colégio liberal, tivemos uma palestra e recebemos camisinhas de brinde, já minha irmã estava num colégio católico cuja orientação era não usar preservativo, as soluções oferecidas eram casar e ser fiel aos votos de casamento ou optar pela abstinência sexual.
Uma crônica não dá para falar sobre essa questão da moral e do bom costume, muito ligada a classe média e como ela é perpetuada. Mas como recordar é viver…Acho que não custa lembrar que quando do golpe de 64 a Tradição Família e Propriedade, apoiadora de primeira hora, era formada por quem? Quem integrava as Marchas Pela Família e Pela Liberdade? Empresários, donas de casa, o clero. Exemplo importante da força desses movimentos e da sua penetração nas classes sociais mais baixas nos idos de 73, está aí a música do Odair José, voltada para as massas. Ela foi feita antes da chegada da AIDS, mas por ela vemos como em certas situações a classe média dita a moral. Pare de Tomar a Pílula, foi proibida não apenas no Brasill como em toda a a América Latina. Motivo? Ela ia contra aos esforços da TFP, financiada pelos Estados Unidos, que distribuia píluulas para mulheres pobres e , até onde se sabe, promovia laqueaduras de trompa não consentidas em mulheres pobres que já tinham filhos e idade para procriar. Vamos acabar com a pobreza obrigando os pobres a não terem filhos. Essa era a ordem
Essa questão da moralidade .e dos bons costumes é cria da classe média.
Aqui conto uma historinha que mudou para sempre minha visão sobre as classes sociais no Brasil . Sou nascida numa família de classe média média,filha de funcionários publicos.. A moral que me circunda sempre foi a pequeno burguesa. Casamentos como uma resposta para a sociedade, não ter filho sem casar para não carregar a pecha de mãe solteira, o gay da família relegado ao silêncio (já ouvi pessoas falarem sem pudor: na minha família não existe esse tipo de gente) , a exigência por um comportamento de vida “adequado”.Apesar de ter estudado numa universidade de elite, com colegas abastados, nunca tinha conhecido alguém rico de verdade. Aquele que ostenta nome, um nome que todo mundo conhece, como um Gerdau por exemplo, o que tá no topo, esse outro Brasil. Foi assim que fiquei amiga de uma pessoa que chamarei de Ana. Não sei porque ficamos amigas, até porque eles são muito fechados entre eles, mas nos gostávamos e lá foi Céu atravessar essa fronteira. Era início da década de noventa e nos frequentávamos, chegando a viajar juntas (um carro com o motorista e atrás de nós os seguranças).Sua casa era cinematográfica, quadra de tênis, piscina que era uma jóia do design, obras de arte originais e um imóvel tão grande que a família se quisesse não se encontrava pela residência .Havia um sistema de interfone para se comunicarem entre si e com os funcionários da casa, todos vestidos com rigor, não havia uma gola fora do lugar.Um irmão, visivelmente gay, apareceu de surpresa no quarto dela. Conversaram bastante e, quando ele saiu, ela me falou naturalmente ;”Minha mãe tá muito feliz, meu irmão está namorando o astrólogo dela, que é uma pessoa bacana, que conhecemos direito”.E o assunto morreu. Hoje não seria estranho, mas naquela época, me soou muito esquisito. Meus amigos gays lutavam para sair do armário e a aceitação da família era o grande empecilho. Enquanto para ela era um assunto corriqueiro, discutido em família. Dei esse exemplo, só para dizer que a “aristocracia” não é pautada por nossa moral burguesa. Eles estão acima, afinal, não devem satisfações a ninguém
Mas voltando aos anos 80, desses novos talentos do rock nacional, um tem lugar cativo na galeria dos meus afetos. Ariano, solar, considerado difícil por muitos, Cazuza foi mais que um riquinho mimado. Vi dia desses uma entrevista dele com a Marília Gabriela , já magro em virtude da doença , aos 31 anos. Quando ele fala da injustiça social do Brasil, de acharmos um meio termo entre o comunismo e o capitalismo, vi a Céu garota ali. Sua fala é carregada de ingenuidade, mas a esperança pulsa, latente. Escola pra todos, comida, com isso o Brasil caminha.
Seu lado gozador e debochado me pegou de surpresa pouco tempo atrás em relação a dubiedade de suas letras. EmExagerado, no verso “Por você eu largo tudo, carreira , dinheiro, canudo”. Eu imaginei, por quase cinco décadas que o eu lírico se referia a carreira (trabalho) , dinheiro (salário), canudo (diploma).Mas o Leoni, mais um dos gigantes do rock nacional, autor da música, que foi letrada pelo enfant terrible, me chamou para a real : Carreira, de cocaína, dinheiro, para usar para aspirar o pó e canudo, nome que se dá a qualquer objeto que tenha como finalidade aspirar a droga. Até hoje, como um erê, esse menino me prega peças.
Já na carreira solo, fora do Barão Vermelho, dedicou-se a fazer músicas em que muitas são a radiografia do Brasil. A Abertura de Vale Tudo, novela do recém falecido Gilberto Braga, a música “Brasil” é o retrato do país. E sim, um dia escreverei sobre ela, novela que considero a maior da teledramaturgia braseira.
Cazuza era autêntico e imprevisível.. Carrega o posto de ser a primeira pessoa pública a se abrir sobre a doença. Ele estava ciente do que era ser portador de HIV, uma doença associada diretamente a sexualidade, nesse país:”Eu acho que a AIDS cai como uma luva, um modelinho perfeito da direita e da Igreja Católica , assim como uma talleurzinho, entendeu?Nunca estiveram tão elegantes.E deselegantes principalmente” Falou e pagou caro por isso, Disposto a expôr a sua condição , na tentativa de aliviar o peso do estigma da AIDS, tempo que ninguém ousava assumir ser soropositivo,e diante de uma imprensa que demonizava a doença, Cazuza recebeu a Revista Veja. De coração aberto. Resultado? Aquela capa de triste memória em que ele, muito magro por conta da enfermidade, tem sua foto circundada por letras garrafais:UMA VÍTIMA DA AIDS AGONIZAEM PRAÇA PUBLICA. Segundo sua mãe, Lucinha Araújo, ao ver a revista comprada na banca de jornal, eles estavam em Petrópolis, Cazuza passou mal e foi internado na clínica São Vicente. Mais uma vez falo sobre a nossa amada classe média: Tudo que se relaciona a relações de pessoas, no campo das morais e costumes,está lá..
Em quatro décadas muito se avançou em relação a AIDS. Graças aos esforços de profissionais de saúde, de cientistas, de determinados políticos fazendo com que o coquetel antiviral chegue a todos (e aqui destaco Serrra e Temporão), da pressão da sociedade civil, nenhum portador do vírus HIV morre de AIDS caso se cuide.Hoje é considerada uma doença crônica. O Brasil é referência no tratamento da AIDS.
