Das minhas mais arraigadas lembranças, não sei precisar que idade eu tinha, duas estão incrustadas na minha memória. Uma é o meu quarto de criança. Havia uma porta de passagem do meu quarto para o dos meus pais. E lá ia eu, que sempre fui chata para dormir, deitar na minha caminha a contragosto. Numa casa cercada por árvores, era natural que os animais notívagos emitissem seus sons. Morcegos, corujas, grilos, sapos e sabe-se mais o que. Minha imaginação inventava milhares de coisas, mas eu segurava, até dormir. Mas aí o problema eram os pesadelos. Até hoje quando falo que algo é muito ruim, chamo de pesadelo infantil. Porque você não sabe delimitar o que é real do que é onírico, no pior sentido. Eu acabava acordando assustada, batendo loucamente na porta do quarto dos meus pais, ate que a abrissem  e eu pudesse dormir com eles, onde me sentia segura Esse sentimento ruim, que me tomava por inteiro, tinha um nome: Medo. Foi assim que descobri a palavra. Minha mãe então teve longas conversas comigo, começou a deixar o abajur aceso e dizia que eu não podia deixar esse sentimento me tomar. Deve ter dado certo, porque odeio tanto essa sensação, com tanta força, que raramente fui acometida por ela. A outra lembrança é a do meu pai comigo na janela gradeada do quarto, eu com as pernas para fora e ele me mostrando as estrelas. Foi a primeira vez que ouvi a palavra signo. Ele me explicou que nasci sob o sol de Sagitário,  um ser mitológico metade cavalo, metade gente. Como junguiano que é, me contou a história de Quíron. Filho de um deus e uma ninfa, o pai, o titã Chronos, se metamorfoseou em centauro e a ninfa acabou por ter um filho e pela sua forma, se envergonhou dele. Acabou por ser abandonado, mas foi educado por Apolo, o deus do sol, que passou a ensinar a ele poesia, música, ciência (e filosofia, eu não sabia o que era , estou aqui narrando do mesmo jeito que a história me foi contada). O fato é que Quíron cresceu e tornou-se um sábio, especialmente em medicina, transmitindo seus saberes a quem quisesse aprender. Por um acidente, foi flechado no flanco e sua ferida nunca cicatrizava. Ainda assim ele continuava a ensinar, mesmo sentindo muita dor. Segundo o que meu pai me contou, foi Quíron que ensinou a Asclépio , o deus da medicina, a cura para todas as doenças. E foi esse mesmo deus  quem perguntou: Mas porque você que sabe a cura de tudo, não sara  sua própria doença? Quíron respondeu que para sentir a dor do outro, é preciso que você tenha a própria dor. No fim, eu já triste com o centauro doente, quis saber o que aconteceu. E meu pai me respondeu: Zeus quis acabar com a dor dele e transformou-o numa constelação. A constelação de Sagitário. Quando você nasceu, era ela que pairava no céu, por isso que é seu signo. Daí eu tirei, mesmo sem saber nomificar, que para respeitar a dor do outro, é preciso que você sinta a dor. Só muito mais tarde fui entender que a palavra para isso é compaixão, do latim compassione, que é sentir com. E que não basta apenas sentir, é preciso de algum jeito aliviar o sofrimento de outrem.

Essa rememoração da garotinha que eu fui, bateu forte em mim. Mais de 40 anos se passaram, mas esse sentimento do qual sempre tentei  me desvencilhar, pesa sobre a Terra. Deimos e Fobos são agora mais do que as luas do Planeta Marte. Gêmeos , nascidos da união de Ares e Afrodite,  Fobos simboliza o terror e acompanha Ares, seu pai, o deus da guerra, para os campos de batalha. Sua função é injetar a covardia e o medo no coração dos inimigos, para que eles fujam. Deimos, que representa o pânico, acompanhava-os e sua missão era fazer as tropas abandonarem a formação e fugirem desordenadamente. Séculos se passaram, mas continuamos recorrendo aos gregos para tentar racionalizar aquilo que não damos conta. ”A emoção mais antiga e mais forte da humanidade e o tipo de pavor mais antigo e mais poderoso é o medo do desconhecido” .

Os analistas dizem que o mundo não atravessa uma crise desse porte, em dimensões planetárias, desde a Segunda Guerra Mundial. É com isso que nos deparamos. Nossa única certeza é que o mundo que conhecíamos não existe mais. O que vem daí, é uma incógnita. Estamos num momento de ruptura, esqueçam a vida que levávamos até março de 2020.

O que me exaspera é que estamos vivendo esse pavor universal no pior lugar para se estar no momento. É como se a história tivesse percorrido  um movimento pendular e tivéssemos parado na Idade Moderna.  A obra de Bosch, a Nau dos Loucos, exemplificou bem a vertente pessimista do Renascimento e as formulações de um mundo às avessas. Transposta para esse país porém ganhou ares de atemporalidade. O quadro retrata duas freiras, que se divertem com um grupo de camponeses num barco de forma estranhíssima. O seu mastro é constituído por uma árvore com folhas e um ramo partido serve de leme. O mais impressionante nessa obra é a figura de um louco, sentado no cordame, trajando um barrete adornado por orelhas de burro e segurando uma vara (ah a pescaria!), bebendo com sofreguidão. O quadro de Bosch revela a sensação de um mundo em desconcerto, mas se fizermos uma leitura atual com o líder de Pindorama ilustrado, só consigo captar o vertiginoso desatino do mundo medíocre e o ridículo dos homens. Do próprio e de quem ainda o acompanha.

Iniciei o texto falando de rememorações. Hoje os barulhos da mata não mais me causam medo, mas quase quatro mil pessoas morrendo todos os dias, me apavora. E os pesadelos continuam, diários, recorrentes, sem variações: Sonho que estou num lugar repleto de gente, sem máscara. E não compreendo o porque daquilo, fico desesperada  pela minha impossibilidade de voltar para casa. Equivale aqueles pesadelos de que você está nu na rua e não entende o motivo . A diferença é que quando criança eu me sentia aliviada ao acordar. Hoje, abro os olhos, lembro que é mais um dia mergulhada nesse lodo e tenho vontade de voltar para o sonho. Se ainda tenho o mínimo de esperança é   que esse povo desembestado não tenha que, como Quíron, ter uma ferida aberta no flanco pra entender com todas as letras o que significa compaixão. Porém, diante do que tenho assistido, só me resta roubar o pessimismo de Dostoievski : “Eu penso que se o Diabo não existe, foi simplesmente criado pelo homem, e este o fez a sua imagem e semelhança ”. Sim, dias de amargura.