por Richard Klein | 15 ago, 2020 | Comportamento, Crônica
Foto de Magno Lima.
A melhor casa noturna do Rio, o Noites Cariocas, ficava no primeiro dos dois morros do Pão de Açúcar, o Morro da Urca. As hordas de turistas vindos do mundo e do país inteiro que passavam por ali de dia não podiam imaginar que nas noites de sexta e sábado aquilo ficava abarrotado de gente querendo festa. O lugar era fantástico. Artistas variados, de Caetano Veloso e Gilberto Gil a Egberto Gismonti, se apresentavam no seu anfiteatro a céu aberto coberto por árvores com o público sentado, ou soltando a franga, no chão e nas plataformas ao redor do semicírculo à sua frente. Nos intervalos e depois dos shows, ligavam o som mecânico e o lugar virava uma pista de dança.
As noites estreladas e a brisa do oceano pontuavam a magia. Saindo do palco central, vários caminhos levavam até a beira do morro por entre a vegetação rala. As filas de postes de luz iluminando a orla e delineando os contornos das ruas, os edifícios cercados por morros escuros e, do outro lado do morro, o mar aberto refletindo a lua faziam do Rio de Janeiro uma obra de arte tridimensional.
A alquimia daquele banquete visual fazia o ponto ideal para atrair o sexo oposto. As garotas se tornavam irresistíveis. Nem todas eram da Zona Sul e a maioria jogava no time das cautelosas. Mesmo assim, quando chegava a hora de ganhar elas no papo, a aura romântica à meia-luz, um flertezinho aqui e uma cervejinha ali operavam milagres.
*
O lado frustrante desta e das outras descobertas que fiz nos tempos o Colégio Andrews era minha magra mesada que não arcava com as despesas com ingressos para shows, “bagulho”, boates, cervejas e idas ao cinema. Isso sem contar as coisas normais do dia a dia: passagens, lanches na escola, entre outras coisas. O item mais caro da lista era exatamente o Noites Cariocas. A solução da malandragem era pular a portaria subindo o morro a pé ao invés de pagar o ingresso ao pegar o bondinho, a unica forma legal de se chegar lá. Apesar de não ser iluminada, a trilha era fácil.
O porém era que havia surpresas indesejadas no caminho. Feito caçadores à espera da presa, policiais e seguranças ficavam de tocaia esperando que caras como eu aparecessem para extorquir um suborno. No caso dos seguranças, os desembolsos eram para que pudessemos seguir na trilha. No caso dos policiais, eram para que não nos levassem para uma delegacia onde nos indiciariam por posse de maconha real ou fabricada. Caso lhe pegassem e você não tivesse dinheiro algum, eram brutais. Uns camaradas da escola caíram na cilada, e por não terem dinheiro suficiente, em vez de prender todo mundo, os guardas os forçaram a tirar a roupa e voltar para casa pelados.
Apesar desse perigo, escalar a entrada do Noites Cariocas daquela maneira sempre tinha sido tranquilo, até uma noite especial.
Era fim de mês e minha mesada tinha secado. Porém, uma de minhas bandas favoritas, A Cor do Som, ia se apresentar. O único jeito de ver o show era a trilha. Daí fui subir com um amigo, o Márcio, sob a luz da lua cheia. Na metade do caminho, cruzamos com um grupo descendo que nos falou que o caminho estava “sujeira”, querendo dizer que havia policiais escondidos em algum lugar mais adiante.
Determinados, decidimos pegar uma rota alternativa, normalmente utilizada somente de dia por escaladores experientes. Apesar da nova trilha ser “limpeza”, a decisão se revelou insensata. Só percebemos o perigo quando já era tarde demais: do nada, de repente nos vimos tendo que atravessar um trecho com uma queda livre de 200 metros na pedra bem embaixo dos nossos pés.
Quando estávamos quase lá, meus sapatos de festa perderam aderência e escorreguei. Por um milagre inacreditável uma raiz saindo daquele paredão imenso parou minha queda depois de alguns segundos de desespero. Era o único, ainda que pequeno, pedaço de vegetação saindo daquela rocha num raio de 50 metros; se tivesse escorregado um pouco mais para lá ou um pouco mais para cá daquele ponto, teria sido meu fim.
Isolado naquele paredão maciço, dava para ouvir a música saindo a poucos metros acima e um pessoal gritando que alguém tinha caído. Para o alto havia uma rocha vertical e para baixo havia um precipício. Com meus pés mal tocando a raiz daquele abençoado, ainda que mínimo, tronco, me forcei a olhar para cima e a me concentrar em como sair dali vivo, um reflexo adquirido em situações perigosas no bodyboard em ondas grandes. Coloquei meus sapatos nos bolsos e consegui, não sei como, escalar a pedra descalço.
Quando ressurgi uma galera veio perguntar se estava tudo bem. Enquanto respondia que sim e calçava os sapatos, um segurança abriu caminho, me agarrou pelo braço dizendo que ia me entregar para a polícia. Levantei, me livrei e o desafiei.
“Meu irmão, não vou para delegacia nem pelo caralho, não está vendo que eu quase morri?!”
Um sujeito que tinha acompanhado o drama emendou: “Isso mesmo, larga o cara, eu vi! Ele quase caiu lá embaixo, não tem nada a ver levar o rapaz!”
Uma menina se juntou e foi mais contundente. “Vai ganhar a vida honestamente, seu otário! Vai pedir propina para ele agora?”
Tinha umas quinze pessoas protestando e um monte de curiosos chegando junto. Um outro segurança se aproximou, mas com tanta pressão tiveram que ceder.
“Tá bom! Tá bom! Não vai ter delegacia, mas ele vai descer no bondinho agora.” Eu queria continuar o protesto, mas a oferta era justa e a galera pareceu aceitar.
Na ida para o bondinho pensei no Márcio que devia ter sumido com medo de ser pego também.
“Tu tem sorte garotão, o último que a gente pegou aqui a gente encheu de porrada.”
A gente chegou na estação e ficou esperando em silêncio até o próximo bondinho estar pronto para descer. O cara da portaria veio perguntar o que estava acontecendo.
“A gente ia levar esse para a delegacia, mas ele teve sorte.”
“Como assim? Por quê?”
“Depois a gente explica.”
Antes da porta fechar, o que tinha me liberado falou: “Tu teve muita sorte, playboy, agradece a Deus e dorme bem.”
Fiquei pensando naquilo, nem zangado, nem arrependido. Dadas as circunstâncias, só podia agradecer ao meu Criador por estar vivo e vendo o terminal ficando para trás no céu escuro enquanto a Praia Vermelha, lá embaixo, se aproximava. Para além do que está escrito nos textos sagrados e nos livros de filosofia, para além do que dizem padres, rabinos e mulás, para além da própria razão, acreditava – como ainda acredito – na existência de um Deus onipotente que tinha decidido que aquela não tinha sido a minha hora. O porquê, nunca vou saber, mas uma boa conduta é o mínimo com o que posso retribuir.