Não sejamos ingênuos porém, que esse processo de desumanização observado junto aos portadores de HIV de décadas atrás, nos dias de hoje não ganhará força novamente por conta dessa tsunami conservadora que nos atinge. Enquanto escrevo, acabei de visualizar uma matéria sobre o Bolsonaro, dele revogando uma medalha que seria dada hoje a pesquisadora Adele Benzaken.Em janeiro de 2019, ela foi demitida do seu cargo no Ministério da Saúde.Seu pecado:escrever uma cartilha cujo título é:”Homens Trans:vamos falar sobre prevenção de infecções sexualmente transmissíveis”.Enquanto ele mesmo ontem se automedalhou com uma comenda de mérito científico. Faz sentido. Seu negacionismo ceifou mais de 600000 vidas, ao passo que a AIDS, em 40 anos np Brasil, levou 349784 indivíduos.
Desde o início o presidente deixou claro que o custo de um soropositivo para o Estado é muito grande Pegando carona nessa frase infeliz, digo que custo alto é ter que aturar esse senhor e seus príncipes regentes todo santo dia. Sendo Cazuza pessoa melhor do que eu, só deixo um fragmento de sua canção para esse nefasto:”Vamos pedir piedade, Senhor piedade, para essa gente careta e covarde”.
Com pipoca e dendê
Muita gente ele curou
Se seu corpo está ferido
E não pode mais suportar
Peça proteção a ele
Ele vai te ajudar
É obaluaê, é obaluaê
É atotô, é obaluaê é obaluaê
(Marthinho da Vila)
Não, ela não deve lembrar de mim. Mas eu tenho-a muito viva na memória. Devíamos ter uns 5 anos, dividíamos a mesma turma no jardim de infância. Seu nome era Lara. Lembro que a mantínhamos a parte nas brincadeiras do parquinho da escola, em que subíamos no trepa trepa e brincávamos de heroínas dos enlatados que passavam na TV. Mulher Maravilha, Poderosa Isis e uma brigalhada se formava entre as meninas, porque todas queriam ser a personagem da Farrah Fawcett nas Panteras, que com nosso parco conhecimento de mundo de cinco anos de idade era, para nós, a mulher mais bonita do planeta. Lara ficava sentada num banquinho, nos olhando brincar. Não queríamos aproximação, sobretudo que se encostasse em nós e jamais, em hipótese alguma , permitíamos que pegasse nos nossos objetos. Magrinha, cabelos crespos trançados, Lara era cheia de feridas, algumas abertas, outras cicatrizando. Entre as histórias contadas pelas crianças, não sei se procede ou não, é que alguém viu Lara levantando as tranças e notou que seu couro cabeludo também era cheio de feridas. Hoje sei que era portadora de alguma doença séria epidérmica. Só que estamos falando de um tempo que não havia a menor preocupação com inclusão. Nenhum dos adultos nos falava nada, para nós era apenas uma menina perebenta da qual queríamos distância. Ela não participava das brincadeiras, porque não deixávamos, ela pouco interagia na sala de aula, ficava sentada numa carteira no fundo. Lara era pária. Sequer lembro de sua voz. Mas de uma coisa eu tinha uma secreta e jamais admitida inveja dessa menina Enquanto eu sofria com minhas pesadas botas ortopédicas, ela usava um sapatinho boneca, de verniz, vermelho. Evitava olhar as suas feridas e cobiçava seus sapatos. Ninguém nunca nos esclareceu o porque daquelas chagas, ninguém nunca veio nos pedir que a incluíssemos nas brincadeiras. Muitas vezes ela caminhava na nossa direção, enquanto fazíamos aquela rodinha formada por meninas e nossa crueldade infantil nos levava a levantar e sair correndo em bando de perto dela. No ano seguinte Lara não estava mais lá. No ano seguinte eu mesma mal estava lá.
Sempre fui magrela, com as pernas compridas, não a toa meu pai me chama até hoje de Tuiuiu. Amava brincadeiras ao ar livre, pique bandeirinha, jogar queimado, bicicleta, subir em árvores e comer jabuticaba do pé. Só que de um dia para o outro as pernas começaram a doer, uma dor que chegava ao limite do insuportável. Logo depois essa dor espraiou-se para os pulsos e para cada junta das articulações. Febre altíssima, dores de garganta inenarráveis, os adultos mandavam eu abrir a boca e era só placa de pus. Engolir era difícil. Levantar da cama quase impossível, Não demorou muito e veio o diagnóstico: febre reumática. Remédio tinha. Benzetacil. Inicialmente todo dia, depois dia sim e dia não. Não vou me deter no que era pra uma criança de seis anos lidar com dor e com o sofrimento indescritível do líquido da seringa entrando na carne. Foi um período difícil, porque minha mãe já tinha passado dos quarenta e estava numa gravidez de risco , além de mim mais dois irmãos, sendo que Arthur, o mais velho, era um bárbaro. Grande frequentador de pronto socorro por suas artes. Meus avós que sempre seguram todas estavam morando no interior do Rio. A solução foi me deixar sob a responsabilidade da maravilhosa tia Ermelinda, única irmã viva da vovó hoje, exímia cozinheira e de uma cultura ímpar, odeia o Bozo mais que os nazistas, da tia Elza e do meu bisavô. Lá que comecei a ler. Quando voltei para a escola, sabia ler melhor que todo mundo, as manchetes do Jornal do Brasil, que eu lia devagar juntando as letras para eles, fez milagres. Durante anos, inclusive início da vida adulta, a Benzetacil foi minha companheira. Hoje agradeço ter nascido num tempo que ela já havia sido descoberta. Não fossem suas picadas dolorosas eu não estaria aqui hoje.
Aos 21 anos, já livre da febre reumática mas alerta as suas sequelas, como ecocardiograma anual, tive minha primeira grande depressão. Tinha um namorado bonito, muitos amigos, estudava numa universidade de elite, era querida pelos professores da faculdade, tinha pais presentes, materialmente nada me faltava. Então quando caí prostrada por dias e dias, sem levantar para nada, faltando aulas e com meu pai me forçando a comer me dando comida na boca, foi um prato cheio para os ignorantes. Cheguei a ouvir de uma pseudo amiga que se tivesse uma trouxa de roupa para lavar, não ficaria nessa palhaçada. Entre outras coisas me surgiu uma urticária nervosa, que carrego comigo até hoje. Quando não vejo saída para soluções da vida, ou quando tenho aborrecimentos graves, meu corpo enche de vergões que se assemelham a herpes zoster. Coçam, doem e tem um único antialérgico certo para sanar.
