por Richard Klein | 17 out, 2020 | Brasil, Opinião, Política
Capítulo 20
“E vou cantar entre os cristais azuis do tempo e perceber
A terra longe, longe a se perder.”
Som Imaginário
O vestibular, a prova que definiria nosso futuro e o nosso valor para a sociedade, estava esperando na esquina. Esse rito de passagem preocupava até os mais inveterados membros da “esquadrilha da fumaça” do Colégio Andrews. Apesar do nervosismo na escola e em casa e além da obrigação de justificar o dinheiro gasto na nossa educação, nos perguntávamos onde iríamos parar depois que passássemos por aquele portal se passássemos. A sensação era que Molloch, o deus monstruoso do aparato militar industrial capitalista, retratado por Allen Ginsberg no seu genial poema Howl, estaria nos esperando do outro lado, vampiresco e impessoal, escravizador e envenenador de tudo e a todos com seu piche de enquadramento e resignação.
Era como estivéssemos enjaulados aguardando ser soltos para um futuro de animais de elite adestrados, sangue novo num ciclo de oferecer força vital em troca de mercadorias desnecessárias. Como engolir a máxima arbeit macht frei – o trabalho constrói a liberdade – escrita nos portões de Auschwitz e enraizada no pensamento ocidental, martelada em nossas cabeças por professores, mídia, filmes e, acima de tudo, por nossos pais?
Embora não fossem, de forma alguma, nazistas, nossos educadores acreditavam que a única maneira de escapar à injustiça inerente ao mundo era trabalhar duro para se tornar uma peça bem remunerada de Molloch. Como nas histórias de vampiros, sabíamos que no momento em que nos tornássemos “um deles”, não haveria volta e reproduziríamos o servilismo de dezenas de gerações passadas. Por mais que nos esforçássemos, o dinheiro ganho jamais compraria nem liberdade nem felicidade. Os únicos que teriam direito a isso seriam os que nem precisariam se esforçar ou se preocupar já que fortunas familiares lhes garantiriam blindagem.
Sem dúvida, num país onde o acesso às universidades era um privilégio de poucos, essas opiniões eram resultado de uma mistura de educação sofisticada com tempo disponível para ler e refletir. Contudo, esta situação confortável propiciava uma distância necessária para discernir claramente a máquina que movia o mundo. Ela estava ali nos esperando, sólida e impassível e mostraria suas garras assim que ingressássemos no mercado de trabalho. Embora o vestibular não fosse a parada final, era o portal para um posto avançado. A vida depois dali viraria séria, em outras palavras estaríamos seriamente ferrados. Isso se passássemos, se não passássemos, a humilhação da ineptitude para servir Molloch seria insuportável.
A versão oficial sobre o que estava do outro lado do portal, era a de um mundo desfrutando a vitória do bem sobre o mal, onde as forças democráticas e socialistas haviam esmagado o nazismo. Nele, a humanidade estava a caminho de um lugar melhor, livre, repleto de avanços tecnológicos que garantiriam prosperidade a todos, a despeito da indevida oposição do comunismo totalitário.
O que tentavam ocultar desse mundo era a locomotiva que o guiava; as grandes corporações. Estas eram as provedoras dos bens e dos serviços que o caracterizavam. Para que a máquina funcionasse a seu jeito, demandavam governos que lhes passassem um cheque em banco. Governos voltados para o bem-estar de todos não interessavam.
A despeito do sucesso econômico durante a reconstrução dos países arrasados pela guerra, teóricos liberais, os sacerdotes de Molloch, se rebelaram. Estes diziam que o estado estava se metendo demais na economia e impedindo que a locomotiva funcionasse direito. Eles se esforçavam – e ainda se esforçam – para provar que os interesses das grandes fortunas e os das populações eram a mesma coisa. Sua lógica de mão única afirmava que sucesso do capital privado era fundamental para o bem-estar da população. O inverso não era verdade; o bem estar “em excesso” da enorme maioria seria nocivo ao bom funcionamento da economia. Baseado nessa premissa, quando havia descontentamento ou quando grandes interesses eram contrariados, a ordem estabelecida, detentora exclusiva do direito à violência, recorria à força. Vista dessa ótica, a democracia liberal era uma ilusão onde todos achavam que tinham escolhido viver em submissão.
Talvez por aprenderem de primeira mão sobre a brutalidade que seus pais e avôs sofreram em duas guerras mundiais na luta pela liberdade e pelos ideais democráticos, talvez por presenciarem diretamente as escolhas decepcionantes feitas pelas lideranças vencedoras na reconstrução de seus países, a geração que se seguiu, a dos babyboomers, viu além da versão oficial. Contando com mais gente cursando ou formada em universidades do que qualquer outra geração anterior, ela carregou o bastão da luta pela democracia verdadeira.
A luta agora era para prevenir que o triunfo dos aliados levasse no longo prazo a um servilismo sem questionamento, quase voluntário. Apesar do crescimento econômico forte durante a reconstrução, ficou claro onde os frutos mais suculentos iriam parar quando aquele ciclo terminasse: no andar de cima. No fundo, nada tinha mudado. Era preciso desmascarar a farsa e sacudir as estruturas para que um mundo realmente melhor viesse depois da carnificina das guerras. Para essa geração ficou claro que planeta inteiro sofria dos mesmos problemas. O mal ia muito além de ideologias, países ou raças pintados como adversários. O mal estava na maneira como a estrutura tinha sido montada e era gerida e nas manipulações que faziam com que a humanidade aceitasse, sem nenhum questionamento ou resistência, que uma ínfima minoria se impusesse.
Este questionamento se espalhou como fogo pela juventude educada. As possibilidades que eles vislumbravam nas suas preferências para reconstruir o mundo poderiam ser a rota de saída de um legado de guerras, ditaduras, perseguições, fome, genocídio e outras coisas horríveis deixado por múltiplas gerações.
Na América Latina e em outros países do Terceiro Mundo a situação no pós guerra era mais complicada ainda. O discurso de que o triunfo dos aliados significou uma vitória contra a injustiça e a tirania, encorajou a luta contra o imperialismo, e revoltas populares como a Revolução Cubana. No entanto, ao sul do Equador, a contradição entre o discurso e a prática dos aliados criou vários absurdos onde as elites apoiavam ditaduras em nome do chamado “mundo livre”.
