por Richard Klein | 11 abr, 2020 | Brasil, Comportamento, Literatura
Em termos de família, não estávamos sós no Rio de Janeiro. Embora isso nunca tivesse pesado na sua decisão de emigrar, Rafael, tinha uma prima distante morando em Copacabana. Duscha e o marido tinham se mudado da Alemanha para o Rio antes da guerra. Ao contrário dos meus pais que tiveram filhos numa idade avançada – Rafael tinha sessenta e dois e Renée quarenta e dois quando nasci– ela teve seus filhos jovem, logo que chegou. Portanto, nossos primos eram uns quinze ou vinte anos mais velhos.
Minha prima acabaria se tornando uma atriz e cantora famosa; Bibi Vogel. Com seu jeito frágil, seus olhos verdes penetrantes, seus lábios escuros e seu corte de cabelo hippie ela foi uma das musas de sua geração. No entanto, não foi só a beleza que a trouxe fama. Era uma excelente cantora, e com seu estilo parecido com o de Joan Baez, chegou a gravar álbuns de algum sucesso. Contudo, Bibi se tornou mais conhecida como atriz, mostrando seu talento cedo num dos papéis principais na versão brasileira de Hair, o ícone musical da contracultura dos anos 1960.
Quando eu era bebê, antes de virar famosa, Bibi se mudou para Nova York. Lá, tentou a sorte com a banda de bossa nova de uns amigos. Eles eram bons e aproveitando a popularidade da música brasileira, conseguiam lotar barzinhos, casas noturnas e até teatros. Depois de um ano ou dois, Bibi voltou para visitar os pais. No Brasil, ouviu “Mas Que Nada”, o sucesso de Jorge Ben (“ôôôô… Mariá aiôô, obá, obá, obá…”).
Encantada com seu balanço, quando voltou a Nova York, apresentou a canção à banda. Todos adoraram na hora. Depois de adotada, ela passou a ser uma das favoritas dos músicos e do público. Pouco depois, minha prima decidiu abandonar seus companheiros para ir atrás do namorado que estava de mudança para a Califórnia. Sem muita cerimônia Sérgio Mendes a substituiu por uma vocalista americana. Alguns meses mais tarde, conseguiram assinar um contrato com uma gravadora que trouxe o mega produtor Quincy Jones para ajudar. Quando o disco saiu, Sergio Mendes e o Brasil 66 transformaram o sucesso de Jorge Ben numa referência internacional.
Depois da aventura americana, Bibi voltou ao Brasil e fez carreira como atriz na TV Globo. Contudo, a vida de artista pode ser dura e quando o bolso aperta, cada um se vira como pode. Ao me tornar adolescente, fiquei boquiaberto ao deparar com uma foto da minha prima seminua na capa da Status – a primeira revista “masculina” do Brasil. Mais chocante ainda, acabaria também vendo imagens da Bibi estampadas em cartazes de pornochanchadas. Esse era um estilo de filmes com elementos das chanchadas, comédias musicais dos anos 1950 com Oscarito e Grande Otelo, mas com um tempero soft-pornô. Embora péssimos, lotavam salas de cinemas com homens solitários da classe baixa e adolescentes da classe média com documentos falsificados dizendo que eram de idade. Os dois grupos gastavam suas economias para ver atrizes mostrando seus seios em situações sexuais.
Se só o fato de ter uma prima envolvida nisso era estranho, para tornar a coisa ainda mais bizarra, sua mãe, Duscha, era a cantora principal no coral da nossa sinagoga. Nos feriados importantes do calendário religioso judaico, ela agraciava a comunidade com a sua voz treinada e angelical.
O que mais me confundia era que, apesar das conquistas artísticas da Bibi e da sua imagem serem contrárias a tudo o que meus pais pregavam em casa, eles não conseguiam deixar de sentir orgulho dela. Como em qualquer família de classe média, sucesso era mais importante do que caracterizavam como virtude. Não concordava com esses conceitos e nunca deixei de ser fascinado pela minha prima mais velha que nos encantava contando e encenando histórias e nos lendo trechos das suas peças de teatro favoritas quando éramos pequenos. Além de ser muito culta, tinha uma personalidade que impunha respeito, foi uma das primeiras feministas do país e era enturmada com a nata artística da sua geração.
Não podia deixar de sair em sua defesa quando meus amigos faziam gracinhas a seu respeito.
“E aí, Rique! Está cobrando quanto pela meia hora com a tua prima?”
Para mim, Bibi foi uma inspiração importante: se alguém da minha família tinha conseguido se dar bem no meio artístico, por que não eu?
*
Em casa, na escola e nos círculos de amizade de meus pais, todos me consideravam “artístico”; algo que nunca soube dizer ao certo se era um elogio ou uma forma educada de dizer que era um caso perdido. Certos ou errados, gostava de desenhar e era vidrado em cinema e em livros; se a história me tocasse passava semanas fantasiando. Porém, acima de tudo, a música mexia comigo. Musicalidade era um gene que corria na família, não só do lado da Bibi mas, principalmente, do lado da minha mãe. Por décadas, meu tio, o maestro Sydney Torch – o primeiro da família do meu avô Alec a se mudar da Estonia para Londres – conduziu a orquestra de concertos da BBC. Duas gerações mais tarde, Ben Mandelson, meu primo de Liverpool, seria guitarrista do consagrado bardo da esquerda britânica, Billy Bragg, nos anos 1980.
Como minha mãe proibia qualquer tipo de gênero popular em casa, cresci ouvindo música clássica e era um apaixonado. Nos fins de semana, acordava cedo e aproveitava a sala vazia para ligar a vitrola e ficar conduzindo orquestras invisíveis com a minha caneta telescópica japonesa.
Apesar da falta de entusiasmo de Rafael, vendo uma promessa de talento, Renée providenciou aulas de música. O professor que a escola ofereceu era uma pessoa especial. Mr. Stansfield tinha vindo para o Rio por meio de uma instituição de caridade ligada à Igreja da Inglaterra. Ele sofria de paralisia cerebral e os sintomas eram severos – tinha uma completa falta de coordenação motora que tornava o simples ato de andar difícil. Contudo, isso não afetou sua habilidade de ensinar um menino de sete anos a tocar flauta doce.
Depois de vencer a dura batalha para conseguir tocar a minha primeira canção – Au Claire de la Lune – o instrumento passou de inimigo a meu melhor amigo. Descobri a magia de fazer e de criar música e passei a tocar quando e onde podia. Os sons e as frases que saíam da flauta me ligavam a uma energia sutil que parecia escapar à maioria das pessoas. Apesar de meus inimigos da escola encararem minha nova descoberta como mais um motivo para me atacar, vizinhos, professores, família e amigos me encorajavam.
“Ele traz vida à escola com a sua flauta”, disse uma professora à minha mãe, se referindo às minhas aventuras musicais explorando o eco dos corredores vazios enquanto esperava pelas aulas do Mr. Stansfield.