…
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por Richard Klein | 8 ago, 2020 | Brasil, Comportamento, Crônica
Capítulo 15
“Vida louca, vida
Vida breve,
Já que eu não posso te levar
Quero que você me leve.”
Vida Louca - Cazuza
De volta às aulas, descobri que a fama no violão tinha chamado a atenção da turma dos aspirantes a músico. Naqueles tempos de rock and roll, esta era uma casta importante na escola. Tinha ouvido falar que se encontravam regularmente para levar um som e e estava doido fazer parte. No início, impuseram uma distância por não saberem bem qual era a minha mas quando um deles finalmente me convidou, fiquei para lá de amarradão. Nas sessões fui percebendo que todos eram igualmente ávidos para aprender e absorviam tudo que podiam uns com os outros. Todos gostavam de rock, mas ninguém tinha nada contra experimentar com jazz progressivo e ritmos brasileiros. Paradoxalmente, apesar de ser visto como meio estrangeiro, meu interesse estava mais para o batuque do que para a levada da guitarra distorcida. Havia aqueles que eram melhores de solos, outros que, mais parecidos comigo, conheciam mais acordes e criavam levadas interessantes, alguns tocavam bateria, outros teclado, baixo e instrumentos de percussão como bongôs e atabaques.
Haviam varios subgrupos. O ponto de encontro da turma que me acolheu era a casa do Fernando, ou Fefo, que morava numa cobertura no Leme com uma vista fantástica da praia de Copacabana. Por algum motivo, ele e seu irmão mais velho viviam sem os pais, o que fazia daquele apartamento de dois andares uma zona livre. Nas terças e quintas, com a desculpa de ir estudar, a gente se reunia para tocar no quarto reservado para aquilo. Ele era ideal, espaçoso, cheio de almofadas confortáveis espalhadas pelo chão de madeira. Havia duas janelas grandes com grades de metal em estilo art déco lindíssimas que emolduravam a vista do Morro do Leme. Um dos membros da banda do Júlio, o irmão do Fefo, guardava seu amplificador lá. Sempre coberto de pontas de cigarro, copos sujos e garrafas de cerveja vazias, ele servia como o único móvel do quarto.
O som começava com a gente mostrando as últimas músicas e riffs que tínhamos aprendido ou criado. Quando os outros curtiam a novidade, todo mundo ia atrás, dando ideias e adicionando o que podiam. A atitude era parecida com a que tínhamos em relação ao futebol – aquilo era uma pelada musical. Queríamos aprender, curtir, sem nenhuma pretensão de formar uma banda.
Nos finais de semana, Júlio e seus amigos se juntavam à gente. Eles tocavam melhor e sempre traziam uma fartura de “bagulho” bom. Antes de qualquer coisa, enrolavam uns baseados que de tão gigantescos só davam para “pilar” com o dedo. Quando aqueles charutos chegavam ao fim, vinha uma chapação que parecia durar uma eternidade. Ficavamos feito zumbis olhando o cachorro, Pepe, balançar o rabo, latir e nos cutucar com suas patas tentando nos trazer de volta à vida. Volta e meia alguém o segurava e soprava a fumaça para dentro da sua fuça para ver se sossegava, mas, que me lembre, isso nunca funcionou.
Com um esforço sobre-humano, alguém finalmente conseguia se arrastar até o outro quarto onde a gente deixava os instrumentos. Um ou dois iam atrás e começavam a tocar alguma coisa. Aos poucos todos iam entrando e pegando os instrumentos. Com energias renovadas, atingíamos zonas de inspiração esotéricas de onde surgiam uns sons mucho locos. Algumas criações faziam a moçada ir ao delírio, outras faziam a gente cair na gargalhada. No dia seguinte ninguém conseguia se lembrar ou reproduzir nada que tinha acontecido, só sabíamos que tinha sido muito bom. Coisas da madame Cannabis Sativa.
*
Quase que sem perceber passamos à categoria dos doidões da escola; malditos, porém respeitados pelo espírito livre e contestatório. Para os menos simpáticos, éramos um bando de “porra-loucas”, todos fadados a se dar mal na vida, mas e daí? Quem estava falando eram eles ou o medo de levar porrada dos pais? Ainda que não nos víssemos como nem uma coisa, nem outra, os considerávamos caretas. Acreditávamos que, ao contrário deles, sabíamos das coisas e que havíamos descoberto a fórmula de gozar nossas existências sem as paranoias da burguesia. Independentemente de estarmos certos ou não, a divisão era clara e ninguém era de ficar em cima do muro.
Conforme as diferenças foram aumentando, fomos criando nossa própria subcultura. Nela, quem tinha a moral de comprar maconha na favela, atingia um status mais elevado. Resolvi ver qual era. A primeira boca de fumo que visitei foi no Cosme Velho, conhecida como “os trilhos”. Ela ficava logo no começo da linha do bonde que levava turistas ao Corcovado. Daquela vez, todo mundo tinha contribuído com alguma grana, mas fomos somente eu, o Juca e o Pitéo, um cara do ano acima que já tinha ido lá e sabia como lidar com o pessoal do “movimento”, ou pelo menos dizia que sabia.
Descemos no ponto final do ônibus perto da entrada para o Túnel Rebouças e fomos até um caminho na beira da Floresta da Tijuca. O Pitéo pediu para a gente dar o dinheiro e ficar esperando ali.
“Qual é Pitéo? Vai fugir com a nossa grana?”
“Não é isso, mané, os caras me conhecem e não gostam de muita gente chegando ao mesmo tempo.” Ele tinha se ofendido. “E tem mais, não precisa dar a grana agora. Fica com essa porra! Os caras vão descer para entregar o bagulho e aí a gente paga.”
Depois disso, subiu a ladeira cheio de si e sumiu na curva dos trilhos. Ficamos esperando por uns dez minutos que pareceram uma eternidade. Nosso colega voltou nervoso, dizendo que o “vapor” estava vindo logo atrás e que tínhamos que dar a grana agora. Logo depois, um mulato magro de short, chinelo e sem camisa apareceu na curva, olhou para a gente e fez um sinal. Pitéo subiu lá e passou o dinheiro discretamente. Em contrapartida, o cara olhou em volta para ver se não havia ninguém espiando e passou os papelotes de dentro da cueca para a mão do nosso camarada. Depois da entrega, o cara subiu apressado e o Pitéo desceu fingindo ser um morador tranquilo do bairro. Quando chegou, abriu a mão sem falar nada e mostrou as trouxinhas, cada uma pesando dez gramas. Cada um pegou a sua. Depois disso atravessamos a rua e subimos no primeiro ônibus nos sentindo como soldados voltando de uma operação bem-sucedida.
