Eu não tenho data pra comemorar
Às vezes os meus dias são de par em par
Procurando agulha num palheiro

Nas noites de frio é melhor nem nascer
Nas de calor, se escolhe, é matar ou morrer
E assim nos tornamos brasileiros
Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
Transformam um país inteiro num puteiro
Pois assim se ganha mais dinheiro

A tua piscina ‘tá cheia de ratos
Tuas ideias não correspondem aos fatos
O tempo não para

Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não para
Não para não, não para

(CAZUZA)

Para Sergio Goldbaum

 

 

AO ENFANT TERRIBLE DOS MEUS AFETOS

 

1983 Foi o ano que descobri que aos 12 anos sua opinião é a última coisa a ser levada em consta. Meus pais se separaram, mudei de cidade, de casa, de escola. Quando dei por mim, estava em outra realidade. Numa sala de aula com pessoas que nunca tinha visto na vida, segurava com força em uma das mãos o livro de Garcia Márquez Cem Anos de Solidão, numa tentativa inútil de me proteger. Era meu primeiro contato com o autor, e estava por ele tão deslumbrada, que usava-o quase como um amuleto. Esta obra se arrasta comigo pela vida. A cada nova situação de mudança e transformação, procuro lê-la de novo. “Muitos anos depois, diante de fuzilamento,O Coronel Antonio Buendia havia de recordar aquela tarde remota em que o seu pai o levou para conhecer gelo”. Basta ler isso para o coração desacelerar.

Não me sentia bem aceita na turma nova e sondava os porques. Fisicamente eu era a estranha no ninho. Enquanto a maioria vivia as dores e delícias da puberdade, eu destoava do resto com minha perna compridas, meu corpo infantil, lisa como uma tábua , magrela , só para fechar o pacote que me incluía na categoria “esquisita”,usava óculos pesados por conta de uma alta miopia. E ainda tinha o sotaque como cereja do bolo. .

Uma loira, com peitos de Scarlett Johansson , passou a me perseguir.Bem maior que eu, aparentando uns três anos a mais para seus treze anos, despertava a atenção dos meninos e era a personificação da beleza padrão que as garotas almejavam. Cansada dos apelidos idiotas que me colocava, do seu ar de permanente deboche, sentia que eu que devia dar o basta. Contar para a minha mãe e ela ir reclamar na escola só pioraria minha situação. A oportunidade veio numa aula de redação , cujo assunto era introdução aos gêneros literários, o barroco. Uma poesia de escárnio do Gregorio de Matos foi lida e a professora lançou uma pergunta para a turma, mas olhando para mim, na tentativa inocente de me incluir. Foi então que levantei a mão e disse:”Com todo respeito, a senhora está perguntando para a pessoa errada.Se tem alguém que se diverte escarnecendo dos outros é ela (apontei a colega.) Falta-lhe porém o talento para fazer de suas ofensas um verso desse valor”. Primeiro o silêncio. Depois gargalhadas eclodiram, a menina ficou vermelha feito um pimentão ,deixando a a professora irresoluta, se me levava ou não para a coordenação. Decidiu nos colocar frente a frente para conversar pedindo que ela parasse com aquilo com os outros e que eu usasse mais gentileza nas respostas .Esse foi precisamente o dia da minha transformação definitiva de poço de doçura a tanque de ácido. Sobrevivência que chama, né?