“Que graça teu filho tocando música nesta idade”, diziam os vizinhos, opinião talvez suspeita por causa da etiqueta polida do prédio.
De qualquer forma, depois de mais ou menos um ano tendo que aguentar minhas intermináveis viagens musicais, todos os encolvidos ficaram secretamente aliviados quando decidi trocar a flauta por uma nova paixão mais silenciosa e mais ligada ao ar livre: o jacaré ou o bodyboarding.
Depois do estágio infantil de apostar corridas com a espuma d´água, passei a usar uma prancha de isopor e a me jogar na frente das ondas para que me levassem. O próximo passo foi me aventurar até onde elas quebravam e depois gradualmente aprender a cortá-las para os lados quando estavam arrebentando. Depois que aprendi a nadar fui ganhando confiança no mar e o tamanho das ondas foi aumentando. Entusiasta do esporte e morando a poucas quadras da praia, fui aprimorando minha técnica. Com o tempo as pranchas foram ficando menores, até que as deixei de lado e passei a usar somente as mãos com a ajuda de pés de pato. Quando percebi, já fazia parte fo grupo dos “casca grossas”.
Pegar jacaré passou a ser a melhor coisa do mundo. Lá longe, na água funda e despoluída, atrás da forte arrebentação, debaixo do sol quente, com os edifícios distantes, tudo era puro, simples e calmo. Havia apenas o corpo imerso no vasto oceano em harmonia com sua dinâmica incontrolável, seu sal e seus sons. Quando as ondas começavam a se formar no horizonte, era como estivessem nos desafiando. Para pegá-las, tínhamos que nos posicionar no lugar perfeito e começar a nadar para a frente na velocidade exata até que o mar nos permitisse fazer parte de sua parede de água. Depois disso, era só guiar nossos corpos, nos movendo ligeiramente para prolongar o êxtase o mais que possível.
As ondas grandes eram medonhas, mas também eram as mais divertidas. No auge de minha carreira de bodyboarder, dominava ondas de até dois metros e meio, quase do tamanho da parede de um quarto, que vistas por baixo pareciam enormes. Sempre havia um ponto de não retorno, quando ainda se podia olhar para baixo e pensar sobre o que se estava prestes a fazer. Nesse ponto, o cara tinha que ser meio doido para continuar, mas, em noventa por cento dos casos, o desafio mais que valia a pena.
O ponto alto de pegar jacaré era ficar envolto pelo tubo da onda, ou entubar. Esse é, com certeza, um dos melhores lugares para se estar no planeta: uma efêmera caverna d´água formada pela natureza num momento único. Para um menino, havia uma poética erótica, ainda que subliminar, de se estar ali com o corpo rígido deslizando pelo túnel de agua do cosmos.
Esse tipo de comunhão com a natureza era maior e melhor do que qualquer outra coisa que tinha aprendido em casa ou na escola. Ao desafiar o oceano me sentia forte, corajoso e acima de tudo harmonizado.
Talvez por noventa por cento do corpo ser composto de água – a energia do mar servia como um carregador de baterias natural. Depois dessas sessões, exausto mas energizado, andava pensativo de volta para casa na beira do mar. Era como se os passeios de madrugada na praia com meu pai retornassem num novo patamar. Embora sem a sua presença, as questões metafísicas e existenciais voltavam ainda mais fortes. Aquele bem-estar absoluto me levava a refletir sobre minha existência bizarra e meu destino de ter que conciliar mundos tão distintos. Ficava pensando que, apesar daquela complexidade insuportável, era apenas um cara como qualquer outro. Por que deveria ser o menino “especial”, solitário e estudioso, que meus pais esperavam que eu fosse? Em casa censurava aqueles pensamentos. Mesmo assim, quando contava minhas façanhas, elas eram acolhidas com apreensão; havia o medo que eu fosse seduzido por atividades socialmente questionáveis que acabariam por me desviar do futuro brilhante reservado a meninos como eu. Para Renée e Rafael, o culto ao físico e a coragem praieira eram coisas para os vândalos cabeludos e insolentes que estavam tomando conta das praias e das ruas cariocas. Para eles e seus amigos, surfistas e roqueiros estavam estragando não só o Rio, mas o mundo. As nuvens de um conflito estavam se formando.
…
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por Richard Klein | 4 abr, 2020 | Brasil, Literatura, Mundo
Quando chegamos na escola, haviam bandeiras inglêsas e brasileiras penduradas por todo lado. Ao descer do ônibus, a primeira coisa que reparamos foi a ausência do costumeiro tapete de folhas e de frutas podres que sempre cobria o enorme pátio asfaltado. Parecia um outro lugar, até o cheiro doce do podre tinha ido embora, milagrosamente os faxineiros haviam limpado tudo.
Fomos levados direto para nossas salas onde cada turma ficaria esperando a sua vez para se dirigir ao auditório. Na confusão não consegui ver o resto da família.
Nossa professora, Mrs. Feitosa, estava nos esperando ao lado da porta. Ela era uma loura autoritária de Manchester nos seus quarenta e tantos anos, casada com um brasileiro. Sua maquiagem, seu perfume e seu vestido exagerados, embora levemente ridículos, não diminuíram sua autoridade. Quando viu que a sala estava cheia fechou a porta, bateu no quadro negro e falou alto e firme.
“Alô-ô!!! Quero todo mundo sentado e prestando bastante atenção!”
Paramos o que estávamos fazendo, obedecemos e ficamos em silêncio.
“Muito bem. Estão todos me ouvindo? Vocês sabem quem está para visitar a escola, não é?” Ela fez uma pausa para que a ideia entrasse na nossa cabeça. “Hoje não vai ter desculpas para palhaçadas, todo mundo tem que estar no seu melhor comportamento. Fui clara?”
Mrs. Feitosa deu sua famosa olhada por trás dos óculos e torceu seus lábios finos. Como que por mágica, cada um dos alunos pensou que a ameaça era dirigida a ele. Foi um alívio quando alguém abriu a porta dizendo que era nossa vez de deixar o prédio.
“Agora, quero todos dando as mãos e vindo comigo.”
Fui com meu amigo Henry, um inglês louro alto de cara sonolenta. De volta ao pátio, consegui ver meus pais com os outros adultos, todos vestidos impecávelmente e esperando. Quando passamos à sua frente, acenaram e sorriram com orgulho. Depois, voltaram a olhar ansiosos de um lado para outro para ver se a convidada ilustre já havia chegado.
Estávamos para entrar no auditório quando ouvimos barulhos de sirenes. Mrs. Feitosa olhou para trás. Seguimos seu olhar e testemunhamos o grande momento: acompanhada por sua comitiva, Sua Majestade, Rainha Elizabeth II da Inglaterra, estava entrando na Escola Britânica do Rio de Janeiro.
