Para isso fomos feitos
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra

Assim será a nossa vida
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve
Ver a noite dormir em silêncio

Não há muito o que dizer
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações se deixem
Graves e simples

Pois para isso fomos feitos
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte
De repente nunca mais esperaremos
Hoje a noite é jovem
Da morte, apenas nascemos
Imensamente

(Vinícius de Moraes)

Ela tinha o poder de convencer, como poucos. Não insistia, não enchia o saco, sabia que sagitariano só faz o que realmente quer fazer, Então usava a tática de falar que estava tudo pronto me esperando, a cerveja gelada, a picanha sangrenta, de forma que a ideia do encontro parecesse ser minha. Sua voz doce disfarçava seu gênio forte, E era , por natureza, delicada. Pôs-se a falar que teríamos distanciamento, que o que não faltava era álcool gel e álcool pra lavar a alma. Na sua forma líquida, numa cerveja gelada e na sua invenção que eu chamava ideia do capeta: geladinhos de caipirinha. A data era importante, não apenas por ser seu aniversário, mas pela formatura do filho e seu aniversário também, faziam anos com uma semana de diferença. Ainda não tínhamos vacina, sabia que esses ajuntamentos de fim de ano não seriam uma boa ideia, como se provou mais tarde, O que eu sei é que ela era extremamente cuidadosa, me convidar para esse pequeno grande evento, onde eu seria a quinta pessoa, era valorizar muito minha companhia. Eu disse que não podia, mas ainda assim ela me mandou a foto da carne sangrando sendo cortada e escreveu: ”Pega um Uber, ainda dá tempo”. Minha resposta foi :PQP mulher, não me tenta. Assim você me esgana de vontade .Aniversário tem todo ano, no próximo, quando essa merda passar, vou aí e beberemos até cair, Só não me enche a geladeira de Itaipava, tomemos um porre decente, cerveja com cheiro de xixi de gato só se for no ultimo engradado.” Errei feio. Não vai ter nem cerveja ruim, muito mesmo aniversário. Amanhã seria seu dia . E ela não estará aqui, rindo dos meus embaraços pela vida, rindo dos seus próprios, com aquele humor ácido judaico que era nossa salvação nesses tempos nefastos.

Nesse catálogo de desgraças que foi 2021, ou está sendo porque o miserável ainda não acabou, me sinto no quadro do Bruegel, O Triunfo da Morte . Tenho sobrevivido a mortes de pessoas, que mesmo não conhecendo várias delas, devo-as minha formação. Das próximas, três delas norteavam minhas caminhadas, porque minha miopia progressiva não se resume a parte física .E me davam, generosamente as mãos e emprestavam seus olhos pra eu não escorregar feio no caminho. Acho que o que tenho sentido pode ser explicado por uma história que meu tio Mingo, irmão mais novo do meu pai, que já se foi, me narrou anos atrás. Numa das festas animadas que fazia em casa, quando os convidados já tinham partido, o dia amanhecendo e tomávamos a saideira que nunca era a saideira, ele me contou como se deu sua consciência da morte. Dentista de formação e ofício, sua paixão era a natureza. Conhecia cada planta, cada pássaro, e eu soube então que esse interesse veio de seu bisavô, um homem que só conheci pelos retratos .Nessa conversa soube que seu avô foi quem lhe ensinou a fazer enxertos e criar flores de cores diferentes. Numa ocasião, estavam na missão de cruzar pássaros para ver novas plumagens, no meio de uma experiência para saber se vingariam ou não. Até que ao chegar da escola, encontrou um clima horrível dentro de casa e teve ciência que o avô, de quem se despediu ao sair, havia morrido de um ataque cardíaco fulminante. Uns dez dias depois da morte do avô ele foi olhar os pássaros e num lance de sorte, viu os ovinhos eclodindo. Ele disse que correu esbaforido, subiu uma escadaria, ansioso para chamar o avô para ver junto. Abriu a porta num rompante, E quando viu a cama vazia, a mesa sem livros, foi que compreendeu que nunca mais o veria. Foi assim que ele entendeu que morte é ausência. Foi a primeira e última vez que o vi chorar.