*
O risco me deu uma infusão de adrenalina e eu queria mais. A partir dali, frequentemente era eu quem ia lá para comprar para o pessoal. Um dia, o “vapor” de plantão disse que não tinha nada naquele dia.
“Tá a maior seca, meu irmão!”
Cocei a cabeça sabendo que a galera ia ficar desapontada se chegasse de mãos vazias. Queria fazer bonito com a Soninha, uma menina em quem estava de olho.
Havia dois outros “fregueses” na mesma situação. Um deles perguntou: “E lá no Morro dos Prazeres? Será que tem?”
“Lá é capaz de ter, eles estão esperando um carregamento do bom, mas não tenho certeza se chegou ainda.” O cara olhou para cima e apontou para o mato do outro lado do vale. “É lá em cima daquele morro, vocês sabem como chegar lá?”
Um dos outros dois respondeu: “Eu sei, bora lá?”
“Bora!”
A gente virou para o traficante. “Valeu pelo toque, meu irmão!”
“Valeu! Na semana que vem volta aqui que tem.”
Descemos os trilhos e fomos rumo ao morro do lado oposto do trânsito. Cruzamos a rua e depois que a calçada acabou, tomamos uma trilha que primeiro seguia ao longo do tráfego pesado em direção ao Túnel Rebouças, mas que depois adentrava mato acima. Subimos e no topo do morro chegamos num campo de futebol onde garotos estavam batendo bola. Cruzamos o campo. Por saberem o que a gente estava fazendo ali, continuaram com a sua pelada sem nos dar atenção. De lá, passamos por entre os barracos até chegarmos no final de uma viela. Do alto dos telhados à nossa volta, um pessoal da nossa idade mantinham guarda. No fim do beco, havia uma espécie de quintal e um barraco de frente para o mato. Um mulato alto e magricelo com um revólver na cintura saiu para falar com a gente.
“Aê, playboys, estão procurando alguém?”
Tentando disfarçar nossa apreensão, dissemos da maneira mais calma possível que queríamos comprar cinquenta gramas.
“Ah, é pra isso!” Já dava para ver que o cara estava chapado e estava adorando estar tirando uma onda com a nossa cara, uma péssima combinação para alguém com uma arma na cintura. “Espera aí.”
Ele voltou à porta do barraco e gritou para alguém que estava lá dentro: “Aê, Geraldo, tu já separou aquele tijolo?”
A voz gritou de volta. “Ainda não, o patrão falou que só precisava para hoje à noite.”
“Hoje à noite não dá, mané, já tem freguês aqui fora.”
Ele virou para nós fazendo um gesto para a gente esperar e entrou no barraco. Dois minutos depois, o cara voltou com um baseado enorme na boca e um tablete de dois quilos da coisa debaixo do braço. Aquilo era maior do que vários tijolos de alvenaria juntos – a maior quantidade do produto que já tinha visto na vida.
“Isso chegou hoje de manhã, é paraguaio, prensado, bom pra caralho. Já viu tanta maconha junto?” Ele levantou a mão calejada e ofereceu o cigarro improvisado. “Experimenta aí, playboy!”
Não dava para recusar. O que ele disse era verdade, era do bom e imediatamente sentimos o efeito, mas o medo era demais para relaxarmos a guarda. “Podes crer, é bom!”
Enquanto fomos passando o baseado em silêncio, ele foi separando nossa parte no olho. “Isso aqui é cinquenta gramas, é para dividir por três?”
A gente se olhou e concordamos que sim. Depois que os papelotes estavam prontos, nós entregamos o dinheiro.
Ele gritou para dentro: “Aê, patrão, os fregueses pagaram, quer conferir?” Ele se virou para nós e levantou as sobrancelhas como se dissesse que aquilo era chato, mas tinha que ser feito.
Um cara mais velho, negro e mal-encarado, saiu do barraco e sem falar uma palavra contou o dinheiro e verificou se os pedaços para a gente estavam certos.
“Tá tudo certo, pode liberar. ” Já com o dinheiro na mão, ele pegou o baseado, deu uma baforada e relaxou. “Vocês se deram bem! Essa porra aí chegou fresquinha hoje de manhã e é boa pra caralho.” Ele se voltou para mim e deu uma risada. “Olha só a cara desse maluco, já tá doidão!”
Depois daquela confraternização, colocamos os papelotes na cueca, nos despedimos e fomos embora. Passamos pelos becos enlameados separando as paredes de tijolos dos precários barracos. Apesar de ser minha primeira vez numa favela, não estava com medo. Talvez por causa do efeito e da descontração da despedida, o povo e o local pareciam familiares e passamos desapercebidos.
Quando saímos, percebi que estávamos em Santa Teresa, o bairro às margens da Floresta da Tijuca. Dali, subimos num dos seus bondes e partimos rumo ao Centro da Cidade. O sol estava se pondo e o odor doce das árvores flutuava por entre os bancos de madeira do carro velho e amarelo chacoalhando conforme passava pelas casas coloridas que caracterizavam o bairro histórico.
Longe da Gê, estava de novo em estado de graça, me sentindo de férias, mas com saudades dela. Depois que o bondinho chegou ao seu destino final, seguimos cada um por seu caminho através da selva de concreto do Centro da Cidade.
*
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por Richard Klein | 25 jul, 2020 | Brasil, Crônica, Livro
Capítulo 14
“... quero sentir
A embriaguez do frevo
Que entra na cabeça
Toma o corpo
E acaba no pé."
Capiba – Voltei Recife
Fui parar no Colégio Andrews, uma escola para a classe média carioca situada de frente às inúmeras pistas de trânsito que cercam a belíssima praia de Botafogo. Estava contente, finalmente meus colegas seriam como quaisquer outros adolescentes da minha idade e as férias que ofereciam eram maravilhosas. Além de serem no verão – nas das escolas britânica e americana eram em julho e agosto – eram enormes. Se as notas fossem boas começavam no início de dezembro e só terminavam no meio de março. Contudo, o início foi puxado. As aulas eram em português e disciplinas como química, matemática e física eram muito mais avançadas. Por isso não fui bem no meu primeiro ano e terminei ficando de recuperação em dezembro e janeiro. De qualquer forma, passar a manhã inteira “pegando jacaré” para depois ir à escola por uma hora ou duas não era nenhuma tortura.