Em todo o seu resplendor, a Rainha estava de pé em um Rolls Royce sem capota, acenando e sorrindo para a pequena multidão agora reunida ao longo da fila de palmeiras que se estendia desde a entrada da escola até o pátio. Como garotos, o que mais chamou a nossa atenção foram as motocicletas escoltando os carros oficiais; eram as mais incríveis que qualquer um de nós já tinha visto. Como num filme, eram enormes, com motores grandes e barulhentos, antenas de rádio gigantescas e para-brisas cintilantes. Os guardas pareciam estrelas de Hollywood, com o sol refletindo nos seus óculos escuros e nas suas jaquetas de couro exibindo o emblema da polícia militar.
Antes que pudéssemos falar alguma coisa, Mrs. Feitosa nos tirou do transe mandando a gente entrar rápido para dentro do auditório. Os organizadores estavam nervosos; tínhamos que subir no palco antes que a segurança liberasse a entrada dos adultos. Depois que nos acomodamos, os adultos começaram a entrar e a lotar as beiradas do salão. Com o local cheio, as portas fecharam e todos ficaram esperando a Rainha entrar. Tivemos sorte pois nosso era o melhor lugar para se enxergar o evento.
Finalmente Mr. Gordon, o diretor da escola entrou, andou até o centro do salão e pediu a atenção de todos. Num inglês impecável anunciou a convidada de honra. Quando ela colocou os pés dentro do salão foi como se o poder e a aura do Império Britânico estivessem entrando junto. Parecia que o prédio havia se transformado num lugar diferente que abrigava toda a pompa e circunstância do Reino. O Príncipe Phillip seguiu logo atrás e parou para conversar com, adivinhem quem? minha irmã Sarah, que estava em pé na parte reservada para ex-alunos. Ela foi incrível: confiante e polida.
Os dois alunos escolhidos para dar as boas-vindas à Rainha eram ingleses “puro-sangue”, que era como todos chamavam aquela panelinha. Vestido como aristocratas britânicos do passado, o garoto andou até a Rainha e de maneira cavalheiresca atirou ao chão sua capa de veludo com bordados dourados. A garota, em pé em frente dele, fez uma reverência. Ele se curvou e ao levantar gritou qualquer coisa que não entendi. O que quer que tenha sido, a Rainha mostrou sua aprovação e depois se virou para a nossa turma.
Mrs. Feitosa ergueu a mão e nós começamos a cantar. Estávamos bem ensaiados e para o alívio geral, cantamos bem. Depois dos aplausos, foi a vez das apresentações e dos discursos. A Rainha falou pouco mas todos prestaram a máxima atenção e aplaudiram com entusiasmo no final. A cerimônia acabou com ela se despedindo graciosamente. As festividades continuaram até bem depois da saída da comitiva real. Todos os presentes voltaram para casa com a sensação de que se houve alguma vez um dia dourado para a comunidade britânica do Rio de Janeiro, foi aquele.
*
Meus pais ainda não tinham decidido se ficariam para sempre no Brasil e a escolha da Escola Britânica tinha sido a mais lógica. Apesar do preço astronômico, o estabelecimento tinha uma longa e orgulhosa história de serviços prestados a famílias britânicas e anglo-brasileiras lutando – embora perdendo mais vezes do que vencendo- a dura batalha para blindar suas crianças do flagelo da brasilidade.
Todos, direção, professores e pais, faziam de tudo para preservar o ambiente britânico. Até a comida dos almoços era britanicamente insossa. O inglês era a única língua usada não só nas aulas mas também nas conversas com os amigos e até nas brigas. Seguindo a tradição, Mr Gordon era famoso pelas surras de vara que dava nos meninos mais velhos em frente da escola inteira. O uniforme era típico – camisa de abotoar azul e calças de tergal cinza. A escola também recomendava para que quando voltássemos para casa o português só fosse usado com as empregadas.
A maioria dos pais dos meus colegas ou eram diplomatas ou trabalhavam para empresas britânicas. Diferentemente dos meus, nenhum deles tinha se mudado para o Brasil numa aventura existencial, também não compartilhavam sua religião nem sua idade. Meus colegas ou sabiam dessa diferença ou pelo menos sentiam que havia algo de estranho ali e me tratavam como se fosse, de alguma forma, distinto.
Isso nunca chegou a ser uma desvantagem. Sem ter que seguir padrões convencionais, minha diferença conferia carisma. Talvez por isso acabaria me tornando o líder da bagunça tanto dentro quanto fora da sala de aula. Isso aconteceu espontâneamente, sem que precisasse me impor fisicamente. Como consequência, acabei fazendo dois inimigos. Seja por inveja ou por se verem no direito – ou mesmo no dever – de me colocar no meu lugar, a dupla fazia de tudo para cortar a minha onda e me diminuir.
Um deles, o Nicholas, tinha sido calejado por dois irmãos mais velhos. Apesar do sobrenome irlandês, parecia e de alguma forma era, italiano. O outro, Garreth, era um inglês “puro sangue”, um típico garoto bonitinho que se via em comerciais: sardento, de cabelos loiros e de olhos azuis. Apesar disso, nunca sorria e era o mais escroto dos dois. Juntos, eles infernizavam minha vida. Do nada, faziam a chamada cama de gato, onde um deles ficava agachado atrás, enquanto o outro vinha me empurrar com força pela frente. Sem provocação, apareciam toda hora para ridicularizar minhas piadas e brincadeiras. Na sala, faziam questão de competir comigo no que quer que fizesse. Eu saía vencedor nos duelos de inteligência e de criatividade, mas perdia nos embates físicos, os mais importantes para garotos. Ninguém gostava da dupla, mas quando a única opção para se manter a dignidade era brigar, meus amigos amarelavam e eu tinha que enfrentá-los sozinho sem ter o equipamento nem físico nem psicológico para tanto. Contudo, não via razão para aquilo e estava resolvido a não me curvar.
A chance de dar o troco veio em uma de minhas festinhas de aniversário quando convidei a sala inteira exceto Nicholas e Garreth. Revoltada com aquilo, uma das professoras tentou me dar uma lição. No dia da festa, ela me tirou do ônibus escolar e levou nós três de carona para casa. Para me constranger, no caminho ficou me perguntando sobre a festa. O plano não funcionou e não houve arrependimento nem convite. Nada faria com que os dois tivessem a chance de estragar meu dia.
O troco veio quando convidei um colega de sala ao Clube Paissandu. Assim que nos viram na piscina, vieram interromper o que estávamos fazendo e afastaram meu amigo. Depois tentaram me afogar. Dar caldos uns nos outros era uma brincadeira comum, mas daquela vez a coisa foi para valer. Me deixaram em baixo d’água até não conseguir mais respirar. Entre as pernas dos dois, as mãos deles segurando minha cabeça e meus ombros e sem ar, tudo ficou vermelho. Desesperado, saí distribuindo socos, cotoveladas e pontapés até conseguir sair e respirar de novo. De volta na superfície, com os pulmões cheios continuei e, para meu espanto, dei uma surra nos dois. Só que logo depois chorei, não por causa da humilhação, mas por não entender o porquê deles serem assim comigo. Talvez por causa dessa reação, não aceitaram a derrota e a situação continuou.