No âmbito político o Brasil mudava. Nascida sob o domínio daqueles generais amedrontadores, poucos anos antes assinou-se a lei da Anistia, os exilados voltaram, Diretas Já, finalmente um presidente civil , não o Tancredo, mas um civil. Vivia tudo isso, essa alegria fomentada pela esperança de dias melhores, sendo adolescente. A realidade do país se transformava e eu também. Consegui convencer a minha mãe a me dar um par de lentes de contato, meus seios surgiram, usava orgulhosamente um sutiã,.Nas férias era biquini asa delta amarelo, óculos espelhados coloridos e fora dela relógio techno com pulseira combinando com o cardaço do tênis, uma inaceitável pantalona verde cana como xodó , ornada por um blazer lilás com ombreiras que me engoliam, batom rosa choque e, nos cabelos, um indefectível corte mullet. Se todo adolescente é vítima da moda de seu tempo, só posso dizer que por termos crescido na década esteticamente mais cafona da humanidade nós merecíamos indenização por isso. Lembro que Chitãozinho e Xororó fizeram um show num estádio, naqueles tempos e, ao olharem para a plateia, milhões de pessoas, um disse ao outro: “Caramba, todo mundo com o cabelo igual da gente”.Sim, era impossível disfarçar as evidências. .

Na TVs e nas rádios o rock nacional surgia com toda a força, como todos os colegas e amigos, eu amava. Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, Lobão, Gang 90, Barão Vermelho, Legião Urbana e muito mais.As idas ao Rio nas férias me proporcionavam momentos ímpares debaixo daquela luz estreboscópica das famosas danceterias, em que pulávamos sem parar, num estilo chamado New Wave, celebrando, mesmo que inconscientemente, esses novos tempos que se abriam.

Uma geração atrás da nossa, anos atrás, desafiando o Estado Autoritário, experimentava as novas tendências comportamentais vindas do exterior, viviam a contracultura, o amor livre, lutando contra tudo que ate então era estabelecido. Valores, instituições e tabus. Esse parecia ser o nosso caminho natural para o futuro. Minha meta era ser como a Sheila, uma moça de longos cabelos lisos, que aparecia vez por outra na vila da minha avó.Mais velha que eu, pilotava uma moto, namorara sem compromisso, fazia da praia a sua casa e estudava engenharia florestal na faculdade. Isso para mim era o significado de liberdade.

Mas não foi isso que aconteceu. Em 1983, uma epidemia misteriosa, que a princípio recebeu o infame nome de peste gay, visto que a maior parte das sua vítimas era homossexual, chegou ao Brasil . Altamente letal, sem nenhuma perspectiva naquele momento de um remédio que a curasse, era uma sentença de morte. A imprensa em nada ajudava .Lembro de uma matéria feita na rua, onde um cidadão comum , ao ser perguntado se sabia sobre a nova enfermidade, disse:”Pega os invertidos promíscuos né?E eles morrem. Só posso dizer que é um presente de D’us.” Um infectologista de renome, já falecido, vomitava na imprensa e em palestras seus preconceitos. Ele tinha espaço para isso. Numa palestra nos Hospitais da Clínica, ele falou com todas as letras, Homossexuais são pessoas sem condições psíquicas para viver, ou, como escreveu em um relatório: O homossexual, a bicha, o travesti, o invertido,fatalmente contrairão a doença.Jornais estampavam manchetes com “A Praga Gay”,

Tudo parecia longe de mim, até o meu professor amado de geografia ser o primeiro a se contaminar. Depois dele muitos outros. Amigos de meus pais a quem tinha como tios, profissionais da medicina, das artes, mortes em sequê ncia.É aqui que quero chegar. As primeiras vítimas da AIDS foram homossexuais, usuários de drogas injetáveis. Mais a frente, presidíários. Esses eram a escória. Nos hemofílicos, pegaram mais leve.Henfil, Betinho e Chico, creditavam ao azar.O estigma, principalmente da homossexualidade, era perpetuado. A palavra promiscuidade estava sempre associada a doença. E a nossa classe média, que nunca nos decepciona, era uma espécie de ponta de lança na disseminação do preconceito e ignorância. Enquanto eu estudava num colégio liberal, tivemos uma palestra e recebemos camisinhas de brinde, minha irmã estava num colégio católico cuja orientação era não usar preservativo, as soluções oferecidas eram casar e ser fiel aos votos de casamento ou optar pela abstinência sexual.

