Foto de Magno Lima.
A melhor casa noturna do Rio, o Noites Cariocas, ficava no primeiro dos dois morros do Pão de Açúcar, o Morro da Urca. As hordas de turistas vindos do mundo e do país inteiro que passavam por ali de dia não podiam imaginar que nas noites de sexta e sábado aquilo ficava abarrotado de gente querendo festa. O lugar era fantástico. Artistas variados, de Caetano Veloso e Gilberto Gil a Egberto Gismonti, se apresentavam no seu anfiteatro a céu aberto coberto por árvores com o público sentado, ou soltando a franga, no chão e nas plataformas ao redor do semicírculo à sua frente. Nos intervalos e depois dos shows, ligavam o som mecânico e o lugar virava uma pista de dança.
As noites estreladas e a brisa do oceano pontuavam a magia. Saindo do palco central, vários caminhos levavam até a beira do morro por entre a vegetação rala. As filas de postes de luz iluminando a orla e delineando os contornos das ruas, os edifícios cercados por morros escuros e, do outro lado do morro, o mar aberto refletindo a lua faziam do Rio de Janeiro uma obra de arte tridimensional.
A alquimia daquele banquete visual fazia o ponto ideal para atrair o sexo oposto. As garotas se tornavam irresistíveis. Nem todas eram da Zona Sul e a maioria jogava no time das cautelosas. Mesmo assim, quando chegava a hora de ganhar elas no papo, a aura romântica à meia-luz, um flertezinho aqui e uma cervejinha ali operavam milagres.
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O lado frustrante desta e das outras descobertas que fiz nos tempos o Colégio Andrews era minha magra mesada que não arcava com as despesas com ingressos para shows, “bagulho”, boates, cervejas e idas ao cinema. Isso sem contar as coisas normais do dia a dia: passagens, lanches na escola, entre outras coisas. O item mais caro da lista era exatamente o Noites Cariocas. A solução da malandragem era pular a portaria subindo o morro a pé ao invés de pagar o ingresso ao pegar o bondinho, a unica forma legal de se chegar lá. Apesar de não ser iluminada, a trilha era fácil.
O porém era que havia surpresas indesejadas no caminho. Feito caçadores à espera da presa, policiais e seguranças ficavam de tocaia esperando que caras como eu aparecessem para extorquir um suborno. No caso dos seguranças, os desembolsos eram para que pudessemos seguir na trilha. No caso dos policiais, eram para que não nos levassem para uma delegacia onde nos indiciariam por posse de maconha real ou fabricada. Caso lhe pegassem e você não tivesse dinheiro algum, eram brutais. Uns camaradas da escola caíram na cilada, e por não terem dinheiro suficiente, em vez de prender todo mundo, os guardas os forçaram a tirar a roupa e voltar para casa pelados.
Apesar desse perigo, escalar a entrada do Noites Cariocas daquela maneira sempre tinha sido tranquilo, até uma noite especial.
Era fim de mês e minha mesada tinha secado. Porém, uma de minhas bandas favoritas, A Cor do Som, ia se apresentar. O único jeito de ver o show era a trilha. Daí fui subir com um amigo, o Márcio, sob a luz da lua cheia. Na metade do caminho, cruzamos com um grupo descendo que nos falou que o caminho estava “sujeira”, querendo dizer que havia policiais escondidos em algum lugar mais adiante.
Determinados, decidimos pegar uma rota alternativa, normalmente utilizada somente de dia por escaladores experientes. Apesar da nova trilha ser “limpeza”, a decisão se revelou insensata. Só percebemos o perigo quando já era tarde demais: do nada, de repente nos vimos tendo que atravessar um trecho com uma queda livre de 200 metros na pedra bem embaixo dos nossos pés.
Quando estávamos quase lá, meus sapatos de festa perderam aderência e escorreguei. Por um milagre inacreditável uma raiz saindo daquele paredão imenso parou minha queda depois de alguns segundos de desespero. Era o único, ainda que pequeno, pedaço de vegetação saindo daquela rocha num raio de 50 metros; se tivesse escorregado um pouco mais para lá ou um pouco mais para cá daquele ponto, teria sido meu fim.
Isolado naquele paredão maciço, dava para ouvir a música saindo a poucos metros acima e um pessoal gritando que alguém tinha caído. Para o alto havia uma rocha vertical e para baixo havia um precipício. Com meus pés mal tocando a raiz daquele abençoado, ainda que mínimo, tronco, me forcei a olhar para cima e a me concentrar em como sair dali vivo, um reflexo adquirido em situações perigosas no bodyboard em ondas grandes. Coloquei meus sapatos nos bolsos e consegui, não sei como, escalar a pedra descalço.
Quando ressurgi uma galera veio perguntar se estava tudo bem. Enquanto respondia que sim e calçava os sapatos, um segurança abriu caminho, me agarrou pelo braço dizendo que ia me entregar para a polícia. Levantei, me livrei e o desafiei.
“Meu irmão, não vou para delegacia nem pelo caralho, não está vendo que eu quase morri?!”
Um sujeito que tinha acompanhado o drama emendou: “Isso mesmo, larga o cara, eu vi! Ele quase caiu lá embaixo, não tem nada a ver levar o rapaz!”
Uma menina se juntou e foi mais contundente. “Vai ganhar a vida honestamente, seu otário! Vai pedir propina para ele agora?”
Tinha umas quinze pessoas protestando e um monte de curiosos chegando junto. Um outro segurança se aproximou, mas com tanta pressão tiveram que ceder.
“Tá bom! Tá bom! Não vai ter delegacia, mas ele vai descer no bondinho agora.” Eu queria continuar o protesto, mas a oferta era justa e a galera pareceu aceitar.
Na ida para o bondinho pensei no Márcio que devia ter sumido com medo de ser pego também.
“Tu tem sorte garotão, o último que a gente pegou aqui a gente encheu de porrada.”
A gente chegou na estação e ficou esperando em silêncio até o próximo bondinho estar pronto para descer. O cara da portaria veio perguntar o que estava acontecendo.
“A gente ia levar esse para a delegacia, mas ele teve sorte.”
“Como assim? Por quê?”
“Depois a gente explica.”
Antes da porta fechar, o que tinha me liberado falou: “Tu teve muita sorte, playboy, agradece a Deus e dorme bem.”
Fiquei pensando naquilo, nem zangado, nem arrependido. Dadas as circunstâncias, só podia agradecer ao meu Criador por estar vivo e vendo o terminal ficando para trás no céu escuro enquanto a Praia Vermelha, lá embaixo, se aproximava. Para além do que está escrito nos textos sagrados e nos livros de filosofia, para além do que dizem padres, rabinos e mulás, para além da própria razão, acreditava – como ainda acredito – na existência de um Deus onipotente que tinha decidido que aquela não tinha sido a minha hora. O porquê, nunca vou saber, mas uma boa conduta é o mínimo com o que posso retribuir.
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