Naquela nossa mistura de consciência com inocência acreditávamos que ainda era possível pegar a saída para o mundo descrito por John Lennon em sua música Imagine, onde todos viveriam em função do presente, sem fronteiras e sem diferenças. A saída apontando para o vestibular e o que seguiria depois era o portal para um pesadelo.
*
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por Richard Klein | 3 out, 2020 | Brasil, Comportamento, Crônica
Capítulo 19
“E aqueles que foram vistos dançando
Foram considerados loucos por aqueles que não conseguiam ouvir a música.”
Friedrich Nietzsche
O último ano no Colégio Andrews era dedicado cem por cento a nos preparar para o vestibular. As aulas foram transferidas para um prédio separado com os alunos agrupados em quatro turmas – duas para ciências exatas, uma para área biomédica e uma para humanas. Agora, transformada em cursinho pré-vestibular, a escola era puro stress. Os métodos eram intensos, com professores nos bombardeando com segredos infalíveis para saltar a barreira colossal posta a nossa frente.
O programa da escola tinha uma boa reputação. Estudantes vindos de outras instituições no Rio bem como de mais longe se transferiam para. Um dos novos alunos que conheci tinha vindo do Chile. Ele tinha ido viver lá com a mãe quando os pais se separaram. Agora, na casa do pai, queria voltar a morar na sua terra natal e fazer faculdade lá.
Alguns dias depois do início das aulas, pegamos o mesmo ônibus e começamos a conversar. Por algum motivo, o papo acabou em Teresópolis e descobrimos, para nossa completa surpresa, que ambos tínhamos casas de campo vizinhas no fim de mundo do Jardim Salaco. Isso foi coincidência demais para a cabeça de qualquer um e ajudou a nos tornar melhores amigos instantaneamente.
Kristoff era de descendência alemã, parecia com o ator Jack Palance, só que de cabelo comprido e loiro. Além da origem europeia, tínhamos em comum o gosto pela música, ele tocava flauta transversal e se tornaria saxofonista profissional. Além disso, de alguma forma inexplicável, apesar de pertencermos à infame “esquadrilha da fumaça”, conseguíamos nos manter nos top quinze por cento quando havia testes preparatórios. Não demorou muito para que ele se juntasse à irmandade musical da escola, e em pouco tempo seu apartamento no final do Leblon se tornou o quartel general dos músicos marginalizados e afins.
Como aspirantes a instrumentistas, para nós, os gigantes do rock dos anos 1970, Pink Floyd, Led Zeppelin, Jethro Tull e Yes reinavam supremos nos nossos gostos, assim como os Beatles, os Rolling Stones e o Jimi Hendrix. Só que além deles curtíamos o jazz-rock mais recente, representado por uma geração de músicos brilhantes como a Mahavishnu Orchestra de John McLaughlin, Focus, Jean-Luc Ponty, Jeff Beck, Stanley Clarke e Weather Report entre tantos outros.
Tal como era o caso com outros aspectos da cultura jovem no Brasil, estávamos cerca de cinco anos atrás do que estava acontecendo na Inglaterra e na América do Norte, desconhecendo tanto o punk como o reggae. Não fazíamos ideia do que representavam em termos de resistência ao sistema, ao racismo e à caretice que tinham tomado conta do mundo anglo-saxão a partir de meados dos anos 70. De qualquer forma, suspeito que mesmo que tivéssemos tido conhecimento, ainda assim teríamos continuado ligados naqueles grandes mestres nos nossos instrumentos.
Havia vários talentos musicais locais de alto calibre surgindo. Nossos ouvidos estavam abertos para gênios como Hermeto Pascoal, Naná Vasconcelos e Egberto Gismonti que pareciam ser um fio condutor para o tipo de energia que tinha experimentado no sul da Bahia.
Se a bossa nova tinha sido o reflexo do otimismo do pós-guerra brasileiro, essa nova geração musical refletia um momento de autodescoberta e de renascimento vindo com o ressurgimento da liberdade política. Ainda que fossem exclusivamente instrumentistas, eram populares; seus shows lotavam e, por um curto tempo, eram os mais vendidos entre os consumidores mais antenados.
Dos três, Egberto era meu favorito. Seu talento começou a se manifestar na loja de instrumentos musicais de seu pai onde, ainda criança, demonstrava pianos aos clientes. Mais tarde, Egberto foi para a França estudar música clássica. Quando regressou, aplicou o conhecimento adquirido e seu talento à música brasileira, indo muito além da bossa nova. Entre outras coisas, Egberto mergulhou a fundo na música indígena, a ponto de ir aprender música sagrada com um pajé na região do Xingu onde usava música como forma para curar. A história conta que para Sapaim, o xamã-músico, aceitá-lo, Egberto teve que acampar do lado de fora de sua maloca isolada na selva por cerca de um mês até ser convidado a entrar. Talvez por causa do que aprendeu lá, os sons nos seus shows eram como uma entidade palpável que hipnotizava o público.
Hermeto Pascoal foi um menino albino nascido no sertão nordestino. Devido à sua condição, não podia trabalhar sob o sol escaldante, daí seus irmãos o trancavam em um estábulo onde canalizava sua frustração furiosa para a música. Os seus cabelos e barba brancos, longos e encaracolados e seus traços marcantes cobertos por óculos fundo de garrafa, conferiram a ele o merecido apelido de “Bruxo”. Sua banda, que mais parecia uma seita de instrumentistas fanáticos, morava na sua casa no bairro afastado de Bangú, no Rio de Janeiro. Quando tocavam, faziam sons insanos, não só com instrumentos, mas também com objetos do dia a dia como garrafas quebradas, serrotes e panelas. Em meio a essa loucura, entretanto, havia o gênio que criava sons celestiais lindíssimos nascidos dos mistérios de índios, africanos e europeus.
Desses três instrumentistas, o que alcançou maior sucesso internacional foi Naná Vasconcelos. A revista Down Beat, a mais importante do mundo do jazz, iria elegê-lo oito vezes como o melhor percussionista do mundo; ele também receberia oito Grammies. Vindo de Pernambuco, era o único afrodescendente dos três. Exalando ritmo por todos os poros, mestre no berimbau, tinha uma ligação íntima com a espiritualidade do Maracatu. Depois de uma contato rápido com os mineiros ligados a Milton Nascimento, o clube da esquina, conheceu o rock e a mistura acabaria levando sua percussão a níveis psicodélicos nunca antes imagináveis.
