O homem dos suspiros
Depois de um tempo, mal lembravam seu nome verdadeiro. Quem passava pelas ruas de Sapopemba à tardinha via o carrinho amarelo que rodava tranquilo, vendendo suspiros. Embalados no capricho pelo seu Lucrécio, que completava a renda familiar oferecendo o doce. Acabou conhecido como o Príncipe do Suspiro, desses tipos adoráveis que o corre-corre, o cinza chumbo dos paredões de concreto e a impessoalidade dos grandes centros urbanos engoliram. Irmão do lambe-lambe, primo do sorveteiro, sobrinho do vendedor de pirulitos cônicos caramelados e casquinhas.
Lucrécio tinha também uma atividade noturna. Impressionado com os rostos contraídos da gente do bairro, teve uma ideia, livre associação com seu carrinho de doçuras. Talvez pudesse aliviar aquela carga oferecendo-se para suspirar junto de quem quisesse compartilhar dores de todos os tipos. Sabe, a inspiração profunda, olhos fechados, expiração sem pressa, que ameniza tensões?
Descobriu um terreno baldio, dos últimos na vizinhança. Olhando para a grama maltratada, lembrou-se dos filmes de bangue-bangue de sua infância. Comanches, apaches e sioux reunidos em torno de fogueiras, compartilhando vidas e confirmando vínculos. Poderia arrumar uns gravetos, grama seca, banquinhos. Ouviria, à luz da chama dançante, o mar de angústia que corria a céu aberto e, solidário, ofereceria sua nova especialidade. Não mais o doce, mas o suspiro que relaxa.
Fez pequenos cartazes, que pendurou em postes do bairro. Todo dia, na hora tal, no terreno baldio da rua qual, ofereço suspiros para descarregar pesos e dificuldades várias. Não se garante eficiência, recomenda-se esperança. Estarei ao pé da fogueira. O banquinho é por conta da casa. Não se aceitam doações.
A notícia esparramou-se. Fulanos e beltranos ironizaram, achando que aquilo era conto do vigário. Sicranos, entretanto, ficaram curiosos e, movidos por corações machucados, ninhos vazios ou solidões crônicas, resolveram dar uma espiada. Se o Príncipe era bom no doce, quem sabe seria também num curativo para a alma?
Na inauguração, havia pouca gente. Hesitavam em se aproximar da pequena fogueira, que iluminava o rosto sereno de Lucrécio. Alguém, tenso, desconfiado, arrisca o primeiro passo e senta no banquinho. Fala de decepções e um luto recente. Lucrécio fecha os olhos, faz uma inspiração poderosa e solta o ar com força. Do outro lado, o visitante repete tudo. No final, olham-se. Havia, não se sabe por quê, uma forma de comunicação. Sem palavras. Sem ruídos. Um discreto sorriso encerra o pequeno ritual.
E vieram outros, muitos. Dia após dia. Amargos e acridoces. Silenciosos e silenciados. Atormentados e destroçados. Solitários, almas anêmicas, esquecidos, desesperados. A breve comunicação, a atenção voluntária e integral, a presença pura e simples, dissolviam, por instantes, a rotina de aflição e tristeza. A vida continuaria sem refresco. Todavia, o gesto de Lucrécio permanecia. Era isso que os visitantes comentavam.
Um dia, Lucrécio não apareceu. Lá estavam banquinhos, gravetos, grama seca. Vieram os famintos pelo contato, mas nada do Lucrécio. Olham-se uns aos outros, inquietos, numa orfandade triste. Depois de um tempo, vão todos embora.
E foi assim por uma semana, um mês. Voltavam e voltavam as gentes, em número cada vez maior. Até que alguém, iluminado por estrelas trêmulas no céu poluído, toca o ombro do que estava ao lado. Começam os dois a suspirar. Sem pressa. Aos poucos, como num balé improvisado, todos estavam na cadência suspirante. E saíram, sem perceber, da invisibilidade noturna, e reconheceram seus vizinhos, e olharam pela primeira vez para o cortejo que se reunia ao redor da fogueira. Deram-se conta de que eram a própria fogueira.
Na volta para casa, o comentário era um só. Mas aquele Lucrécio, hein?
Abraço. E coragem.