O hotel Sol de Ipanema era o único de frente para o mar na Avenida Vieira Souto. Ele ficava quase na esquina com a Rua Montenegro – mais tarde renomeada de Rua Vinicius de Moraes. Era em frente dele que minha turma de amigos mais caretas; Mauricio, Jaime, Hélcio, Davi, Leo e companhia pegavam sua praia. Apesar de todas as minhas transformações, ainda era colado com eles. Aquele ponto era para lá cômodo; quase na saída da rua que caminhava de casa para ir a praia.
Numa manhã ensolarada de sábado, ali com a praia ainda vazia, Davi e eu estávamos sentados na beira d’água descansando do bodyboard. De repente um cara magro mas com um corpo bem definido, por volta dos 40 apareceu na nossa frente e começou a jogar frescobol numa tanga fio-dental de crochê escandalosamente minúscula. O cara até que jogava bem, mas depois de um tempo de ficar olhando para aquilo ligeiramente incomodado, virei para o Davi e perguntei.
“E aí, Davi? Quer de natal uma tanguinha como a do teu amigo?”
Davi nem se dignou a responder, mas passado alguns minutos a cara dele acendeu. Ele me cutucou e cochichou no meu ouvido, “Rique, aquele não é o Gabeira?”
Davi estava se referindo ao jornalista Fernando Gabeira, um dos exilados mais famosos que, em 1969, tinha se envolvido no sequestro do embaixador americano no Rio, Charles Elbrick. A sua autobiografia O que é Isto, Companheiro? era leitura obrigatória. Todos tinham lido, inclusive eu. Era um relato na primeira pessoa de como tinha sido o mundo das organizações de luta armada. Nele, descrevia como tinha se envolvido naquela situação, como tinha participado do sequestro do embaixador americano, como tinha sido o cativeiro do diplomata e como finalmente tinha sido preso. Depois, relatava sua estadia na prisão, sua troca junto com alguns companheiros por um outro figurão estrangeiro e na sequência, sua vida no exílio.
O livro virou polêmico na esquerda brasileira porque, além das críticas tanto à metodologia quanto aos objetivos da luta armada, o ex-militante confessou que durante aqueles tempos heroicos tinha sido ativamente bissexual. Lançando esse escândalo na veia jugular da militância, agora exposta como retrógrada ao invés de vanguardista, surfando na onda da fama, Gabeira abriu um caminho alternativo de resistência ao regime e à burguesia, que denominou “política do corpo”. O que ele realmente quiz dizer com aquilo é ainda hoje motivo de debate. Só sei que um receituário para revolução prescrevendo honestidade consigo mesmo, rejeição à imposições de qualquer lado e pregando o sexo livre caiu bem em Ipanema.
“Sei não, Davi, só vi a recepção dele no aeroporto na televisão. Não dá para dizer, mas pela tanguinha é capaz.”
“Tenho quase certeza que é. Vou dar uma olhada na contracapa do meu livro quando chegar em casa, tem uma foto dele lá.”
De noite, Davi me ligou confirmando a identidade do cara da tanguinha, era o Gabeira mesmo. O mais estranho é que devia ter um fotógrafo na área seguindo o ex-guerrilheiro, porque no dia seguinte, jornais de um lado a outro do país estamparam suas capas com uma foto do ex-guerrilheiro em seus trajes mínimos bebendo mate gelado, em frente ao Sol de Ipanema.
*
As praias do Rio tinham – e ainda têm – uma programação e uma demarcação territorial rígida. Isso permitia a qualquer um dizer: “Diga-me quando e onde você toma sol que eu te direi quem és.” Agora, de madrugada os pescadores de Copacabana – que também pescavam em Ipanema – dividiam o mar com surfistas. Na areia, praticantes de Yoga e Tai Chi solitários meditavam sob os primeiros raios de sol enquanto corredores e ciclistas se exercitavam no calçadão. Mais tarde, da mesma forma de quando era criança, a posse da praia passava às famílias, incluindo crianças, mães, avós, babás, cães e todos os outros componentes da vida doméstica brasileira. Depois das nove da manhã o surfe era interditado. Quando tinha onda, o mar era dos pegadores de jacaré e a tarde o domínio voltava aos surfistas. Nos fins de semana, por volta do meio-dia as famílias voltavam para casa e daí para frente, tanto as pessoas que chegavam como as que ficavam faziam as subdivisões da praia mais interessantes.
Havia o local para os fisiculturistas e para os lutadores de Jiu-jitsu. Claro que havia um local para os yuppies. Outro segmento era uma extensão da cena gay. Havia um point para os surfistas, uma área para os favelados, uma para a as “patricinhas” e os “mauricinhos” endinheirados, outra para as profissionais do sexo – não coincidentemente a mesma para os turistas – e uma área reservada para os jogadores de futebol e suas comitivas de fãs e puxa-sacos.
O local da praia onde tínhamos visto o Gabeira, inicialmente conhecido como o Sol de Ipanema, era o Posto Nove, ou simplesmente o Nove – o nome derivado da estação de salva-vidas número nove que ficava em frente ao Hotel Sol de Ipanema.