Egberto, Naná e Hermeto não eram, de forma alguma, as únicas expressões da música instrumental e experimental brasileira nos anos 1970. Havia também bandas como a Uakti, conhecida por usar instrumentos feitos à mão, pelos próprios membros do grupo. O nome Uakti vindo de um mito dos índios Tucano sobre um homem-instrumento. Haviam os jazzistas como Victor Assis Brasil, Hélio Belmiro e Wagner Tiso, além de bandas mais elétricas como A Cor do Som e o guitarrista Pepeu Gomes, ambos com origem nos Novos Baianos. Para qualquer um minimamente interessado em música essa foi uma época abençoada.
Após sua curta popularidade no Brasil, os três principais expoentes daquela geração sairiam de moda mas surgiriam como estrelas na cena do jazz internacional.
*
O interesse pela música instrumental era tão grande, que promotores de eventos enxergaram a oportunidade. O Rio Jazz Festival, irmão carioca do Festival Internacional de Jazz de São Paulo, começou em 1978, apresentando nomes consagrados internacionalmente como o guitarrista Joe Pass, o trompetista Dizzy Gillespie e o saxofonista Dexter Gordon, o guitarrista da Mahavishnu Orchestra, John MacLaughlin bem como músicos brasileiros que estávamos ouvindo.
O problema era o local: o Maracanãzinho, o mesmo lugar que tinha acolhido os festivais da canção no fim dos anos 1960 e início dos 1970. A acústica era péssima. Grandes nomes do rock, como Alice Cooper, Rick Wakeman e Genesis haviam tocado lá, mas o eco tinha transformado a música deles em ruído.
Apesar dos problemas de qualidade, a “esquadrilha da fumaça” tinha que estar presente. Como os ingressos eram caros, só tínhamos dinheiro para um show. Escolhemos a noite de encerramento, com o Weather Report, a banda do melhor baixista de todos os tempos, Jaco Pastorius, seguidos por outra estrela do baixo, Stanley Clarke. O grandfinale ficaria a cargo de Jorge Ben junto com a bateria da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, a melhor do Rio de Janeiro, e convidados especiais.
Os assentos eram divididos entre os mais em conta, na desconfortável arquibancada na parte de cima, e os mais caros perto do palco. Lá, o público mais endinheirado podia ouvir o show com mais clareza sentado em cadeiras numeradas. Claro que tínhamos os ingressos mais baratos. Só que assim que entramos no ginásio, percebemos que era fácil pular para a parte de baixo. Todos fizeram isso, só que quando chegou a minha vez, um policial bateu nas minhas costas e me mandou voltar para meu lugar. Ainda que tenha ficado só, estava com nosso precioso baseado reservado especialmente para o show, sobrevivente das dificuldades financeiras do mês anterior. Quando sentiram sua falta, me chamaram lá de baixo e ficaram implorando para que jogasse o bagulho.
Falei que não ia rolar: “Os caras agora estão de olho em mim, não vou pular e o beck fica comigo.”
“Rique, deixa de ser veado e joga essa merda!”
“Cara, essa é a minha compensação por ficar sozinho aqui na roubada.”
“Porra! Todo mundo comprou junto e você vai ficar com ele sozinho!?”
“Grita mais alto que é pros “homi” ouvirem melhor.”
Voltei para o meu lugar nas arquibancadas e deixei os caras reclamando, provavelmente se segurando para não me chamar de judeu ruim de transa.
*
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por Richard Klein | 5 set, 2020 | Brasil, Crônica
Foto: Gita – Fotografia Profissional
Capítulo 17
“Bom viver graças ao calor do sol
Benfeitor dessa região…”
Gilberto Gil – Cores Vivas.
A situação não podia ser melhor na chegada do verão de 1979. Integrado ao estilo de vida carioca, enturmado graças ao violão, membro titular da turma dos malucos do Colégio Andrews, tinha passado de ano com facilidade. As férias que vinham pela frente prometiam. Como recompensa pela boa atuação escolar – sem ter ideia do que se passava nas horas vagas – Renée e Rafael concordaram em patrocinar mais uma aventura de verão. O plano era ficar um mês e meio no sul da Bahia, a nata dos destinos alternativos na época, novamente na companhia do Davi.
A região ao sul de Porto Seguro era um dos refúgios hippies mais procurados do país. Louvada em musicas por Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros filhos da Bahia, aquele ecossistema praieiro, vasto, quente e verde tinha sido poupado do saqueamento que os litorais dos estados do Rio e de São Paulo estavam sofrendo. A área era tão virgem que ainda havia tribos indígenas vivendo em reservas, o que contribuía para a sua aura de paraíso tropical. Somado a isso tudo, era próxima a cidade natal de Jorge Amado, Ilhéus, prometendo, em minha imaginação, uma imersão na cultura afro-baiana.
Desta vez, fomos sozinhos à rodoviária o que fez com que nos sentissemos mais maduros na hora de embarcar. A viagem era “apenas” trinta horas e nossos companheiros eram na sua maioria gente da região voltando para passar os feriados de fim de ano em casa.
Dada a destinação, como era de se esperar, para nossa alegria, havia um grupo de seis ou sete garotas de Ipanema com ar hipongo entre os passageiros. Assim que o ônibus pegou a estrada todas se levantaram para ficar conversando em pé no corredor do ônibus ou de joelhos nos assentos. Felizes por estarem saindo de férias longe da tutela dos pais num lugar da moda, cientes de que estavam chamando a atenção do ônibus inteiro, ficaram horas num papo animado.
“Menina! Você tem que ver o biquíni que comprei na Company. Cheio de detalhes indianos, o máximo!”
“É?! A Marcinha foi lá na semana passada e disse que viu umas cangas de batik lindas, meio sedosas, importadas da Índia. Fiquei morrendo de vontade de comprar, mas não deu tempo.”
“Amo de paixão tudo na Company!”
“Também adoro!”
“Por falar em adorar, você já viu as fotos da pousada onde vamos ficar? Maravilhosa!”
“Vi, o Flávio tirou quando ficou lá o ano passado, uma viagem.”
“E a praia, viu que escândalo?”
“O Flávio mudou muito depois que passou a namorar a Adriana, não acha?”
“É, ele se afastou, mas pudera, ele é um gato, você não faria o mesmo se fosse ela?”
“Não sei, não gosto daquela menina.”
