Capítulo 20
“E vou cantar entre os cristais azuis do tempo e perceber
A terra longe, longe a se perder.”
Som Imaginário
O vestibular, a prova que definiria nosso futuro e o nosso valor para a sociedade, estava esperando na esquina. Esse rito de passagem preocupava até os mais inveterados membros da “esquadrilha da fumaça” do Colégio Andrews. Apesar do nervosismo na escola e em casa e além da obrigação de justificar o dinheiro gasto na nossa educação, nos perguntávamos onde iríamos parar depois que passássemos por aquele portal se passássemos. A sensação era que Molloch, o deus monstruoso do aparato militar industrial capitalista, retratado por Allen Ginsberg no seu genial poema Howl, estaria nos esperando do outro lado, vampiresco e impessoal, escravizador e envenenador de tudo e a todos com seu piche de enquadramento e resignação.
Era como estivéssemos enjaulados aguardando ser soltos para um futuro de animais de elite adestrados, sangue novo num ciclo de oferecer força vital em troca de mercadorias desnecessárias. Como engolir a máxima arbeit macht frei – o trabalho constrói a liberdade – escrita nos portões de Auschwitz e enraizada no pensamento ocidental, martelada em nossas cabeças por professores, mídia, filmes e, acima de tudo, por nossos pais?
Embora não fossem, de forma alguma, nazistas, nossos educadores acreditavam que a única maneira de escapar à injustiça inerente ao mundo era trabalhar duro para se tornar uma peça bem remunerada de Molloch. Como nas histórias de vampiros, sabíamos que no momento em que nos tornássemos “um deles”, não haveria volta e reproduziríamos o servilismo de dezenas de gerações passadas. Por mais que nos esforçássemos, o dinheiro ganho jamais compraria nem liberdade nem felicidade. Os únicos que teriam direito a isso seriam os que nem precisariam se esforçar ou se preocupar já que fortunas familiares lhes garantiriam blindagem.
Sem dúvida, num país onde o acesso às universidades era um privilégio de poucos, essas opiniões eram resultado de uma mistura de educação sofisticada com tempo disponível para ler e refletir. Contudo, esta situação confortável propiciava uma distância necessária para discernir claramente a máquina que movia o mundo. Ela estava ali nos esperando, sólida e impassível e mostraria suas garras assim que ingressássemos no mercado de trabalho. Embora o vestibular não fosse a parada final, era o portal para um posto avançado. A vida depois dali viraria séria, em outras palavras estaríamos seriamente ferrados. Isso se passássemos, se não passássemos, a humilhação da ineptitude para servir Molloch seria insuportável.
A versão oficial sobre o que estava do outro lado do portal, era a de um mundo desfrutando a vitória do bem sobre o mal, onde as forças democráticas e socialistas haviam esmagado o nazismo. Nele, a humanidade estava a caminho de um lugar melhor, livre, repleto de avanços tecnológicos que garantiriam prosperidade a todos, a despeito da indevida oposição do comunismo totalitário.
O que tentavam ocultar desse mundo era a locomotiva que o guiava; as grandes corporações. Estas eram as provedoras dos bens e dos serviços que o caracterizavam. Para que a máquina funcionasse a seu jeito, demandavam governos que lhes passassem um cheque em banco. Governos voltados para o bem-estar de todos não interessavam.
A despeito do sucesso econômico durante a reconstrução dos países arrasados pela guerra, teóricos liberais, os sacerdotes de Molloch, se rebelaram. Estes diziam que o estado estava se metendo demais na economia e impedindo que a locomotiva funcionasse direito. Eles se esforçavam – e ainda se esforçam – para provar que os interesses das grandes fortunas e os das populações eram a mesma coisa. Sua lógica de mão única afirmava que sucesso do capital privado era fundamental para o bem-estar da população. O inverso não era verdade; o bem estar “em excesso” da enorme maioria seria nocivo ao bom funcionamento da economia. Baseado nessa premissa, quando havia descontentamento ou quando grandes interesses eram contrariados, a ordem estabelecida, detentora exclusiva do direito à violência, recorria à força. Vista dessa ótica, a democracia liberal era uma ilusão onde todos achavam que tinham escolhido viver em submissão.
Talvez por aprenderem de primeira mão sobre a brutalidade que seus pais e avôs sofreram em duas guerras mundiais na luta pela liberdade e pelos ideais democráticos, talvez por presenciarem diretamente as escolhas decepcionantes feitas pelas lideranças vencedoras na reconstrução de seus países, a geração que se seguiu, a dos babyboomers, viu além da versão oficial. Contando com mais gente cursando ou formada em universidades do que qualquer outra geração anterior, ela carregou o bastão da luta pela democracia verdadeira.
A luta agora era para prevenir que o triunfo dos aliados levasse no longo prazo a um servilismo sem questionamento, quase voluntário. Apesar do crescimento econômico forte durante a reconstrução, ficou claro onde os frutos mais suculentos iriam parar quando aquele ciclo terminasse: no andar de cima. No fundo, nada tinha mudado. Era preciso desmascarar a farsa e sacudir as estruturas para que um mundo realmente melhor viesse depois da carnificina das guerras. Para essa geração ficou claro que planeta inteiro sofria dos mesmos problemas. O mal ia muito além de ideologias, países ou raças pintados como adversários. O mal estava na maneira como a estrutura tinha sido montada e era gerida e nas manipulações que faziam com que a humanidade aceitasse, sem nenhum questionamento ou resistência, que uma ínfima minoria se impusesse.
Este questionamento se espalhou como fogo pela juventude educada. As possibilidades que eles vislumbravam nas suas preferências para reconstruir o mundo poderiam ser a rota de saída de um legado de guerras, ditaduras, perseguições, fome, genocídio e outras coisas horríveis deixado por múltiplas gerações.
Na América Latina e em outros países do Terceiro Mundo a situação no pós guerra era mais complicada ainda. O discurso de que o triunfo dos aliados significou uma vitória contra a injustiça e a tirania, encorajou a luta contra o imperialismo, e revoltas populares como a Revolução Cubana. No entanto, ao sul do Equador, a contradição entre o discurso e a prática dos aliados criou vários absurdos onde as elites apoiavam ditaduras em nome do chamado “mundo livre”.
Naquela nossa mistura de consciência com inocência acreditávamos que ainda era possível pegar a saída para o mundo descrito por John Lennon em sua música Imagine, onde todos viveriam em função do presente, sem fronteiras e sem diferenças. A saída apontando para o vestibular e o que seguiria depois era o portal para um pesadelo.
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