No leito frio e com dor
Com pipoca e dendê
Muita gente ele curou
Se seu corpo está ferido
E não pode mais suportar
Peça proteção a ele
Ele vai te ajudar
É obaluaê, é obaluaê
É atotô, é obaluaê é obaluaê
(Marthinho da Vila)
Não, ela não deve lembrar de mim. Mas eu tenho-a muito viva na memória. Devíamos ter uns 5 anos, dividíamos a mesma turma no jardim de infância. Seu nome era Lara. Lembro que a mantínhamos a parte nas brincadeiras do parquinho da escola, em que subíamos no trepa trepa e brincávamos de heroínas dos enlatados que passavam na TV. Mulher Maravilha, Poderosa Isis e uma brigalhada se formava entre as meninas, porque todas queriam ser a personagem da Farrah Fawcett nas Panteras, que com nosso parco conhecimento de mundo de cinco anos de idade era, para nós, a mulher mais bonita do planeta. Lara ficava sentada num banquinho, nos olhando brincar. Não queríamos aproximação, sobretudo que se encostasse em nós e jamais, em hipótese alguma , permitíamos que pegasse nos nossos objetos. Magrinha, cabelos crespos trançados, Lara era cheia de feridas, algumas abertas, outras cicatrizando. Entre as histórias contadas pelas crianças, não sei se procede ou não, é que alguém viu Lara levantando as tranças e notou que seu couro cabeludo também era cheio de feridas. Hoje sei que era portadora de alguma doença séria epidérmica. Só que estamos falando de um tempo que não havia a menor preocupação com inclusão. Nenhum dos adultos nos falava nada, para nós era apenas uma menina perebenta da qual queríamos distância. Ela não participava das brincadeiras, porque não deixávamos, ela pouco interagia na sala de aula, ficava sentada numa carteira no fundo. Lara era pária. Sequer lembro de sua voz. Mas de uma coisa eu tinha uma secreta e jamais admitida inveja dessa menina Enquanto eu sofria com minhas pesadas botas ortopédicas, ela usava um sapatinho boneca, de verniz, vermelho. Evitava olhar as suas feridas e cobiçava seus sapatos. Ninguém nunca nos esclareceu o porque daquelas chagas, ninguém nunca veio nos pedir que a incluíssemos nas brincadeiras. Muitas vezes ela caminhava na nossa direção, enquanto fazíamos aquela rodinha formada por meninas e nossa crueldade infantil nos levava a levantar e sair correndo em bando de perto dela. No ano seguinte Lara não estava mais lá. No ano seguinte eu mesma mal estava lá.
Sempre fui magrela, com as pernas compridas, não a toa meu pai me chama até hoje de Tuiuiu. Amava brincadeiras ao ar livre, pique bandeirinha, jogar queimado, bicicleta, subir em árvores e comer jabuticaba do pé. Só que de um dia para o outro as pernas começaram a doer, uma dor que chegava ao limite do insuportável. Logo depois essa dor espraiou-se para os pulsos e para cada junta das articulações. Febre altíssima, dores de garganta inenarráveis, os adultos mandavam eu abrir a boca e era só placa de pus. Engolir era difícil. Levantar da cama quase impossível, Não demorou muito e veio o diagnóstico: febre reumática. Remédio tinha. Benzetacil. Inicialmente todo dia, depois dia sim e dia não. Não vou me deter no que era pra uma criança de seis anos lidar com dor e com o sofrimento indescritível do líquido da seringa entrando na carne. Foi um período difícil, porque minha mãe já tinha passado dos quarenta e estava numa gravidez de risco , além de mim mais dois irmãos, sendo que Arthur, o mais velho, era um bárbaro. Grande frequentador de pronto socorro por suas artes. Meus avós que sempre seguram todas estavam morando no interior do Rio. A solução foi me deixar sob a responsabilidade da maravilhosa tia Ermelinda, única irmã viva da vovó hoje, exímia cozinheira e de uma cultura ímpar, odeia o Bozo mais que os nazistas, da tia Elza e do meu bisavô. Lá que comecei a ler. Quando voltei para a escola, sabia ler melhor que todo mundo, as manchetes do Jornal do Brasil, que eu lia devagar juntando as letras para eles, fez milagres. Durante anos, inclusive início da vida adulta, a Benzetacil foi minha companheira. Hoje agradeço ter nascido num tempo que ela já havia sido descoberta. Não fossem suas picadas dolorosas eu não estaria aqui hoje.
Aos 21 anos, já livre da febre reumática mas alerta as suas sequelas, como ecocardiograma anual, tive minha primeira grande depressão. Tinha um namorado bonito, muitos amigos, estudava numa universidade de elite, era querida pelos professores da faculdade, tinha pais presentes, materialmente nada me faltava. Então quando caí prostrada por dias e dias, sem levantar para nada, faltando aulas e com meu pai me forçando a comer me dando comida na boca, foi um prato cheio para os ignorantes. Cheguei a ouvir de uma pseudo amiga que se tivesse uma trouxa de roupa para lavar, não ficaria nessa palhaçada. Entre outras coisas me surgiu uma urticária nervosa, que carrego comigo até hoje. Quando não vejo saída para soluções da vida, ou quando tenho aborrecimentos graves, meu corpo enche de vergões que se assemelham a herpes zoster. Coçam, doem e tem um único antialérgico certo para sanar.
