Capítulo 12

“... aí eu vou misturar
Miami com Copacabana,
Chiclete eu misturo com banana
E o meu samba vai ficar assim...”

Jackson do Pandeiro – Chiclete com Banana

 

Apesar do fiasco na Escola Britânica ter quase acabado com o projeto de estudar cinema no exterior, ele continuou. A única alternativa que sobrou no Rio de Janeiro foi a Escola Americana ou a EA (pronunciada i-ei por todos que a conheciam). Inegavelmente era um melhor e mais sólida para adolescentes e ainda tinha a vantagem de que os cursos iam até a idade pré-universitária. O currículo, porém, era inteiramente voltado ao sistema americano. Quando me formasse teria que fazer faculdade nos Estados Unidos. Por todas serem privadas, isso custaria uma fortuna. Ao contrário, se fosse estudar no Reino Unido, muitas das melhores universidades eram praticamente gratuitas e melhores do que a maioria das Americanas. Ciente como nunca de que estávamos, mas não éramos, ricos, Rafael aprovou a decisão salgada. Um detalhe preocupante era que se mudasse de ideia e resolvesse permanecer no Brasil a escola não preparava para o vestibular.

O início foi desconcertante. O colégio possuía tudo o que se poderia esperar de uma High School americana: garotas e garotos ruivos e loiros falando inglês anasalado, um campo de baseball, uma equipe de futebol americano e a competição social inerente àquele tipo de instituição. Cobrindo o morro logo em frente a favela da Rocinha, a maior do mundo, era um lembrete de que aquele terreno enorme abrigando prédios futurísticos era o foco de um vírus estrangeiro.

O lado pedagógico da EA era tão avançado quanto sua arquitetura apesar das aulas serem ridiculamente fáceis. Não havia uniforme, construíamos nosso próprio currículo e estudávamos com diferentes alunos em diferentes salas de aula. Havia uma área de fumantes para os estudantes e vários professores, todos americanos e muito profissionais, tinham cabelos compridos, algo que nenhuma outra escola no Rio tinha nos anos setenta.

Numa cidade influenciada pela cultura Estado Unidense, em matéria de curtição, a escola era o Olimpo para a juventude da Zona Sul carioca. Quem havia introduzido o surfe, os biquínis e a maconha à cidade tinha estudado ou estava estudando ali. Meus colegas de turma eram filhos dos estrangeiros poderosos enviados para assegurar que a filial seguisse de perto as diretrizes da matriz na construção do “Novo Brasil”. Essa mentalidade colonial era visível na maioria dos estudantes e eu tinha que tomar cuidado para não absorver o sentimento generalisado de superioridade em relação aos brasileiros.

A maior parte dos colegas não era santa e estava vivendo junto com suas familias os melhores momentos de suas vidas. Longe de sua terra, os pais ganhando mais do que estariam ganhando em casa e onde tudo era mais barato, a rapaziada fazia todas as coisas erradas que outros da mesma idade faziam, mas com a vantagem de poder contar com a IBM, a Merck ou a Esso para intervir quando as aventuras terminavam mal. Esse tipo de impunidade era normalmente reservada apenas às famílias locais do mais alto escalão.

A elite da escola se conhecia bem por meio das festas, dos clubes e das organizações que seus pais participavam. Era fácil excluir os que não faziam parte da roda. Com o status de brasileiro, não-surfista, não-sarado e filho de um judeu idoso dono de um pequeno negócio, me barraram na hora. Os que faziam parte daquela turma tinham imaculados pedigrees americanos ou europeus, irradiavam autoconfiança, eram atléticos e pareciam arrasar em qualquer atividade física na qual se envolviam, menos no futebol. É claro que as meninas só davam bola para eles.

Aquela galera levava um estilo de vida difícil de se imaginar. Para começar, a maioria tinha barcos a sua espera na marina do Iate Clube do Rio de Janeiro. Muitos moravam em casas espaçosas, uma raridade mesmo naquele tempo. Os que moravam em apartamentos, viviam nos melhores endereços da cidade como as avenidas beira-mar de Ipanema e do Leblon, a Vieira Souto e a Delfim Moreira. Sempre que era convidado para suas festas ou para passar um tempo com algum deles, pensava comigo mesmo: “Então são essas as pessoas que moram aqui!” Aquela turma tinha acesso a coisas que eram ficção científica: videogames (algo que quase ninguém tinha na época), pranchas de surf e skates importados, discos de todas as bandas imagináveis e os melhores equipamentos de som disponíveis nos Estados Unidos. Seus fins de semana, quando não passados velejando num iate, eram passados em casas de veraneio que pareciam saídas de revistas especializadas e isso nas melhores localidades. Lá utilizavam todos os seus brinquedos.

