Texto escrito a quatro mãos, uma brasileira fala da Argentina, um argentino fala do Brasil, o encontro de suas vozes: Família Puccio, Família Bolsonaro, Clãs

“Toda as Famílias Felizes se Parecem, Mas Cada uma é Infeliz a Sua Maneira”

                   (TOLSTOI)

 

Anos atrás fui convidada para uma reunião de estudantes e professores latino-americanos de língua hispânica da UFBA. Entre colombianos, argentinos, mexicanos, chilenos, peruanos, figurava eu lá, como a única brasileira. Em meio a doses generosas de tequila, eu tentava timidamente acompanhar as conversas. A cada momento um deles botava uma música para tocar e, independente do ritmo, e do país, todos acompanhavam cantando e fazendo coreografias. Foi nessa festa que tomei ciência que o nosso Sidney Magal era apenas um cover do “cigano” argentino Sandro, que fazia sucesso estrondoso por toda Latino América e o portador dessa notícia, um colombiano, ainda arrematou: “Ele morreu repentinamente, de enfarto; minha mãe chorou muito.” Para a coisa ficar melhor, soube que as letras de Sandro eram traduzidas para Magal pelo Mago Paulo Coelho. Muita informação para assimilar, mais uma dose de tequila, por favor.

Lá pelas tantas alguém fala que um amigo boliviano ligara dizendo que não iria. E começaram a discorrer sobre a namorada do sujeito. A teoria é que ela, aluna dele da pós, mantinha-o na rédea visando o futuro acadêmico. Inclusive rolaram fofocas robustas dela tentando derrubá-lo para arrumar alguém um plano acima dele, na universidade. Uma colombiana gargalhou e resumiu: “Síndrome de Malinche.” Todos se escangalharam de rir. Menos eu. Malinche era uma doença? Uma gíria? Até que um argentino veio em meu socorro e me explicou que Malinche era uma índia poliglota, que se aliou a Cortez, tradutora especial da equipe espanhola, e quem desenhou para o colonizador a geopolítica de diversos grupos que ocupavam o México, introduzindo-o entre os inimigos e aliados dos astecas. Sua ajuda foi fundamental para Cortez negociar alianças e travar guerras que lhe permitiram  ter domínio sobre o Planalto Mexicano. Ou seja, Malinche é a traidora de seu próprio povo, a quem ajudou a subjugar.

Saí da festa sabendo que Magal era cover de um fulano aí que todo mundo, menos nós, conhecíamos, que Malinche era sinônimo de mulher “chave de cadeia”, que não tenho competência pra beber tequila e que os latino-americanos de língua hispânica possuem uma troca cultural muito superior à nossa. Posso arriscar que seja a barreira do idioma, mas acredito que por sermos tão grandes e tão diversos, acabamos nos fechando para o que acontece aqui ao lado.

Novamente senti esse isolamento ao assistir o filme El Clan, de Pablo Trapero. Assistir a esse filme me fez puxar da memória uma experiência pessoal. Nasci nos anos setenta e até os 14 anos de idade (quando em 1985 pela primeira vez, desde o golpe militar, assumiu mesmo que não pelo voto direto, um governo civil) vivi num Estado de Exceção com todos os agravantes que isso implica. A censura, o conteúdo dos livros didáticos que eram utilizados nas escolas, em especial os livros de história, que glorificavam o governo militar e se calavam sobre as revoltas populares que permearam a história brasileira, a impossibilidade de discutir com desconhecidos o rumo da política, nada que era conversado dentro de casa poderia ser falado fora do âmbito familiar. Essa era a ordem. No entanto, na infância, eu nada sabia sobre as consequências que descuidos do gênero poderiam  gerar. Isso só foi a mim explicitado quando meus pais se aproximaram de vizinhos que tinham acabado de chegar da Argentina, um casal com duas filhas da minha faixa etária. Por mais que eu perguntasse, as meninas nunca me respondiam o porquê de terem deixado amigos e parentes em sua terra natal. Certa feita meu pai me flagrou nesse interrogatório, movido pela minha curiosidade infantil, me chamou num lugar reservado e falou: “Nunca mais pergunte isso. E nunca fale deles pra ninguém. Eles saíram da Argentina porque são perseguidos políticos, se voltarem pra lá morrem.” Nesse momento fui apresentada a dura realidade do governo ditatorial. Tive consciência de que a morte era uma decisão do Estado, para aqueles que discordavam  da política vigente.