Foi assim, depois de ir em psiquiatras, psicólogos, tomar medicamentos, que meu pai, sem me dizer exatamente do que se tratava, me disse que me levaria em um lugar diferente. Um dia, daqueles que eu não saía da cama, me deu um ultimato. Ou vai comigo agora e procura de algum jeito sua melhora, ou fica mergulhada nesse lodo. Botei um moletom ordinário, fiz um rabo de cavalo, entrei no carro sem ter ideia de para onde ia. Sei que fomos para uma parte da cidade que não conhecia, local humilde, de gente simples. Papai estacionou o carro, me deu a mão e fez aquilo que sempre faz ao me ver frágil. Olhou nos meus olhos e disse: “Confia em mim?”. Sim, confio .Com isso pôs-se a me dar instruções, de que eu deveria ficar calada, só falar quando me perguntassem e sobretudo respeitar o ambiente.
Entramos. Era uma roda de Exus. Uma estrangeira, que não vou falar a nacionalidade para não expô-la, apenas digo que era do grupo de trabalho do meu pai, estava vestida como uma cigana, com uma roupa colorida , muitos penduricalhos, gargalhando com a alma, segurando nas mãos uma garrafa de caninha da Roça que tomava aos golões. . Fiquei petrificada. O curioso foi que, sem que eu sequer me movesse, as entidades foram se aproximando de mim e me saudando. O malandro Zé Pilintra, com seu gingado e seu chapéu, Maria Padilha, lindíssima trabalhada no vermelho, todos vieram falar comigo. E todos , sem que isso fosse combinado, disseram a mesma coisa “Moça bonita, tua tristeza é do Velho, você precisa cuidar dele, porque está se sentindo abandonado por você, logo ele que sempre esteve ao seu lado”. Foi dado ao meu pai um papel, por uma pessoa que estava sóbria, que lá estava apenas cuidando das entidades e quando vi , eu estava gargalhando , completamente a vontade e sorrindo, coisa que não fazia há tempos. Terminou a roda, houve o ritual para as entidades cantarem para subir (e só ali entendi a expressão) e as pessoas voltaram a ser elas mesmas. Sem os paramentos fui reconhecendo-os, Colegas de trabalho do papai, de médicos a guardas da portaria. A Cigana dos Sete Búzios, que comandava tudo e a única que não falou comigo, depois de sorver um litro de cachaça, voltou a ser a estrangeira de sempre, se despediu de todos sobriamente, trocou uma idéia em particular com o meu pai que acredito eu esteja ligada aos remédios alopatas que eu estava tomando, mudou de roupa e em seguida estava na direção do seu carro, dirigindo normalmente.
Voltamos para casa em silêncio. Só sei que no dia seguinte levantei cedo, coloquei um vestido larguinho e florido, botei meu material de estudo numa bolsa e fui tomar café no jardim com meu pai. Na vitrola botei Clube de Esquina e talvez esse disco me marque tanto porque representa o dia que resolvi voltar a viver. Meu pai não escondia sua alegria, pegou nas minhas mãos, falou coisas que costuma falar para louvar a vida a sua maneira e me ofereceu uma carona pra faculdade. Avessa a religiões que sou, tenho pavor de compromisso e custo a acreditar em D’us, não me tornei da umbanda ou do candomblé. Mas passei a querer entender aquilo um pouco melhor, através de artigos de pessoas sérias e do livro Orixás do Pierre Verger. Toda visita anual a Bahia para ver minha mãe incluia um jogo de búzios. E todos, todos, todos que eu consultei, foram unânimes em falar. Filha de Omolu e de Iansã .Sobre Iansã escreverei um dia, mas é para Omolu Obaluaê esse texto.
Vamos a ele. É bela e triste a história desse Orixá. Muitas são as lendas que falam sobre o seu nascimento e sua história. A mais recorrente é que foi abandonado por Nanã por ter nascido cheio de chagas, em um cesto no mar. Acabou sendo criado por Yemanja. Cresceu e tornou-se feiticeiro, guerreiro e caçador. Um dia “Chegando de viagem à aldeia onde nascera, Obaluaê viu que estava acontecendo uma festa com a presença de todos os orixás. Devido a sua medonha aparência, ficou espreitando o que ocorria pelas frestas do terreiro. Ogum, ao perceber sua angústia, cobriu-o com uma roupa de palha , que ocultava a sua cabeça , convidou-o a entrar nos festejos. Apesar de envergonhado, ninguém se aproximava dele. Iansã se compadeceu e esperou que ele estivesse no meio do barracão. Soprou suas roupas de mariô que cobriam suas pestilências. Nesse momento de encanto e ventania, as feridas de Obaluaê pularam para o alto, transformadas numa chuva de pipocas, que se espalharam brancas pelo barracão. Obaluaê transformou-se num jovem encantador e brilhante.” Essa é mais ou menos a narração de Teo, neto da coreógrafa Deborah Colker, portador de uma doença genética rara, epidermólise bolhosa, que abre o fabuloso e dilacerante espetáculo de dança CURA. Deborah nos chama para essa jornada, inspirada na luta que trava com a doença do neto, e a partir daí me veio a ideia de escrever esse texto.