Foi assim, depois de ir em psiquiatras, psicólogos, tomar medicamentos, que meu pai, sem me dizer exatamente do que se tratava, me disse que me levaria em um lugar diferente. Um dia, daqueles que eu não saía da cama, me deu um ultimato. Ou vai comigo agora e procura de algum jeito sua melhora, ou fica mergulhada nesse lodo. Botei um moletom ordinário, fiz um rabo de cavalo, entrei no carro sem ter ideia de para onde ia. Sei que fomos para uma parte da cidade que não conhecia, local humilde, de gente simples. Papai estacionou o carro, me deu a mão e fez aquilo que sempre faz ao me ver frágil. Olhou nos meus olhos e disse: “Confia em mim?”. Sim, confio .Com isso pôs-se a me dar instruções, de que eu deveria ficar calada, só falar quando me perguntassem e sobretudo respeitar o ambiente.
Entramos. Era uma roda de Exus. Uma estrangeira, que não vou falar a nacionalidade para não expô-la, apenas digo que era do grupo de trabalho do meu pai, estava vestida como uma cigana, com uma roupa colorida , muitos penduricalhos, gargalhando com a alma, segurando nas mãos uma garrafa de caninha da Roça que tomava aos golões. . Fiquei petrificada. O curioso foi que, sem que eu sequer me movesse, as entidades foram se aproximando de mim e me saudando. O malandro Zé Pilintra, com seu gingado e seu chapéu, Maria Padilha, lindíssima trabalhada no vermelho, todos vieram falar comigo. E todos , sem que isso fosse combinado, disseram a mesma coisa “Moça bonita, tua tristeza é do Velho, você precisa cuidar dele, porque está se sentindo abandonado por você, logo ele que sempre esteve ao seu lado”. Foi dado ao meu pai um papel, por uma pessoa que estava sóbria, que lá estava apenas cuidando das entidades e quando vi , eu estava gargalhando , completamente a vontade e sorrindo, coisa que não fazia há tempos. Terminou a roda, houve o ritual para as entidades cantarem para subir (e só ali entendi a expressão) e as pessoas voltaram a ser elas mesmas. Sem os paramentos fui reconhecendo-os, Colegas de trabalho do papai, de médicos a guardas da portaria. A Cigana dos Sete Búzios, que comandava tudo e a única que não falou comigo, depois de sorver um litro de cachaça, voltou a ser a estrangeira de sempre, se despediu de todos sobriamente, trocou uma idéia em particular com o meu pai que acredito eu esteja ligada aos remédios alopatas que eu estava tomando, mudou de roupa e em seguida estava na direção do seu carro, dirigindo normalmente.
Voltamos para casa em silêncio. Só sei que no dia seguinte levantei cedo, coloquei um vestido larguinho e florido, botei meu material de estudo numa bolsa e fui tomar café no jardim com meu pai. Na vitrola botei Clube de Esquina e talvez esse disco me marque tanto porque representa o dia que resolvi voltar a viver. Meu pai não escondia sua alegria, pegou nas minhas mãos, falou coisas que costuma falar para louvar a vida a sua maneira e me ofereceu uma carona pra faculdade. Avessa a religiões que sou, tenho pavor de compromisso e custo a acreditar em D’us, não me tornei da umbanda ou do candomblé. Mas passei a querer entender aquilo um pouco melhor, através de artigos de pessoas sérias e do livro Orixás do Pierre Verger. Toda visita anual a Bahia para ver minha mãe incluia um jogo de búzios. E todos, todos, todos que eu consultei, foram unânimes em falar. Filha de Omolu e de Iansã .Sobre Iansã escreverei um dia, mas é para Omolu Obaluaê esse texto.
Vamos a ele. É bela e triste a história desse Orixá. Muitas são as lendas que falam sobre o seu nascimento e sua história. A mais recorrente é que foi abandonado por Nanã por ter nascido cheio de chagas, em um cesto no mar. Acabou sendo criado por Yemanja. Cresceu e tornou-se feiticeiro, guerreiro e caçador. Um dia “Chegando de viagem à aldeia onde nascera, Obaluaê viu que estava acontecendo uma festa com a presença de todos os orixás. Devido a sua medonha aparência, ficou espreitando o que ocorria pelas frestas do terreiro. Ogum, ao perceber sua angústia, cobriu-o com uma roupa de palha , que ocultava a sua cabeça , convidou-o a entrar nos festejos. Apesar de envergonhado, ninguém se aproximava dele. Iansã se compadeceu e esperou que ele estivesse no meio do barracão. Soprou suas roupas de mariô que cobriam suas pestilências. Nesse momento de encanto e ventania, as feridas de Obaluaê pularam para o alto, transformadas numa chuva de pipocas, que se espalharam brancas pelo barracão. Obaluaê transformou-se num jovem encantador e brilhante.” Essa é mais ou menos a narração de Teo, neto da coreógrafa Deborah Colker, portador de uma doença genética rara, epidermólise bolhosa, que abre o fabuloso e dilacerante espetáculo de dança CURA. Deborah nos chama para essa jornada, inspirada na luta que trava com a doença do neto, e a partir daí me veio a ideia de escrever esse texto.
Como todos os deuses de matriz africana, é um deus ambivalente. Se por um lado é temido, já que nada é escondido desse Orixá, ser responsável pela morte , já que rege a terra e é dela que tudo nasce e tem fim, é também protetor dos enfermos, principalmente dos doentes pobres. Por padecer de uma enfermidade, não quer ninguém passando por ela, daí sua associação com a cura. Tem o poder de causar uma epidemia, mas está em suas mãos a cura de todo mal. Sempre curvado, como quem sente intensa dor e sofrimentos, também é chamado de Velho.
Posso dizer, sem medo de errar, que a febre reumática me fez olha o outro de um jeito diferente. Doença não escolhe. Pobreza não escolhe. Já na primeira série primária sabia que o bullying era errado, muito antes de se começar a encará-lo como um grande problema a ser combatido. Tive também a sorte de ter a melhor professora do mundo, com quem não perdi contato, a tia Luiza, Com seus olhos azuis enormes, cabelo chanel escuro, era a nossa Branca de Neve. Foi uma das minhas maiores incentivadoras a seguir a literatura, por suas mãos descobri a biblioteca da escola, onde podia pegar livros e depois devolvê-los. Meiga, carinhosa, mas bastava alguém rir do “defeito” do outro, para o tempo fechar, Firme, nos lembrava que apelidar um colega de Dumbo, imitar algum que tinha gagueira, era feio, nos tornava pessoas piores. Não a toa é anti-bozo até a raiz do cabelo. Manteve sua coerência,
Anos atrás, já livre da febre reumática, fui, após uma sequência de 5 pneumonias, diagnosticada como portadora de artrite reumatoide. O pneumologista que constatou isso, foi muito honesto: ”Não tem cura, aprenda a conviver com ela”. Então eu fico atenta aos sinais. Quando me aborreço, quando tenho medo, a dor percorre meus ossos num ir e vir. Meus pés incham, Ficam vermelhos. A vermelhidão é quente e coça. O jeito é tomar os medicamentos. Com a situação do Brasil e impossibilitada da minha corrida diária, que ajudava as crises a ficarem mais esparsas, andei sofrendo. Da última vez tomei um remédio que é uma bomba e a orientação médica foi: Vamos ver se em três dias alivia, caso contrário teremos que apelar para a cloroquina. Esse remédio que o Bozo louva, das vezes que tomei, tive um acompanhamento ferrenho. Por ter tido descolamento de retina anos atrás e a febre reumática, que pode trazer sequelas ao coração, tomei fazendo exame de fundo de olho e ecocardiogramas. O que chega a ser engraçado é que minha preocupação maior não era a medicação e sim o fato de morrer previamente de vergonha ao pensar em ter que ir no balcão da farmácia, pedi-lo e ser confundida com negacionista .Dói muito saber que as pessoas tem tomado indiscriminadamente uma medicação cheia de efeitos colaterais como se fosse M&M. A artrite já se mostra presente no meu corpo. Meu dedo médio da mão direita está completamente torto, me impedindo de fazer aquele lindo gesto feito pelo Ministro da Saúde em NY. Mas não me abalo, uso a mão esquerda para tudo mesmo…Rá!