Aquelas vozes altas ficaram abafando qualquer outra possibilidade de conversa entre os passageiros. O problema para nós é que, apesar da superficialidade, eram todas lindíssimas, os corpos torneados por muita academia de ginástica, a pele bronzeada pelo sol de Ipanema e tratada com os melhores produtos disponíveis nas prateleiras das melhores lojas. Com certeza não eram frequentadoras do Nove, burguesas demais para isso. Talvez fossem frequentadoras da praia em frente ao Country Club, onde a galera abonada ia. Mesmo que talvez fossem areia demais para o meu caminhãozinho, pensei comigo que não custava nada tentar.
No dia seguinte, depois da parada para o café da manhã, quando voltaram para seus lugares, a que estava sentada do lado oposto ao meu assento olhou para o meu lado e aproveitei para puxar um assunto.
“E aí? Vocês estão indo para Ajuda também?”
“Não, a gente está indo para Prado, mais ao Sul, é linda! Você conhece?”
Feliz por sentir um sutil desapontamento por a gente estar para um destino diferente continuei. Quem sabe a gente não se esbarrasse depois das férias no Rio?
“Ouvi mararavilhas sobre o Sul da Bahia, mas nunca ouvi falar de Prado. Deve ser muito legal.” Mentira, pelo que tinham me dito era um lugar sem graça, com areia meio estranha e pouca gente de fora.
Já ciente que as amigas estavam antenadas no papo ela falou “Pois é, queria ir pra Ajuda também, mas o ex-namorado da minha amiga ficou numa pousada lá no ano passado e convenceu todo mundo a ir. Não sei como, Ajuda é bem mais legal.”
Desajeitado, tentei dar uma risada madura, “E por que Ajuda é mais legal?”
“O pessoal que vai lá é bem mais interessante, a aldeia é bem mais bonita e além do que, o Gabeira está indo passar o verão lá.”
Aquela notícia me tirou do estado de azaração. “Sério? O Fernando Gabeira, o Rei do Nove, está indo para o Arraial d’Ajuda?” Senti que estava perguntando por um monte de gente ali dentro. “Como é que você sabe?!” soou meio grosso, mas senti que ela curtiu a sensação que tinha causado.
“Minha irmã conhece uma amiga dele. ” ela respondeu com orgulho. “Mas está todo mundo sabendo.”
O Davi se meteu na conversa. “Putz, será que o preço das pousadas vai subir por causa disso?”
A pergunta foi tão cretina que queimou o meu filme por tabela. Foi uma outra que respondeu. “Uma coisa não tem nada a ver como a outra, de qualquer maneira ele vai alugar uma casa lá.”
O único cara do grupo das meninas, desmunhecadíssimo, se levantou e se meteu na conversa com ar de especialista: “A Yara disse que ele está indo primeiro de avião para Salvador e depois vai descer de carro. Ele chega na quinta-feira que vem.”
Aquilo matou o papo, agradeci e, sem ter mais assunto, fiquei em silêncio, ela também.
Na próxima parada, comendo um sanduíche de queijo suado num pão francês duro e bebendo café com leite num copo de vidro brinquei com o Davi.
“Não basta ficar vendo o cara de tanguinha no Nove, vamos ter que engolir ele aqui na Bahia. A culpa é tua, bonitão! Ele está te seguindo!”
As garotas desceram antes de todo mundo, perto de Prado, deixando o ônibus menos florido. Contudo, o efeito da notícia-bomba que largaram seguiu. Mesmo a peonada que só o conhecia da foto entrou na conversa.
“O Gabeira que cês tão falando é aquele homi de tanga na praia?! Iche! Que coisa horrívi!”
Depois que chegamos, descobrimos que dos motoristas de Kombi aos hippies velhos, todos estavam estavam sabendo do visitante ilustre. Não só lá mas no país inteiro. A imprensa tinha uma tradição de dar nomes aos verões. Naquele, quem levou o título foi o ex-demonizado ex-guerrilheiro urbano que depois de ser anistiado tinha se revelado articulado, inteligente e bissexual. Dava um certo orgulho pensar que no auge do verão do Gabeira, o teríamos como vizinho de praia por seis semanas.
*
O ônibus só ia até Porto Seguro, que ficava a poucos quilômetros do Arraial d’Ajuda. Para chegar lá, ainda tinha que pegar uma balsa de madeira tosca que cruzava o largo e lamacento rio Buranhém. De lá, pegariamos uma Kombi/lotação que ia até o nosso destino final.
Quando chegamos na outra margem, parecia que estavamos entrando num outro mundo. Depois que descemos e da balsa ter partido de volta, havia apenas a kombi vazia, mato e silêncio em torno do casebre tornado estação das barcas. O sol estava forte e uma brisa soprava o cheiro do rio misturado com o do mar trazendo consigo o barulho das águas. Ficamos ali pelo menos uma hora esperando pela Kombi que só iria sair depois que todos os lugares estivessem tomados. Era como estivessemos na fronteira da chamada civilização. Nossa companhia eram duas mulas pastando e os dois ou três locais que tinham atravessado conosco sentados olhando para o nada. A balsa que veio a seguir trouxe outros aspirantes a hippie e mais um punhado de locais. O motorista apareceu do nada e com todos os lugares tomados, partimos. A estrada, meio de terra e meio de areia, passava por um mato fechado que abria para uma clareira, que me pareceu um campo de futebol. Logo depois dela subimos um morro e a Kombi parou na praça de terra batida da aldeia.
Já era fim de tarde quando descemos. Não tínhamos lugar para ficar, mas já no caminho um cara de São Paulo que já estava ali a três semanas tinha se oferecido para rachar um quarto naquela noite, já que seus amigos só iam chegar no dia seguinte. Pegamos nossas mochilas e saímos acompanhando ele até a casa. A dona, uma senhora da terra simpática com ar sereno e com cheiro de banho recém tomado, nos deu as boas vindas num sotaque bahiano charmosíssimo. Fomos para o quarto e assim que colocamos as tralhas no chão, agradecemos e saímos par dar uma volta de reconhecimento.
Não havia luz elétrica na aldeia. Nunca tínhamos presenciado um anoitecer assim e ficamos encantados no ato. O fim do dia e a brisa fresca vinda do mar pareciam amalgamar tudo numa coisa só; a vista de praias selvagens que pareciam não ter fim e aquela aldeia encravada no topo do morro.
Não havia carros, asfalto ou lojas propriamente ditas num raio de kilometros. As casas velhas e pequenas eram pintadas com cores vibrantes, fazendo a praça principal e as ruelas a sua volta parecerem uma pintura cubista.