Depois de passar nas provas finais, ainda sobravam dois meses sem aulas pela frente. Do nada, Davi, um amigo novo da turma do Maurício, me convidou para passar um mês em Recife na casa de uns parentes, carnaval incluso. Por ser dois anos mais velho, ter acabado de passar no vestibular e pertencer a uma respeitável família judaica, e talvez por sentirem culpa pela bagunça que fizeram com minha educação, meus pais deram sua permissão sem maiores problemas.
No nosso preconceito viamos o Nordeste como um país exótico dentro do próprio Brasil que vivia cinco ou dez anos atrás do Rio e de São Paulo. Por outro lado, a região havia se tornado um destino turístico da moda graças a uma onda de artistas vindos de lá – Alceu Valença, Fagner, Belchior, Elba e Zé Ramalho, Geraldo Azevedo e Robertinho do Recife, todos no auge do sucesso. Independentemente disso, a reputação do Carnaval do Recife era a melhor possível.
A única coisa diminuindo a empolgação era a viagem em si. A distância entre o Rio de Janeiro e o Recife é de 2.300 km. Aviões na época eram coisa de milionário e o único jeito seria encarar uma viagem de ônibus de 43 horas.
*
Pronto para a aventura, com a mesma mochila dos tempos das machanés nas costas, cheguei com meus pais na rodoviária numa noite quente de Janeiro. O terminal estava apinhado de gente de todo jeito, cores e classes sociais; passageiros e acompanhantes fazendo fila nos balcões das viações e passeando pelas bancas de revistas, pelas barraquinhas de comida e pelas lojas de lembranças. Para mim, o buchicho era uma vibração fascinante mas para o seu Rafael e a dona Renée o excesso de gente humilde era incomodo.
Fomos sentar num pé sujo, o melhor da rodoviária, onde tinha marcado de encontrar o Davi. Pedimos um café e ficamos esperando.
“Tem certeza que é isso que você quer nessas férias, Richard? Você ainda pode mudar de ideia.” Rafael não podia acreditar que seu filho quisesse se misturar àquela gente e partir numa viagem estúpida e de mau gosto. “Viajar nessas condições tendo uma casa confortável para passar o verão em Teresópolis? Não entendo.”
“Sim pai, férias foram inventadas para curtir, não para ficar escondido.”
“Mas o Sérgio Birman e o Mario Halpern têm casa lá. Por que você não faz como eles e passa o verão com a família?”
“De novo!? Eles gostam de ir para lá porque ficam em condomínios jogando bola, saindo e curtindo com um monte de amigos. Entende? Curtir?”
O tom da conversa piorou. “Depois das notas que tirou, você deveria estar pensando em estudar para alcançar os colegas.”
Odiando o lugar, já sabendo o que eu ia responder e com uma ponta de inveja por estar fazendo algo que ela gostaria de fazer, Renée se meteu. “Você é egoísta demais, não quer saber de estudar, nem de ficar com seus pais nas férias. Cadê a apreciação pelo esforço que fizemos para construir uma casa de campo para vocês?!”
“Pra gente? Ah! Dá um tempo!” Já não estava vendo a hora de entrar naquele ônibus. “Vocês construíram a casa para tirar onda com os teus amigos! A gente nunca pediu aquela casa e você sabe disso!”
Meu pai me reprovou com um olhar, mas o sangue já tinha subido à cabeça e continuei. “Egoísta? Eu, né? Quem é que me internava todos os anos numa colônia de férias para ir curtir na Europa? Agora é a minha vez, tá legal?”
O Davi chegou com os pais na hora certa. Paramos de falar em inglês e nos levantamos para cumprimentá-los. A apresentação foi formal e um tanto constrangedora. Seus pais não eram tão velhos, falavam português sem sotaque mas era visível que estavam igualmente desconfortáveis com a “diversidade” na rodoviária. De qualquer maneira, tinhamos pouco tempo para ficar ali; faltava meia hora para o ônibus partir.
Depois de pagar a conta, fomos todos para a área de embarque. O sistema de informação era confuso e demorou para acharmos a plataforma. Quando descemos a escadaria de metal, lá embaixo havia filas de famílias nordestinas falando alto e colocando malas velhas e bolsas gigantescas nos compartimentos de bagagem. Nossos pais não conseguiam disfarçar o choque. Constrangidos pela sua presença e sem ver a hora de embarcar, Davi e eu já estávamos de olho em umas “gatinhas” que também pareciam da zona sul, igualmente perdidas naquela confusão. Estavam de vestidos floridos, cheias de pulseiras artesanais e colares de contas. Nos decepcionamos quando subiram no ônibus para Maceió com suas mochilas.
Depois das recomendações finais de nossos pais, demos as passagens ao motorista, entramos, encontramos nossos assentos e nos despedimos na janela enquanto o ônibus saía da baía de ré.
*
Davi era um cara introvertido, porém superinteligente e craque no futebol. Ele tinha acabado de passar para as faculdades de psicologia e de economia e ia cursar as duas. Não o conhecia a muito tempo mas a gente se dava bem. Assim que o ônibus começou a acelerar para fora da cidade, ele soltou um desconfortável “Agora que os pais ficaram para trás, é com a gente.” Mudei de assunto e ficamos batendo papo e fazendo planos até conseguirmos dormir.
Quando o dia raiou, já estávamos em território desconhecido. Os primeiros vilarejos começaram a passar pela janela com homens de chapéu de palha montados em jegues descendo estradas de terra ao lado de carros velhos, gente escovando os dentes nos tanques fora das casas, coqueiros e casebres de barro com cobertura de palha.
Conforme fomos avançando pela BR-101 o que mais chamou a nossa atenção foi a extensão do desmatamento. Na escola, tínhamos aprendido que a Mata Atlântica cobria toda aquela área. Estávamos esperando o ônibus passar por baixo de árvores com macacos pulando de um lado da estrada para o outro. Em vez disso, em ambos os lados, via-se uma paisagem desoladora formada por campos devastados que pareciam não ter fim. As únicas árvores ainda de pé eram aquelas feitas de madeira dura demais para as motosserras e resistentes ao fogo.
Enquanto isso, no ônibus, as coisas começaram a mudar. Quanto mais ao norte chegávamos, mais parecia que um peso havia sido retirado das costas dos nossos companheiros de viagem. Todos tinham começado a ser mais amigos, a falarem mais alto e a perder a vergonha de seu sotaque.
“Oxente, esse ônibus num vai chegar nunca, não? Tamo aqui faz mais de um dia!”
“É verdade, já tô aperreado! Mas pelo menos esse ônibus da Cometa é mió que os de lá!”
“Você é di ondi?”
“Sou de Teresina, mas tô indo mais os filho visitar a família no Recife e você?”
“Sou do interior, de Itapetim. Tou trabalhano no Rio faz dez anos e tô voltano só agora pra visitar a família.”