Pablo Trapero, diretor do filme,  é meu contemporâneo. Vivíamos em países diferentes, temos histórias de vida que em nada se assemelham, mas ambos crescemos dentro do regime ditatorial e fomos testemunhas da transição para a democracia na adolescência. Trapero tinha 13 anos de idade quando a história dos Puccio foi desvendada. Acompanhou tudo através de manchetes de jornais e revistas. Foi testemunha ocular do espanto da sociedade argentina diante desse triste episódio. Obviamente, quando se propôs a fazer o filme, fez uma pesquisa profunda sobre a história dos Puccio. Estranhou que, até então, antes do lançamento do filme (que alcançou o êxito de ser um dos filmes mais vistos pela Argentina), não havia muita informação, nem dos jornais da época, nem livros, nem textos de maior densidade. Teve que recorrer a entrevistas com juízes, advogados, vizinhos, treinadores de Alejandro Puccio do rugby; investigação necessária para a montagem do roteiro, traçar o perfil de cada membro da família, e, sobretudo, para a construção dos diálogos ente os seus integrantes.

O filme, El Clan, apesar de ser ficcional, como dito anteriormente, parte de uma história real. História esta que assombrou o noticiário policial da década de 80. Achava que só eu ignorava esse acontecimento, mas vi brasileiros de todas as idades que não se lembravam desse absurdo. Vamos lá:  A família Puccio era uma família respeitada, querida, que vivia num casarão no bairro nobre de San Isidro, na zona norte da região metropolitana Grande Buenos Aires, já à época uma área requintada e exclusiva. Formada pelo pai, Arquímedes, um pacato contador e ex-diplomata aposentado, que mantinha uma pequena rotisseria de bairro e cuja única excentricidade para os vizinhos era varrer a porta de casa várias vezes ao dia. A mãe, Epifanía, professora, preocupada com a organização da vida familiar, e por cinco filhos de diferentes idades: Alejandro, Adriana, Guillermo, Silvia e Daniel (Maguila). O primogênito, Alejandro, era um atleta famoso, jogador de rugby do time Los Pumas, dava autógrafos e estampava capas de revistas esportivas. As meninas eram bonitas, estudavam em boas escolas, tinham bons relacionamentos. Tratava-se de uma típica família de classe média, como tantas que existem no ambiente urbano. Arquimedes e Epifanía passavam para quem os conhecia  a imagem de pais preocupados com a criação dos filhos, para o desenvolvimento de cidadãos que se encaixarão perfeitamente na sociedade.

Corria o ano de 1985. O país ainda se recuperava da última e mais traumática ditadura militar (1976-1983) responsável por mais de 30 mil mortos e desaparecidos. Neste ano vem a público uma história que chocou todo o país, que mais parecia um enredo de filme de terror. O próprio Trapero afirmou, enquanto realizava seu longa-metragem relatou “ser um desafio parecer verossímil uma história que parece inventada”.  O que realmente horrorizou a população argentina não foi propriamente o sequestro dessas pessoas, mas o perfil dos sequestradores, que não apresentavam nenhum desvio social. Acusados de sequestro, seguidos de fria execução, mesmo após o pagamento do resgate. A singularidade dessa situação advém do fato de usarem a própria residência como cativeiro, atuando  livremente nessa atividade delituosa por três anos e, para tornar tudo mais espantoso, das ações dos Puccio contarem com a participação dos filhos. Alejandro era quem fornecia informações fundamentais dos possíveis sequestrados, oriundos das classes mais abastadas e com quem mantinha estreito contato, além de servir de isca no momento do rapto. Seu irmão Daniel (Maguila) que estava na Nova Zelândia, retornou para a Argentina a pedido do pai para participar do último sequestro e o pai, Arquímedes Puccio era o mentor dessas atrocidades. Quanto ao resto da família, eram de uma cumplicidade passiva. Impossível que com as vítimas presas em cômodos da própria residência, no banheiro ou no sótão, eles ignorassem a existência de um corpo estranho. O que leva a uma sobreposição estranha e incômoda entre a violência mais repulsiva e um trivial cotidiano doméstico.Quatro pessoas sequestradas e três executadas após pagarem o resgate.