Philippe Aries, em seu livro O Homem Diante da Morte, demonstra as significativas mudanças ocorridas na sociedade ocidental da Idade Média ao Século XX e suas relações com a morte. Não a toa, aponta o século XIV, repleto de fomes, guerras e pestes, essa morte em massa, como um dos momentos mais abaladores da relação do homem com a finitude. Ela se mostra como uma ameaça para qualquer um, visto que é inflexível e democrática, chegando de surpresa e sem tempo de preparação. Comparar fenômenos históricos de diferentes épocas , sem levar em conta todas as mudanças sociais, tecnológicas e científicas, pode ser uma armadilha para incorrer em um erro grave. Mas temos que concordar que vivenciamos esses temores. Talvez o lado mais duro desse tempo da covid seja o isolamento do doente, necessário, obviamente. Mas essa morte solitária, longe dos seus, na solidão de uma UTI, foi uma das nuances que mais me marcou.

Aqui encerro o assunto pandemia. Hoje não quero falar do genocida e de suas crias. Mas gostaria de desenvolver um tema, um tanto quanto polêmico, da ligação do brasileiro com a morte alheia. O precoce falecimento da jovem cantora Marília Mendonça, me fez pensar na forma com que o brasileiro , onde até a morte foi alçada a categoria de espetáculo, lida com seus mortos. Até então, tinha evitado ler qualquer coisa sobre o acidente, porque morte de jovem para mim é algo inaceitável.. Mas dois fatos não me passaram despercebidos: O primeiro é que supostas fotos da moça morta tentaram ser vendidas no IML, a 20000 reais. Li também que policiais tiveram que ficar em volta do avião, porque saqueadores queriam entrar para roubar objetos das vítimas.

Esses saques não são novidade, Basta lembrar do Voo da Gol, 1907 , em 2006, que voava de Manaus para Brasília até bater num jatinho Legacy. O avião caiu e morreram 157 pessoas. A queda foi numa fazenda do Mato Grosso, em local de difícil acesso. Apenas tropas das Forças Armadas trabalharam no local. Dias depois até documentos das vítimas foram usados no contrato de um empréstimo, para comprar um carro .Os parentes começaram a receber faturas de cartões de crédito dos mortos, joias e celulares, tudo isso desapareceu. A Aeronáutica nunca deu uma explicação plausível para as famílias, ficou por isso mesmo.

Eu fui testemunha em 2015 do atropelamento de um jovem, que estava na calçada com dois amigos, na Avenida das Américas, em frente ao BRT. Eu atravessava a rua, voltando do trabalho , só vi um caminhão branco passar rente a calçada e um barulho que parecia uma explosão. O garoto, de sunga, que estava na calçada (não no meio fio) na frente dos outros dois teve a cabeça arrebentada pela carroceria do caminhão, que lógico, partiu sem prestar socorro. Há três minutos atrás ele estava contando uma piada para os colegas e quando cheguei a ele seu maxilar tava arrancado, sua boca esguichava sangue e sua cabeça aberta. Enquanto o rapaz que viu tudo, que atravessava comigo, pedia socorro, eu não sei de onde me vem forças nessas situações trágicas, sentei os dois amigos que estavam em choque e falei firme (soube depois que um era primo do acidentado ) num gramado próximo :”Liguem agora para a família de vocês, avisem que estão bem mas que o rapaz se acidentou feio. Peçam para vir ate aqui, vocês não tem condições de voltar pra casa desse jeito”. Eles me obedeceram, comprei água para os dois e uma médica moradora da área apareceu. Corri para comprar luvas para ela na farmácia, logo depois um oficial do corpo de bombeiro de sunga, que estava voltando da praia, tentava contato para levarem o garoto. Eram seis e tal da tarde, transito intenso, problemas da Samu chegar. Eu, a médica, o bombeiro e o rapaz não saímos do lado do jovem, numa agonia sem fim. Eis que aparecem os curiosos. Quando vi tinham uns 5 filhos da puta filmando a agonia do garoto na calçada. Delicadeza não é uma das minhas virtudes, baixou uma pomba gira de frente, botei as mãos na cadeira e gritei:” Que porra é essa?Vocês não tem respeito não? Esse menino tem família caralho! Vão fazer o que, jogar na internet?”. Uma mulher, de idade próxima a minha, mandou eu calar a boca. Não preciso dizer que tomei o celular da mãe dela aos gritos de “podia ser seu filho, sua vaca”. Sorte a minha chegou Policia, Corpo de Bombeiros e fui apoiada por todos. Um dia depois o jovem morreu, 23 anos e deixou um filho pequeno .E até hoje não vejo sentido em filmar um menino agonizando. A morbidez não tem fim. Basta lembrar que depois do assassinato da Eliza Samudio, pelo goleiro Bruno, se soube que ela havia trabalhado num pornô e o filme esgotou em todos os camelôs do Rio de Janeiro. Assistir um filme pornográfico com uma mulher que teve um fim tão horroroso, me remeteu a necrofilia. Sem tirar nem por.

