Angola, Congo, Benguela
Monjolo, Cabinda, Mina
Quiloa, Rebolo
Aqui onde estão os homens
Há um grande leilão
Dizem que nele há uma princesa à venda
Que veio junto com seus súditos
Acorrentados num carro de boi

Eu quero ver
Eu quero ver…

Angola, Congo, Benguela
Monjolo, Cabinda, Mina
Quiloa, Rebolo
Aqui onde estão os homens
De um lado cana-de-açúcar
De outro lado, o cafezal
Ao centro, os senhores sentados
Vendo a colheita do algodão branco
Sendo colhido por mãos negras

Eu quero ver
Eu quero ver

Quando Zumbi chegar
O que vai acontecer

Zumbi é o senhor das guerras
Senhor das demandas
Quando Zumbi chega
É Zumbi é quem manda

Era uma aula de História sobre a Conferência de Berlim e a repartição da África pelos europeus. A professora se deteve na ação infame belga no Congo, em 1885, quando o rei Leopoldo II transformou o extenso território em sua propriedade pessoal. Foi nessa mesma aula que ouvi a primeira vez o nome Patrice Lumumba. Hoje essa professora seria defenestrada, rotulada de doutrinadora e comunista, mas o que soube sobre esse homem, sobre seus ideais anti-imperialistas, do pan-africanismo, de uma África unida como continente, passando por cima das questões de etnias, cultura e gênero, nunca mais me esquecê-lo. Ao final, fui saber que foi traído, humilhado, torturado, antes de ser assassinado, visto que não interessava nem a Bélgica, as empresas estrangeiras que operavam extraindo recursos naturais do Congo (que são muitos) e aos EUA, um líder que queria um país democrático, independente e africanista. E sim, apesar de seus pedidos reincidentes por proteção, a ONU lavou as mãos. Da adolescente que fui, o que sinto mais saudade é da crença do “e se”. E se Lumumba tivesse sobrevivido e levado seus ideais a frente, teríamos uma outra África? Um dos desencantos de quando se chega à idade adulta é a certeza de que o “e se”” não existe. É com a realidade e sua crueldade inerente que temos que lidar.

È complexo falar sobre o Congo. Os portugueses, através de Diogo Cão, escudeiro da Casa de D. João II, de Portugal, fizeram duas grandes expedições na costa sudoeste africana, na busca do Cabo Da Boa Esperança. Tanto que ao chegar ao Rio Zaire, em 1482, acreditou ter alcançado o que almejava. Essa empreitada quem conseguiu foi Bartolomeu Dias, mas coube ao navegador estabelecer relações com o Reino que lá encontrou. O Congo era um reino forte, estruturado, cuja chefia maior cabia ao Mani Congo. Era um território extenso, que hoje corresponderia a Angola (incluindo Cabinda), República do Congo, Gabão e República Democrática do Congo.

A relação dos portugueses com o Reino do Congo é uma história longa e complexa, que envolve cristianização, lutas fratricidas e uma batalha luso-congolesa, em 1665, a de Ambuila, movida pelo interesse dos portugueses em controlar uma passagem para cobiçadas minas de ouro e de prata. O saldo: Milhares de congoleses mortos, entre eles muitos nobres, e o rei congolês Antônio I teve sua cabeça cortada e enterrada em Luanda, enquanto sua coroa e cetro, emblemas reais, foram mandados a Lisboa como troféus.

Invadir a África e se apossar dela naqueles tempos era uma missão totalmente impossível. Por motivos geográficos, o destino da África foi o de viver atrás das barreiras das suas costas. Rios caudalosos de cursos desconcertantes, montanhas fenomenais, selvas misteriosas, extensos desertos, atribuem ao continente africano uma fisiografia hostil e, ouso dizer, fantástica. Sempre que leio os versos de Pessoa: “Eu, Diogo Cão, Navegador, deixei este padrão ao pé do areial moreno. E para diante naveguei”, que foi o marco da chegada dos lusitanos ao Cabo da Cruz (atual Namíbia), esse navegador que introduziu padrões pedra , em lugar de cruz de madeira, em torno de 3 metros e meio de altura, com o brasão português e a cruz marcando a reclamação de posse do território para Portugal, não lembro de poesia, nem da Mensagem, nem dos Lusíadas e sim da imagem que vi há anos captada por um cinegrafista da Nathional Geographic, na Costa do Esqueleto .região ao sul da Angola, na Namíbia, onde o deserto de mais de 50 quilômetros encontra o oceano. Um leão desorientado, pelo tempo da caminhada, se fartando ao chegar no mar devorando uma baleia encalhada. Uma baleia. Essa imagem me valeu mais que o Kilimanjaro, Hemingway que me perdoe.