Como se isso não bastasse, suas mesadas em dólar eram muito maiores do que o que eu recebia em um ano inteiro, que, por sua vez, era mais do que um salário mínimo. Meu pai tinha ganho bastante dinheiro extra com sua jogada na bolsa, mas comparados a essas famílias éramos pobres.

Os poucos amigos que fiz estavam numa situação parecida. No entanto trouxeram uma novidade: fumavam maconha. Depois que ficaram sabendo que tocava violão e dos meus gostos musicais não demorou muito para que me convidassem a descobrir qual era o motivo de tanto barulho.

Minhas primeiras tentativas foram decepcionantes. “Cara, cadê? Esse bagulho não era bom pra caralho? Já é o segundo e nada!”

“Calma, Rique, não bateu porque você está nervoso. Vou colocar um Pink Floyd para relaxar, Dark Side of The Moon. ”

“Tenho em casa, sei até tocar Time no violão.” Paranóico de que minha tirada de onda tinha caído mal, mudei de assunto. “Será que não bateu porque tossi demais?”

Aquilo foi a chave de ouro para a minha pagação de mico e todos caíram na gargalhada.

Rod, um cara que não ia com a minha cara, conseguiu parar de rir e falou. “Não falei que esse cara é muito louco?! Não bateu porque ele tossiu demais!!” E as gargalhadas voltaram.

Na terceira ou quarta sessão, tomando mais cuidado para não falar bobagem, fiquei na minha e de repente a ficha caiu que estava muito chapado.

“Caralho, cara, esse som tá muito bom!!”. Os caras olharam para mim esperando que eu falasse mais besteira. Levantei, olhei em volta me sentindo diferente e emendei. “Porra!!! Eu tô doidaço!!”. Dessa vez todos riram comigo.

A experiência não foi como tinha esperado, não havia unicórnios galopando pelo ar e as coisas não tomaram cores psicodélicas. A única mudança foi que a gente continuou rindo sem parar sem motivo nenhum enquanto trocavamos discos de bandas obscuras na vitrola. Sem dúvida, a onda dava uma dimensão diferente às coisas. Talvez por estar aprendendo violão, o efeito da fumaça deixava nítida as diferentes camadas da música. Eu parecia compreender o que se passava na cabeça dos músicos quando as criaram e quando as gravaram.

Enquanto a turma ficou inventando mentiras sobre ácido, heroína e maconhas mais potentes, falei que tinha que ir ao banheiro e fui curtir a novidade dando uma volta pelo apartamento. Os pais do dono da casa, Fred, tinham viajado e a casa estava vazia. Fiquei vagando no escuro pela sala de estar enorme vendo pinturas na parede, esculturas e plantas decorativas. Tudo tinha adquirido uma beleza que nunca teria notado em meu estado normal.

Quando voltei, já estavam fumando outro.

“E aí, Rique? ”

“Cara, esse negócio é muito bom! Me passa essa porra aí!” e todo mundo caiu de novo na gargalhada.

Depois daquela noite entrei numa sintonia diferente tanto na escola quanto na praia, no clube e em casa: agora pertencia a um clube secreto. Coisas e pessoas que nunca tinha entendido passaram a fazer todo sentido. Participar dessa realidade paralela era como a conquista de uma nova identidade. Na minha cabeça, meus pares em outras rodas, o Maurício, o Jaime e o Léo estavam morrendo de vontade de fazer o mesmo mas não tinham coragem.

O lado negativo foi que passei a levar uma vida dupla. Não disse nada para os meus outros amigos, muito menos para os meus pais. Os dois Riques não se misturavam, para um grupo continuei sendo o mesmo de sempre só que com sumiços e momentos estranhos, para o outro era um iniciante estabanado. Logo descobriria que a maconha era um repelente contra as garotas, mas e daí? Nunca iria conseguir nada com as beldades da Escola Americana mesmo.

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