Antes que essa crônica vire uma paráfrase de O Pulso, dos Titãs, quero deixar algo registrado. Não sei se chegará a ela, o tempo nos separou. É um recado para minha coleguinha de sala. Lara, quero me desculpar com você. Imagino como devia ser insuportável você ir para a escola e sofrer aquilo tudo. Penso também na falta de tato dos adultos. Nunca nos reprenderam, nunca nos explicaram que o que você tinha não era contagioso, que fazia parte de uma condição, mas que você era uma criança cheia de sonhos e fantasias como todos nós. . Não pude deixar de pensar em você ao assistir o espetáculo Cura da Deborah Colker. Imagino o sofrimento que você passou, as dores que enfrentava, a sua solidão de criança que hoje me faz chorar. Quero te dizer que tento acertar com minha filha, aquilo que erraram comigo. Quero te dizer que não me desculpo nem perdoo, porque eu podia ter te defendido, como fiz depois ao longo da minha história com pessoas que julgava injustiçadas. E por fim, quero te falar que sempre que vejo um sapatinho boneca vermelho envernizado, não é da Dorothy do Mágico de Oz que lembro. É da menina de tranças sentada no cantinho da sala. Que Obaluaê nos proteja.
Texto escrito a quatro mãos, uma brasileira fala da Argentina, um argentino fala do Brasil, o encontro de suas vozes: Família Puccio, Família Bolsonaro, Clãs
“Toda as Famílias Felizes se Parecem, Mas Cada uma é Infeliz a Sua Maneira”
(TOLSTOI)
Anos atrás fui convidada para uma reunião de estudantes e professores latino-americanos de língua hispânica da UFBA. Entre colombianos, argentinos, mexicanos, chilenos, peruanos, figurava eu lá, como a única brasileira. Em meio a doses generosas de tequila, eu tentava timidamente acompanhar as conversas. A cada momento um deles botava uma música para tocar e, independente do ritmo, e do país, todos acompanhavam cantando e fazendo coreografias. Foi nessa festa que tomei ciência que o nosso Sidney Magal era apenas um cover do “cigano” argentino Sandro, que fazia sucesso estrondoso por toda Latino América e o portador dessa notícia, um colombiano, ainda arrematou: “Ele morreu repentinamente, de enfarto; minha mãe chorou muito.” Para a coisa ficar melhor, soube que as letras de Sandro eram traduzidas para Magal pelo Mago Paulo Coelho. Muita informação para assimilar, mais uma dose de tequila, por favor.
Lá pelas tantas alguém fala que um amigo boliviano ligara dizendo que não iria. E começaram a discorrer sobre a namorada do sujeito. A teoria é que ela, aluna dele da pós, mantinha-o na rédea visando o futuro acadêmico. Inclusive rolaram fofocas robustas dela tentando derrubá-lo para arrumar alguém um plano acima dele, na universidade. Uma colombiana gargalhou e resumiu: “Síndrome de Malinche.” Todos se escangalharam de rir. Menos eu. Malinche era uma doença? Uma gíria? Até que um argentino veio em meu socorro e me explicou que Malinche era uma índia poliglota, que se aliou a Cortez, tradutora especial da equipe espanhola, e quem desenhou para o colonizador a geopolítica de diversos grupos que ocupavam o México, introduzindo-o entre os inimigos e aliados dos astecas. Sua ajuda foi fundamental para Cortez negociar alianças e travar guerras que lhe permitiram ter domínio sobre o Planalto Mexicano. Ou seja, Malinche é a traidora de seu próprio povo, a quem ajudou a subjugar.
Saí da festa sabendo que Magal era cover de um fulano aí que todo mundo, menos nós, conhecíamos, que Malinche era sinônimo de mulher “chave de cadeia”, que não tenho competência pra beber tequila e que os latino-americanos de língua hispânica possuem uma troca cultural muito superior à nossa. Posso arriscar que seja a barreira do idioma, mas acredito que por sermos tão grandes e tão diversos, acabamos nos fechando para o que acontece aqui ao lado.
Novamente senti esse isolamento ao assistir o filme El Clan, de Pablo Trapero. Assistir a esse filme me fez puxar da memória uma experiência pessoal. Nasci nos anos setenta e até os 14 anos de idade (quando em 1985 pela primeira vez, desde o golpe militar, assumiu mesmo que não pelo voto direto, um governo civil) vivi num Estado de Exceção com todos os agravantes que isso implica. A censura, o conteúdo dos livros didáticos que eram utilizados nas escolas, em especial os livros de história, que glorificavam o governo militar e se calavam sobre as revoltas populares que permearam a história brasileira, a impossibilidade de discutir com desconhecidos o rumo da política, nada que era conversado dentro de casa poderia ser falado fora do âmbito familiar. Essa era a ordem. No entanto, na infância, eu nada sabia sobre as consequências que descuidos do gênero poderiam gerar. Isso só foi a mim explicitado quando meus pais se aproximaram de vizinhos que tinham acabado de chegar da Argentina, um casal com duas filhas da minha faixa etária. Por mais que eu perguntasse, as meninas nunca me respondiam o porquê de terem deixado amigos e parentes em sua terra natal. Certa feita meu pai me flagrou nesse interrogatório, movido pela minha curiosidade infantil, me chamou num lugar reservado e falou: “Nunca mais pergunte isso. E nunca fale deles pra ninguém. Eles saíram da Argentina porque são perseguidos políticos, se voltarem pra lá morrem.” Nesse momento fui apresentada a dura realidade do governo ditatorial. Tive consciência de que a morte era uma decisão do Estado, para aqueles que discordavam da política vigente.