“Cunheço Itapetim, uma das minhas irmãs se casou e foi pra lá pra morar.”
Os restaurantes de beira de estrada foram mudando também: a comida ficou mais barata, porém bem menos saudável e a quantidade de moscas sobrevoando os pratos, os talheres e os copos baratos começou a incomodar. Os DJs das rádios passaram a soar nordestino e entre anúncios de pamonha, rapadura e do comércio local, tocavam os ritmos da terra que nossos artistas favoritos tinham estilizado.
Nossos companheiros de viagem começaram a se abrir com a gente.
“Já experimentaste rapadura? Não? Pega um pouquinho aqui. Isso com queijo coalho é mió do que caviar importado.”
“Ocês tão indo para o Recife? Para o Carnaval, né? O sinhô sabia que lá a gente não fala aipim, a gente fala macaxeira.”
Um outro acreditou na nossa curiosidade forçada e emendou: “É, e abóbora a gente chama de jerimum. É tudo diferenti!”
Outro começou a falar sobre as maravilhas da cachaça pernambucana. “O Geovina! Ainda tem daquela cachaça de alambique para o rapaz experimentar? Traz aqui pra esses minino. Vê, tome um pouquinho, num tem gosto de cana memo?”
Eles sabiam quem éramos: bons garotos da elite educada, para eles o orgulho da nação. Em vez de raiva ou inveja, mostravam por nós um respeito genuíno. Não tinha certeza se podiam enxergar a diferença entre a gente e a maioria das pessoas de nossa idade com o mesmo status social. Nós os respeitávamos e tínhamos algum interesse pelas coisas que tinham a dizer, algo bastante incomum.
Apesar do encantamento com a acolhida calorosa, para nós aquela viagem não era um exercício político-social. Nossas intenções não eram, de forma alguma, nobres. Como todos adolescentes do sexo masculino no planeta, só tínhamos um objetivo em mente: pegar garotas. Estávamos a caminho do Carnaval do Recife atrás de sexo gratuito, consentido e sem o envolvimento das mãos. Nossas expectativas eram grandes. Estávamos prontos para se dar bem usando a vantagem de vir do Rio, terra da TV Globo e de seus atores atrizes famosos, e a reputação sexy dos cariocas.
*
Quando finalmente chegamos, fomos recebidos calorosamente pela família do Davi. Sua tia morava com o marido num sobrado charmoso no bairro da Boa Vista. A casa era antiga, o chão era de azulejos e o frescor do vento fresco entrando pela janela imensa compensava a falta de ar condicionado no quarto a noite.
Quase não parávamos em casa. De dia partiamos para praia de Boa Viagem e a noite, ou ficávamos por lá ou nos aventuravamos nos pré carnavais do bairro. Neles, nossas esperanças de aspirantes a faunos foram confirmadas apenas parcialmente: as únicas garotas que nos davam qualquer tipo de bola eram as certinhas vindas de boas famílias. Só que sexo para elas era só depois do casamento. Apesar dos olhares assassinos e de até conseguirmos dar uns amassos, os avanços sempre acabavam bem antes do motivo pelo qual tínhamos viajado tão longe.
“Se acalme minino, não pode botar a mão aí não.”
“Mas você não está gostando?”
A cara dizia tudo. “Pare! Se meu irmão ali vê, ele conta pra minha mãe e ela me mata. Num era nem para eu estar aqui com você!”
“Então me dá teu telefone que a gente marca para outro dia!”
“Aff, se meu pai atender ele me deserda! Num dá!”
E elas não davam de jeito nenhum. Beijar um estranho vindo do Sul já era muita audácia. Se para conseguir ao menos isso a gente tinha que suar a camisa e ter paciência, o resto era inimaginável.
Houve uma exceção: uma loira falsa, um pouco mais velha e sem sutiã, que a gente deu uma azarada casual enquanto um bloco pré-Carnavalesco passava numa tarde na praia. Agimos como sempre: a elogiamos enquanto passava e ficamos esperando por uma reação. Ao contrário das outras que olhavam para trás ou sorrindo ou fechando a cara, mas que continuavam em seu caminho, ela parou para conversar.
Apesar de estar sozinha, aceitou vir com a gente para os fundos de uma construção e sentou entre nós dois. Sua calça jeans justa revelava um corpo magro e torneado. O seu perfume e suas unhas pintadas de vermelho, meio “aputalhadas”, nos encheram de tesão adolescente. Ela parecia estar gostando da situação. Havia muita excitação no ar, mas nem o Davi nem eu queria deixar o prêmio para o outro. Conforme a bagunça começou a esquentar ela não demonstrou qualquer preferência, só que acabou não conseguindo lidar com o ataque de quatro mãos adolescentes, se levantou e foi embora.
*
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por Richard Klein | 18 jul, 2020 | Brasil, Comportamento
Capítulo 13
“...foi quando meu pai me disse filho,
Você é a ovelha negra dá família.
Agora é hora de você assumir.”
Rita Lee – Ovelha Negra
Teresópolis era uma cidade de veraneio na lindíssima Serra dos Órgãos. Situada a uma hora e meia do Rio, era famosa por ser o balneário onde a seleção se concentrava antes das Copas do Mundo. Também era popular junto a colônia judaica e meus pais conheciam muita gente que tinha casas de campo lá. Quando criança, costumávamos passar verões ali hospedados em sítios de amigos ou em hotéis fazenda.
Durante uma dessas estadias, surgiu a oportunidade de comprar um terreno a um preço acessível num recanto remoto chamado Jardim Salaco. Sempre aberto a explorar oportunidades, Rafael foi dar uma olhada e levou a família junto para ver se a gente gostava. Adivinhando que acharíamos chato, teve a ideia de organizar a ida numa charrette.
Partimos cedo para o passeio ao som do trote de cavalos. Depois que passamos pela Granja Comary, o enorme hotel fazenda onde a Seleção treinava, a estrada se tornou de terra batida. Os arredores viraram mais rústicos e campestres. A paisagem se revelou maravilhosa e começei a gostar do passeio. Fomos seguindo por um vale até entramos por uma estradinha. Lá, cobertos por árvores, subimos um morro sentindo o ar puro da manhã ensolarada. Na sombra ficava fresco e nas clareiras ficava calor. Enquanto a natureza nos encantava, o dono da charrete açoitava sem parar os coitados dos dois cavalos. Com viseiras nos olhos, levando uma charrete com cinco pessoas, suavam pelo corpo inteiro deixando um cheiro forte.