*
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por Richard Klein | 28 mar, 2020 | Brasil, Comportamento, Literatura, Livro, Sem Categoria
Capítulo 03
Todo menino é um Rei.”
Roberto Ribeiro
Sexta-feira, 23 de novembro de 1968 foi um dia único. A poucos quarteirões do nosso apartamento, a Rainha Elisabeth II estava dormindo hospedada no Hotel Copacabana Palace.
Se estivesse acordada de madrugada, teria se maravilhado com o espetáculo diário do sol clareando o horizonte. A beleza do mar refletindo o céu aberto e evaporando sua agua no ar fresco desencadeava o cantar dos pássaros nas milhares de árvores das ruas entre os prédios do bairro. Essa sinfonia soava no bairro inteiro, quer na sacada do hotel, quer no nosso quarto no décimo segundo andar. Ao fundo, dava para ouvir ondas quebrando ritmicamente na praia, sua espuma salpicado a areia, indo e vindo na vastidão.
Meu pai saiu para sua caminhada diária enquanto a Rainha, sua comitiva, Renée,
Sarah e eu continuávamos no sétimo sono protegidos por ar condicionados barulhentos.
Nosso despertador tocou às seis e quinze da manhã em ponto. Por mais que a preguiça tentasse me convencer de que nada tinha acontecido, não dava para ignorar o barulho metálico alto e irritante. No estupor, vi o vulto da Sarah se levantar e aliviar a situação desligando o aparelho. Já com onze anos, estava com sua sua cabeleira negra, comprida e despenteada envolvendo seu pijama favorito até o ombro.
Me ignorando, não só ligou a luz como também fez um barulhão abrindo o armário para tirar suas roupas. Depois, saiu para tomar banho. Quando abriu a porta, o ar quente invadiu o quarto. Lutando contra a claridade e o calor de baixo da coberta, num esforço sobre humano, me estiquei para ligar o rádio de pilha deitado no chão.
Assim que deu para ouvir seu ruído, girei o sintonizador até achar a Rádio Globo. Quando consegui, entrei em sintonia com o Rio de Janeiro. Essa era rádio preferida das domésticas, dos porteiros e de outras pessoas comuns. Para mim era o Brasil em estado puro, eu adorava mas ninguém em casa conseguia entender como nem porque.
O apresentador bem-humorado com uma voz de cantor de ópera, Haroldo de Andrade, conduzia o show matinal de maior audiência da cidade. Nele, além de fazer orações, transmitia notícias, divertia os ouvintes com curiosidades e fazia entrevistas com astros do futebol, do samba e das novelas. Era um programa interativo em que gente da cidade inteira ligava para deixar opiniões sobre os assuntos do dia. Durante os intervalos, tocava os últimos sucessos do samba e hits da Jovem Guarda: Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Wanderléa entre outros. Roberto Carlos, o rei, devia ser muito caro para tocar naquele horário. Também havia a participação do astrólogo da programa, Alziro Zarur, que lia suas previsões com uma música mística, meio oriental ao fundo.
“Aquela porcaria” – que era como minha irmã se referia a meu programa de rádio favorito – estava no ar quando voltou do banheiro enrolada na toalha. Sem falar uma palavra, irritada com minha preguiça, mudou de estação, desligou o ar condicionado já fraco, abriu as venezianas de madeira e me mandou sair do quarto para que pudesse se vestir.
Ficou difícil dizer o que era mais irritante: não ser o mais velho, ser acordado daquela maneira ou simplesmente ter que levantar tão cedo. De qualquer forma, se me acordar era o que queria, funcionou. A luz forte e a música americana chata mataram o que restava da minha morbidez.
Antes de qualquer coisa, saí para a varanda. Assim os pés tocaram a cerâmica ainda fria, o sol bateu no meu rosto que, junto com a brisa vinda do Oceano Atlântico ali em frente, me desejou um bom dia. Aquele era o meu lugar favorito da casa; foi lá onde tinha aprendido a falar, a andar e a brincar. Adorava ficar ali contemplando a vista espetacular, sonhando acordado na rede de balanço em meio às plantas. Passava horas ali me debruçando no parapeito para ficar espiando as pessoas e os carros passando na rua lá embaixo.
Como um cão fiel, minha bola de futebol tinha passado a noite do lado de fora me esperando. Minha “dente de leite” não era uma bola profissional de couro, mas pelo menos não era daquelas infantis que mais pareciam um balão. Dava para jogar futebol de verdade com ela. Seu plástico esticado podia se tornar vil: se chutada com força contra a parede soava como um sino e caso a bolada acertasse na pele, vinha acompanhada de uma ardida enjoada. Por causa de acidentes com vasos e com outros objetos mais caros fiquei proibido de dar bicudas, fossem elas dentro de casa ou na varanda. Havia o perigo de quebrar uma janela, ou pior; segundo meu pai, se qualquer brinquedo caísse lá embaixo e acertasse a cabeça de alguém, poderia quebrar seu pescoço, rachar sua cabeça e talvez até matar.
“Já imaginou uma bola pesada?!”
“Mas como é que vão saber que ela veio daqui?”
“A polícia sabe de tudo!” respondeu Rafael se segurando para não rir.
Apesar das explicações, minha cabeça de jerico vivia tentada a jogar a bola lá embaixo para ver o que aconteceria. Estouraria? Até que altura quicaria de volta? Qual o estrago que causaria? Mas nunca me atrevi. Mais tarde acabei jogando uma daquelas bolas de borracha transparentes japonesas, mas o resultado foi decepcionante: não a vi quicando de volta nem ouvi barulho nenhum, simplesmente desapareceu.
*
Já frequentava a escola, a British School of Rio de Janeiro. Naquele dia a família inteira estava indo para o evento importante. Minha irmã, já vestida, veio até a varanda para ver o que estava fazendo. “Richard! Você ainda está aí!? Você vai atrasar todo mundo!”
Depois da mini bronca, fui me preparar. O bom de se estar no banheiro é que dava para ouvir o rádio da Maria, nossa empregada, na área de serviço. Ela também gostava da Rádio Globo mas de manhã cedo, para garantir que tudo fosse feito dentro do horário, ouvia a Rádio Relógio, uma estação que dizia as horas a cada dois minutos entre anúncios monótonos e informações bizarras.
“Você sabia que o rinoceronte africano tem dois chifres; o maior fica na frente e o menor atrás? Você sabia?… Biiip, biiip, biiiiip… são seis horas, quarenta e dois minutos e zero segundos… Biiip.”
Tanto eu quanto a Sarah adorávamos aquela mulata faladeira que vivia rindo de nossos hábitos gringos. Forte mas não gorda, lábios carnudos, um dente de ouro, olhos intensos e puxados como os orientais, ela enchia nossa casa de alegria brasileira, principalmente quando estávamos a sós. Anos mais tarde o porteiro, Zé, me contaria que Maria era fogosa e que a maioria dos empregados de nosso prédio já havia tentado algo com ela, com níveis variados de sucesso.