Pablo Trapero, diretor do filme, é meu contemporâneo. Vivíamos em países diferentes, temos histórias de vida que em nada se assemelham, mas ambos crescemos dentro do regime ditatorial e fomos testemunhas da transição para a democracia na adolescência. Trapero tinha 13 anos de idade quando a história dos Puccio foi desvendada. Acompanhou tudo através de manchetes de jornais e revistas. Foi testemunha ocular do espanto da sociedade argentina diante desse triste episódio. Obviamente, quando se propôs a fazer o filme, fez uma pesquisa profunda sobre a história dos Puccio. Estranhou que, até então, antes do lançamento do filme (que alcançou o êxito de ser um dos filmes mais vistos pela Argentina), não havia muita informação, nem dos jornais da época, nem livros, nem textos de maior densidade. Teve que recorrer a entrevistas com juízes, advogados, vizinhos, treinadores de Alejandro Puccio do rugby; investigação necessária para a montagem do roteiro, traçar o perfil de cada membro da família, e, sobretudo, para a construção dos diálogos ente os seus integrantes.
O filme, El Clan, apesar de ser ficcional, como dito anteriormente, parte de uma história real. História esta que assombrou o noticiário policial da década de 80. Achava que só eu ignorava esse acontecimento, mas vi brasileiros de todas as idades que não se lembravam desse absurdo. Vamos lá: A família Puccio era uma família respeitada, querida, que vivia num casarão no bairro nobre de San Isidro, na zona norte da região metropolitana Grande Buenos Aires, já à época uma área requintada e exclusiva. Formada pelo pai, Arquímedes, um pacato contador e ex-diplomata aposentado, que mantinha uma pequena rotisseria de bairro e cuja única excentricidade para os vizinhos era varrer a porta de casa várias vezes ao dia. A mãe, Epifanía, professora, preocupada com a organização da vida familiar, e por cinco filhos de diferentes idades: Alejandro, Adriana, Guillermo, Silvia e Daniel (Maguila). O primogênito, Alejandro, era um atleta famoso, jogador de rugby do time Los Pumas, dava autógrafos e estampava capas de revistas esportivas. As meninas eram bonitas, estudavam em boas escolas, tinham bons relacionamentos. Tratava-se de uma típica família de classe média, como tantas que existem no ambiente urbano. Arquimedes e Epifanía passavam para quem os conhecia a imagem de pais preocupados com a criação dos filhos, para o desenvolvimento de cidadãos que se encaixarão perfeitamente na sociedade.
Corria o ano de 1985. O país ainda se recuperava da última e mais traumática ditadura militar (1976-1983) responsável por mais de 30 mil mortos e desaparecidos. Neste ano vem a público uma história que chocou todo o país, que mais parecia um enredo de filme de terror. O próprio Trapero afirmou, enquanto realizava seu longa-metragem relatou “ser um desafio parecer verossímil uma história que parece inventada”. O que realmente horrorizou a população argentina não foi propriamente o sequestro dessas pessoas, mas o perfil dos sequestradores, que não apresentavam nenhum desvio social. Acusados de sequestro, seguidos de fria execução, mesmo após o pagamento do resgate. A singularidade dessa situação advém do fato de usarem a própria residência como cativeiro, atuando livremente nessa atividade delituosa por três anos e, para tornar tudo mais espantoso, das ações dos Puccio contarem com a participação dos filhos. Alejandro era quem fornecia informações fundamentais dos possíveis sequestrados, oriundos das classes mais abastadas e com quem mantinha estreito contato, além de servir de isca no momento do rapto. Seu irmão Daniel (Maguila) que estava na Nova Zelândia, retornou para a Argentina a pedido do pai para participar do último sequestro e o pai, Arquímedes Puccio era o mentor dessas atrocidades. Quanto ao resto da família, eram de uma cumplicidade passiva. Impossível que com as vítimas presas em cômodos da própria residência, no banheiro ou no sótão, eles ignorassem a existência de um corpo estranho. O que leva a uma sobreposição estranha e incômoda entre a violência mais repulsiva e um trivial cotidiano doméstico.Quatro pessoas sequestradas e três executadas após pagarem o resgate.
Quando desmascarados, foi inevitável que houvesse intensa comoção nacional. Não houve jornal, revista ou programa no qual não se falasse deles. Houve até quem os defendesse, acreditando que a família estava sendo vítima de uma conspiração. Como um pai que ajudava nas lições escolares da filha mais nova, cumprimentava os vizinhos, poderia ser esse monstro? Como Alejandro, jogador do mais famoso time de rugby do país e com projeção internacional, poderia entregar pessoas conhecidas, integrantes de seu círculo social? Os argentinos tomaram consciência que o inimigo não vinha de fora, não era um outsider: pelo contrário, podia estar na forma de um simples vizinho e sua família. Esse espanto da sociedade corrobora com o pensamento de Primo Levi: “A maioria dos guardiões dos campos de concentração não eram verdugos natos, não eram monstros: eram homens normais.”
Não há como explicar as ações dos Puccio sem contextualizar o momento histórico em que estavam inseridos. Ente os muitos golpes de Estado vividos pela Argentina, talvez o que tenha sido mais contundente foi o de 1974. O governo de “Isabelita” Perón foi derrubado e instaurou-se o governo militar que mais deixou marcas no corpo social e na memória coletiva. Esse regime organizou um forte aparato repressivo, que tinha como principais métodos o sequestro, o aprisionamento de pessoas em centros de detenção clandestinos, que serviam como local de tortura e assassinato. Justificava-se o golpe com a desculpa de eliminar a corrupção e dar fim a violência que ameaçava as instituições. A ideia central era a eliminação do que denominavam inimigo ideológico interno- chamados de subversivos. Na conjuntura anterior ao golpe, ações repressivas já vinham sendo praticadas por facções ligadas ao governo peronista e ao exército – como é o caso dos grupos Aliança Anticomunista Argentina (Triplo A) e o Comando de Libertadores da América, entre outros. Civis foram acionados para participar da repressão, entre eles funcionários públicos, delinquentes comuns, participantes das organizações de extrema direita. É nesse ambiente que encontramos Arquímedes Puccio. Ele sempre esteve ao lado do poder de ocasião, se relacionando com o alto escalão político. Por relações familiares, em 1947 ingressou no Ministério das Relações Exteriores, sendo inclusive condecorado como o mais jovem diplomata na Argentina, permanecendo nesse cargo até 1963. Vale destacar que, ao longo de seus vários anos na diplomacia, o país teve alguns golpes, contragolpes e ditaduras. Participou do serviço de repressão antes mesmo do golpe militar. E perpetuou essa conduta no que poderíamos chamar de Estado Mayor da Argentina. Além de membro do Serviço de Informações da Aeronáutica, fez parte da Tríplice A e da SIDE- Serviço de Inteligência Do Estado .Se ele foi uma pessoa sinistra na história policial, também o foi na história política. Sequestrar, torturar e executar não constituíam novidade para ele.