Paramos no final da estrada num fim de mundo. O corretor tinha ido na frente de carro e estava a nossa espera. Seu Mendes era um senhor careca vestindo uma calça de tergal segura por suspensórios passando por cima da sua barriga avantajada. Ele estava cheio de sorrisos e de conversa fiada. Depois das introduções, ele abriu a porteira e nos convidou para entrar. O dono dos cavalos ficou do lado de fora e foi amarrar os bichos para que descansassem do passeio mais puxado que deviam ter feito na vida.
O terreno ficava na descida de um morro e tinha uma vista maravilhosa; um mar de montanhas se estendendo na nossa frente. Seu Mendes garantiu que num dia claro dava para ver até o Estado de Minas Gerais. Fora isso e a carona apertada que nos ofereceu para voltar, não me lembro de muito mais daquele dia. Só sei que Rafael acabou não resistindo à pechincha e comprando a terra em sociedade com um amigo, um ex-combatente da resistência francesa, Emile Weil, um sujeito magrelo com cara de invocado.
Depois da compra, meu velho não se entusiasmou pela ideia de construir uma casa de campo. Além de ser caro, o projeto o faria o casal perder o hábito de passar as férias esquiando na Europa enquanto nos mandavam para colônias de férias. Levou quase uma década para decidirem o que fazer com aquele elefante branco. Enquanto empurrava a decisão com a barriga, monsieur Weil construiu uma casa lá. O que Rafael não sabia é que, talvez esperando que o amigo acabasse vendendo sua parte, ele invadiu nosso lado do terreno sem consultar ninguém. Quando demos conta, o francês já estava usando a área toda como se fosse sua e isso chamou a atenção de meu pai.
Dez anos mais tarde, subimos a serra e fizemos aquele mesmo passeio, só que dessa vez de carro do Rio direto para o terreno. A ideia era avaliar por quanto poderíamos vender o terreno, mas o resultado acabou sendo bem diferente. Apesar da casa do agora ex-amigo ter o charme de um posto de gasolina e da presença do seu pastor alemão psicopata, Dayan, a beleza do lugar convenceu Rafael a construir uma casa ali para, quem sabe, viver a aposentadoria nela. Dona Renée, se animou com a ideia. Além de ter um sítio significar uma subida de degrau na escada social, o projeto a daria um passatempo novo e desafiador já que a idade estava começando a prejudicar sua performance no tênis.
Talvez por ver aquela empreitada como um investimento a longo prazo e que uma casa mais elaborada daria um retorno melhor na hora de vender, Rafael cedeu à insistência da esposa e deu carta branca para que tocasse o projeto. Com uma responsabilidade concreta pela primeira vez em sua vida de casada, Renée deu asas a sua imaginação e passou a devorar revistas de decoração do mundo inteiro. No fim das contas ela planejou, junto com um arquiteto e um mestre de obras local, uma casa de estilo campestre francês. Como era de se esperar, o custo da construção estouraria o orçamento várias vezes e colocaria em cheque a saúde financeira da família.
Sarah e eu não vimos com bons olhos aquela decisão. Para nós, Teresópolis era um lugar chato onde a judeuzada careta se isolava nos fins de semanas. As casas dos poucos amigos que iam lá, ficavam a quilômetros de distância daquele fim de mundo. Mais tarde fui descobrir que o único transporte público era o ponto final de uma linha de ônibus que saia de hora em hora, a uma caminhada de meia hora da casa.
Tendo isso em mente, para nos atrair, jogaram mais dinheiro no mato para construir uma piscina, se esquecendo que já havíamos passado há tempos da idade de ficar brincando na água rasa. Para Sarah e eu, a ideia foi um enorme elefante branco sugando a atenção, a energia e a grana dos nossos pais. Quando a inauguraram estava com 14 e Sarah com 19. A gente quase nunca ia, e o resultado foi que nos finais de semana, ficávamos com a casa liebrada sem qualquer supervisão. É claro que aproveitamos.
*
Estranhamente, aconteceu que o Fred, o líder da “esquadriha da fumaça” da Escola Americana, dono do apartamento onde fui iniciado, também tinha uma casa no Jardim Salaco. Ela ficava na outra extremidade da nossa rua. Quando meus pais travaram conhecimento com os dele, promeiro ficaram contentissimos pela coincidencia mas logo depois se horrorizaram quando o casal confidenciou que compravam eles mesmos a maconha para o filho a fim de evitar que se envolvesse com traficantes. Fred, sem sombra de dúvida, era um cara esquisito. Desengonçado, grande, meio gordinho e com um olhar transtornado, parecia estar eternamente chapado e vivia rindo de coisas bizarras e sem graça. Para Rafael e Renée, se fosse pobre jamais seria material para uma amizade com seu filho. No entanto, resolveram tolerar minhas visitas a sua casa já que poderiam me fazer ir mais para Teresópolis. Além disso, o pai era um arquiteto famoso, o garoto bem que poderia mudar e se tornar um contato valioso para o meu futuro.
O plano meio que funcionou e passei a ir quando ele e a galera subiam. Num fim de semana fatal, fui sabendo que estariam lá. No sábado a tarde, fui visitá-los. Além dos baseados de praxe havia muita bebida. Desacostumado, acabei tão bêbado que depois de atacar a cadela da casa e de uma crise copiosa de choro, tiveram que ligar para meus pais. Bebida era algo que não se via em casa, ao ponto que, em toda a minha vida, nunca vi meu pai sequer alegre por causa de álcool. Por isso, quando me viram, com 15 ou 16 anos de idade, caindo pelas tabelas, ficaram chocados. Colocaram a culpa no Fred, suspeitando que tinha colocado algo em minha bebida. Talvez fosse verdade, mas o mal já estava feito. Até então, era um artista sonhador, mas depois do ocorrido virei um adolescente problemático com tendência a ser vagabundo.
*
Minha vida doméstica refletia os versos de Panis Et Circenses dos Mutantes:
“Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar,
Estão ocupadas em nascer e morrer.”
Seguindo a canção, nos transformavamos naqueles personagens na hora do jantar. Sempre vestidos de maneira “apresentável”, nos reuníamos em torno de uma mesa clássica grande, escura e fortemente envernizada no meio da ampla sala de jantar. Em cima, havia um candelabro macabro. As cadeiras eram pomposas porém desconfortáveis. Os móveis em volta, também eram de madeira escura e as paredes tinham pinturas clássicas de naturezas mortas e de passagens bíblicas, emolduradas em um dourado pesado imitando antiguidades. Parecíamos estar numa mistura dos filmes caricaturais de Fellini com os filmes de vampiros do Bela Lugosi.