Quando desmascarados, foi inevitável que houvesse  intensa comoção nacional. Não houve jornal, revista ou programa no qual não se falasse deles. Houve até quem os defendesse, acreditando que a família estava sendo vítima de uma conspiração. Como um pai que ajudava nas lições escolares da filha mais nova, cumprimentava os vizinhos, poderia ser esse monstro? Como Alejandro, jogador do mais famoso time de rugby do país e com projeção internacional, poderia entregar pessoas conhecidas, integrantes de seu círculo social? Os argentinos tomaram consciência que o inimigo não vinha de fora, não era um outsider: pelo contrário, podia estar na forma de um simples vizinho e sua família. Esse espanto da sociedade  corrobora com o pensamento de  Primo Levi: “A maioria dos guardiões dos campos de concentração não eram verdugos natos, não eram monstros: eram homens normais.”

Não há como explicar as ações dos Puccio sem contextualizar o momento histórico em que estavam inseridos. Ente os muitos golpes de Estado vividos pela Argentina, talvez o que tenha sido mais contundente foi o de 1974. O governo de “Isabelita” Perón foi derrubado e instaurou-se o governo militar que mais deixou marcas no corpo social e na memória coletiva. Esse regime organizou um forte aparato repressivo, que tinha como principais métodos o sequestro, o aprisionamento de pessoas em centros de detenção clandestinos, que serviam como local de tortura e assassinato. Justificava-se o golpe com a desculpa de eliminar a corrupção e dar fim a violência que ameaçava as instituições. A ideia central era a eliminação do que denominavam inimigo ideológico interno- chamados de subversivos. Na conjuntura anterior ao golpe, ações repressivas já vinham sendo praticadas por facções ligadas ao governo peronista e ao exército – como é o caso dos grupos Aliança Anticomunista Argentina (Triplo A) e o Comando de Libertadores da América, entre outros. Civis  foram acionados para participar da repressão, entre eles funcionários públicos, delinquentes comuns, participantes das organizações de extrema direita. É nesse ambiente que encontramos Arquímedes Puccio. Ele sempre esteve ao lado do poder de ocasião, se relacionando com o alto escalão político. Por relações familiares, em 1947 ingressou no Ministério das Relações Exteriores, sendo inclusive  condecorado como o mais jovem diplomata na Argentina, permanecendo nesse cargo até 1963. Vale destacar que, ao longo de seus vários anos na diplomacia, o país teve alguns golpes, contragolpes e ditaduras. Participou do serviço de repressão antes mesmo do golpe militar. E perpetuou essa conduta no que poderíamos chamar de Estado Mayor da Argentina. Além de membro do Serviço de Informações da Aeronáutica, fez parte da Tríplice A e da SIDE- Serviço de Inteligência Do Estado .Se ele foi uma pessoa sinistra na história policial, também o foi na história política. Sequestrar, torturar e executar não constituíam novidade para ele.

O golpe de 1976, que resultou na ditadura mais sanguinária da América do Sul, foi o resultado de um plano deliberado e consciente. A intenção era promover modificações profundas das estruturas sociais, políticas, econômicas  baseadas na repressão violenta. Quando o autor do delito é o próprio Estado, ocorre um dano duas vezes ao cidadão. O primeiro quando esse é vítima das práticas coercitivas perpetradas contra ele. O segundo, quando não tem possibilidade de defender-se por meio das instituições estatais. No projeto orquestrado pelas forças armadas na Argentina, o terrorismo de estado encontrou seu lugar na caça às pessoas a quem chamavam de “inimigos”. O desaparecimento de pessoas e os centros de detenção clandestinos tornaram-se uma modalidade comum. Andrés Zarankin afirma:

Los Centros Clandestinos de Detención (CCD’s); utilizados por la dictadura militar en Argentina entre 1976 y 1983, para destruir la movilidad, aplicación de tormentos, falta de alimentos, condiciones climáticas extremas (frío o calor), prohibición de comunicación con otras personas, substitución del nombre por un número, entre otras, son dispositivos que tienen, principalmente, como foco de acción directa cuerpo y mente del detenido.

Os militares do poder consideravam o indivíduo tomado como subversivo como irredimível ideologicamente. Videla declarou em uma entrevista sobre as vítimas da repressão: “Yo quiero significar que la ciudadanía argentina no es víctima de la represión. La represión es contra una minoría a quien no consideramos argentina”. Isso justificava a morte sem apelação, sentenciada e executada além dos limites da lei. A suspensão dos direitos individuais  transformava os supostos subversivos em corpos impunemente extermináveis.