O golpe de 1976, que resultou na ditadura mais sanguinária da América do Sul, foi o resultado de um plano deliberado e consciente. A intenção era promover modificações profundas das estruturas sociais, políticas, econômicas baseadas na repressão violenta. Quando o autor do delito é o próprio Estado, ocorre um dano duas vezes ao cidadão. O primeiro quando esse é vítima das práticas coercitivas perpetradas contra ele. O segundo, quando não tem possibilidade de defender-se por meio das instituições estatais. No projeto orquestrado pelas forças armadas na Argentina, o terrorismo de estado encontrou seu lugar na caça às pessoas a quem chamavam de “inimigos”. O desaparecimento de pessoas e os centros de detenção clandestinos tornaram-se uma modalidade comum. Andrés Zarankin afirma:
Los Centros Clandestinos de Detención (CCD’s); utilizados por la dictadura militar en Argentina entre 1976 y 1983, para destruir la movilidad, aplicación de tormentos, falta de alimentos, condiciones climáticas extremas (frío o calor), prohibición de comunicación con otras personas, substitución del nombre por un número, entre otras, son dispositivos que tienen, principalmente, como foco de acción directa cuerpo y mente del detenido.
Os militares do poder consideravam o indivíduo tomado como subversivo como irredimível ideologicamente. Videla declarou em uma entrevista sobre as vítimas da repressão: “Yo quiero significar que la ciudadanía argentina no es víctima de la represión. La represión es contra una minoría a quien no consideramos argentina”. Isso justificava a morte sem apelação, sentenciada e executada além dos limites da lei. A suspensão dos direitos individuais transformava os supostos subversivos em corpos impunemente extermináveis.
Apesar de todas as medidas tomadas pelas Forças Armadas no período ditatorial, nenhum dos supostos objetivos com que eles tomaram o poder logrou êxito, exceto o da eliminação do que chamavam “subversivos”. Uma extensiva política econômica liberal sucateou as indústrias nacionais e o poder militar foi chegando ao seu ocaso. O domínio militar estava fragmentado, devido à divisão de poder entre as três forças. A existência de um Estado terrorista e clandestino foi desgastando as instituições e a própria organização estatal.
Sua última cartada, com o intuito de unir as forças militares e reacender o orgulho nacional entre os argentinos por meio de um objetivo comum foi a declaração de guerra à Grã-Bretanha na tentativa de recuperação das Ilhas Malvinas, sob ordens do ditador Leopoldo Fortunato Galtieri, em 1982. Jovens argentinos, a maioria dos quais eram civis cumprindo serviço militar obrigatório na época, foram mandados, sem nenhum preparo, para lutar contra o experiente Exército inglês. Saldo final: Morreram 649 argentinos no combate, que não durou nem dois meses e calcula-se que cerca de 400 se suicidaram após o conflito. O frio, a fome, os maus tratos impingidos aos jovens pelos líderes militares; essa guerra ainda é uma ferida aberta na história da Argentina contemporânea. O ex-combatente Dario Gleriano, cujo relato está numa denúncia coletiva apresentada pelo prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel, à Suprema Corte, objetivando que as humilhações impostas durante a guerra de 74 dias sejam declaradas crimes contra a humanidade, acredita que a repressão exercida pelos militares contra os opositores políticos no continente, funcionou da mesma forma com os recrutas durante a guerra. Se no continente as pessoas desapareciam, nas Malvinas as pessoas eram presas na terra. A máquina repressora funcionou da mesma forma na Guerra contra a Grã-Bretanha.
É certo que o fracasso dessa campanha está diretamente ligado à volta da democracia. No governo castrense, enquanto uns, por medo e terror, não ousavam levantar a voz, outros encontraram nesse panorama uma oportunidade de fazer-se ouvir, destacando-se as organizações humanitárias e as Madres de Plaza de Mayo. Após a derrota das Malvinas, tornou-se para essas mulheres uma meta de vida a busca não só da localização dos corpos de seus filhos e familiares desaparecidos durante os anos da ditadura, mas ter ciência do que lhes aconteceu e em que condições. Fez-se necessário o estabelecimento de políticas que não permitiriam a repetição das ações repressivas. A prática política exigia um redimensionamento, assentado na ética e no comprometimento com os acordos básicos da sociedade.
Em 10 de dezembro de 1983 assume o presidente democrático eleito Raúl Afonsin. Sua promessa de governo baseava-se na volta da democracia, aliada a uma série de propostas de modernização do Estado e da sociedade. Convencendo grande parte da população argentina que a democracia era a solução, venceu as eleições nacionais. Sua herança, porém, foi uma grave crise econômica e de hegemonia do aparato repressivo da ditadura e dos desaparecidos. Citando Maquiavel, em O Príncipe, o poder também pode ser conquistado pelo crime, pela matança de cidadãos, pela traição e foi com atitudes criminosas que o Estado Militar Argentino conseguiu se consolidar, mantendo uma legião de criminosos que permaneceu, mesmo após a redemocratização de sua sociedade.
Arquímedes Puccio fez parte dessa legião clandestina e invisível. Assim como seus comparsas, Guillermo Fernández Laborda, a quem conhecia desde 1973, quando se formou na Escuela Superior de Conducción Política, o tenente coronel Rodolfo Victoriano Franco (que tinha a função de providenciar armas e monitorar a polícia através de infiltrados) e Roberto Oscar Díaz, o chofer do grupo. Todos, com exceção de Díaz, estavam envolvidos com o alto comando militar. Eles tomaram a iniciativa de privatizar a prática de sequestro em 1982, nos estertores da ditadura; não tendo nenhum tipo de ideologia incutida em seus atos, visaram apenas o aspecto mercadológico, utilizando o know-how que haviam adquirido durante a repressão e contando com a leniência de alguns importantes integrantes do governo militar. Continuaram dando seguimento aos seus delitos até 1985, quando, após uma mal sucedida tentativa de resgate do valor cobrado pelo sequestro de uma senhora da alta sociedade portenha, mantida por meses no sótão da casa da família, resultou numa eficaz ação da polícia, efetivando assim a prisão da família Puccio e de seus colaboradores.
Uma das coisas que mais chamou minha atenção nestes meus anos no Brasil é a percepção, ou falta dela, que a chamada classe média tem de si própria, ou mesmo do que significa pertencer a tal (tais) grupo social. Em se pretendendo recorrer a terminologia e sentido históricos, embora desatualizados, a classe média brasileira pode ser considerada isto. É claro que este fenômeno não é privilégio ou falta exclusiva do brasileiro, pois, ao longo do século XX, o(s) conceito(s) de classe foram ampliados, esticados, deturpados e perdidos em nome do valor do rótulo por cima e por fora de tensões clássicas de escalões e conceituações clássico-contemporâneas. Assim, neste torturado imenso canto do mundo que é a América Latina, classe, no sentido mais vulgar e rameiro e na boca suja de quem a levanta e agita como escudo e espada, é sinônimo de pertencimento; melhor dizendo, de não pertencimento do outro. “Ser” classe média é muitas coisas, mas, acima de tudo, representa um leque de não ser. Ser classe média é não ser aqueles pobres sem instrução, sem organização, sem acesso. É manjar dos paranauê do que realmente importa na estrutura de consumo que conta, a do entretenimento, do bom viver. É ter acesso a educação de qualidade, pois a boa e verdadeira é a que se obtém pagando nas escolas e colégios particulares e nas universidades públicas (o que requer uma análise à parte, mas não vamos nos afastar tanto do eixo agora).