Fazia pouco tempo que traineiras e guindastes tinham cortado a onda da galera das Dunas do Barato demolindo a estrutura do Pier de Ipanema. Depois que a foto do Gabeira de tanga percorreu o Brasil inteiro, o Nove herdou o status de Woodstock carioca. Por décadas a área seria o reduto dos seguidores das ideologias e dos estilos de vida dos anos 1960 e 1970. Aquela era a praia dos artistas, dos músicos, dos atores e dos intelectuais – tanto os já estabelecidos quanto os que viriam a se firmar e os que nunca iam dar em nada. Alguns diziam que os Beatles haviam profetizando sobre aquele trecho das areias de Ipanema na sua música mais estranha: Revolution Number Nine.
Com a chegada da abertura política, bandeiras dos partidos de esquerda recém-legalizados passaram a balançar sobre as cabeças dos frequentadores em meio à bagunça sob o céu azul. Enquanto a festa-praia tomava corpo, os garotos da barraca do Batista corriam de um lado para o outro levando garrafas de cerveja em isopores e as caipirinhas mais saborosas das praias do Rio.
O cheiro constante de cannabis no ar era abençoado por um acordo tácito entre a polícia e a galera do Nove: uns não davam trabalho para os outros; os frequentadores se restringiam àquela área e em contrapartida os policiais não vinham encher o saco ali. Contudo, durante campanhas eleitorais, o acordo às vezes era quebrado sob a pressão de candidatos conservadores. Só que quando as batidas aconteciam, a galera afugentava os polícias com vaias e na confusão todos enterravam os flagrantes o que fazia com que prisões fossem raras.
Mas não era só a fumaça que caracterizava o local. Sempre havia rostos famosos curtindo sua praia de fim de semana, os gays que iam lá eram mais desinibidos e volta e meia haviam casais se beijando abertamente, um ultraje na época.
Foi lá também que aconteceram as primeiras tentativas de topless urbano no país. Contudo, não demorou muito para que o Nove se visse avançado demais para a caretice do país. Quando as meninas tiravam a parte de cima do biquíni, atraiam a curiosidade indesejada de um pessoal que não pertencia à área. Homens com uma atitude medieval; muitos deles jovens, alguns até aspirantes a surfista, favelados, marombeiros, pais de família branquelos e barrigudos, se aglomeravam empurrando uns aos outros para espiar aqueles peitos corajosos no céu aberto com uma mistura de fascínio e de repúdio. Muitas dessas confusões acabavam com uma chuva de areia em cima das beldades ou com intervenção policial. Uma vez, um sujeito que estava com elas resolveu tomar suas dores. Ele se levantou, baixou o calção e fez com que seu pinto encolhido pela água dissipasse a urubuzada na hora. Talvez essa fosse a política do corpo que nunca cheguei a entender.
*
Conforme os novos frequentadores foram tomando conta do pedaço, meus amigos passaram a se encontrar em outro ponto da praia, mas eu fiquei. Embora rejeitassem a “erva maldita”, o Davi e o Hélcio acabaram entrando na minha onda. Os dois também não tinham muito saco para seus papos caretas e, como eu, estavam cientes de que rolava mais possibilidades de sexo com as malucas do Nove do que com as meninas caretíssimas que tinham se juntado à nossa turma.
Eu conhecia outras pessoas que frequentavam a praia ali: os malucos do Colégio Andrews, gente que tinha conhecido na balada e nos shows e membros da esquadrilha da fumaça da Escola Americana. Não era preciso marcar de se encontrar com ninguém, só era necessário comparecer.
O Nove era um clube. Conhecidos ou não, passávamos o dia conversando sobre mulheres, música, cinema, futebol e política. Quando o sol ficava muito forte ou se o papo ficava chato, havia o oceano em frente nos convidando para dar uma renovada. Tomávamos longos banhos de mar, “pegávamos jacaré” quando as ondas estavam boas ou jogávamos frescobol quando não. As meninas que interessavam também iam lá. A paquera e os olhares fatais não cessavam entre as toalhas estendidas na areia.
Na hora que o sol começava a se pôr, a areia esvasiava e o clima se tornava intimista e sereno. O Nove se tornava mágico, não só por causa da beleza da praia com a luz do sol mais branda, mas também por causa da quantidade de gente bonita, jovem e situada. Havia uma paz derivada de um dia bem aproveitado ao ar livre, os corpos curtidos pelo sol, amaciados pela água salgada e agora envoltos pela brisa do fim de tarde.
Nos melhores dias, a praia terminava com todo mundo aplaudindo o sol de pé enquanto ele desaparecia no horizonte ao lado do morro Dois Irmãos. Depois disso, todos seguiam seus próprios caminhos, normalmente indo para casa para tirar um cochilo antes de sair para alguma festa ou um show sobre os quais todos tinham conversado mais cedo na praia. Neles, aquela tribo de almas livres e bronzeadas se re-congregava.
…