O lado de fora das janelas parecia integrado com a vida acontecendo do outro lado delas. As velas e as lamparinas flamulando nas casas eram bem mais aconchegantes do que as lâmpadas elétricas às quais estávamos acostumados na cidade e cuja agressividade destruiria o zen daquele anoitecer.
*
No dia após nossa chegada, achamos um quarto na área destinada aos visitantes menos endinheirados. Eram cabanas erguidas às pressas em torno de um terreno baldio, logo atrás das construções originais. Seus proprietários eram gente das cidades próximas investindo no futuro da aldeia onde a eletricidade estava programada para chegar possivelmente no ano seguinte. Havia bastante deles começando a perceber o potencial para o turismo do lugar. Alheios a tudo, jumentos, vacas magras e cães de rua pareciam gostar do isolamento dessa parte da vila, talvez porque os veranistas os deixassem em paz.
Conforme fomos conhecendo os moradores do lugar melhor fomos vendo que, tal qual os menos favorecidos nas grandes cidades, tinham dificuldades para colocar comida na mesa. Só que comparados com moradores de favelas, o povo d’Ajuda parecia mais saudável, mais harmonizado às cercanias e em paz com a vida. Já havia sinais de “progresso”. Ao redor da praça tinham aberto um ou dois bares destinados aos visitantes, também pertencentes à pessoas de fora. Mesmo assim, a infraestrutura era básica, não havia água encanada e os preços da hospedagem e da alimentação eram ridiculamente barato.
Na semana seguinte, ficamos sabendo que o Gabeira tinha alugado uma das acomodações caras e isoladas de frente à praia. Apesar de não se misturar conosco, meros mortais, era frequentemente visto com sua tanga fio-dental, às vezes só, às vezes acompanhado por um ou outro seguidor dedicado. Embora vê-lo causasse uma certa comoção, o ex-guerrilheiro-tornado-estrela parecia fazer questão de não interagir com ninguém. Resolvemos ignorá-lo também.
Em contrapartida, depois de alguns dias já éramos amigos – ou pelo menos conhecidos – de todos, tanto os locais quanto os outros visitantes. Nossa rotina diária era divina. Acordávamos no meio da manhã e íamos direto até um restaurante natural para tomarmos um café composto de banana amassada com calda e aveia. Com a barriga cheia e o corpo se sentindo bem do mar e do sol do dia anterior, pegávamos a trilha de areia que levava à praia pelo meio do mato selvagem. Lá, passávamos o resto do dia jogando futebol, frescobol ou vôlei, caminhando pelas praias desertas e conhecendo pessoas novas. Uma das melhores facetas d’Ajuda era que os locais não nos viam como máquinas de sacar dinheiro, mas sim como convidados ilustres e ficavam na sua. Às vezes, um ou outro passava vendendo banana frita, água ou cerveja. Se a gente quisesse comprar com ele, beleza, mas se não, ficava no seu canto curtindo a praia na sombra e apreciando discretamente a beleza generosamente exposta das visitantes da cidade grande.
O sol era tão forte que as poucas nuvens que vinham do oceano eram bem-vindas. Havia pancadas de chuva ocasionais que nunca duravam mais do que quinze minutos. Quando derramavam sua agua, todos na praia corriam para o mar para sentir os pingos doces molharem seus rostos com o resto do corpo protegido pela água salgada, morna e calma.
No fim da tarde, a gente retornava ao vilarejo para se reunir atrás da velha igreja da cidade. O sol se punha devagar no oceano por tras do vale coberto pela mata se transformando em uma gigante bola alaranjada, suas cores colorindo o mar e o céu azul-escuro. Após um dia inteiro de sol forte, o corpo castigado, mas refrescado, pela água salgada recebia com carinho o sopro de ar quase frio do fim de tarde. Às vezes, havia uma roda de capoeira, onde os caras demonstravam suas habilidades enquanto os outros em volta cantavam e batiam palmas ao toque do berimbau.
*
O único lugar com água corrente ficava numa caverna com uma fonte natural cuja existência os vilarinhos atribuíam a um milagre. Na entrada havia uma estátua de Nossa Senhora d’Ajuda em frente da qual os veranistas tinham que esperar sua vez em fila segurando suas toalhas e seus apetrechos de banho. Já o banheiro era o maior do mundo, o mato.
Depois de nos livrarmos do sal grudento nas águas da santa, voltávamos à cabana para colocar um short seco, uma camisa e os chinelos. De lá, com fome, mas nos sentindo ótimos, íamos comer os pratos feitos que as mulheres da aldeia vendiam nas portas de suas casas: peixe frito, arroz, feijão e farinha. Satisfeitos, estávamos animados para as festas improvisadas nos poucos bares e botequins do lugar. Dentro deles, as lamparinas de querosene colocadas nas mesas conferiam uma aura de antiguidade, projetando sombras espessas sobre as paredes e nos clientes. Eu, como vários outros, tinha trazido o violão e nossos sons improvisados eram a trilha sonora que animava as noites. Quem chegava tinha que afinar com quem já estava lá.
“Acho que o Lá não afinou, dá para ouvir de novo? ” Dava uma torcida na ararracha, conferia de novo. “Valeu!”
“Conhece a levada de Frevo Mulher? É fácil, começa assim; em Fá sustenido menor e depois sobe para sol, aí fica num vai e volta e depois desce para mi menor. Entendeu?”
“Acho que sim.”
A percussão não precisava de afinação. “Zinho, a batida é de frevo, tá pronto?”
“Vambora!?”
“Vamo!”
O som começava e a energia entre os tocadores decolava. Não era só frevo, era afoxé, samba, rock, blues, funk e o que mais desse na telha. A gente ficava feliz quando as garotas mais bonitas se levantavam para dançar e isso era a regra. Às vezes, um outro instrumento aparecia do nada com um alguem que tocava muito. Estas novas adições; flautas, saxofones, violões, ou mesmo percussão eram sempre bevindas e faziam com que o som tomasse um rumo especial. Várias sessões terminavam com o povo dançando e cantando músicas que todos haviam criado juntos na hora.
A lua era tão radiante que podíamos descer até a praia como se estivéssemos fazendo uma caminhada à luz do dia. Lá embaixo, a areia clara e brilhante, a espuma branca, o som das ondas e do vento nos uniam à natureza de uma forma intraduzível. O céu limpo, juntamente com a inexistência de luzes elétricas por quilômetros, fazia com que as constelações se destacassem de uma maneira que nunca tinha visto antes. A coisa mais impressionante eram as estrelas cadentes que volta e meia cortavam o firmamento. Sentávamos na areia durante horas, conversando e tocando violão. Quando retornávamos à vila e entravamos de volta nos bares, era como se o calor humano emanando das pessoas lá dentro renovasse a energia colhida na praia.