Apesar de todas as medidas tomadas pelas Forças Armadas no período ditatorial, nenhum dos supostos objetivos com que eles tomaram o poder logrou êxito, exceto o da eliminação do que chamavam “subversivos”. Uma extensiva política econômica liberal sucateou as indústrias nacionais e o poder militar foi chegando ao seu ocaso. O domínio militar estava fragmentado, devido à divisão de poder entre as três forças. A existência de um Estado terrorista e clandestino foi desgastando as instituições e a própria organização estatal.

Sua última cartada, com o intuito de unir as forças militares e reacender o orgulho nacional entre os argentinos por meio de um objetivo comum foi a declaração de guerra à Grã-Bretanha na tentativa de recuperação das Ilhas Malvinas, sob ordens do ditador Leopoldo Fortunato Galtieri, em 1982. Jovens argentinos, a maioria dos quais eram civis cumprindo serviço militar obrigatório na época, foram mandados, sem nenhum preparo, para lutar contra o experiente Exército inglês. Saldo final: Morreram 649 argentinos no combate, que não durou nem dois meses e calcula-se que cerca de 400 se suicidaram após o conflito. O frio, a fome, os maus tratos impingidos aos jovens pelos líderes militares; essa guerra ainda é uma ferida aberta na história da Argentina contemporânea. O ex-combatente Dario Gleriano, cujo relato está numa denúncia coletiva apresentada pelo prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel,  à Suprema Corte, objetivando  que as humilhações impostas durante a guerra de 74 dias sejam declaradas crimes contra a humanidade, acredita que a repressão exercida pelos militares contra os opositores políticos no continente, funcionou da mesma forma com os recrutas durante a guerra. Se no continente as pessoas desapareciam, nas Malvinas as pessoas eram presas na terra. A máquina repressora funcionou da mesma forma na Guerra contra a Grã-Bretanha.

É certo que o fracasso dessa campanha está diretamente ligado à volta da democracia. No governo castrense, enquanto uns, por medo e terror, não ousavam levantar a voz, outros encontraram nesse panorama uma oportunidade de fazer-se ouvir, destacando-se as organizações humanitárias e as Madres de Plaza de Mayo. Após a derrota das Malvinas, tornou-se para essas mulheres uma meta de vida a busca não só da localização dos corpos de seus filhos e familiares desaparecidos durante os anos da ditadura, mas ter ciência do que lhes aconteceu e em que condições. Fez-se necessário o estabelecimento de políticas que não permitiriam a repetição das ações repressivas. A prática política exigia um redimensionamento, assentado na ética e no comprometimento com os acordos básicos da sociedade.

Em 10 de dezembro de 1983 assume o presidente democrático eleito Raúl Afonsin. Sua promessa de governo baseava-se na volta da democracia, aliada a uma série de propostas de modernização do Estado e da sociedade. Convencendo grande parte da população argentina que a democracia era a solução, venceu as eleições nacionais. Sua herança, porém, foi uma grave crise econômica e de hegemonia do aparato repressivo da ditadura e dos desaparecidos. Citando Maquiavel, em O Príncipe, o poder também pode ser conquistado pelo crime, pela matança de cidadãos, pela traição e foi com atitudes criminosas que o Estado Militar Argentino conseguiu se consolidar, mantendo uma legião de criminosos que permaneceu, mesmo após a redemocratização de sua sociedade.

Arquímedes Puccio fez parte dessa legião clandestina e invisível. Assim como seus comparsas, Guillermo Fernández Laborda, a quem conhecia desde 1973, quando se formou na Escuela Superior de Conducción Política, o tenente coronel Rodolfo Victoriano Franco (que tinha a função de providenciar armas e monitorar a polícia através de infiltrados) e Roberto Oscar Díaz, o chofer do grupo. Todos, com exceção de Díaz, estavam envolvidos com o alto comando militar. Eles tomaram a iniciativa de privatizar a prática de sequestro em 1982, nos estertores da ditadura; não tendo nenhum tipo de ideologia incutida em seus atos, visaram apenas o aspecto mercadológico, utilizando o know-how que haviam adquirido durante a repressão e contando com a leniência de alguns importantes integrantes do governo militar. Continuaram dando seguimento aos seus delitos até 1985, quando, após uma mal sucedida tentativa de resgate do valor cobrado pelo sequestro de uma senhora da alta sociedade portenha, mantida por meses no sótão da casa da família, resultou numa eficaz ação da polícia, efetivando assim a prisão da família Puccio e de seus colaboradores.