Preciso aclarar que eu, como qualquer pessoa que tenha nascido e crescido na Buenos Aires das décadas de 1950-2000, morando em casa própria, mesmo que esta fosse um minúsculo apartamento em um semi-cortiço, com comida todo dia e sem a necessidade de pular ou abandonar o colégio para começar a trabalhar com 14 ou 15 anos, entre outras coisas, sou considerado parte da classe média argentina. Após vida, educação (felizmente, pública, sempre), experiências e desarraigo, em resumo, o que me fez apertar os olhos e ganhar uma visão mais apurada de algumas coisas e muitas pessoas, posso falar que me encontro bem mais preparado para falar dos “errores y horrores” de classe que açoitam a população (neste caso) brasileira.
Para início de conversa, e mesmo tentando pegar leve, pois a ignorância abunda globalmente, devo expressar o espanto que me produz ver o quão despreparada para a vida mundial e local a população brasileira é. Mesmo as bolhas, pois isto são, das classes médias urbanas. Burras. Brutas. E aqui viro o timão gradativamente para irmos encaminhando para onde eu pretendo chegar.
Estes cidadãos, os que têm o acesso, têm o dever tácito de não ser como os outros. Isto implica em aparecer, falar, soar, dos seus próprios jeitos, nunca como os mal vistos. Tudo na ignorância, diga-se de passagem, de quem não faz ideia do que está fazendo perante o mundo, mas mesmo assim indo e agindo, andando e cagando pela realidade. Junto à falta de noção de mundo, de sociedade, há uma diretriz que enverniza a flegma capenga da classe média. O suma cum laude ideológico (pois sim, tudo é ideologia) da cafonice maldosa: ser gente de bem. Gente de bem não se mistura com quem anda torto – sempre e exclusivamente em vagas e falaciosas definições de sachê de açúcar – e não faz a coisa errada. Existe uma aviltante inópia cognitiva, ou ética, ao tentar se esclarecer o que é certo; é claro, quando nos definimos para demarcar o outro e sem visão de nós mesmos, pouco importa o que somos.
As pessoas de bem, além do mais, o são porque elas assim o decidiram. Constituição nenhuma, nem qualquer legislação, define o que isto significa. Por comparação negativa, quem se considera gente de bem é quem sabe que não se encaixa em uma definição descritivo-punitiva de quem é “do mal”. Mas peraí que a melhor parte vai chegando. Para se considerar não pessoa do mal basta não ter sido pego e/ou punido. E só. Por que isto é essencial e conclusivo? Porque delimita e exclui; poupa quem não aparece visível e publicamente humilhado no fait accompli.
Assim, quem despreza uma pessoa não heterossexual ou heteronormativa, mesmo que seu ódio e desprezo sejam encarnados, colossais, nefastos e anti-humanitários, precisa apenas não sair espancando bichas, insultando sapatas ou esquartejando transexuais para que nada de errado haja com ele. Quem, na sua proverbial ignorância das religiões e dos fenômenos cultos e igrejas, na sua miopia histórica e social, estabelece que sua fé é a única e a boa, não peca ao considerar que as outras são crendices e fetiches, pois o falso laicismo do país o ampara. Quem branco se enxerga, sabe o que não é, mesmo que branco não seja e precise tornar-se malabarista dos tons e nomenclaturas para se acomodar na pureza que a branquitude espontaneamente outorga. Quem não anda no beco fumando maconha fuleira ou crack se exclui das populações usuárias de drogas e, principalmente, do público consumidor que sustenta o tráfico em larga escala. Quem casa e descasa legalmente e bem de vez em quando vê os filhos de um punhado de pais vivendo com a mãe que os fez e fecha o obturador para os próprios, nascidos e abortados de outras mulheres. Quem, enfim, se espanta com os sintomas da desigualdade, corre para sua sala e doa para uma associação não governamental de luta contra o câncer infantil ou, no ápice da bondade humana possível, junta não perecíveis para os pobres. Que detesta. E teme. E não é.
Toda família de bem luta batalhas inócuas para parecê-lo. Toda luta deste tipo é em vão para o conjunto da sociedade, é claro. No entanto, quando aparece uma família maior, por mérito ou corrupção assassina, a família brasileira de bem se espelha, quer se reconhecer e se molha na idealização introjetada do que a família-de-bem-mor projeta.
Pouco importa se o lugar na mídia é o de bufão de circo dos horrores, se o espaço social é inexistente ou se a matéria política é de negação e destruição. A alvorada traz um modelo que nos representa e para ele torcemos. De nada adianta a escassez de recurso humano, a inexistência de empatia, o discurso discriminatório e inepto: temos lá o que nos referenda. Aliás, a quanto mais se descasca e aparece, mostrando suas facetas podres, mais a nós se assemelha, apagando assim a necessidade de sublimar ou esconder o que nós somos.
Muito se poderia conectar e comparar entre a família-de-bem-mor brasileira hoje mal ocupando a presidência e em metástase nos poderes e instituições do Estado e uma família como os Puccio. As origens do fundo do anonimato social; os trejeitos brancos e cristãos; os perfis variados, porém sempre aceitos, dos seus integrantes. A aprendizagem de modos, intrigas e criminalidade do seu líder ao longo de uma vida institucional entre os estamentos e círculos castrenses, paramilitares, políticos e milicianos. O arrivismo social, político, institucional e pan-apartidário à força da história que as fez.
Uma grande, imensa, diferença é que, em um país como o Brasil, com ditadores e criminosos, criminosos e ditadores, anistiados, e ditadura apagada, pós-colonialismo rampante e uma população sem sequer contando com repertório lexical – e muito menos, conceitual –, as ramificações políticas e esquemáticas das mazelas malditas passam despercebidas, ou não enxergadas. Em um país cuja população ainda discute se houve um golpe levando a uma ditadura de 21 anos; melhor dizendo, parte dela, pois a maioria não tem a competência para discutir coisa política nenhuma; um golpe-em-democracia e a saturação de males ideológicos passam batidos. De que importa se os sequestros são da lei e o assassinato dos direitos? A mesa foi posta, em período democrático e sob o sol, para se servir e se utilizar de sofismas primitivos e racio-símios que deletassem a ética comportamental, a lógica científica e humanitária e a palavra constitucional.
De bravata em bravata, fanfarronice após tática intimidatória, a família Bolsopuccio emergiu do plasma pestilento do volume morto da politicagem local para o patamar presidenciável, lubrificada pela maioria do resto da cena política e saltos ornamentais discursivos da Grande-Mídia e aliados-lacaios em redes. Uma imprevista família criminosa agora no poder central para chamar de seu o país, brincando, em vez de sequestro e extorsão, de supressão e genocídio.