Depois do banho, de escovar os dentes, pentear os cabelos, vestir o uniforme com perfeição e colocar sapatos engraxados desconfortáveis estava pronto para me unir à família. Odiava com paixão aquelas frescuras, mas não tinha jeito.
Quando cheguei, estavam todos me esperando sentados embaixo do toldo na varanda. Em dias de sol, o café era servido ali numa mesa de plástico dobrável que minha mãe mandava cobrir para disfarçar sua simplicidade. Maria estava de uniforme fazendo cara séria em frente ao homem da casa e tomando cuidado para não derramar nada ao servir nosso café da manhã anglo-tropical; ovos cozidos, leite quente, mingau, geleia, bananas, mamão, suco de laranja espremido na hora, pão preto, mel e manteiga.
*
Café tomado, uniforme conferido e impecável, sapatos brilhando, com dona Renée, seu Rafael e minha irmã nos seus trajes mais finos, a família estava pronta para sair. Descemos juntos no elevador. Na portaria, minha mãe deu as chaves do carro para o garagista e logo que ele saiu com o Aerowillys na rua, eles entraram e partiram. Não fui com eles, tinha que ir no ônibus escolar, afinal era o único que estudava lá. Fiquei esperando com o Zé falando de futebol.
Para apanhar os alunos, o ônibus vermelho ziguezagueava entre as vias principais do bairro; a Avenida Atlantica, a Avenida Nossa Senhora de Copacabana e a Rua Barata Ribeiro onde, na sombra das árvores antigas, bondes soltavam faíscas brilhosas ao tocarem o emaranhado de fios elétricos sustentados pelos postes enferrujados.
Eram oito da manhã e todos meus colegas do bairro tinham enchido o ônibus. Antes de pegar o túnel, ficamos presos num engarrafamento junto com outros ônibus lotados, bondes, lotações, taxis e carros particulares. Motoristas impacientes buzinavam e gritavam sem qualquer motivo enquanto crianças descalças das favelas passavam no meio do congestionamento conduzindo seus carrinhos de rolimã, tão baixos que quase tocavam o asfalto.
Na nossa condição de gringuinhos grã-finos, olhávamos para aqueles meninos maltrapilhos pela janela com uma mistura de inveja e de medo. Muitos eram da nossa idade e sabíamos que apanharíamos fácil se tivessem a oportunidade de nos enfrentar. Eles eram contratados por feirantes para entregar seus produtos nas casas ou nos escritórios dos clientes. Esses mercados improvisados mudavam de bairro todo dia, mas onde quer que parassem, o odor acre de frutas, de carne e de peixes expostos ao sol era o mesmo. Seu cheiro e seu barulho inconfundíveis anunciavam sua presença a vários quarteirões de distância. De dentro das bancas de frutas, homens em camisetas rasgadas cantavam rimas para atrair as madames
“Ooooolha aí! Mulher bonita paga metade se levar meio quilo! – Olha a banana novinhaaaaa, dez cruzeiros a dúziaaaaa!”
Nos cruzamentos, policiais elegantemente uniformizados controlavam o trânsito por meio de uma coreografia de apitos, olhares e movimentos de mãos que lembravam um ritual de acasalamento de uma ave rara que os motoristas pareciam entender.
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por Richard Klein | 14 mar, 2020 | Brasil, Crônica, Judaísmo, Literatura, Mundo
Capítulo 02
"Rio seu mar, suas praias sem fim
Rio você foi feito para mim."
Samba do Avião -Tom Jobim
A vida carioca havia começado em clima de segunda lua de mel num quarto de frente para o mar de Copacabana no hotel Miramar. Os dias de semanas eram dedicados a nadadas e passeios nas praia semi deserta em frente. Nos fins de semana, para evitar a multidão, se deleitavam em caminhadas pela floresta da Tijuca, descobertas nos arredores da cidade e em aventuras culinárias. Os dois passaram aquelas semanas apaixonados um pelo outro e por tudo o que aquela cidade tinha a oferecer.
Descansados e aclimatados, embarcaram na sua primeira missão: escolher um lugar para morar. Sua busca os levou a conhecer como os cariocas viviam e a recantos menos turísticos porém igualmente atraentes; ruas residenciais na descolada Ipanema e no seu vizinho Leblon, bairros menos badalados beirando a Baía de Guanabara e mais para perto do Centro, como Botafogo, Laranjeiras, Catete e Flamengo. Viram imóveis ao redor da floresta, na verde Gávea e no Jardim Botânico, vizinho do parque lindíssimo com o mesmo nome. Os corretores também os levaram a áreas mais afastadas como o Cosme Velho, localizado num vale no meio da floresta tropical, à Urca, à sombra do Pão de Açúcar, e à Santa Teresa, em cima dos morros beirando o centro da cidade.
Todas essas alternativas, em geral apartamentos espaçosos e recentes, eram como um sonho para um casal vindo da fria e cinzenta Londres castigada por bombardeios. No entanto, apesar de adorarem tudo o que viram, escolheram permanecer em Copacabana. Lá, além da proximidade da praia e de Paulo, havia algo que as outras partes do Rio não tinham: o glamour com que estrelas como Fred Astaire, Ginger Rogers e Carmen Miranda haviam apresentado a cidade ao mundo. Havia carisma. O bairro às vezes lembrava as charmosas cidades costeiras da Côte d´Azur francesa, com suas ruas calmas e limpas e com seu cotidiano praieiro, noutras vezes lembrava Manhattan, com sua floresta de edifícios modernos e elegantes. Neste aspecto, o ar cosmopolita, porém ainda verde, da “Princesinha do Mar” não tinha páreo no Brasil.
As avenidas do bairro eram repletas de lojas oferecendo novidades importadas, boutiques exclusivas, cinemas e casas noturnas sofisticadas. Por ser um recanto recente e abastado, esses estabelecimentos ou eram os melhores da cidade ou pertenciam às melhores redes do país. Circulando em suas ruas movimentadas ou estacionados em suas calçadas, carros do último modelo, nacionais e importados, realçavam o seu ar internacional.
A praia em si era maravilhosa: havia quatro quilômetros de oceano aberto cercados por uma exuberante cadeia de morros que separava aquele paraíso do resto da cidade. À frente, um pequeno grupo de ilhas cobertas por vegetação selvagem quebrava a monotonia do horizonte. Seu passeio público, a elegante Avenida Atlântica, era o cenário onde de dia a elite carioca exibia seus corpos torneados e bronzeados e nos fins de tarde desfilava com suas melhores roupas nas suas caminhadas.
*
Depois de decidirem onde iriam morar, a escolha de um apartamento foi fácil. Com uma conta bancária recheada de valorizadas libras esterlinas provenientes da venda da casa em Londres podiam voar alto. Em breve estavam de mudança para uma espaçosa cobertura onde uma ampla varanda dava uma deslumbrante vista da praia. Como todos os outros prédios ao redor, a entrada parecia com a de um hotel de luxo. Painéis de mármore e enormes espelhos emoldurados revestiam suas paredes imitando palácios na Europa e cenários hollywoodianos.