Como todos os deuses de matriz africana, é um deus ambivalente. Se por um lado é temido, já que nada é escondido desse Orixá, ser responsável pela morte , já que rege a terra e é dela que tudo nasce e tem fim, é também protetor dos enfermos, principalmente dos doentes pobres. Por padecer de uma enfermidade, não quer ninguém passando por ela, daí sua associação com a cura. Tem o poder de causar uma epidemia, mas está em suas mãos a cura de todo mal. Sempre curvado, como quem sente intensa dor e sofrimentos, também é chamado de Velho.
Posso dizer, sem medo de errar, que a febre reumática me fez olha o outro de um jeito diferente. Doença não escolhe. Pobreza não escolhe. Já na primeira série primária sabia que o bullying era errado, muito antes de se começar a encará-lo como um grande problema a ser combatido. Tive também a sorte de ter a melhor professora do mundo, com quem não perdi contato, a tia Luiza, Com seus olhos azuis enormes, cabelo chanel escuro, era a nossa Branca de Neve. Foi uma das minhas maiores incentivadoras a seguir a literatura, por suas mãos descobri a biblioteca da escola, onde podia pegar livros e depois devolvê-los. Meiga, carinhosa, mas bastava alguém rir do “defeito” do outro, para o tempo fechar, Firme, nos lembrava que apelidar um colega de Dumbo, imitar algum que tinha gagueira, era feio, nos tornava pessoas piores. Não a toa é anti-bozo até a raiz do cabelo. Manteve sua coerência,
Anos atrás, já livre da febre reumática, fui, após uma sequência de 5 pneumonias, diagnosticada como portadora de artrite reumatoide. O pneumologista que constatou isso, foi muito honesto: ”Não tem cura, aprenda a conviver com ela”. Então eu fico atenta aos sinais. Quando me aborreço, quando tenho medo, a dor percorre meus ossos num ir e vir. Meus pés incham, Ficam vermelhos. A vermelhidão é quente e coça. O jeito é tomar os medicamentos. Com a situação do Brasil e impossibilitada da minha corrida diária, que ajudava as crises a ficarem mais esparsas, andei sofrendo. Da última vez tomei um remédio que é uma bomba e a orientação médica foi: Vamos ver se em três dias alivia, caso contrário teremos que apelar para a cloroquina. Esse remédio que o Bozo louva, das vezes que tomei, tive um acompanhamento ferrenho. Por ter tido descolamento de retina anos atrás e a febre reumática, que pode trazer sequelas ao coração, tomei fazendo exame de fundo de olho e ecocardiogramas. O que chega a ser engraçado é que minha preocupação maior não era a medicação e sim o fato de morrer previamente de vergonha ao pensar em ter que ir no balcão da farmácia, pedi-lo e ser confundida com negacionista .Dói muito saber que as pessoas tem tomado indiscriminadamente uma medicação cheia de efeitos colaterais como se fosse M&M. A artrite já se mostra presente no meu corpo. Meu dedo médio da mão direita está completamente torto, me impedindo de fazer aquele lindo gesto feito pelo Ministro da Saúde em NY. Mas não me abalo, uso a mão esquerda para tudo mesmo…Rá!
Antes que essa crônica vire uma paráfrase de O Pulso, dos Titãs, quero deixar algo registrado. Não sei se chegará a ela, o tempo nos separou. É um recado para minha coleguinha de sala. Lara, quero me desculpar com você. Imagino como devia ser insuportável você ir para a escola e sofrer aquilo tudo. Penso também na falta de tato dos adultos. Nunca nos reprenderam, nunca nos explicaram que o que você tinha não era contagioso, que fazia parte de uma condição, mas que você era uma criança cheia de sonhos e fantasias como todos nós. . Não pude deixar de pensar em você ao assistir o espetáculo Cura da Deborah Colker. Imagino o sofrimento que você passou, as dores que enfrentava, a sua solidão de criança que hoje me faz chorar. Quero te dizer que tento acertar com minha filha, aquilo que erraram comigo. Quero te dizer que não me desculpo nem perdoo, porque eu podia ter te defendido, como fiz depois ao longo da minha história com pessoas que julgava injustiçadas. E por fim, quero te falar que sempre que vejo um sapatinho boneca vermelho envernizado, não é da Dorothy do Mágico de Oz que lembro. É da menina de tranças sentada no cantinho da sala. Que Obaluaê nos proteja.