Antes das refeições havia sempre frutas frescas a nossa espera num vaso chinês. Isso porque, por recomendação de um médico amigo da família, começávamos com alimentos saudáveis, antes de passarmos às comidas mais pesadas. Quando todos haviam terminado, me pediam que pisasse numa campainha que ficava embaixo do meu pé. Seu barulho estridente fazia com que a dona Isabel interrompesse a sua novela na cozinha e entrasse com seu andar desajeitado para limpar a mesa e depois voltar com o prato principal. Enquanto comíamos, tínhamos que manter a pompa: nada de rádio ou televisão e não podíamos atender ao telefone. Quando terminávamos, me pediam para dar outra pisada na campainha para a sobremesa. Depois da sessão, Sarah e eu regressávamos ao planeta Terra enquanto Renée e Rafael iam para a sala de estar e passavam o resto da noite lendo em silêncio, lendo ao som de música clássica.
Foi durante um desses jantares que meu pai limpou a garganta para me dizer que uma faculdade de cinema nos Estados Unidos ou na Inglaterra estava fora de questão. Apesar da decepção, depois de tantas cagadas a notícia era previsível. Além do mais, o conceito de publicidade e de cinema eram estranhos demais para eles e depois do ocorrido, a escolha mais parecia uma provocação do que qualquer outra coisa.
Ligeiramente chocado, reclamei. “E o que é que você quer que faça agora? Como que vou conseguir trabalhar com o que eu quero?”
“Trabalhar com o que você quer? O que você sabe sobre trabalho e sobre cinema?” Ele me olhou sério. “Isso não é profissão, é hobby! Profissão é médico, engenheiro, advogado.”
Me sentindo atacado, respondi a altura. “Fiz um filme que foi exibido na América Latina inteira, e sei o que quero! É tão difícil aceitar isso?” Ele não respondeu, mas desaprovou. Encorajado, continuei. “Quem não sabe do que está falando é você! O que você entende de cinema? Qual o último filme que você foi ver? Charlie Chaplin? Fred Astaire?”
“Essas ideias de saber o que você quer são coisas que esses vagabundos, filhinhos de papai estão colocando na sua cabeça.” Rafael não tinha o pavio curto como eu, mas pegava pesado nos argumentos. “Vê a tua irmã? Ela está indo bem na faculdade. Vai ser dentista. E sabe por quê? Ela não fica perdendo tempo. Você é mais inteligente que ela, tira nota boa sem precisar estudar. Toma jeito e vira homem?!”
Fiquei puto. “Será que estou falando com as paredes?!” E já fora de controle emendei. “Se virar homem significa baixar a cabeça e virar capacho em um escritório cheio de escrotos, quero ser um super-homem e ser dono do meu nariz.”
Ele também subiu o tom. “Você é um moleque mimado que não faz ideia do que está falando. Se você não me ouvir agora, a vida vai te ensinar.”
“Pois é, não tenho nada a aprender com você.”
Talvez se fosse de outra família ou se meu pai fosse mais jovem, teria levado uma surra, mas a resposta foi o silêncio passivo-agressivo de sempre que durou semanas.
*
Quem precisava daquela Escola Americana cara e cheia de maconheiros alcoólatras se eu não ia mesmo estudar cinema? Pouco depois daquela conversa, me colocaram de volta no sistema brasileiro. Tinham que fazer isso o rápido para que tivesse tempo de me preparar para o vestibular e entrar em uma universidade brasileira.
Da minha parte, conseguia entender que o dinheiro estava curto e que o esforço em apostar numa carreira acadêmica exorbitante no exterior seria puxado. Mas todo aquele papo furado para mascarar o fato de que o dinheiro tinha ido para construir uma casa que ninguém precisava, me deixou inconformado. De qualquer forma, a grana era deles e quem tinha que construir meu futuro era eu. Pensando bem, a situação não seria das piores; mais tarde poderia estudar cinema no Brasil. Tinha ouvido falar que havia um curso bom em São Paulo. Com algum talento e muito esforço, tudo poderia dar certo e um dia poderia alcançar meu sonho.
Depois do incidente, a atitude deles mudou radicalmente. Queriam me enquadrar. Os sermões sobre a importância do sucesso financeiro e de ter uma profissão “de verdade” passaram a ser quase diários e a pressão cada vez maior. As conversas terminavam em discussões acirradas e se resumiam a dois adultos com um plano contra um jovem tentando descobrir seu lugar na vida. Sem educação universitária ou experiência profissional, os dois estavam tentando me convencer sobre coisas que não entendiam, mas quanto mais tentava explicar meu ponto de vista, por mais racionais que meus argumentos fossem, pior as coisas ficavam. A Sarah entendia o meu lado, mas com seus problemas por causa dos namorados que ela arranjava, já tinha atritos suficientes para pensar em me defender.
Com tudo isso martelando na minha cabeça, ia para o quarto, pegava o violão e tocava uma dos Novos Baianos:
“Por que não viver?
Não viver este mundo
Por que não viver?
Se não há outro mundo??”
…
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por Richard Klein | 11 jul, 2020 | Brasil, Comportamento, Crônica
Capítulo 12
“... aí eu vou misturar
Miami com Copacabana,
Chiclete eu misturo com banana
E o meu samba vai ficar assim...”
Jackson do Pandeiro – Chiclete com Banana
Apesar do fiasco na Escola Britânica ter quase acabado com o projeto de estudar cinema no exterior, ele continuou. A única alternativa que sobrou no Rio de Janeiro foi a Escola Americana ou a EA (pronunciada i-ei por todos que a conheciam). Inegavelmente era um melhor e mais sólida para adolescentes e ainda tinha a vantagem de que os cursos iam até a idade pré-universitária. O currículo, porém, era inteiramente voltado ao sistema americano. Quando me formasse teria que fazer faculdade nos Estados Unidos. Por todas serem privadas, isso custaria uma fortuna. Ao contrário, se fosse estudar no Reino Unido, muitas das melhores universidades eram praticamente gratuitas e melhores do que a maioria das Americanas. Ciente como nunca de que estávamos, mas não éramos, ricos, Rafael aprovou a decisão salgada. Um detalhe preocupante era que se mudasse de ideia e resolvesse permanecer no Brasil a escola não preparava para o vestibular.
O início foi desconcertante. O colégio possuía tudo o que se poderia esperar de uma High School americana: garotas e garotos ruivos e loiros falando inglês anasalado, um campo de baseball, uma equipe de futebol americano e a competição social inerente àquele tipo de instituição. Cobrindo o morro logo em frente a favela da Rocinha, a maior do mundo, era um lembrete de que aquele terreno enorme abrigando prédios futurísticos era o foco de um vírus estrangeiro.
O lado pedagógico da EA era tão avançado quanto sua arquitetura apesar das aulas serem ridiculamente fáceis. Não havia uniforme, construíamos nosso próprio currículo e estudávamos com diferentes alunos em diferentes salas de aula. Havia uma área de fumantes para os estudantes e vários professores, todos americanos e muito profissionais, tinham cabelos compridos, algo que nenhuma outra escola no Rio tinha nos anos setenta.