A mobília do casal, comprada a preço de banana em casas de leilão na Londres do pós-guerra, era classuda e combinava bem com a elegância do endereço. Ela incluía antiguidades como uma autêntica mesa de cabeceira Chippendale, um piano de calda, talheres de prata, porcelana chinesa legítima da mais alta qualidade e pinturas clássicas, falsas porém convincentes.
Tudo havia sido enviado de antemão por navio. Agora, três meses depois, estava à espera na alfândega do porto. Enquanto Rafael saiu em busca dos contatos comerciais que seus amigos haviam fornecido, Renée ficou responsável por liberar seus tesouros.
Armada com o português básico aprendido com um professor improvisado indicado pelo consulado brasileiro em Londres, ela foi lidar com a burocracia local. Aos olhos do encarregado, a senhora inglesa era a própria figura da gringa rica e ingênua. Mesmo avisada, Renée se recusou a aceitar que um homem tão charmoso, numa posição de tanta responsabilidade, pudesse estar atrás de propina, apesar de que todos seus novos vizinhos e amigos haviam assegurado que qualquer pessoa nesse tipo de trabalho iria querer algum tipo de “incentivo” para agilizar as coisas. Numa tarde decisiva, seu medo de ofender foi tanto que não teve coragem de entregar um envelope gordo, recheado de dinheiro. Essa hesitação lhe custou mais quatro mêses de espera.
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Depois de instalados em Copacabana, o casal foi se integrando na vida da Zona Sul. Nessa mesma época e no mesmo lugar, artistas como Vinícius de Moraes, João Gilberto e Tom Jobim estavam misturando samba, letras inspiradas e jazz dando origem à bossa nova. As casas de show espalhadas por de Copacabana. As mais exclusivas ficavam de frente para a praia na Avenida Atlântica. As mais na moda ficavam nas vielas logo atrás. Uma delas era o Beco das Garrafas onde o trio e outras futuras lendas da bossa nova se apresentavam regularmente. Esse seria o berço de clássicos do gênero como a Garota de Ipanema, que Frank Sinatra gravaria no auge de sua carreira e que venderia fora do Brasil tanto quanto as músicas que os Beatles ou os Rolling Stones estavam gravando.
A bossa era a expressão musical do otimismo pelo qual o país passava. Esse era um Brasil inteligente, urbano, sofisticado mas ainda assim apaixonado pelas suas raízes. Rafael tinha acertado quanto às possibilidades do país. Com um processo de industrialização acelerado e com um mercado consumidor em crescimento, as oportunidades eram ilimitadas. O slogan do presidente Juscelino Kubitschek era fazer “cinquenta anos em cinco”. Com isso em mente, o seu governo investiu pesadamente em infraestrutura e abriu o país para o capital externo. Ele também se dedicou a construir uma nova capital, a futurística Brasília, no longínquo Planalto Central.
Apesar de não frequentarem a noite e de esnobar a nova moda musical, os dois acabariam por se encaixar bem em Copacabana. A vizinhança era de uma classe média recente, ansiosa em se familiarizar com sua recém adquirida posição social. Isso incluía viver de acordo com o que viam e liam em filmes e revistas estrangeiras. Pessoas de fora personificavam as suas aspirações e proximidade com elas não só dava status, mas também dava asas à imaginação.
Após uma breve fase de se sentir alienada, Renée foi rápida em perceber a oportunidade social de assumir o papel de embaixatriz do mundo “desenvolvido”. Espelhando a jovem e recém empossada Rainha Elizabeth II, ela aceitou o cargo com convicção e prazer. Vinda de uma família de imigrantes alpinistas sociais, o Brasil neste aspecto lhe pareceu um El Dourado. Isolada da sua família e da sua cultura, vivendo num país estrangeiro como uma dona de casa milionária, mimada pelo marido, temida pelas empregadas, tratada como alguém especial nas ruas e sem ter ninguém que a questionasse, ela se reinventou e criou um personagem surrealista.
Trinta centímetros mais alta que a média das brasileiras, com um forte sotaque inglês e com um guarda-roupas repleto de peças elegantes feitas em Londres, para os brasileiros Renée passava a imagem de uma mulher poderosa e à frente de seu tempo. Isso era fácil num lugar onde donas de casa de respeito nunca eram vistas na noite, sequer em restaurantes com seus maridos. Seus biquínis – em voga na Europa do pós-guerra – mostravam o umbigo. Na praia, esse show de nudez chocava, e mais de uma vez os salva-vidas tiveram que lhe pedir que voltasse para casa para trocar de trajes.
Renée foi também uma das primeiras mulheres a dirigir no Rio, o que atraía muitos comentários, alguns grosseiros e outros de admiração. Nenhuma das duas reações a perturbava, já que na opinião dela os brasileiros se transformavam em caubóis selvagens quando ao volante. No país que viria a fornecer ao mundo da Fórmula Um campeões como Emerson Fittipaldi, Nelson Piquet e Ayrton Senna, ela resolveu tomar para si a missão de ensinar aos motoristas, via exemplo, como respeitar os limites de velocidade. O carro dela sempre acabava atravancando o trânsito na faixa da esquerda. Isso fazia com que recebesse um sem-número de gritos e de palavrões dos motoristas obrigados a fazer a ultrapassagem pela direita. Anos mais tarde, ela também tentaria deixar claro aos surfistas de Ipanema que o mar era de todos, nadando com a sua toquinha florida entre os cabeludos sarados e suas pranchas.
Porém, apesar da satisfação em vender como jóias colares de contas aos nativos, nem sempre a história colava. Sem contar que havia gente que de fato pertencia àquele mundo no Rio de Janeiro, para início de conversa, a Inglaterra que provocava suspiros em admiradores incautos era agora um lugar em transformação. Após duas pesadas guerras mundiais, as tradicionais divisões de classe estavam virando uma coisa do passado. Conforme o país foi se reconstruindo, os privilégios antes reservados para a aristocracia – agora falida – foram ficando acessíveis à uma classe média emergente. A nova dinâmica criou dois campos: os que queriam enterrar o passado e construir um Reino Unido onde todos tivessem oportunidades iguais e os que queriam tomar o lugar da aristocracia declinante e desfrutar os privilégios que seus pais nunca tiveram. Renée pertencia ao segundo grupo. A rainha Elizabeth foi mais sutil e resolveu popularizar a monarquia como estratégia de sobrevivência.