*
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por Richard Klein | 29 ago, 2020 | Brasil, Comportamento
O hotel Sol de Ipanema era o único de frente para o mar na Avenida Vieira Souto. Ele ficava quase na esquina com a Rua Montenegro – mais tarde renomeada de Rua Vinicius de Moraes. Era em frente dele que minha turma de amigos mais caretas; Mauricio, Jaime, Hélcio, Davi, Leo e companhia pegavam sua praia. Apesar de todas as minhas transformações, ainda era colado com eles. Aquele ponto era para lá cômodo; quase na saída da rua que caminhava de casa para ir a praia.
Numa manhã ensolarada de sábado, ali com a praia ainda vazia, Davi e eu estávamos sentados na beira d’água descansando do bodyboard. De repente um cara magro mas com um corpo bem definido, por volta dos 40 apareceu na nossa frente e começou a jogar frescobol numa tanga fio-dental de crochê escandalosamente minúscula. O cara até que jogava bem, mas depois de um tempo de ficar olhando para aquilo ligeiramente incomodado, virei para o Davi e perguntei.
“E aí, Davi? Quer de natal uma tanguinha como a do teu amigo?”
Davi nem se dignou a responder, mas passado alguns minutos a cara dele acendeu. Ele me cutucou e cochichou no meu ouvido, “Rique, aquele não é o Gabeira?”
Davi estava se referindo ao jornalista Fernando Gabeira, um dos exilados mais famosos que, em 1969, tinha se envolvido no sequestro do embaixador americano no Rio, Charles Elbrick. A sua autobiografia O que é Isto, Companheiro? era leitura obrigatória. Todos tinham lido, inclusive eu. Era um relato na primeira pessoa de como tinha sido o mundo das organizações de luta armada. Nele, descrevia como tinha se envolvido naquela situação, como tinha participado do sequestro do embaixador americano, como tinha sido o cativeiro do diplomata e como finalmente tinha sido preso. Depois, relatava sua estadia na prisão, sua troca junto com alguns companheiros por um outro figurão estrangeiro e na sequência, sua vida no exílio.
O livro virou polêmico na esquerda brasileira porque, além das críticas tanto à metodologia quanto aos objetivos da luta armada, o ex-militante confessou que durante aqueles tempos heroicos tinha sido ativamente bissexual. Lançando esse escândalo na veia jugular da militância, agora exposta como retrógrada ao invés de vanguardista, surfando na onda da fama, Gabeira abriu um caminho alternativo de resistência ao regime e à burguesia, que denominou “política do corpo”. O que ele realmente quiz dizer com aquilo é ainda hoje motivo de debate. Só sei que um receituário para revolução prescrevendo honestidade consigo mesmo, rejeição à imposições de qualquer lado e pregando o sexo livre caiu bem em Ipanema.
“Sei não, Davi, só vi a recepção dele no aeroporto na televisão. Não dá para dizer, mas pela tanguinha é capaz.”
“Tenho quase certeza que é. Vou dar uma olhada na contracapa do meu livro quando chegar em casa, tem uma foto dele lá.”
De noite, Davi me ligou confirmando a identidade do cara da tanguinha, era o Gabeira mesmo. O mais estranho é que devia ter um fotógrafo na área seguindo o ex-guerrilheiro, porque no dia seguinte, jornais de um lado a outro do país estamparam suas capas com uma foto do ex-guerrilheiro em seus trajes mínimos bebendo mate gelado, em frente ao Sol de Ipanema.
*
As praias do Rio tinham – e ainda têm – uma programação e uma demarcação territorial rígida. Isso permitia a qualquer um dizer: “Diga-me quando e onde você toma sol que eu te direi quem és.” Agora, de madrugada os pescadores de Copacabana – que também pescavam em Ipanema – dividiam o mar com surfistas. Na areia, praticantes de Yoga e Tai Chi solitários meditavam sob os primeiros raios de sol enquanto corredores e ciclistas se exercitavam no calçadão. Mais tarde, da mesma forma de quando era criança, a posse da praia passava às famílias, incluindo crianças, mães, avós, babás, cães e todos os outros componentes da vida doméstica brasileira. Depois das nove da manhã o surfe era interditado. Quando tinha onda, o mar era dos pegadores de jacaré e a tarde o domínio voltava aos surfistas. Nos fins de semana, por volta do meio-dia as famílias voltavam para casa e daí para frente, tanto as pessoas que chegavam como as que ficavam faziam as subdivisões da praia mais interessantes.
Havia o local para os fisiculturistas e para os lutadores de Jiu-jitsu. Claro que havia um local para os yuppies. Outro segmento era uma extensão da cena gay. Havia um point para os surfistas, uma área para os favelados, uma para a as “patricinhas” e os “mauricinhos” endinheirados, outra para as profissionais do sexo – não coincidentemente a mesma para os turistas – e uma área reservada para os jogadores de futebol e suas comitivas de fãs e puxa-sacos.
O local da praia onde tínhamos visto o Gabeira, inicialmente conhecido como o Sol de Ipanema, era o Posto Nove, ou simplesmente o Nove – o nome derivado da estação de salva-vidas número nove que ficava em frente ao Hotel Sol de Ipanema.
Fazia pouco tempo que traineiras e guindastes tinham cortado a onda da galera das Dunas do Barato demolindo a estrutura do Pier de Ipanema. Depois que a foto do Gabeira de tanga percorreu o Brasil inteiro, o Nove herdou o status de Woodstock carioca. Por décadas a área seria o reduto dos seguidores das ideologias e dos estilos de vida dos anos 1960 e 1970. Aquela era a praia dos artistas, dos músicos, dos atores e dos intelectuais – tanto os já estabelecidos quanto os que viriam a se firmar e os que nunca iam dar em nada. Alguns diziam que os Beatles haviam profetizando sobre aquele trecho das areias de Ipanema na sua música mais estranha: Revolution Number Nine.
Com a chegada da abertura política, bandeiras dos partidos de esquerda recém-legalizados passaram a balançar sobre as cabeças dos frequentadores em meio à bagunça sob o céu azul. Enquanto a festa-praia tomava corpo, os garotos da barraca do Batista corriam de um lado para o outro levando garrafas de cerveja em isopores e as caipirinhas mais saborosas das praias do Rio.