Numa cidade influenciada pela cultura Estado Unidense, em matéria de curtição, a escola era o Olimpo para a juventude da Zona Sul carioca. Quem havia introduzido o surfe, os biquínis e a maconha à cidade tinha estudado ou estava estudando ali. Meus colegas de turma eram filhos dos estrangeiros poderosos enviados para assegurar que a filial seguisse de perto as diretrizes da matriz na construção do “Novo Brasil”. Essa mentalidade colonial era visível na maioria dos estudantes e eu tinha que tomar cuidado para não absorver o sentimento generalisado de superioridade em relação aos brasileiros.
A maior parte dos colegas não era santa e estava vivendo junto com suas familias os melhores momentos de suas vidas. Longe de sua terra, os pais ganhando mais do que estariam ganhando em casa e onde tudo era mais barato, a rapaziada fazia todas as coisas erradas que outros da mesma idade faziam, mas com a vantagem de poder contar com a IBM, a Merck ou a Esso para intervir quando as aventuras terminavam mal. Esse tipo de impunidade era normalmente reservada apenas às famílias locais do mais alto escalão.
A elite da escola se conhecia bem por meio das festas, dos clubes e das organizações que seus pais participavam. Era fácil excluir os que não faziam parte da roda. Com o status de brasileiro, não-surfista, não-sarado e filho de um judeu idoso dono de um pequeno negócio, me barraram na hora. Os que faziam parte daquela turma tinham imaculados pedigrees americanos ou europeus, irradiavam autoconfiança, eram atléticos e pareciam arrasar em qualquer atividade física na qual se envolviam, menos no futebol. É claro que as meninas só davam bola para eles.
Aquela galera levava um estilo de vida difícil de se imaginar. Para começar, a maioria tinha barcos a sua espera na marina do Iate Clube do Rio de Janeiro. Muitos moravam em casas espaçosas, uma raridade mesmo naquele tempo. Os que moravam em apartamentos, viviam nos melhores endereços da cidade como as avenidas beira-mar de Ipanema e do Leblon, a Vieira Souto e a Delfim Moreira. Sempre que era convidado para suas festas ou para passar um tempo com algum deles, pensava comigo mesmo: “Então são essas as pessoas que moram aqui!” Aquela turma tinha acesso a coisas que eram ficção científica: videogames (algo que quase ninguém tinha na época), pranchas de surf e skates importados, discos de todas as bandas imagináveis e os melhores equipamentos de som disponíveis nos Estados Unidos. Seus fins de semana, quando não passados velejando num iate, eram passados em casas de veraneio que pareciam saídas de revistas especializadas e isso nas melhores localidades. Lá utilizavam todos os seus brinquedos.
Como se isso não bastasse, suas mesadas em dólar eram muito maiores do que o que eu recebia em um ano inteiro, que, por sua vez, era mais do que um salário mínimo. Meu pai tinha ganho bastante dinheiro extra com sua jogada na bolsa, mas comparados a essas famílias éramos pobres.
Os poucos amigos que fiz estavam numa situação parecida. No entanto trouxeram uma novidade: fumavam maconha. Depois que ficaram sabendo que tocava violão e dos meus gostos musicais não demorou muito para que me convidassem a descobrir qual era o motivo de tanto barulho.
Minhas primeiras tentativas foram decepcionantes. “Cara, cadê? Esse bagulho não era bom pra caralho? Já é o segundo e nada!”
“Calma, Rique, não bateu porque você está nervoso. Vou colocar um Pink Floyd para relaxar, Dark Side of The Moon. ”
“Tenho em casa, sei até tocar Time no violão.” Paranóico de que minha tirada de onda tinha caído mal, mudei de assunto. “Será que não bateu porque tossi demais?”
Aquilo foi a chave de ouro para a minha pagação de mico e todos caíram na gargalhada.
Rod, um cara que não ia com a minha cara, conseguiu parar de rir e falou. “Não falei que esse cara é muito louco?! Não bateu porque ele tossiu demais!!” E as gargalhadas voltaram.
Na terceira ou quarta sessão, tomando mais cuidado para não falar bobagem, fiquei na minha e de repente a ficha caiu que estava muito chapado.
“Caralho, cara, esse som tá muito bom!!”. Os caras olharam para mim esperando que eu falasse mais besteira. Levantei, olhei em volta me sentindo diferente e emendei. “Porra!!! Eu tô doidaço!!”. Dessa vez todos riram comigo.
A experiência não foi como tinha esperado, não havia unicórnios galopando pelo ar e as coisas não tomaram cores psicodélicas. A única mudança foi que a gente continuou rindo sem parar sem motivo nenhum enquanto trocavamos discos de bandas obscuras na vitrola. Sem dúvida, a onda dava uma dimensão diferente às coisas. Talvez por estar aprendendo violão, o efeito da fumaça deixava nítida as diferentes camadas da música. Eu parecia compreender o que se passava na cabeça dos músicos quando as criaram e quando as gravaram.
Enquanto a turma ficou inventando mentiras sobre ácido, heroína e maconhas mais potentes, falei que tinha que ir ao banheiro e fui curtir a novidade dando uma volta pelo apartamento. Os pais do dono da casa, Fred, tinham viajado e a casa estava vazia. Fiquei vagando no escuro pela sala de estar enorme vendo pinturas na parede, esculturas e plantas decorativas. Tudo tinha adquirido uma beleza que nunca teria notado em meu estado normal.
Quando voltei, já estavam fumando outro.
“E aí, Rique? ”
“Cara, esse negócio é muito bom! Me passa essa porra aí!” e todo mundo caiu de novo na gargalhada.
Depois daquela noite entrei numa sintonia diferente tanto na escola quanto na praia, no clube e em casa: agora pertencia a um clube secreto. Coisas e pessoas que nunca tinha entendido passaram a fazer todo sentido. Participar dessa realidade paralela era como a conquista de uma nova identidade. Na minha cabeça, meus pares em outras rodas, o Maurício, o Jaime e o Léo estavam morrendo de vontade de fazer o mesmo mas não tinham coragem.
O lado negativo foi que passei a levar uma vida dupla. Não disse nada para os meus outros amigos, muito menos para os meus pais. Os dois Riques não se misturavam, para um grupo continuei sendo o mesmo de sempre só que com sumiços e momentos estranhos, para o outro era um iniciante estabanado. Logo descobriria que a maconha era um repelente contra as garotas, mas e daí? Nunca iria conseguir nada com as beldades da Escola Americana mesmo.
…
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