As duas maiores barrerias que encontrou para sua forçação de barra eram dois: a substituição do Reino Unido pelos Estados Unidos no topo do mundo ocidental e o aparecimento da cultura jovem nesses dois países. Para manter seu sonho vivo, ela rejeitava toda e qualquer novidade que contradizesse sua narrativa de rainha modernizadora dos trópicos. Que nem a madrasta da Branca de Neve, sua vaidade parecia perguntar ao espelho “Espelho, espelho meu, existe alguém ou algo mais avançado do que eu?” Se tivesse, bloqueava na hora. Isso atingia as raias da incomprensibilidade. Sob sua guarda não havia televisão, pouquíssimo cinema e nada de música popular, fosse ela brasileira ou internacional, incluindo o jazz, a bossa nova e o rock’n’roll. A única expressão cultural válida era o teatro – o de Londres é claro – e a música clássica. Para ela, a arte contemporânea era um lixo; a pintura tinha morrido com o expressionismo e em literatura, mesmo o hiper-religioso Tolkien, autor do Senhor dos Anéis, era visto com suspeição.
Sua fobia à novidades era tanta que, por alguma razão, ela também barrou de sua vida tudo o que não lhe tinha sido familiar na Inglaterra: doçes, refrigerantes, hambúrgers, milk-shakes e pastéis. Em contrário de todos à sua volta, ela insistia em uma dieta saudável e insossa, parte de uma noção, de fato à frente do seu tempo, de que a alimentação era fundamental para a saúde.
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Nascido em 1900 num vilarejo na província austro-húngara da Galiza, na Polônia, Rafael, seu comparsa – e agora provedor – nas aventuras de validação social, não podia ser mais diferente. Os austro-húngaros, vistos como os senhores daquele mundo, menosprezavam os poloneses, que por sua vez desprezavam, a ponto de odiar, os judeus. Por sua vez, os judeus mais assimilados e vivendo em capitais Europeias viam os do leste europeu, como a família dele, como atrasados e presos a superstições religiosas das quais tinha se livrado ao sair dos ghettos. Para piorar as coisas, os mesmos judeus do leste europeu consideravam os galitzers como camponeses que não tinham saído da idade média. Assim sendo, embora a Galiza fosse a região da Polônia mais tolerante em relação aos seus estrangeiros: muçulmanos balcânicos, judeus, turcos e russos, ele cresceu como um caipira entre os caipiras. A ida para a Alemanha tinha sido a maneira que encontrou para escapar daquele determinismo sufocante.
Apesar de ter recebido uma rica educação rabínica, Rafael nunca frequentou uma escola secular quanto menos uma universidade. Contudo era inteligentíssimo e compensava essa lacuna trabalhando duro com diligência e criatividade. Com esses atributos alcançou cedo sucesso no mundo dos negócios, tanto na Alemanha pré-nazista quanto mais tarde na Holanda. No entanto, foi em Londres, em meados da sua quarta década, que seu destino deu uma guinada inimaginável. O casamento com uma beldade de uma abastada família de Golders Green e o brinde de um imóvel pago pelo sogro numa área respeitável de uma metrópole mundial foi o equivalente a ganhar na loteria.
Esse legado fez com que na vida doméstica, tal como Sancho Panza, ele obedecesse a todas as regras que a esposa impunha, mesmo se não fizessem sentido algum. Maduro e conhecedor dos recantos mais sombrios da vida, ciente das diferenças gritantes entre os dois, Rafael soube fazer com que ela se sentisse idolatrada e que seu personagem permanecesse vivo. Com isso, conseguiu manter sólido um relacionamento improvável num lugar mais improvável ainda.
A vida confortável no Brasil virou uma tentativa de se reinventar. Em um lugar tão diferente quem sabe ele pudesse encontrar uma recalibragem interna ou a fonte da eterna juventude. Contudo, a melancolia nunca o deixou. Apesar de se sentir bem com a relativa inocência e alegria a sua volta, o contraste com sua dissimulada solidão e com o fim brutal de seu mundo era doloroso demais. O último elo que manteve com algo que se pudesse chamar de lar, foram seus negócios com a Alemanha Oriental, uma república satélite dos soviéticos nascida do país que havia lhe trazido tanto sofrimento.
Na intimidade, seus pensamentos, suas atitudes e seu compasso emocional viviam perdidos numa dimensão diferente que às vezes deixava escapar em histórias da sua infância como a de quando, na escola rabínica, colou a barba do seu professor na mesa enquanto este dormia. Também se orgulhava de ter conseguido enganar um policial polonês a procura de bebidas ilegais na casa do seu avô quando criança, despistando uma porta escondida no celeiro. Esse avô, rico e assimilado com quem todos na aldeia vinham se aconselhar, foi mais marcante do que seu próprio pai de quem nunca falava. Rafael era o repositório de uma coleção de piadas, palavras, ditados populares e ensinamentos religiosos de um mundo que agora somente existia em suas memórias, na sua língua nativa, o iídiche, e em raras fotografias.
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por Richard Klein | 8 mar, 2020 | Brasil, Comportamento, Literatura, Mundo, Política, Trending
Eram 5:30 da manhã em meados de Novembro de 1955, trinta e cinco horas depois de decolar de Londres, parar por três horas em Lisboa, fazer o mesmo por quatro horas em Dakar, Senegal, atravessar o oceano Atlântico e ficar mais três horas no Recife, o voo da BOAC, BA0249, estava finalmente se aproximando do Rio de Janeiro.
O sol ameaçava se insinuar no céu estrelado quando um sinal aveludado nos alto-falantes acordou os passageiros. Em seguida, uma voz feminina, primeiro em inglês e depois em português, desejou a todos um bom dia e anunciou que estavam a uma hora da destinação.
As aeromoças acenderam as luzes e passaram a servir um generoso café da manhã. Para os ingleses, ovos estrelados com bacon, torrada, marmelada e chá, para os brasileiros, ovos mexidos, pão francês, queijo fresco, goiabada e café forte. Junto com a comida distribuiram formulários de imigração e da alfândega para quem precisasse.
Terminada a última refeição a bordo, loucos para descansar numa cama de verdade, os passageiros passaram a organizar a sua chegada. Do lado de fora, a claridade já revelava o mar no horizonte. Embaixo, as primeiras luzes estavam se acendendo na descida da serra para a Baixada Fluminense. Enquanto os primeiros carros e caminhões se aventuranvam na madrugada vazia a tripulação percorria o corredor recolhendo as bandejas.
Rafael e Renée estavam preenchendo os formulários. O casal chamava atenção por sua discreta bizarrice. Ele era baixo, olhos azuis espertos e frios, cinquenta e poucos anos, um tanto antipático e com um pesado sotaque do leste europeu. Em contraste, ela era uma londrina com sotaque chique, alta e exuberante, de cabelos curtos e castanhos e muito mais jovem que o marido.
Não demorou muito para a voz feminina retornar aos alto-falantes pedindo a todos que apagassem seus cigarros e apertassem os cintos de segurança. Do lado de fora a vista se tornou magnífica. O dia estava raiando sobre o Rio de Janeiro. O sol dourava o Cristo Redentor junto com a vegetação e as pedras gigantescas da Floresta da Tijuca em torno dele. As águas da Baia de Guanabara e as ilhas no mar aberto ja se misturavam da maresia. Aquele espetáculo foi bem-vindo após praticamente dois dias chacoalhando numa aeronave apertada ouvindo o ronco incessante das hélices. Rafael deu uma olhada no relógio, 6:15 da manhã, 45 minutos mais cedo do que o esperado.