Em 1991, aos 20 anos de idade, marquei de sair com uma amiga. Íamos dançar. Só que antes ela precisava passar em um aniversário de uma amiga de infância para fazer uma social. Chegando lá., vendo meu nome numa lista de convidados, perguntei quem era. ”È a Cacau, atriz, a Claudia Abreu, sabe quem é?” Lógico que sabia, até porque semanas antes tinha ido assistir Um Certo Hamlet, em que ela era a personagem principal. Fomos as primeiras a chegar, a amiga atriz foi um doce comigo e de repente parecia que o Projac inteiro tinha se mudado para lá. Vera Holtz, Vera Fisher, Susana Faini, Victor Fasano e eu ali, tentando não destoar do ambiente. Eis que um casal lindo, ela de blusa de couro acinturada, ele com toda aquela aura de galã, quando iniciou a música e começaram a dançar, roubaram a cena. Ela sílfide, vaporosa, elegante , rodando pela sala executando uma dança de salão. Era a Daniella Perez e o Raul Gazola. Enquanto eu admirava o par, não podia imaginar o que o futuro reservava. No ano seguinte ela seria assassinada por seu par romântico na novela., Guilherme de Pádua e sua mulher Paula Tomaz. Com 19 estocadas. No mesmo dia que o Collor levou o impeachment. Mas foi um acontecimento tão surreal, tão absurdo, tão tenebroso, que o Collor ter caído passou a ser assunto menor. O que se seguiu daí em diante foi uma sucessão de histórias e de fatos. O pior deles a audácia do assassino de ir ao enterro, quando ainda não se sabia o culpado, abraçar a mãe da moça e o viúvo. No fim das contas, pegaram 7 anos de cadeia, Paula se casou e tem três filhos e Pádua virou pastor e apoiador do Bozo, porque como sabemos, nunca falha. Esse acontecimento, da moça bailando num dia e no ano seguinte nas manchetes de todo país, morta daquela maneira torpe, talvez tenha sido o evento brutal que mais me impressionou.

Quanto a festa, acabei indo para a varanda da casa e me juntando aos bons. Luis Gustavo, Tato Gabus Mendes e Aracy Balabanian. Ouvi histórias fabulosas sobre a TV brasileira e seus primórdios, de chorar de rir. Fecho essa crônica com a história contada pelo Luis Gustavo, dos tempos que não existia video tape e tudo era gravado ao vivo. Ou seja, não podia ter um erro. Era um Teleteatro, Joana D”arc. Um personagem importante ,um dos atores principais, segurou Joana D’arc e gritou para os soldados : ”Enforquem-na!” E eis que do nada aparece um figurante, que tava lá fantasiado no meio dos outros, mas que teve a sagacidade de puxar um isqueiro Bic do bolso e dizer: ”Não seria melhor queimá-la”? E assim salvou-se a peça. Tudo pelo script. Sem mais.