Uma crônica não dá para falar sobre essa questão da moral e do bom costume, muito ligada a classe média e como ela é perpetuada. Mas como recordar é viver… Acho que não custa lembrar que quando do golpe de 64 a Tradição Família e Propriedade, apoiadora de primeira hora, era formada por quem? Quem integrava as Marchas Pela Família e Pela Liberdade? Empresários, donas de casa, o clero. Exemplo importante da força desses movimentos e da sua penetração nas classes sociais mais baixas nos idos de 73, está aí a música do Odair José, voltada para as massas. Ela foi feita antes da chegada da AIDS, mas por ela vemos como em certas situações a classe média dita a moral. Pare de Tomar a Pílula, foi proibida não apenas no Brasill como em toda a a América Latina. Motivo? Ela ia contra aos esforços da TFP, financiada pelos Estados Unidos, que distribuia píluulas para mulheres pobres e , até onde se sabe, promovia laqueaduras de trompa não consentidas em mulheres pobres que já tinham filhos e idade para procriar. Vamos acabar com a pobreza obrigando os pobres a não terem filhos. Essa era a ordem

Essa questão da moralidade .e dos bons costumes é cria da classe média.

Aqui conto uma historinha que mudou para sempre minha visão sobre as classes sociais no Brasil . Sou nascida numa família de classe média média,filha de funcionários publicos.. A moral que me circunda sempre foi a pequeno burguesa. Casamentos como uma resposta para a sociedade, não ter filho sem casar para não carregar a pecha de mãe solteira, o gay da família relegado ao silêncio (já ouvi pessoas falarem sem pudor: na minha família não existe esse tipo de gente) , a exigência por um comportamento de vida “adequado”.Apesar de ter estudado numa universidade de elite, com colegas abastados, nunca tinha conhecido alguém rico de verdade. Aquele que ostenta nome, um nome que todo mundo conhece, como um Gerdau por exemplo, o que tá no topo, esse outro Brasil. Foi assim que fiquei amiga de uma pessoa que chamarei de Ana. Não sei porque ficamos amigas, até porque eles são muito fechados entre eles, mas nos gostávamos e lá foi Céu atravessar essa fronteira. Era início da década de noventa e nos frequentávamos, chegando a viajar juntas (um carro com o motorista e atrás de nós os seguranças).Sua casa era cinematográfica, quadra de tênis, piscina que era uma jóia do design, obras de arte originais e um imóvel tão grande que a família se quisesse não se encontrava pela residência .Havia um sistema de interfone para se comunicarem entre si e com os funcionários da casa, todos vestidos com rigor, não havia uma gola fora do lugar.Um irmão, visivelmente gay, apareceu de surpresa no quarto dela. Conversaram bastante e, quando ele saiu, ela me falou naturalmente ;”Minha mãe tá muito feliz, meu irmão está namorando o astrólogo dela, que é uma pessoa bacana, que conhecemos direito”.E o assunto morreu. Hoje não seria estranho, mas naquela época, me soou muito esquisito. Meus amigos gays lutavam para sair do armário e a aceitação da família era o grande empecilho. Enquanto para ela era um assunto corriqueiro, discutido em família. Dei esse exemplo, só para dizer que a “aristocracia” não é pautada por nossa moral burguesa. Eles estão acima, afinal, não devem satisfações a ninguém

Mas voltando aos anos 80, desses novos talentos do rock nacional, um tem lugar cativo na galeria dos meus afetos. Ariano, solar, considerado difícil por muitos, Cazuza foi mais que um riquinho mimado. Vi dia desses uma entrevista dele com a Marília Gabriela , já magro em virtude da doença , aos 31 anos. Quando ele fala da injustiça social do Brasil, de acharmos um meio termo entre o comunismo e o capitalismo, vi a Céu garota ali. Sua fala é carregada de ingenuidade, mas a esperança pulsa, latente. Escola pra todos, comida, com isso o Brasil caminha.