Uma das coisas que mais chamou minha atenção nestes meus anos no Brasil é a percepção, ou falta dela, que a chamada classe média tem de si própria, ou mesmo do que significa pertencer a tal (tais) grupo social. Em se pretendendo recorrer a terminologia e sentido históricos, embora desatualizados, a classe média brasileira pode ser considerada isto. É claro que este fenômeno não é privilégio ou falta exclusiva do brasileiro, pois, ao longo do século XX, o(s) conceito(s) de classe foram ampliados, esticados, deturpados e perdidos em nome do valor do rótulo por cima e por fora de tensões clássicas de escalões e conceituações clássico-contemporâneas. Assim, neste torturado imenso canto do mundo que é a América Latina, classe, no sentido mais vulgar e rameiro e na boca suja de quem a levanta e agita como escudo e espada, é sinônimo de pertencimento; melhor dizendo, de não pertencimento do outro. “Ser” classe média é muitas coisas, mas, acima de tudo, representa um leque de não ser. Ser classe média é não ser aqueles pobres sem instrução, sem organização, sem acesso. É manjar dos paranauê do que realmente importa na estrutura de consumo que conta, a do entretenimento, do bom viver. É ter acesso a educação de qualidade, pois a boa e verdadeira é a que se obtém pagando nas escolas e colégios particulares e nas universidades públicas (o que requer uma análise à parte, mas não vamos nos afastar tanto do eixo agora).

Preciso aclarar que eu, como qualquer pessoa que tenha nascido e crescido na Buenos Aires das décadas de 1950-2000, morando em casa própria, mesmo que esta fosse um minúsculo apartamento em um semi-cortiço, com comida todo dia e sem a necessidade de pular ou abandonar o colégio para começar a trabalhar com 14 ou 15 anos, entre outras coisas, sou considerado parte da classe média argentina. Após vida, educação (felizmente, pública, sempre), experiências e desarraigo, em resumo, o que me fez apertar os olhos e ganhar uma visão mais apurada de algumas coisas e muitas pessoas, posso falar que me encontro bem mais preparado para falar dos “errores y horrores” de classe que açoitam a população (neste caso) brasileira.

Para início de conversa, e mesmo tentando pegar leve, pois a ignorância abunda globalmente, devo expressar o espanto que me produz ver o quão despreparada para a vida mundial e local a população brasileira é. Mesmo as bolhas, pois isto são, das classes médias urbanas. Burras. Brutas. E aqui viro o timão gradativamente para irmos encaminhando para onde eu pretendo chegar.

Estes cidadãos, os que têm o acesso, têm o dever tácito de não ser como os outros. Isto implica em aparecer, falar, soar, dos seus próprios jeitos, nunca como os mal vistos. Tudo na ignorância, diga-se de passagem, de quem não faz ideia do que está fazendo perante o mundo, mas mesmo assim indo e agindo, andando e cagando pela realidade. Junto à falta de noção de mundo, de sociedade, há uma diretriz que enverniza a flegma capenga da classe média. O suma cum laude ideológico (pois sim, tudo é ideologia) da cafonice maldosa: ser gente de bem. Gente de bem não se mistura com quem anda torto – sempre e exclusivamente em vagas e falaciosas definições de sachê de açúcar – e não faz a coisa errada. Existe uma aviltante inópia cognitiva, ou ética, ao tentar se esclarecer o que é certo; é claro, quando nos definimos para demarcar o outro e sem visão de nós mesmos, pouco importa o que somos.

As pessoas de bem, além do mais, o são porque elas assim o decidiram. Constituição nenhuma, nem qualquer legislação, define o que isto significa. Por comparação negativa, quem se considera gente de bem é quem sabe que não se encaixa em uma definição descritivo-punitiva de quem é “do mal”. Mas peraí que a melhor parte vai chegando. Para se considerar não pessoa do mal basta não ter sido pego e/ou punido. E só. Por que isto é essencial e conclusivo? Porque delimita e exclui; poupa quem não aparece visível e publicamente humilhado no fait accompli.