O cheiro constante de cannabis no ar era abençoado por um acordo tácito entre a polícia e a galera do Nove: uns não davam trabalho para os outros; os frequentadores se restringiam àquela área e em contrapartida os policiais não vinham encher o saco ali. Contudo, durante campanhas eleitorais, o acordo às vezes era quebrado sob a pressão de candidatos conservadores. Só que quando as batidas aconteciam, a galera afugentava os polícias com vaias e na confusão todos enterravam os flagrantes o que fazia com que prisões fossem raras.
Mas não era só a fumaça que caracterizava o local. Sempre havia rostos famosos curtindo sua praia de fim de semana, os gays que iam lá eram mais desinibidos e volta e meia haviam casais se beijando abertamente, um ultraje na época.
Foi lá também que aconteceram as primeiras tentativas de topless urbano no país. Contudo, não demorou muito para que o Nove se visse avançado demais para a caretice do país. Quando as meninas tiravam a parte de cima do biquíni, atraiam a curiosidade indesejada de um pessoal que não pertencia à área. Homens com uma atitude medieval; muitos deles jovens, alguns até aspirantes a surfista, favelados, marombeiros, pais de família branquelos e barrigudos, se aglomeravam empurrando uns aos outros para espiar aqueles peitos corajosos no céu aberto com uma mistura de fascínio e de repúdio. Muitas dessas confusões acabavam com uma chuva de areia em cima das beldades ou com intervenção policial. Uma vez, um sujeito que estava com elas resolveu tomar suas dores. Ele se levantou, baixou o calção e fez com que seu pinto encolhido pela água dissipasse a urubuzada na hora. Talvez essa fosse a política do corpo que nunca cheguei a entender.
*
Conforme os novos frequentadores foram tomando conta do pedaço, meus amigos passaram a se encontrar em outro ponto da praia, mas eu fiquei. Embora rejeitassem a “erva maldita”, o Davi e o Hélcio acabaram entrando na minha onda. Os dois também não tinham muito saco para seus papos caretas e, como eu, estavam cientes de que rolava mais possibilidades de sexo com as malucas do Nove do que com as meninas caretíssimas que tinham se juntado à nossa turma.
Eu conhecia outras pessoas que frequentavam a praia ali: os malucos do Colégio Andrews, gente que tinha conhecido na balada e nos shows e membros da esquadrilha da fumaça da Escola Americana. Não era preciso marcar de se encontrar com ninguém, só era necessário comparecer.
O Nove era um clube. Conhecidos ou não, passávamos o dia conversando sobre mulheres, música, cinema, futebol e política. Quando o sol ficava muito forte ou se o papo ficava chato, havia o oceano em frente nos convidando para dar uma renovada. Tomávamos longos banhos de mar, “pegávamos jacaré” quando as ondas estavam boas ou jogávamos frescobol quando não. As meninas que interessavam também iam lá. A paquera e os olhares fatais não cessavam entre as toalhas estendidas na areia.
Na hora que o sol começava a se pôr, a areia esvasiava e o clima se tornava intimista e sereno. O Nove se tornava mágico, não só por causa da beleza da praia com a luz do sol mais branda, mas também por causa da quantidade de gente bonita, jovem e situada. Havia uma paz derivada de um dia bem aproveitado ao ar livre, os corpos curtidos pelo sol, amaciados pela água salgada e agora envoltos pela brisa do fim de tarde.
Nos melhores dias, a praia terminava com todo mundo aplaudindo o sol de pé enquanto ele desaparecia no horizonte ao lado do morro Dois Irmãos. Depois disso, todos seguiam seus próprios caminhos, normalmente indo para casa para tirar um cochilo antes de sair para alguma festa ou um show sobre os quais todos tinham conversado mais cedo na praia. Neles, aquela tribo de almas livres e bronzeadas se re-congregava.
…
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por Richard Klein | 22 ago, 2020 | Brasil, Crônica, Política
Capítulo 16
“Apesar de você
amanhã há de ser outro dia. “
Chico Buarque
O Teatro Tereza Rachel em Copacabana, era uma das principais casas de shows do Rio no final dos anos setenta. Estava sempre lotado. Quase todos se apresentavam lá: Rita Lee, o Terço, Raul Seixas, A Cor do Som, Vímana – a banda de rock progressivo em que Ritchie, Lobão e Lulu Santos começaram – Moraes Moreira, Belchior, Alçeu Valença, Joelho de Porco, João Bosco entre vários outros. Não me lembro de quem era o show do qual estava saindo, só sei que com meus ouvidos ainda zunindo do volume ouvi alguém dizer.
“Caralho! Mataram o John Lennon a tiros em Nova York! Tá dando aqui na rádio!”
“Que é isso, tu tá maluco!?”
“Não! Tão dizendo aqui que um psicopata atirou nele quando estava saindo de casa!”
Todos ficaram em silêncio. Ninguém conhecia o cara, talvez estivesse de sacanagem. Mesmo assim, fomos para casa com aquilo rodando na cabeça. Na manhã seguinte, os jornais confirmaram. Naquele dia o planeta parecia estar de luto. Mais que um artista, John Lennon representava uma postura uma promessa, como que podia ter terminado daquela maneira? E por quê?
Na televisão repórteres no Brasil inteiro e no exterior entrevistavam pessoas comuns nas ruas e artistas famosos, todos com olhos lacrimejantes. Para mim, essa separação final dos Beatles parecia, de alguma forma inexplicável, ter conexão com a minha experiência na subida para o Noites Cariocas e com uma outra notícia – a prisão de alguns amigos de escola por posse. Para completar, havia o drama familiar da repentina separação entre Sarah e seu noivo de longa data. Era como se uma onda de mudanças negativas estivesse encobrindo a todos.
Por outro lado, no contexto mais amplo havia uma onda de mudanças mais positiva. A classe média brasileira estava começando a reconhecer que a falta de alternativa para o regime militar era um problema. A gota d’água tinha sido a prisão, a tortura e o assassinato mal disfarçado como suicídio em 1977 do jornalista Vladmir Herzog, em São Paulo. Isto tinha desencadeado uma onda de indignação e protestos sem precedentes pelo país. Pela primeira vez depois do AI-5, várias lideranças políticas, culturais e mesmo religiosas haviam expressado suas consternações. Esquecendo o medo, quase todos os veículos de comunicação tinham publicado estes protestos.