O avião deu sua sacudida final quando tocou o solo em alta velocidade. Assim que se tornou controlável, os passageiros aplaudiram o piloto que passou a guiar a aeronave lentamente rumo ao terminal. Quando parou, a tripulação apagou os sinais de apertar os cintos e de parar de fumar e abriu a porta deixando ar fresco da madrugada entrar para ventilar a cabine claustrofóbica.
Com seus pertences prontos, Renée e Rafael se puseram na fila de saída. Na porta, depois de trocarem sorrisos cansados com a aeromoças, uma brisa tropical acariciou suas peles lhes dando boas-vindas. Com sua nova cidade à frente, desceram a precária escada e se dirigiram ao terminal com os outros passageiros.
A bruma espessa e seu calor húmido tiveram o efeito de evaporar o torpor da viagem na Renée. Eufórica com o início de sua aventura carioca, estava parecendo uma criança numa loja de doces tentando puxar conversas com o marido exausto e monosilabico.
“Deveríamos achar um apartamento perto da praia, não acha? A revista disse que perto da floresta há risco de malária.”
Entraram na fila fila da imigração e ela não parava. “Eu quero ir para praia ainda hoje. Copacabana deve estar explendida!”
Quando chegou sua vez, o policial acenou. Depois de mostrarem seus passaportes e de entregarem os formulários, receberam os carimbos requeridos. Dali em diante, estavam liberados para viver no Brasil.
Ao sair para o saguão de desembarque, talvez por estarem vindo para ficar desta vez, sentiram o desconforto de serem completos estrangeiros. Com exceção dos outros passageiros europeus, ninguém ali falava inglês ou qualquer outra língua que lhes fosse familiar. Além de have mais “não-brancos” do que estavam acostumados, a emoção e os abraços com que os locais recebiam seus familiares e amigos, realçava sensação de alienação. No fundo de suas mentes uma pergunta gritava em silênico: “Será que tomamos a decisão certa?”
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No saguão do aeroporto carregadores uniformizados e educados apareceram se oferecendo para levar suas malas até a fila de táxis do lado de fora. Depois de se certificar que as bagagens estavam devidamente organizadas no porta-malas e de dispensar o seu primeiro dinheiro local na gorjeta, entraram no carro.
“Por favor”, disse Rafael antes de ler o papel com o endereço do hotel e ponunciá-lo em um português quebrado que duvidou que o motorista fosse entender. Ele finalizou o desconforto com um desajeitado “Obrigado”.
O motorista disse OK, mas pediu através de sinais para ver o pedaço de papel. Depois de dar uma lida, abriu um sorriso amigo e disse, “Hotel Miramar, Copacabana, yes mishterr!”
Assim que partiram, a estranheza que sentiram no aeroporto sumiu. O sol já estava a pino e fazia calor. Animados, colocaram seus óculos escuros e passaram a apreciar o cenário. Logo pegaram a Avenida Brasil, que estava apinhada de carros de fabricação americana, caminhões e ônibus de qualidade duvidosa, todos indo rumo ao centro da cidade. De repente, sentiram o mau cheiro vindo da favela beirando a estrada. O fedor forte passou quando chegaram na zona portuária. Apesar de mais primitiva que a de Londres, era charmosa com sua série interminável de armazéns coloridos com chaminés e mastros de navios aparecendo logo atrás.
Do porto, o motorista, agora concentrado num programa no rádio, seguiu para o Centro. Lá atravessaram sua mistura contrastante de igrejas coloniais, prédios públicos de estilo modernista e construções vistosas da Belle Époque. Ao fim da avenida elegante e arborizada, chegaram na Baía de Guanabara onde deram de cara com o Pão de Açúcar. Dali o motorista, ousado demais para seus gostos, continuou a viagem apressada beirando a baía. Lá passaram pelos bairros do Flamengo e de Botafogo antes de finalmente atravessar dois túneis e chegar em Copacabana. Fizeram aquela curta viajem com as janelas abertas, sentindo o vento no rosto, absortos pela beleza da cidade e relevando o programa de rádio incompreensivel e as barbeiragens do motorista.
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A primeira coisa que fizeram depois que a bagagem chegou no quarto e que fecharam a porta, foi ligar para o Paulo. Ele havia dado a desculpa de que naquele dia tinha assuntos importantes a resolver e por isso não tinha dao para ir de madrugada recebê-los no aeroporto. Após uma conversa animada e piadas sobre o voo interminável marcaram de se encontrar no dia seguinte.
Paulo era um sujeito curioso. Além da sua personalidade fácil e de seu endereço exótico, possuía outra peculiaridade: era comunista. Esse tinha motivo original do seu exílio da Alemanha já nos meados dos trinta. Havia perigo de morte. Nunca soube dos detalhes dessa ameaça nem se continuou sua militância no Brasil, mas se tivesse, isso não teria sido pouca coisa no auge da ditadura de Vargas quando chegou.
Nos trópicos, a amizade entre os dois veteranos da loucura europeia floresceu. Apesar de antifascista, Rafael estava longe de ser de esquerda. De qualquer forma, os longos papos em iídiche trouxeram de volta as discussões políticas, tema central na vida judaica no leste europeu.
Durante uma dessas conversas, Paulo gabou-se de seu relógio produzido na comunista Alemanha Oriental ou RDA. “Está vendo este relógio aqui? Ele foi produzido livre da exploração capitalista. Pode ver! Ele funciona tão bem quanto qualquer relógio feito na América!”
Embora o relógio não fosse lá essas coisas, ao analisá-lo meu pai teve um “momento eureca”. Ele percebeu que tinha em mãos uma excelente oportunidade de negócios. Na cabeça dos brasileiros, alemão era sinônimo de confiável e, fabricados em um país comunista, seus preços seriam muito competitivos. A recém-criada classe média baixa brasileira iria, certamente, consumi-los como água.
Anos antes do golpe de 1964, com a ajuda dos contatos partidários do Paulo, Rafael atravessou o muro de Berlim, e foi se encontrar com o comissariado encarregado da fábrica de relógios. Com eles conseguiu um contrato para ser o representante exclusivo para o Brasil.
À primeira vista poderia parecer estranho que alguém com o seu passado fosse ganhar a vida vendendo produtos alemães e, pior ainda, comunistas. Seja como for, o rigor e a praticidade teutônica lhes eram reconfortantes. Adotando essa mesma objetividade fria, foi em frente sem deixar que sentimentalismos e ideologias interferissem nas suas decisões. Nisso, ele era igual à maioria de seus amigos judeus. Apesar de tudo o que eles e seus entes próximos haviam enfrentado durante a guerra, ainda guardavam respeito pelo pragmatismo e pela eficiência germânica. A subserviência ainda estava viva e, como a maioria dos sobreviventes europeus orientais, continuavam a ver a Alemanha como a liderança nata e incorruptível do seu mundo.
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