Seu lado gozador e debochado me pegou de surpresa pouco tempo atrás em relação a dubiedade de suas letras. Em Exagerado, no verso “Por você eu largo tudo, carreira , dinheiro, canudo”. Eu imaginei, por quase cinco décadas que o eu lírico se referia a carreira (trabalho) , dinheiro (salário), canudo (diploma).Mas o Leoni, mais um dos gigantes do rock nacional, autor da música, que foi letrada pelo enfant terrible, me chamou para a real : Carreira, de cocaína, dinheiro, para usar para aspirar o pó e canudo, nome que se dá a qualquer objeto que tenha como finalidade aspirar a droga. Até hoje, como um erê, esse menino me prega peças.

Já na carreira solo, fora do Barão Vermelho, dedicou-se a fazer músicas em que muitas são a radiografia do Brasil. A Abertura de Vale Tudo, novela do recém falecido Gilberto Braga, a música “Brasil” é o retrato do país. E sim, um dia escreverei sobre ela, novela que considero a maior da teledramaturgia braseira.

Cazuza era autêntico e imprevisível.. Carrega o posto de ser a primeira pessoa pública a se abrir sobre a doença. Ele estava ciente do que era ser portador de HIV, uma doença associada diretamente a sexualidade, nesse país:”Eu acho que a AIDS cai como uma luva, um modelinho perfeito da direita e da Igreja Católica , assim como uma talleurzinho, entendeu?Nunca estiveram tão elegantes.E deselegantes principalmente” Falou e pagou caro por isso, Disposto a expôr a sua condição , na tentativa de aliviar o peso do estigma da AIDS, tempo que ninguém ousava assumir ser soropositivo,e diante de uma imprensa que demonizava a doença, Cazuza recebeu a Revista Veja. De coração aberto. Resultado? Aquela capa de triste memória em que ele, muito magro por conta da enfermidade, tem sua foto circundada por letras garrafais: UMA TIMA DA AIDS AGONIZA EM PRAÇA PUBLICA. Segundo sua mãe, Lucinha Araújo, ao ver a revista comprada na banca de jornal, eles estavam em Petrópolis, Cazuza passou mal e foi internado na clínica São Vicente. Mais uma vez falo sobre a nossa amada classe média: Tudo que se relaciona a relações de pessoas, no campo das morais e costumes,está lá..

Em quatro décadas muito se avançou em relação a AIDS. Graças aos esforços de profissionais de saúde, de cientistas, de determinados políticos fazendo com que o coquetel antiviral chegue a todos (e aqui destaco Serrra e Temporão), da pressão da sociedade civil, nenhum portador do vírus HIV morre de AIDS caso se cuide.Hoje é considerada uma doença crônica. O Brasil é referência no tratamento da AIDS.

Não sejamos ingênuos porém, que esse processo de desumanização observado junto aos portadores de HIV de décadas atrás, nos dias de hoje não ganhará força novamente por conta dessa tsunami conservadora que nos atinge. Enquanto escrevo, acabei de visualizar uma matéria sobre o Bolsonaro, dele revogando uma medalha que seria dada hoje a pesquisadora Adele Benzaken.Em janeiro de 2019, ela foi demitida do seu cargo no Ministério da Saúde.Seu pecado:escrever uma cartilha cujo título é:”Homens Trans:vamos falar sobre prevenção de infecções sexualmente transmissíveis”.Enquanto ele mesmo ontem se automedalhou com uma comenda de mérito científico. Faz sentido. Seu negacionismo ceifou mais de 600000 vidas, ao passo que a AIDS, em 40 anos np Brasil, levou 349784 indivíduos.

Desde o início o presidente deixou claro que o custo de um soropositivo para o Estado é muito grande Pegando carona nessa frase infeliz, digo que custo alto é ter que aturar esse senhor e seus príncipes regentes todo santo dia. Sendo Cazuza pessoa melhor do que eu, só deixo um fragmento de sua canção para esse nefasto:”Vamos pedir piedade, Senhor piedade, para essa gente careta e covarde”.