Havia mais. Agora que ninguém podia em sã consciência temer que o maior país da América Latina se tornasse um satélite soviético, o status dos generais brasileiros no exterior havia mudado. Apesar dos Estados Unidos ainda estarem apoiando ditaduras sanguinárias no Chile e na Argentina, seus lobistas e especialistas em America latina tinham passado a ver a ditadura desengonçada e corrupta do Brasil como um embaraço desnecessário.
Sentindo a mudança de atitude de seus apoiadores, tanto dentro como fora do país, os militares tomaram medidas conciliatórias. O gesto mais significativo acabou sendo justamente a concessão de anistia para a maioria dos exilados e dos prisioneiros políticos. Mesmo que isso os tenha ajudado a permanecer no poder por mais tempo, este gesto e a abertura política que veio a seguir foi uma vitória da oposição e marcou o início do ciclo democrático mais longo que o país viria a vivenciar.
De volta ao Brasil, do dia para a noite, os dissidentes políticos passaram de assunto tabu a celebridades com status de herói. Estavam toda hora nos jornais, em programas de entrevistas na televisão e suas memórias se tornaram best sellers. Lendo-as, descobrimos que muitos, tais como a gente, eram jovens típicos da classe média carioca que tinham se deixado levar pela agitação política do seu tempo.
Descobrimos também que alguns haviam passado períodos treinando como guerrilheiros em Cuba e em outros lugares fora do país. A seguir, discretamente se infiltraram no Brasil, onde pegaram em armas, assaltaram bancos e sequestraram gente importante. Depois que suas organizações foram reprimidas e ficou claro que a resistência armada à ditadura tinha fracassado, os que sobreviveram foram obrigados a repensar, no exílio ou na prisão, seus conceitos sobre militância e sobre como se posicionar num mundo sem revolução.
Após os festejos pelo seu retorno, tomando um rumo parecido com o adotado pelos artistas exilados, muitos dos anistiados se reintegraram à vida do país com agendas mais práticas. A maioria usou sua recém-adquirida popularidade para progredir na política convencional. José Genoíno, Fernando Gabeira e Carlos Minc, por exemplo, se tornariam senadores ou ministros enquanto Dilma Rousseff seria eleita presidente. Outros ex-exilados ocuparam lugar de destaque no processo de redemocratização. Entre eles o político veterano Leonel Brizola o ex governador do Rio Grande do Sul que viria a ser o governador do Rio de Janeiro, seu companheiro de chapa, o lendário antropólogo Darcy Ribeiro, o ex e futuro governador de Pernambuco, Miguel Arraes, assim como outros políticos mais ao centro, como o futuro presidente sociólogo Fernando Henrique Cardoso e o futuro líder do PSDB, José Serra.
Apesar de admirarmos todos e nos deleitarmos nas ondulações criadas pelos ventos democráticos, havia questões de identidade. A militancia heróica tinha se tornado uma coisa do passado. Mesmo assim, queriamos as mesmas coisas pelas quais tinham sacrificado a sua liberdade e, em alguns casos, a própria vida. Apesar da conquista da abertura política, a desigualdade econômica e o aparelhamento antidemocrático do estado continuavam. Sem intimidade com a democracia, achando que só uma revolução resolveria, do nosso ponto de vista estes ídolos estavam retornando ansiosos para se juntar a um sistema ao qual, pelo menos ideologicamente, estávamos resistindo. Era decepcionante ver muitos deles usando, sem um pingo de vergonha, o seu passado de lutas para promover suas carreiras num rumo que não tinha nada a ver com suas intenções iniciais.
Deveríamos aceitar sua liderança, dar tudo por encerrado e concluir que éramos inúteis? Estava claro que para eles esse era o caso. Para nós a pergunta que não queria calar era a de como se posicionar. A ditadura havia simplificado as coisas; a escolha tinha sido entre ser a favor ou contra o regime. Dependendo do lado que você estava, você podia jogar a culpa por todos os males do mundo nos generais ou nos comunistas. Com o fim do governo militar agora no horizonte, havia novos desafios. As pessoas já não se sentiam tão convictas de suas opiniões e pareciam não saber lidar com as sutilezas da liberdade. Levaria algum tempo para que o país atingisse um estado de maturidade política.
Alguns copiaram os retornados e entraram em partidos convencionais, principalmente no recém-criado PT, o Partido dos Trabalhadores, uma das poucas opções de resistência preenchendo o vácuo existencial dos progressistas naqueles dias. O partido não tinha nada a ver nem com a resistência glamorosa dos ex-exilados e dos ex-presos políticos, nem com a postura anti-imperialista da Revolução Cubana. Proveniente de sindicatos na periferia de São Paulo, seu objetivo era proteger os direitos e os salários dos trabalhadores nos moldes do Partido Trabalhista Britânico quando começou.
Eu e alguns amigos até chegamos a ir em algumas reuniões para ver como é que era. Porém, por não termos nem “pedigree” operário nem “pedigree” na militância tivemos uma recepção fria. Na hora que a militância de raiz via cabeludos bronzeados da Zona Sul entrando no recinto, pensavam ou que eramos imbecis ou que eramos o inimigo. Nos outros partidos “underground” a rejeição era igual ou pior. Eram elitistas às avessas, herméticos e exigentes demais com seus novos recrutas. Os únicos “burgueses” bem-vindos nessas organizações ou eram celebridades ou era gente bem conectada que podia trazer votos e respeitabilidade, o que não era o nosso caso.
Talvez não tínhamos maturidade para aquilo. Perdemos o tesão pela política. O conceito de eleições livres com partidos profissionais voltados para eleger quadros e exercer mandatos era difícil de digerir. Por outro lado, para os que eram contra a abertura política, o conceito de aceitar reveses eleitorais se provaria um de difícil assimilação. Para mim, acreditando que a luta deveria ser pautada na melhoria dos padrões de vida de cada indivíduo e não de uma classe, faltava a utopia e a visão humanista nos novos partidos. Está certo que vencer eleições e se organizar era fundamental, pero sin perder la ternura.
Naqueles tempos de reconstrução democrática só uma coisa parecia clara: os militares iriam tentar se agarrar ao poder por mais tempo que fosse possível. Com uma crise econômica no horizonte, todos sabiam que quando chegasse a hora de largarem o osso, o país estaria nas últimas. Isso colocava duas perguntas urgentes: em que estado o Brasil estaria e como seria a vida sem eles?
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