Céu Bauler –
Marcelo Andrés Nayar – Professor Nacional Superior pelo INSS Dr. Joaquín V. González, professor de inglês e espanhol. Nascido e criado em Buenos Aires, mudou-se para São Paulo em 2009. Lê, escreve e fala, e também escreve em gênero literário nas horas vagas das horas vagas.
Das minhas mais arraigadas lembranças, não sei precisar que idade eu tinha, duas estão incrustadas na minha memória. Uma é o meu quarto de criança. Havia uma porta de passagem do meu quarto para o dos meus pais. E lá ia eu, que sempre fui chata para dormir, deitar na minha caminha a contragosto. Numa casa cercada por árvores, era natural que os animais notívagos emitissem seus sons. Morcegos, corujas, grilos, sapos e sabe-se mais o que. Minha imaginação inventava milhares de coisas, mas eu segurava, até dormir. Mas aí o problema eram os pesadelos. Até hoje quando falo que algo é muito ruim, chamo de pesadelo infantil. Porque você não sabe delimitar o que é real do que é onírico, no pior sentido. Eu acabava acordando assustada, batendo loucamente na porta do quarto dos meus pais, ate que a abrissem e eu pudesse dormir com eles, onde me sentia segura Esse sentimento ruim, que me tomava por inteiro, tinha um nome: Medo. Foi assim que descobri a palavra. Minha mãe então teve longas conversas comigo, começou a deixar o abajur aceso e dizia que eu não podia deixar esse sentimento me tomar. Deve ter dado certo, porque odeio tanto essa sensação, com tanta força, que raramente fui acometida por ela. A outra lembrança é a do meu pai comigo na janela gradeada do quarto, eu com as pernas para fora e ele me mostrando as estrelas. Foi a primeira vez que ouvi a palavra signo. Ele me explicou que nasci sob o sol de Sagitário, um ser mitológico metade cavalo, metade gente. Como junguiano que é, me contou a história de Quíron. Filho de um deus e uma ninfa, o pai, o titã Chronos, se metamorfoseou em centauro e a ninfa acabou por ter um filho e pela sua forma, se envergonhou dele. Acabou por ser abandonado, mas foi educado por Apolo, o deus do sol, que passou a ensinar a ele poesia, música, ciência (e filosofia, eu não sabia o que era , estou aqui narrando do mesmo jeito que a história me foi contada). O fato é que Quíron cresceu e tornou-se um sábio, especialmente em medicina, transmitindo seus saberes a quem quisesse aprender. Por um acidente, foi flechado no flanco e sua ferida nunca cicatrizava. Ainda assim ele continuava a ensinar, mesmo sentindo muita dor. Segundo o que meu pai me contou, foi Quíron que ensinou a Asclépio , o deus da medicina, a cura para todas as doenças. E foi esse mesmo deus quem perguntou: Mas porque você que sabe a cura de tudo, não sara sua própria doença? Quíron respondeu que para sentir a dor do outro, é preciso que você tenha a própria dor. No fim, eu já triste com o centauro doente, quis saber o que aconteceu. E meu pai me respondeu: Zeus quis acabar com a dor dele e transformou-o numa constelação. A constelação de Sagitário. Quando você nasceu, era ela que pairava no céu, por isso que é seu signo. Daí eu tirei, mesmo sem saber nomificar, que para respeitar a dor do outro, é preciso que você sinta a dor. Só muito mais tarde fui entender que a palavra para isso é compaixão, do latim compassione, que é sentir com. E que não basta apenas sentir, é preciso de algum jeito aliviar o sofrimento de outrem.
Essa rememoração da garotinha que eu fui, bateu forte em mim. Mais de 40 anos se passaram, mas esse sentimento do qual sempre tentei me desvencilhar, pesa sobre a Terra. Deimos e Fobos são agora mais do que as luas do Planeta Marte. Gêmeos , nascidos da união de Ares e Afrodite, Fobos simboliza o terror e acompanha Ares, seu pai, o deus da guerra, para os campos de batalha. Sua função é injetar a covardia e o medo no coração dos inimigos, para que eles fujam. Deimos, que representa o pânico, acompanhava-os e sua missão era fazer as tropas abandonarem a formação e fugirem desordenadamente. Séculos se passaram, mas continuamos recorrendo aos gregos para tentar racionalizar aquilo que não damos conta. ”A emoção mais antiga e mais forte da humanidade e o tipo de pavor mais antigo e mais poderoso é o medo do desconhecido” .
Os analistas dizem que o mundo não atravessa uma crise desse porte, em dimensões planetárias, desde a Segunda Guerra Mundial. É com isso que nos deparamos. Nossa única certeza é que o mundo que conhecíamos não existe mais. O que vem daí, é uma incógnita. Estamos num momento de ruptura, esqueçam a vida que levávamos até março de 2020.
O que me exaspera é que estamos vivendo esse pavor universal no pior lugar para se estar no momento. É como se a história tivesse percorrido um movimento pendular e tivéssemos parado na Idade Moderna. A obra de Bosch, a Nau dos Loucos, exemplificou bem a vertente pessimista do Renascimento e as formulações de um mundo às avessas. Transposta para esse país porém ganhou ares de atemporalidade. O quadro retrata duas freiras, que se divertem com um grupo de camponeses num barco de forma estranhíssima. O seu mastro é constituído por uma árvore com folhas e um ramo partido serve de leme. O mais impressionante nessa obra é a figura de um louco, sentado no cordame, trajando um barrete adornado por orelhas de burro e segurando uma vara (ah a pescaria!), bebendo com sofreguidão. O quadro de Bosch revela a sensação de um mundo em desconcerto, mas se fizermos uma leitura atual com o líder de Pindorama ilustrado, só consigo captar o vertiginoso desatino do mundo medíocre e o ridículo dos homens. Do próprio e de quem ainda o acompanha.
Iniciei o texto falando de rememorações. Hoje os barulhos da mata não mais me causam medo, mas quase quatro mil pessoas morrendo todos os dias, me apavora. E os pesadelos continuam, diários, recorrentes, sem variações: Sonho que estou num lugar repleto de gente, sem máscara. E não compreendo o porque daquilo, fico desesperada pela minha impossibilidade de voltar para casa. Equivale aqueles pesadelos de que você está nu na rua e não entende o motivo . A diferença é que quando criança eu me sentia aliviada ao acordar. Hoje, abro os olhos, lembro que é mais um dia mergulhada nesse lodo e tenho vontade de voltar para o sonho. Se ainda tenho o mínimo de esperança é que esse povo desembestado não tenha que, como Quíron, ter uma ferida aberta no flanco pra entender com todas as letras o que significa compaixão. Porém, diante do que tenho assistido, só me resta roubar o pessimismo de Dostoievski : “Eu penso que se o Diabo não existe, foi simplesmente criado pelo homem, e este o fez a sua imagem e semelhança ”. Sim, dias de amargura.