Assim, quem despreza uma pessoa não heterossexual ou heteronormativa, mesmo que seu ódio e desprezo sejam encarnados, colossais, nefastos e anti-humanitários, precisa apenas não sair espancando bichas, insultando sapatas ou esquartejando transexuais para que nada de errado haja com ele. Quem, na sua proverbial ignorância das religiões e dos fenômenos cultos e igrejas, na sua miopia histórica e social, estabelece que sua fé é a única e a boa, não peca ao considerar que as outras são crendices e fetiches, pois o falso laicismo do país o ampara. Quem branco se enxerga, sabe o que não é, mesmo que branco não seja e precise tornar-se malabarista dos tons e nomenclaturas para se acomodar na pureza que a branquitude espontaneamente outorga. Quem não anda no beco fumando maconha fuleira ou crack se exclui das populações usuárias de drogas e, principalmente, do público consumidor que sustenta o tráfico em larga escala. Quem casa e descasa legalmente e bem de vez em quando vê os filhos de um punhado de pais vivendo com a mãe que os fez e fecha o obturador para os próprios, nascidos e abortados de outras mulheres. Quem, enfim, se espanta com os sintomas da desigualdade, corre para sua sala e doa para uma associação não governamental de luta contra o câncer infantil ou, no ápice da bondade humana possível, junta não perecíveis para os pobres. Que detesta. E teme. E não é.

Toda família de bem luta batalhas inócuas para parecê-lo. Toda luta deste tipo é em vão para o conjunto da sociedade, é claro. No entanto, quando aparece uma família maior, por mérito ou corrupção assassina, a família brasileira de bem se espelha, quer se reconhecer e se molha na idealização introjetada do que a família-de-bem-mor projeta.

Pouco importa se o lugar na mídia é o de bufão de circo dos horrores, se o espaço social é inexistente ou se a matéria política é de negação e destruição. A alvorada traz um modelo que nos representa e para ele torcemos. De nada adianta a escassez de recurso humano, a inexistência de empatia, o discurso discriminatório e inepto: temos lá o que nos referenda. Aliás, a quanto mais se descasca e aparece, mostrando suas facetas podres, mais a nós se assemelha, apagando assim a necessidade de sublimar ou esconder o que nós somos.

Muito se poderia conectar e comparar entre a família-de-bem-mor brasileira hoje mal ocupando a presidência e em metástase nos poderes e instituições do Estado e uma família como os Puccio. As origens do fundo do anonimato social; os trejeitos brancos e cristãos; os perfis variados, porém sempre aceitos, dos seus integrantes. A aprendizagem de modos, intrigas e criminalidade do seu líder ao longo de uma vida institucional entre os estamentos e círculos castrenses, paramilitares, políticos e milicianos. O arrivismo social, político, institucional e pan-apartidário à força da história que as fez.

Uma grande, imensa, diferença é que, em um país como o Brasil, com ditadores e criminosos, criminosos e ditadores, anistiados, e ditadura apagada, pós-colonialismo rampante e uma população sem sequer contando com repertório lexical – e muito menos, conceitual –, as ramificações políticas e esquemáticas das mazelas malditas passam despercebidas, ou não enxergadas. Em um país cuja população ainda discute se houve um golpe levando a uma ditadura de 21 anos; melhor dizendo, parte dela, pois a maioria não tem a competência para discutir coisa política nenhuma; um golpe-em-democracia e a saturação de males ideológicos passam batidos. De que importa se os sequestros são da lei e o assassinato dos direitos? A mesa foi posta, em período democrático e sob o sol, para se servir e se utilizar de sofismas primitivos e racio-símios que deletassem a ética comportamental, a lógica científica e humanitária e a palavra constitucional.

De bravata em bravata, fanfarronice após tática intimidatória, a família Bolsopuccio emergiu do plasma pestilento do volume morto da politicagem local para o patamar presidenciável, lubrificada pela maioria do resto da cena política e saltos ornamentais discursivos da Grande-Mídia e aliados-lacaios em redes. Uma imprevista família criminosa agora no poder central para chamar de seu o país, brincando, em vez de sequestro e extorsão, de supressão e genocídio.

 

Céu Bauler –

Marcelo Andrés Nayar – Professor Nacional Superior pelo INSS Dr. Joaquín V. González, professor de inglês e espanhol. Nascido e criado em Buenos Aires, mudou-se para São Paulo em 2009. Lê, escreve e fala, e também escreve em gênero literário nas horas vagas das horas vagas.