Pelas dificuldades de invasão do interior do continente, o europeu se dispôs a colonizar a América primeiro e fazer da costa africana um ponto lucrativo de marfim, ouro e, em especial, negros. E aqui voltamos ao Brasil. Temos, segundo Pierre Verger, ciclos distintos. O primeiro, século XVI, o de Guiné. De diversas regiões da África, calcula-se que tenham entrado no país cerca de 20000 escravos. Já no século XVII, temos o de Angola e do Congo. Esse registrou a entrada de 205150 negros no país. Agora chegamos à historinha de carochinha do Sergio Camargo. O Reino do Congo tinha escravos? Sim, tinha. Uma outra tipologia. O Congo era um reino em expansão, com registro de guerras frequentes e havia sim uma população cativa. Não vou me ater ao tráfico de escravos, muito menos vou entrar na catimba de que os europeus não inventaram a escravidão porque os próprios africanos a faziam, porque quem lê meus textos tem o mínimo de conhecimento de que o trabalho compulsório existe desde a pré-história, de que no frigir dos ovos ele vai só variando suas formas ao longo do tempo. Ah Céu, está dizendo que servos da gleba e escravos são a mesma coisa. Não. Se não quiser reler Aristóteles eu trago mastigadinho: Servos e escravos passaram por situações terrivelmente opressivas. A diferença é que o escravo é A MERCADORIA. A originalidade no escravismo é que se institucionalizou em larga escala esse trabalho nas cidades e nos campos. Gregos e romanos foram os pioneiros na propulsão da escravidão como força de trabalho devidamente institucionalizada. Um sistema legitimado por leis, normas, justificações morais, E a Idade Moderna vai buscar no Direito Romano códigos aplicáveis a escravidão em larga escala. Os europeus que povoaram o Novo Mundo com escravos importados da África já tinham um sistema legal pronto, que adotaram quase em sua totalidade, alternando-os numa lentidão de lesma para se adaptar a condições novas.

E assim, na base da lei, entre 1502 e 1860, mais de nove milhões de escravos foram transportados para as Américas, figurando o Brasil como seu maior importador. Apesar de etnias diversas, o que se convencionou chamar de Reino do Congo, trazia uma característica: eram chamados de bantos porque é a palavra que designava o tronco linguístico do amplo leque de idiomas falado na África Central. Seus descendentes estão espalhados por todo o Brasil, do nordeste ao sudeste. Deve-se ao povo banto a criação das Irmandades do Rosário (mas aí já é outra história)

Saindo dessa história triste, porém nossa, volto a falar da República Democrática do Congo. E essa foi a segunda vez que ouvi falar em Lumumba. Quando Éramos Reis, meados dos anos 90, Estação Botafogo. Documentário de Leon Gast sobre a maior luta de boxe da história. Em 1974, Ali recém saído da prisão, por ter se recusado a lutar na Guerra do Vietnã, aos 32 anos e George Foreman, jovem, dono do Cinturão, na melhor forma, estavam no mesmo ringue. No Zaire (atual RDC) Ideia do controverso Don King, a luta foi bancada pelo ditador Mobutu Seso-Keko. O traidor que tomou o poder e nele ficou por décadas, acumulando muito dinheiro e assassinando por esporte. Leon Gast foi para registrar os momentos da luta e o dia a dia dos lutadores, mas o funcionário que pagaria pela montagem do filme, de Mobutu, diga-se de passagem, acabou sendo assassinado. Então com as imagens arquivadas e só conseguindo montar mais de vinte anos depois, eis o melhor filme da minha vida. Porque pessoas que estavam presentes ao evento como Norman Mailer, figuras que explicam todo o contexto racial daquele tempo, como Spike Lee, estão ali a comentar a importância dessa luta. Além disso, houve um festival de música enlouquecedor, com artistas negros, dando uma ideia da música voltando para sua verdadeira casa. É impossível não chorar ao som de BB King ou vibrar quando James Brown faz suas coreografias alucinadas e é acompanhado por danças tribais dos participantes. E a torcida dos congoleses por Ali, que representava a verdade, a negritude, o orgulho de sua história. Nada mais vou falar porque senão é spoiler que não acaba mais. Só para terminar, estava folheando um livro antigo cujo prefácio era do Gilberto Freyre. E ele dizia que os portugueses preferiam os bantos pela docilidade, sem se lembrar que O Quilombo dos Palmares foi formado por eles. Ganga Zumba e Zumbi eram congoleses. Moise querido, eu confio no senhor das demandas. Nós não iremos esquecer. Era só isso mesmo. Quanto ao Sergio Camargo, fica a resposta: VAGABUNDO É O CARALHO.

Bahia de São Salvador, 12 de fevereiro de 2022